sábado, junho 20, 2020

Capitão Adriano integrava ‘núcleo’ de grupo de Flávio, diz MP

Capitão Adriano integrava ‘núcleo’ de grupo de Flávio, diz MP

Ministério Público reúne indícios de que ex-PM Adriano Nóbrega, chefe de milícia no Rio, era ‘executivo’ de organização criminosa e participou de plano para esconder família de Queiroz

Marcelo Godoy e Ricardo Brandt, O Estado de S.Paulo

20 de junho de 2020 | 05h00

Pela primeira vez desde o início das investigações sobre o gabinete de Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, o Ministério Público Estadual encontrou provas de que pessoas ligadas ao senador mantinham contato com o miliciano Adriano Magalhães da Costa Nóbrega, chefe da milícia Escritório do Crime, no período em que este era procurado pela Justiça. O chefe do grupo criminoso teria participado da elaboração de um plano de fuga da família do ex-assessor Fabrício Queiroz e integrava, segundo o MP, “o núcleo executivo da organização criminosa” liderada pelo atual senador.

Até então, as relações de Adriano com o gabinete de Flávio haviam acontecido no período em que, de acordo com as investigações, ainda não era pública a associação do ex-capitão com o crime organizado. Flávio, por exemplo, havia homenageado o então policial na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Também o visitara na cadeia, quando ele respondia a um processo por homicídio. Por fim, empregou a mãe de Adriano, Raimunda Veras Magalhães, e a ex-mulher dele, Danielle Mendonça da Costa, como funcionárias fantasmas em seu gabinete na Alerj, segundo a investigação.

No caso de Raimunda, o Ministério Público apresentou à Justiça provas de que ela nunca esteve na Alerj. Examinando os deslocamentos de seu telefone celular, foi possível verificar que o aparelho jamais se aproximou do prédio em que ela devia trabalhar. Raimunda é sócia de uma pizzaria com o filho. Da conta da pizzaria saíram R$ 69,2 mil para Fabrício Queiroz.

Tanto Raimunda quanto Danielle pertenceriam ao esquema de “rachadinha”, na qual parte do dinheiro pago aos assessores do gabinete seria apropriado pelo então deputado estadual Flávio Bolsonaro. 

No pedido de prisão de Queiroz apresentado à 27.ª Vara Criminal, o Ministério Público do Rio afirma que o capitão Adriano “se valia de parentes para integrar o núcleo executivo da ORCRIM (organização criminosa)”. O documento estima que ele repassou mais de R$ 400 mil para contas administradas por Queiroz, acusado de ser o operador financeiro da organização.

Operação

As pistas que ligavam o chefe da milícia ao esquema da rachadinha surgiram em outra investigação do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco). Eram dados extraídos do telefone celular apreendido com Danielle na casa do miliciano durante a Operação Intocáveis.

No WhatsApp da ex-mulher do criminoso – que morreu em tiroteio com a polícia baiana em 9 de fevereiro deste ano – foram achadas conversas com Queiroz. Segundo os promotores, ela tinha ciência de que era funcionária fantasma e temia a origem ilícita do dinheiro. Por fim, dizem os investigadores, Queiroz e Adriano “tentaram embaraçar a investigação”, mandando Danielle faltar no depoimento no MP. Eles enviaram um advogado para conversar com ela, “deixando claro que a organização criminosa, além de poder pressionar e intimidar as testemunhas dos fatos, estaria abordando as pessoas intimadas e articulando a combinação de teses defensivas fantasiosas entre os autores e partícipes dos crimes”.

Tudo isso antes de Adriano ter sua prisão decretada. O caso mais grave ocorreu depois e foi descoberto com a apreensão do celular da mulher de Queiroz, Márcia Oliveira Aguiar, ocorrida em 18 de dezembro de 2019.

Naquele dia, conforme o relatório do MP, ela pretendia embarcar para São Paulo, onde ia se esconder com Queiroz, que era mantido na casa do advogado Frederick Wassef, em Atibaia. Para não ser descoberto, Queiroz desligava o celular quando entrava na região de Atibaia – Márcia era orientada pelo “Anjo”, o homem que monitorava Queiroz, a fazer o mesmo.

O plano, segundo o MP, começara a ser traçado um mês antes, em reunião na cidade do interior paulista entre Queiroz, o advogado Luis Gustavo Botto Maia, que defende Flávio Bolsonaro, e o Anjo. Eles aguardavam o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal sobre o compartilhamento de dados do Coaf e temiam uma decretação de prisão. Mensagens de Queiroz à mulher mostram que o ex-assessor mandou Márcia procurar Raimunda, que estava escondida em uma casa na cidade de Astolfo Dutra, em Minas.

Era necessário conversar pessoalmente com a mãe do miliciano, que se escondia em Minas por orientação de Queiroz e de Botto Maia. O advogado do senador também participaria do encontro. Os três iam esperar a chegada da mulher de Adriano, que levaria ao miliciano um recado de Botto Maia.

Quando estavam na cidade, Márcia mandou foto dela com o advogado para Queiroz. Ele, então, segundo a promotoria, advertiu a mulher “para apagar sua localização, a fim de dificultar eventual rastreamento, o que mais uma vez ressalta a natureza clandestina do encontro e o provável caráter ilícito da proposta que estaria sendo encaminhada a Adriano”. Depois, novo encontro entre os quatro ocorreu no Rio, no dia 17, quando a mulher do miliciano voltou da Bahia e transmitiu pessoalmente a reposta do foragido ao advogado do senador. 

Defesas deverão contestar prova com base em conversas

Estadão procurou a defesa do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), mas não conseguiu localizar o advogado Frederick Wassef. Também procurou a assessoria do parlamentar no senado, mas não obteve reposta. O jornal também procurou as defesas do ex-assessor Fabrício Queiroz, de Raimunda Vera Magalhães, e Danielle Mendonça da Costa, mas o advogado Paulo Emílio Catta Preta não quis se manifestar. A reportagem apurou que a defesa deve contestar o valor probatório das conversas entre os investigados encontradas no WhatsApp da mulher de Queiroz, Márcia Oliveira Aguiar. / COLABOROU CAIO SARTORI

Um homem cada vez mais só - ASCÂNIO SELEME

O Globo - 20/06


Este é o momento de maior isolamento de Jair Bolsonaro desde o dia 18 de fevereiro de 2018, quando iniciou sua caminhada para a solidão com a demissão de seu primeiro ministro, Gustavo Bebiano da Secretaria-Geral da Presidência. Aos poucos, mas com uma determinação impressionante, que parece um auto flagelo deliberado, o presidente foi construindo muros e destruindo pontes de modo a ficar praticamente ilhado. Hoje, além dos seus três zeros, de alguns ministros que se identificam ideologicamente com ele, dos puxa-sacos habituais e dos que ganharam uma boquinha no governo, Bolsonaro não tem com quem contar. Nem com os seus generais.

Não vale citar a turma desvairada das redes sociais. Muita gente ali nem gente é, todos sabem como funcionam os robôs do bolsonarismo, e com que velocidade. Os alucinados que vão às ruas com cartazes contra o STF e o Congresso tampouco importam neste cálculo. No Congresso, o centrão se aproxima, mas basta um vento leve para fazê-lo mudar de direção. O pragmatismo desse agrupamento político é que o orienta. Vai sugar o que for possível do governo, mas sem se comprometer com o seu fracasso.

O presidente nem partido tem. Ao romper com o PSL, arrumou uma dúzia de novos desafetos com mandatos federais. Está cada vez mais claro para quem faz política partidária que não vai ser fácil para Bolsonaro recompor sua base, que já era pequena, mesmo distribuindo ministérios, diretorias de estatais e de autarquias, contrariando frontalmente a sua mais importante promessa eleitoral, de não entrar no jogo de troca cargos por apoio político. No caso, aliás, o que Bolsonaro busca não é apoio para governar, mas sim para não cair antes do fim do seu mandato. Para governar, o presidente precisaria do apoio de 257 deputados. Para barrar seu impeachment, bastam 172.

Bolsonaro perdeu esta semana a cumplicidade dos generais do Palácio. Embora continuem no governo, dando suporte administrativo ao presidente, Heleno, Braga e Ramos não topam defender os malfeitos dos filhos. A prisão de Fabrício Queiroz disparou o alarme. O caso é grave e tem desdobramentos que podem chegar ao presidente, embora legalmente ele seja inalcançável. Mesmo que ele e sua mulher sejam incriminados em razão do dinheiro que Queiroz depositou na conta de Michelle, o crime terá sido cometido fora do mandato e Bolsonaro só terá de se explicar à Justiça depois de terminado o seu mandato. Ainda assim, os generais preferem não se misturar com essa bagunça.

Com a prisão de três dos 30 que se intitulavam 300, sumiram os parcos apoiadores mais barulhentos. Restam os que rasgam dinheiro e carregam faixas pela intervenção militar, mas estes também são poucos e, como já dito, importam tanto quanto uma garrafa vazia. Bolsonaro tem ainda as milícias. Estas serão suas enquanto ele estiver ajudando. Embora sejam agradecidas por portarias como a que suspende as normas de rastreamento de armas no país, as milícias podem se afastar do capitão caso ele se torne um problema tão grande que acabe jogando luz sobre a sombra em que praticam suas atividades ilegais. Outra vez o alarme de Queiroz.

Finalmente, pesquisas mostram que o presidente tem 30% de apoio popular. Este é o número mágico no qual ele se agarra para tentar provar que vai bem. O problema é que do outro lado estão os 70% que não o apoiam. Bolsonaro está se isolando na medida em que permite absurdos como os cometidos por Abraham Weintraub, que foram esquentando e aumentando até que sua permanência no ministério se tornasse insustentável. A situação do presidente é muito grave, e ao final ele pode não ter com quem contar.

Quem É o manda-chuva?
A pose arrogante e desafiadora de Abraham Weintraub diante de um Jair Bolsonaro contido e visivelmente desconfortável aparentemente queria mostrar quem manda na casa. O anúncio da demissão do estrupício do Ministério da Educação foi feito pelo próprio. Ele disse também que vai preparar a transição para um novo ministro, que ainda não sabe se será permanente ou interino, e avisou que vai para o Banco Mundial, com salário de R$ 100 mil por mês. Como no vídeo o demitido parecia ser Bolsonaro, o ato apenas serviu para explicitar quem é o manda-chuva. Trata-se do chefe do estorvo, que nunca foi Bolsonaro, mas sim Olavo de Carvalho, o terraplanista de Richmond que deve indicar o substituto.

Foi péssimo, mas pode piorar
Weintraub foi o pior ministro da Educação de todos os tempos. Nunca na História desse país viu-se tamanho disparate na gestão da Educação brasileira. O ministro demitido foi um zero, um nada, um coisa nenhuma. O setor passou os últimos 14 meses paralisado com Weintraub, ultrajado pelos seus métodos, estupefato pela sua ignorância e pelo tamanho da sua incapacidade. Já que no Brasil o que é ruim sempre pode piorar, não custa esperar pelo seu substituto. E como quem deve nomeá-lo é o homem que mandou Bolsonaro enfiar suas medalhas naquele lugar, é bom estar preparado para qualquer coisa.

‘Armistício patriótico'
Talvez o objetivo do novo ministro das Comunicações, Fábio Faria, tenha sido sensibilizar o Congresso Nacional ou o Supremo Tribunal Federal. Com certeza foi essa a impressão que deve ter causado em Bolsonaro, seus zeros e sua turma mais próxima ao pregar um “armistício patriótico”. Agora, francamente, o que Congresso e Supremo poderiam fazer para atender ao pedido do ministro? O STF teria de suspender todas as ações contra os criminosos amigos e familiares do presidente? Ou o Congresso precisaria abaixar a cabeça e deixar passar todas as barbaridades oficiais, como a MP dos Reitores? A recomendação de Faria, na verdade, só cabe ao presidente da República. Mesmo assim, parece que a sugestão chegou tarde. Bolsonaro já cometeu crimes demais para assinar qualquer armistício.

Que isso, doutora?
A delegada Denisse Dias Rosas deve ser afastada do grupo que investiga as ações dos bolsonaristas determinada pelo STF. Será o mínimo que a instituição pode fazer por causa do pedido que ela fez ao ministro Alexandre de Moraes para “postergar” uma ação contra o grupo para não trazer “risco desnecessário à estabilidade das instituições”. Uma delegada tem todo o direito de sugerir alternativas ao juiz de uma causa por questões objetivas, nunca em razão de uma reflexão política. Pode recomendar o adiamento de uma operação por ter recebido dados de inteligência que recomendam cautela ou pela falta desses dados. Ou por causa da chuva. Mas não porque o presidente está irritado com a PF e a hora não é boa. Convenhamos. A delegada deve seguir a carreira sentada atrás de uma mesa no almoxarifado da corporação.

Demissão exemplar
O governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha, não é mocinho. Não se pode dizer que é bandido, ainda é cedo, mas mocinho ele não é. Feita essa ressalva, é preciso aplaudir o governador pela demissão do coronel Sérgio Luiz Ferreira de Souza, subcomandante que ocupava o comando da PM do DF em razão da ausência do titular hospitalizado. O militar se omitiu, segundo Ibaneis, ao não impedir que os cretinos do grupo 300, que nunca passaram de 30, soltassem rojões sobre o STF. É preciso colocar algum freio nas PMs nestes dias, impedir que um viés ideológico se infiltre e acabe influenciando decisões de segurança. A demissão do coronel foi exemplar.

Avisa a mãe
Coisa mais fofa. Preso, Fabrício Queiroz usou o seu direito de dar um telefonema para ligar para casa. Falou com a filha, disse que foi preso e deu a orientação: “Avisa a mãe”. Claro que se tratava da uma senha. Poderia ter dito “avisa a mãe que me ferrei e manda ela fugir”. Márcia Aguiar, mulher de Queiroz, é “bem conectada” e pode estar longe uma hora dessas. O Ministério Público, segundo O GLOBO, baseou seu pedido de prisão de Queiroz e Márcia nas negociações da mulher com a milícia do Rio para um plano de fuga dela e do marido. Aliás, já foi dito aqui, a milícia é uma das poucas “forças” que ainda não abandonaram Bolsonaro, seus filhos e seus amigos.

Capitão perde seu melhor papel: culpar os outros - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 20/06


A teatralidade radical de Jair Bolsonaro começou a perder o nexo na manhã da última quinta-feira. A prisão do amigo Fabrício Queiroz num imóvel pertencente ao advogado da família Bolsonaro expôs o capitão a um revés que lhe sonega o papel que melhor desempenha. Pela primeira vez, não pode culpar os outros —a menos que queira apertar o nó que adorna o pescoço do primogênito Flávio.

A conjuntura impôs a Bolsonaro uma encenação para a qual ele não estava ensaiado. Ficou momentaneamente proibido de ser o brigão que aprecia. Obrigou-se a parecer o conciliador que nunca foi. Na quinta-feira, horas depois da cana de Queiroz, serviu na bandeja aos "vagabundos" do Supremo a cabeça de Abraham Weintraub, o mastim ideológico que mantinha na pasta da Educação.

Na sexta, Bolsonaro enviou ao apartamento do desafeto Alexandre de Moraes, em São Paulo, uma missão de paz composta de três membros do seu staff jurídico: os ministros André Mendonça (Justiça) e Jorge Oliveira (Secretaria-Geral), e o advogado-geral da União José Levi Mello do Amaral Júnior.

Suprema ironia: apenas 48 horas antes, Bolsonaro ainda estava sob a influência dos auxiliares que aguçam os seus maus bofes, reivindicando o sangue dos rivais. Ralhava com o mesmo Alexandre de Moraes, que jogara o peso de sua caneta de ministro do Supremo em despachos que enviaram os rapazes da Polícia Federal a 21 endereços de bolsonaristas e invadiram as contas bancárias de 11 parlamentares governistas.

"Estão abusando. Isso está a olhos vistos", dissera o Bolsonaro irascível de sexta-feira. "Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar." Os próximos lances de Bolsonaro serão complicados. A maneira como o capitão lidará com as adversidades haverá de marcar a história do seu governo. Além do enrosco chamado Queiroz, há os três inquéritos que correm no Supremo.

Num dos inquéritos, apura-se a denúncia de Sergio Moro de que Bolsonaro tramou a conversão da Polícia Federal num aparato político. Noutros dois, investiga-se a indústria de notícias falsas e de ódio antidemocrático que o bolsonarismo mantém nas redes sociais e nas manifestações de rua.

No momento, pode parecer exagerada a afirmação de que o governo Bolsonaro flerta com o impedimento ou a cassação. Mas com o número de infectados do coronavírus ultrapassando a casa de 1 milhão de pessoas e a pilha de mortos ainda na ascendente, o brasileiro tem dificuldade de enxergar a serventia de um presidente que arrasta na conjuntura a bola de ferro de um amigo tóxico e uma agenda penal.

As palavras que Bolsonaro jogou ao vento premonitórias. Está mesmo "chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar."

Pensando o impensável - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 20/06

Resultado mais provável da ruptura da ordem parece-me ser um longo período de anarquia


Um momento histórico que eu gostaria de ter presenciado aconteceu no dia 1.º de novembro de 1944: um breve encontro entre o ministro da Justiça, Marcondes Filho, e o general Eurico Dutra. O relato está no ótimo livro de Paulo Brandi Vargas: da Vida para a História (Zahar, 1985, pág. 178).

Desde a entrada do Brasil na guerra contra o fascismo, Getúlio pressentia que não conseguiria manter sua ditadura. Em 1943, o Manifesto dos Mineiros desafiou a censura e escancarou o debate sobre a redemocratização. A presença da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, com apoio dos Estados Unidos, apontava para um ponto sem retorno. Nos meses seguintes, a pressão contra Getúlio alastrou-se rapidamente nas Forças Armadas. No final de outubro os generais Góes Monteiro e Eurico Dutra procuraram-no para insistirem na convocação de eleições. Getúlio aquiescia sem aquiescer. Cogitava de transitar para um regime híbrido, cujo comando permanecesse em suas mãos. Foi nessa altura que se deu o encontro de Marcondes Filho com o general Eurico Dutra.

O ministro havia rascunhado um projeto de lei eleitoral de teor corporativista, ou seja, baseado na representação por categorias profissionais, formato característico da tradição fascista. Foi quando, respondendo a Marcondes Filho, Eurico Dutra disse-lhe, curto e grosso: “Não é isso, não, dr. Marcondes, é eleição mesmo...”.

O referido momento parece-me assinalar com clareza a opção das Forças Armadas por uma identidade propriamente de Estado, impessoal, baseada na hierarquia e na disciplina, com a consequente rejeição do modelo de uma guarda pretoriana, ou seja, de uma milícia a serviço de um caudilho qualquer.

Mas tal modelo não era isento de problemas. Nos anos 30, sob a decisiva influência do general Góes Monteiro, ganhou corpo o modelo de uma organização tutelar, destinada não somente à defesa externa do País, mas legitimada para também atuar sponte sua no plano interno.

Os apontamentos acima ajudam a compreender o artigo 142 da Constituição de 1988, que alguns juristas chegam a interpretar até mesmo como uma autorização para as Forças Armadas atuarem como um Poder Moderador, dirimindo impasses entre os três Poderes. Não chego a tanto, mas, de certa forma, vou além, pois, no trecho a seguir, tal artigo me parece virtualmente ininterpretável: “...(as Forças Armadas) destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O trecho grifado admite a esdrúxula hipótese de as Forças Armadas – no tocante à manutenção da lei e da ordem no plano interno – serem convocadas por dois ou até pelos três Poderes ao mesmo tempo. Considerando, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal (STF) é o guardião da Constituição, instância última, portanto, da legitimidade política, cabe a ele esclarecer quando e em que termos as Forças podem ser convocadas – uma rima que em nada melhora o soneto.

A questão acima suscitada parece-me assumir contornos graves no presente momento, visto que agora não se trata de um imbróglio constitucional em abstrato, mas de uma conjuntura que muitos têm descrito como uma “tempestade perfeita”: em meio a uma terrível epidemia e a uma crise econômica sem precedentes, temos tido frequentes atritos entre os Poderes e um presidente da República pouco propenso a observar os limites e a liturgia do cargo que ocupa. Como se não bastasse, as Forças Armadas assumiram uma presença excessiva no Executivo, emprestando-lhe, por conseguinte, uma legitimidade que cedo ou tarde reduzirá a estima em que são tidas pela sociedade brasileira.

Acrescente-se que o protagonismo apaziguador do Legislativo esbarra em severos limites no presente momento, uma vez que a composição do Congresso Nacional ainda deixa a desejar, não obstante as reformas que se tem tentado fazer.

Por último, mas não menos importante, é preciso levar em conta o clima de radicalização, acentuado a partir das eleições de 2018, e os frequentes apelos que certos setores têm feito no sentido não só de tumultuar, mas efetivamente de solapar o regime democrático, exigindo alguma forma de intervenção militar. Um ponto fundamental que tais setores não parecem compreender é que o Brasil de 2020 é muito diferente do de 1964. Naquele ano, bastou às Forças Armadas prender umas poucas centenas de pessoas para assumirem o controle do País. Hoje a população brasileira é muito maior, está concentrada em grandes cidades e é muito mais diversificada, politizada e atenta. Mercê dos meios eletrônicos de comunicação, consegue se mobilizar com extrema facilidade. Tais mudanças não necessariamente conferem vantagem a algum dos grupos que se digladiem num hipotético confronto, até porque o resultado mais provável de qualquer ruptura da ordem parece-me ser um prolongado período de anarquia, ao fim da qual tudo estará mais ou menos na mesma, só que muito pior.

BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORES E MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Malabarista chinês - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 20/06

Silêncio de Bolsonaro sobre prisão de Queiroz explicita a gravidade da situação


O silêncio eloquente do presidente Bolsonaro sobre a prisão de seu amigo de longuíssima data Fabrício Queiroz explicita a gravidade da situação. A depender do que os investigadores da Polícia Federal encontrarem nos celulares e documentos apreendidos em Atibaia, a situação pode levar a crise institucional a um desfecho que se prevê desde os primeiros escândalos do governo Bolsonaro.

O caminho para o impeachment parece ser inevitável, já está marcado no GPS político, só não se sabe a velocidade em que isso se dará. Que a vaca foi pro brejo, ninguém duvida. A questão agora é calcular a distância do brejo e a velocidade da vaca. O centrão é especialista nesses cálculos, e tudo indica que seus membros vão partir com mais sede ao pote para aproveitar o que resta do governo.

Engano achar que alguém compra o centrão. Só aluga, e sem multa rescisória. Foi assim com Dilma, quando a situação ficou insustentável do ponto de vista político e econômico. O governo Bolsonaro caminha para essa impossibilidade diante da tragédia econômica de uma queda do PIB de 10%, cuja recuperação exigirá um esforço nacional de anos seguidos, impossível de se obter em um governo beligerante e errático como o que temos, com um presidente incapaz de unir até mesmo os seus.

A partir da crise, após a reforma da Previdência, as demais reformas perderam o timing político, ainda mais em ano de eleição. A situação é tão difícil que nem mesmo as condições mínimas para implementar um novo pacote social existem. Os governantes anteriores ao PT já haviam criado diversos programas sociais, e a união de todos eles no Bolsa Família, sob o comando das prefeituras, foi uma jogada eleitoral proposta pelo então ministro Patrus Ananias, para substituir o fracassado Fome Zero, coordenado por Frei Betto, que tinha uma visão menos eleitoral e mais de ativismo político, uma tentativa de empoderar os líderes comunitários em substituição aos políticos locais.

O potencial dessa união de programas, que Ruth Cardoso preparava com o cadastro único e sem concessões políticas, alavancou o petismo, especialmente no Nordeste. Bolsonaro anseia agora criar o Renda Brasil, que seria o seu Bolsa Família ampliado, o que certamente daria uma alavancada em seu projeto político, mas a pandemia da Covid-19 estragou seus planos.

A distribuição da renda complementar de R$ 600,00 sustentou sua popularidade que começava a decrescer. Mas somente o Renda Brasil permanente pode lhe garantir a fidelidade desse eleitorado que não é dele. Mas a crise econômica dificilmente dará espaço para tal. Seria preciso um malabarista chinês para conseguir deixar no ar sem cair pratos tão diferentes no peso e no tamanho quanto centrão, acampamento 300 do Brasil, milicianos, rachadinha, economia liberal, democracia, militares, populismo. Bolsonaro é mais parecido com um rinoceronte em casa de louças.

Os apoios encarecem de um lado, e dão certo medo de outro. O risco ficou maior porque o presidente está fragilizado e a caminho de um impedimento. A investigação sobre Queiroz não vai parar no esquema de rachadinha, mas avançar para outras questões, como a relação com milicianos.

Após a prisão de Fabricio Queiroz, o presidente Bolsonaro está claramente na defensiva. Para se ter uma ideia das dificuldades, uma pergunta básica que não quer calar em Brasília: se Queiroz não estava sendo perseguido, por que estava escondido?

Um comentário povoa as investigações: quando foi encontrado, parecia estar em cárcere privado. Três inquéritos no Supremo Federal (STF) são direta ou indiretamente ligados a ele e agora as investigações sobre a ligação com Queiroz com sua família. Vai aparecer uma série de informações que formarão um quadro muito perigoso para qualquer pessoa, ainda mais para um presidente da República. O quebra-cabeça está ganhando forma, e nada ajuda Bolsonaro. Mesmo que não possa ser julgado por atos cometidos antes do mandato, as revelações que as investigações possam revelar vão deixa-lo enfraquecido politicamente, na popularidade e no apoio no centrão que, quando chega na beira da cova, não salta junto com o caixão

Sabujo expelido - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 20/06

Na ânsia por demonstrar servilismo, Weintraub enfraqueceu Bolsonaro


Embora inexistam motivos para esperar uma substituição virtuosa no Ministério da Educação sob Jair Bolsonaro, a saída forçada de Abraham Weintraub não deixa de proporcionar algum alento ao país.

Num primeiro escalão em que nomes como Ernesto Araújo (Relações Exteriores) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) desmoralizam suas pastas e mancham a imagem do país, Weintraub conseguiu sobressair em inépcia e indignidade.

O anúncio de sua demissão, após ataques reiterados a ministros do Supremo Tribunal Federal, mostra um governo compelido a reconhecer limites, mesmo que apenas circunstanciais, para o comportamento indecoroso. É o que transparece na imagem de um constrangido Bolsonaro a receber o abraço sôfrego do subalterno expelido.

Na ânsia de demonstrar seu servilismo, o agora ex-ministro contribuiu para o enfraquecimento de um governo rodeado por inquéritos judiciais —um deles, relativo a esquemas de disseminação de notícias infundadas, envolvendo o próprio Abraham Weintraub.

A tagarelice golpista pôs fim à sua curta e vexatória passagem pelo MEC, que só não foi mais danosa porque o provimento prioritário de ensino básico está a cargo dos governos estaduais e municipais.

Ainda assim, a política educacional perdeu tempo precioso com a omissão da pasta nas negociações legislativas para a renovação do Fundeb (o fundo de financiamento dos ensinos fundamental e médio), na implementação da base curricular nacional e, por fim, nos esforços para a retomada das aulas durante a pandemia.

A ladainha contra o espantalho da doutrinação esquerdista nas escolas e universidades não mais esconde a indigência das ideias do bolsonarismo e de seus gurus para o setor. O fanatismo ideológico e a incapacidade para o diálogo inviabilizaram até debates pertinentes, como o da captação de recursos privados na educação superior.

Weintraub agora intenta envergonhar o Brasil aceitando um posto no Banco Mundial —ironicamente, uma das instituições de um tal globalismo satanizado pela direita populista. A valentia de arruaceiro das redes sociais se compatibiliza, de súbito, com o conforto de uma sinecura bem remunerada e distante da Justiça brasileira.

Lá, não terá ou não saberá o que fazer, mas isso nunca foi empecilho para o bravo sabujo de Bolsonaro.

sexta-feira, junho 19, 2020

Avôs, filhos e netos - NELSON MOTTA

O GLOBO - 19/06

Chávez também odiava a imprensa


Perguntei a meu neto de 24 anos o que ele contará ao neto dele sobre o que foi viver, e sobreviver à pandemia. Por pior que seja, é antes de tudo uma história extraordinária, maior e mais surpreendente do que qualquer ficção, cheia de emoção, heroísmo, mortes em massa, bandidos que roubam respiradores de moribundos, guerra do Executivo contra o Legislativo e o Judiciário, milícias digitais manipulando notícias e um presidente da Republica ensandecido, irresponsável e incontrolável. Certamente meu tataraneto vai achar que o avô dele está exagerando, aumentando, ou até mentindo só para diverti-lo, como muitas vezes fiz com meus netos.

Depois conversamos sobre golpes, porque vi vários, e ele, futuro advogado, está preocupado com as ameaças do Bozo, e pediu que eu escrevesse sobre o que falamos: o Brasil, irônica e tragicamente, está começando a viver um “chavismo de direita”, unindo a pior parte da direita e a pior do chavismo. Por que arriscar a aventura de um autogolpe, que a maioria do Exército não apoia, e 70% da população são contra? O melhor é o “golpe gradual” inventado por Chávez, tudo na lei, usando a democracia para corroê-la por dentro, militarizando o governo, e dominando o Congresso porque a oposição burra não quis concorrer.

Chávez odiava a imprensa, e com a ajuda da Suprema Corte e dos tribunais, já cheios de juízes terrivelmente chavistas, foi fechando jornais e redes de televisão independentes, até a maior delas, a RCTV, e só restaram emissoras chavistas, cevadas por verbas públicas. É como se Bolsonaro fechasse a TV Globo.

Coronel do Exército, Chávez adorava armas e acreditava nelas como o melhor argumento, criou e armou milícias populares “para defender a pátria do Império”, aparelhou toda a administração e os serviços de inteligência, ninguém ousava contestá-lo. Qualquer opinião contrária virou traição.

É o sonho em progresso de Bolsonaro, só que Chávez, embora meio amalucado, era muito inteligente. E não tinha filhos. Nem era amigo do Queiroz.

A chegada do cometa - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 19/06

Decididamente, o governo Bolsonaro é para entrar nos anais


A coluna de hoje não é recomendada para leitura durante refeições. Seu assunto é o ânus de Jair Bolsonaro e os desarranjos de seu governo. Desculpe o calão intestinal, mas faz parte da linguagem com que, pela primeira vez no Brasil, um presidente da República passou a se expressar.

O leitor se lembra. Pouco depois de sua posse, Bolsonaro confessou ter feito xixi na cama até os cinco anos de idade. Por algum motivo, disse também que o brasileiro não sabia lavar o pênis com água e sabão e, num arroubo de modéstia, declarou para uma plateia extasiada que continuava “na ativa e sem aditivos”.

Dias depois, no Carnaval, protagonizou o extraordinário episódio do golden shower, postando um vídeo em que dois rapazes se urinavam. Com essa fixação fálica e urinária de Bolsonaro, só a diplomacia explica que os outros chefes de Estado continuassem lhe apertando a mão.

Mas Bolsonaro, para quem “porra” é vírgula, evoluiu —levou seu governo à fase fecal e anal. Na inesquecível reunião ministerial de abril, chamou dois governadores e um prefeito de “bostas” e, referindo-se aos processos movidos pelo STF, alertou: “O que esses caras querem é a nossa hemorroida!”.

Como não se sabia que o presidente sofria de dilatação venosa em região tão delicada, ficou ainda mais dolorosa a recente afronta a ele dirigida por seu mentor Olavo de Carvalho, que, defecando para uma condecoração com que Bolsonaro o distinguira, mandou-o “enfiar a condecoração no *”. Foi a ordem mais chocante dirigida até hoje a um presidente no Brasil e, pelo silêncio presidencial como resposta, não se sabe se foi cumprida.

Agora, com a prisão de Fabrício Queiroz, volta à tona a desesperada advertência do velho amigo ao chefe que parecia tê-lo abandonado: “O Ministério Público tem uma pica do tamanho de um cometa pra enterrar na gente!”

Decididamente, este é um governo para entrar nos anais.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Bolsonaro encurralado - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 19/06

Penso que o melhor remédio para suas transgressões ainda é o impeachment


O home office funciona melhor no Judiciário do que no Legislativo. São os procuradores e juízes, e não os parlamentares, que estão se constituindo como vetor de resistência ao bolsonarismo.

A prisão de Fabrício Queiroz coloca ainda mais pressão sobre o clã presidencial. Os procuradores tiveram o cuidado de pedir também a prisão preventiva da mulher do ex-assessor, o que eleva as chances de ele entregar o jogo em vez de assumir sozinho a culpa por eventuais crimes cometidos pela primeira família.

O fato de Queiroz ter sido encontrado em propriedade do advogado dos Bolsonaros tampouco ajuda. Não é ilegal dar guarida a alguém que não era procurado pela Justiça, mas fazê-lo desmonta a narrativa de que o ex-assessor agira sozinho e estava rompido com o clã. Não que alguém um dia tivesse acreditado nisso, mas é ruim ser apanhado na mentira.

E a investigação sobre as “rachadinhas” é só uma das frentes abertas no Judiciário. Nos últimos dias, registraram-se avanços nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, bem como no processo eleitoral que corre no TSE.

Confesso que não ficarei chateado se alguma dessas iniciativas resultar na cassação de Jair Bolsonaro, mas penso que o melhor remédio para suas transgressões ainda é o impeachment. Não que não existam infrações penais ordinárias ou que o presidente não deva responder por elas, mas, se é lícito estabelecer uma hierarquia delitual, os crimes de responsabilidade me parecem mais importantes. Bolsonaro, afinal, ao atropelar princípios da administração e da decência, não soube comportar-se como presidente, tendo violado inúmeras vezes a letra e o espírito da Constituição.

A analogia é com Al Capone. Não podemos afirmar que sua prisão por sonegação fiscal tenha sido injusta, mas não há dúvida de que teria sido mais didático se ele tivesse sido condenado por algum dos muitos assassinatos que ordenou.

Mourão no radar - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 19/06

Queda de Weintraub não ‘baixa a bola’, pois as pontas contra Bolsonaro se juntam rapidamente



A pergunta não é mais onde está o Queiroz, mas onde está Jair Bolsonaro. Com Fabrício Queiroz preso, Frederick Wassef desmascarado, a pressão de STF, TSE, TCU, Congresso, Justiça do Rio e movimentos pró-democracia, a situação do presidente da República vai se tornando insustentável. Cresce o alívio em setores governistas que se decepcionaram com Bolsonaro e agora trabalham pela ascensão do vice Hamilton Mourão. Neste caso, estão militares da ativa e da reserva.

O temor desses setores era de que o torniquete fosse do TSE e estrangulasse a chapa Bolsonaro-Mourão, mas o cerco contra Bolsonaro, filhos, advogado e apoiadores mais radicais se fecha não no TSE, que pode cassar a chapa, mas no Supremo, onde as investigações envolvendo bolsonaristas de todos os tipos levam diretamente ao presidente e não há nada contra o vice.

Sem esquecer que as circunstâncias e a opinião pública começam a pressionar o Congresso, onde o alvo de um impeachment seria Bolsonaro, não a chapa, não o vice. Com as várias frentes que desembocam no presidente, não há Centrão capaz de segurar uma onda que vem de fora e pode chegar incontrolável ao Congresso – como nos casos de Collor e Dilma.

As pontas se juntam rapidamente: milícia, rachadinha, gabinete do ódio no Planalto, parlamentares, empresários e manifestantes golpistas, o tal Wassef... Sem currículo, sem casos expressivos, vira advogado e faz-tudo do presidente, esconde o Queiroz em casa e indica para ele o mesmo advogado de quem? Do capitão Adriano, o miliciano morto pela polícia numa operação, suspeita-se, de queima de arquivo.

Tudo em torno de Bolsonaro é estranho. Tudo e todos. Como um cidadão como Wassef se aproxima, vira amigo da família, participa de posses e desfruta da intimidade dos palácios? Ligações com satanismo, ex-mulher processada por uma montanha de crimes, faixa pró AI-5 ao lado de bonecos do Scarface, poderoso chefão hollywoodiano. Pensem nos empresários, pastores, líderes partidários e gurus que integram esse círculo. Cada vez é mais difícil participar disso. Sérgio Moro que o diga.

Se a demissão de Abraham Weintraub do MEC é para restabelecer pontes do governo com o Supremo – ou “baixar a bola”, como dizia Mourão –, é tarde demais. Até porque a bola não está mais só no STF. O pedido para quebrar o sigilo bancário de parte da bancada bolsonarista foi da PGR. A decisão de prender Queiroz foi da Justiça do Rio.

Militares da ativa e da reserva, juristas renomados e personagens importantes de governos anteriores tentavam articular com ministros do Supremo uma espécie de trégua, encampando uma crítica recorrente de Bolsonaro: “Estão abusando”. Seria então a hora de dar um “refresco”, “um pouco de ar” para Bolsonaro.

Isso não seria exatamente a favor dele – considerado caso perdido –, mas para dar uma satisfação aos militares que estão no bloco dos cansados com o presidente, mas ao mesmo tempo convencidos de que o Supremo e a mídia extrapolam e há uma perseguição contra Bolsonaro. Os fatos, no entanto, se acumulam e mostram que nem há exagero nem perseguição, mas a constatação de que a eleição dele foi um erro. O País está à deriva em meio a uma pandemia devastadora.

Alerta o ex-presidente do STF Ayres Britto: “Numa democracia consolidada, não se pode impedir a imprensa de falar primeiro nem o Judiciário de falar por último”. O presidente e seus apoiadores, arrependidos ou não, precisam entender que não há “abusos” do Supremo. Há decisões com base na Constituição, a defesa implacável da democracia. E não há como dar um “respiro” nem “baixar a bola”, inclusive porque o Supremo é a parte mais visível, mas integra uma sólida resistência a um presidente que nunca assumiu de fato. Mourão está no radar

O fantasma da roubalheira - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 19/06

Ex-assessor ressurge e revira métodos típicos dos políticos do baixo clero


Por algum tempo, Jair Bolsonaro tentou se distanciar dos rolos de Fabrício Queiroz. Quando foi revelado o esquema de confisco de salários num dos gabinetes do clã, o presidente disse que o fiel aliado era quem deveria responder. “Não tenho nada a ver com essa história”, afirmou, assim que assumiu o cargo.

Não deu para disfarçar. A prisão do ex-policial numa casa ligada ao advogado Frederick Wassef sugere que o amigo de Bolsonaro estava sob a guarda da família. O doutor não era apenas um representante legal de Flávio. Ele frequentava o Palácio da Alvorada e circulava como homem de confiança do presidente.

Já Bolsonaro e Queiroz se conhecem há mais de 30 anos. Embora o clã tenha negado contatos com o ex-assessor, os acontecimentos mais recentes oferecem indícios de que essa conexão jamais foi desfeita. Nessas circunstâncias, o avanço das investigações se torna uma ameaça.

O Planalto anda acuado por apurações sobre o financiamento de uma rede de informações falsas e pelo cerco a alguns de seus apoiadores mais radicais, mas o fantasma do caso Queiroz representa uma assombração política especial.

A exploração de fake news e os ataques às instituições democráticas podem complicar Bolsonaro juridicamente, mas ainda servem como ferramentas para energizar e aglutinar sua base mais leal. As suspeitas de desvio de dinheiro público no esquema da rachadinha, por outro lado, pode ter força para desgastá-lo também dentro desse grupo.

Para um presidente que pegou carona na irritação generalizada com a classe política, o espectro da roubalheira tem potencial para provocar danos cruéis. Antes de tomar posse, o próprio Bolsonaro desenhou: “Se algo estiver errado comigo, com meu filho, com o Queiroz, que paguemos a conta. Dói no coração da gente? Dói, porque nossa maior bandeira é o combate à corrupção”.

Queiroz ressurge e revira métodos típicos dos políticos do baixo clero. Resta saber se o caso também atingirá o gabinete presidencial.

Acuado, Bolsonaro leva seu governo para o brejo - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 19/06


Fabrício Queiroz foi jogado no ventilador no final de 2018, quando virou notícia. Houve um dia em que Jair Bolsonaro poderia ter saído da crise, tomando a trilha da moralidade. Foi em 12 de dezembro daquele ano. Faltavam 19 dias para a posse. Bolsonaro disse: "Se algo estiver errado —seja comigo, com meu filho ou com o Queiroz— que paguemos a conta deste erro. Não podemos comungar com erro de ninguém." Era só continuar nessa linha. Mas Bolsonaro mudou de ideia. Achou que seria possível regatear o custo da crise. A prisão de Queiroz elevou o prejuízo.

Um presidente precisa abrir o expediente todas as manhãs oferecendo soluções. Há duas emergências sobre a mesa: a pandemia e a ruína econômica. Horas depois da prisão de Queiroz, o Banco Central divulgou o Índice de Atividade Econômica do país em abril: um tombo histórico de 9,7%. Bolsonaro não tem nada a dizer sobre os mortos da covid-19. Limita-se a lavar as mãos e questionar as estatísticas sem provas. Ainda não apresentou uma estratégia para enfrentar a tragédia econômica. No momento, o presidente oferece ao país tuítes, lives e brigas. Acuado, entrega-se ao centrão. Bolsonaro consolida-se como parte do problema.

O presidente conseguiu transformar um pesadelo criminal do amigo Queiroz e do primogênito Flávio num processo de corrosão da sua Presidência. Habituado a operar no ataque, Bolsonaro experimenta o amargor das posições defensivas. Em privado, diz ser vítima de perseguição do Judiciário. Em público, após um dia de silêncio, dedicou os minutos iniciais de sua live semanal noturna a Queiroz. Falou pouco. Calou muito. O pouco que disse foi patético. O muito que deixou de afirmar foi revelador.

Bolsonaro soou patético ao fazer as vezes de defensor do amigo enroscado com a lei: "Não sou advogado do Queiroz e não estou envolvido nesse processo. Queiroz não estava foragido e não havia nenhum mandado de prisão contra ele. E foi feita uma prisão espetaculosa. Já deve estar no Rio de Janeiro, deve estar sendo assistido por seu advogado, e que a Justiça siga o seu caminho. Mas parecia que estavam prendendo o maior bandido da face da Terra."

O presidente não fez uma mísera menção ao filho Flávio Bolsonaro. Seu silêncio é revelador. Diz muito sobre a situação em que se encontra o primogênito. Ele já protocolou em diferentes instâncias do Judiciário uma dezena de recursos pedindo a suspensão ou o arquivamento do inquérito sobre a rachadinha, eufemismo para desvio de verbas públicas. Não conseguiu senão potencializar a impressão de que percorre a conjuntura como um personagem indefeso.

Para Bolsonaro, o prejuízo é mais político do que judicial. Por enquanto, quem está com os glúteos expostos no processo é o Zero Um. Acusam-no de chefiar uma "organização criminosa". Responde pelos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Mas ninguém ignora que foi o pai quem indicou Queiroz, amigo de 30 anos, para a função de operador dos recursos desviados da folha salarial do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro.

Embora o presidente não seja investigado, há nos autos um cheque de R$ 24 mil de Queiroz para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. De resto, flutua na atmosfera o risco de delação. Em junho, do ano passado, ganhou o noticiário uma troca de áudios pelo WhatsApp. Num deles, Queiroz soou ameaçador: "Eu não vejo ninguém mover nada para tentar me ajudar aí. Vê, tal. É só porrada cara, o MP está com uma pica do tamanho de um cometa para enterrar na gente e não vem ninguém agindo."

A mensagem surtiu efeito. Foi nessa época que Queiroz mudou-se para um imóvel do advogado Frederick Wassef, defensor de Flávio e também do presidente. Consumada a prisão, o capitão se esforça para tomar distância de Fred, como o doutor é tratado na primeira-família. Esforço inútil. Bolsonaro já foi gravado referindo-se a Frederick cmo seu advogado. O personagem tornou-se frequentador assíduo do Planalto e, sobretudo, do Alvorada. Não há borracha ou conveniência capaz de apagar um convívio assim, tão intenso.

A prisão de Queiroz empurrou Bolsonaro para o córner num instante em que o presidente já enfrenta um cerco judicial. É investigado por tramar a conversão da Polícia Federal num aparato político. Assiste ao avanço do Supremo sobre a indústria de ódio mantida pelo bolsonarismo nas redes sociais e nas ruas. Sente o hálito quente da Justiça Eleitoral, às voltas com meia dúzia de pedidos de cassação da chapa com o vice Hamilton Mourão.

Sabia-se que o governo estava enfraquecido e sem rumo. Descobre-se aos poucos que Bolsonaro fez uma opção preferencial pela crise. O que estimula a suspeita de que o rumo pode vir a ser o do brejo. Antes, discutia-se o potencial do projeto de Bolsonaro de disputar a reeleição em 2022. Agora, emerge uma indagação incômoda: será que o capitão conclui o mandato?

O presidente sincerão e o ladrão - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 19/06

Um resto do prestígio de Bolsonaro depende da imagem de honesto e do caso Queiroz



Dos tantos inquéritos em que estão enrolados os Bolsonaro e o bolsonarismo, o caso Queiroz é o mais “pop”. Ameaça a imagem de honesto e sincerão de Jair Bolsonaro, elementos centrais do mito que o levou à vitória em 2018 e motivo importante do que resta de sua popularidade, um dos seus seguros contra o risco de impeachment.

O prestígio de presidentes depende também da preservação de símbolos ou promessas que os ajudaram a chegar ao poder. Estelionatos eleitorais ou desmascaramentos de personalidade quebram a confiança de modo irremediável.

Bolsonaro pai não é investigado no inquérito que procura verificar se, entre outros crimes, o filho Flávio roubou dinheiro público com o auxílio de Fabrício Queiroz, faz-tudo da família, ligado a milícias. Mas é notório que Bolsonaro tenta tirar os filhos de rolos, bulindo com PF e Coaf; que fazia transações com o esquema, com dinheiro ou emprego de parentes e fantasmas em geral, como a filha de Queiroz. Queiroz, enfim, estava fugido em uma casa do advogado dos Bolsonaro.

Caso Flavio seja incriminado, vai ser difícil separar o joio do Jair, se por mais não fosse porque parte da opinião pública ou social midiática pensa na base do “aí tem mais coisa”, um motivo do sucesso de ideias conspiratórias e “fake news”. Pior ainda se Queiroz ou sua filha delatarem a coisa toda.

O mito ou pacto eleitoral de Bolsonaro se baseou na ideia de alternativa radical a tudo isso que está aí, no antipetismo, na segurança linha dura e em valores (família, honestidade, sinceridade), como registrou o Datafolha em outubro de 2018. No Datafolha de abril de 2019, a imagem mais notável de Bolsonaro era a de ser “sincero”, apontada por 60% dos entrevistados (84%, para seus eleitores).

Bolsonaro é “honesto, autêntico, sincero”, lê-se em estudo da cientista política Camila Rocha e da socióloga Esther Solano (“Bolsonarismo em crise?”, Fundação Friedrich Ebert).

Em entrevistas com pessoas das classes C e D da Grande São Paulo sobre pandemia e avaliação do governo, ouviram em maio que os filhos atrapalham o governo e são suspeitos de crime, o que não queima, porém, a imagem sincerona e renovadora linha-dura de Bolsonaro.

Até agora não queima. Haverá uma chacrinha “pop” com a prisão de Queiroz, personagem de programa humorístico que mete a mão em maços de dinheiro. É um escândalo que não tem comparação com as ações no STF e no TSE contra Bolsonaro e o bolsonarismo (financiamento ilegal de campanha na eleição; interferência na PF; “fake news” contra Supremo e Congresso; financiamento de comícios golpistas).

São inquéritos difíceis de entender ou por vezes percebidos como ações de má-fé, politizadas. De qualquer modo, a enxurrada de rolos, agora temperada por um caso de roubança típica, não vai pegar bem.

A aprovação de Bolsonaro não desceu dos 30% para os 20% porque quem o apoio de quem debandou foi substituído por aquele de pessoas de renda menor, talvez confortadas pelos R$ 600 do auxílio emergencial. Mas isso vai acabar, a partir de setembro; a crise socioeconômica e funérea da pandemia ainda vai piorar até o trimestre final do ano.

Agosto era a data marcada para a volta das “reformas”, segundo acordão que envolve lideranças do Congresso, cargos para o centrão, generais e Paulo Guedes. Pode até ser, desde que o país esqueça ou ignore Queiroz, fome, 100 mil mortos de Covid-19, rolos no STF e os golpeamentos de Bolsonaro. Eu não colocaria dinheiro nessa hipótese.

Operação isola mais o presidente do que os inquéritos de Brasília - MARIA CRISTINA FERNANDES

Valor Econômico - 19/06

Caso Fabrício Queiroz impede Bolsonaro de compartilhar, politicamente, sua condição de vítima


A prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, isola mais o presidente e sua família do que quaisquer dos outros inquéritos em curso. Ao se debruçarem sobre máquinas de notícias falsas ou atos antidemocráticos, as investigações conduzidas no Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Superior Eleitoral atingem não apenas o presidente Jair Bolsonaro e sua família, como os seguidores que têm intensa atuação nas ruas e nas redes sociais. O caso Fabrício Queiroz, ainda que, a princípio, ofereça menos dano jurídico ao presidente, o impede de compartilhar, politicamente, sua condição de vítima. O rolo das “rachadinhas” começa e acaba em sua família.

Depois de uma semana difícil, que teve a prisão de perpetradores dos atos antidemocráticos, a derrota no prosseguimento do inquérito das “fake news” e pressão sobre Abraham Weintraub que acabou levando à demissão do ministro, o presidente contava com o recesso do Judiciário e o Congresso em funcionamento remoto para jogar água na fervura das investigações que o cercam. A prisão do ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro, porém, mostrou que a chapa não vai esfriar.

A síndrome de perseguição do presidente da República convive com um descuido incompatível com o cargo que ocupa e com os restos a pagar acumulados em sua carreira pública e de sua família. Um exemplo disso é a escolha de Frederick Wassef para advogado do filho e seu próprio, no inquérito que investiga o atentado de Adélio Bispo contra si, durante a campanha eleitoral.

É inexplicável que presidente que tem uma Agência Brasileira de Informações (Abin) na cabeceira contrate e franqueie acesso ao gabinete presidencial de um advogado que respondeu pelo desaparecimento de uma criança num ritual satânico nos anos 1990 em inquérito que envolveu busca e apreensão na mesma casa de Atibaia (SP) onde estava escondido Fabrício Queiroz.

A presença do ex-assessor no seu sítio há mais de um ano não coloca apenas o advogado na mira da obstrução de justiça como também complica a situação de Flávio que, reiteradas vezes, disse ter desconhecimento de seu paradeiro. As dubiedades se estendem ao próprio presidente, que ora defende Queiroz, ora busca se manter independente de Queiroz que foi seu assessor antes de servir ao gabinete do filho e na conta bancária de quem foi encontrado até um depósito bancário para a primeira-dama, Michelle Bolsonaro.

Um procurador federal aposta que Queiroz pagará um preço baixo se decidir ficar calado dada as baixas penas relacionadas ao crime de peculato, pelo qual é acusado. O problema é se o ministério público e a polícia se valerem de recurso abundantemente usado na Lava-jato e puserem as mãos sobre a família dele, sobre a qual já há pedidos de prisão expedidos.

Mas as dubiedades não param por aí. Por que, exatamente, o ex-assessor foi preso agora se a investigação já está em curso há mais de um ano? Uma investigação que, aliás, vinha muito morna. Tanto que nem foragido Fabrício Queiroz era.

Ao longo desses 18 meses desde o início deste inquérito, muita coisa mudou. O governador Wilson Witzel, que era aliado de Bolsonaro, virou opositor, acabou caindo nas mãos da Polícia Federal e hoje é alvo de impeachment. Bolsonaro já acusou a proximidade entre o governador e o juiz do caso, Flavio Itabaiana, representante da quinta geração de uma família de magistrados.

A dúvida é se Witzel, acuado, ainda teria força para tamanha reação? Talvez não, mas a prisão nasceu de um pedido do Ministério Público do Rio, foi autorizada por um juiz carioca, teve estreita colaboração do Ministério Público de São Paulo e foi executada pela polícia civil do governador paulista, João Doria, outro alvo de Bolsonaro.

A outra mudança veio do Supremo Tribunal Federal. Em janeiro de 2019, quando Bolsonaro havia acabado de tomar posse, o ministro Luiz Fux chegou a suspender o inquérito que corre no STF ante um pedido da defesa de Flávio para que ele fosse levado para a primeira instância. Fux suspendeu o inquérito, mas entregou a decisão sobre sua continuidade para o relator, o ministro Marco Aurélio Mello, que optou por mantê-lo no Supremo.

Hoje, depois de tudo que se conhece sobre o presidente e sua família, é de se perguntar se Fux faria o mesmo. A julgar por votos recentes do ministro, não. Em liminar, Fux decidiu que a condição de comandante supremo não faz de Bolsonaro, comandante absoluto sobre o uso das Forças Armadas na ordem interna do país.

Dias depois, durante o julgamento do inquérito sobre a continuidade das “fake news”, Fux chegou a dizer que as manifestações dos bolsonaristas contra o Supremo são o germe da instalação do terrorismo no Brasil. Este Fux que entregou seu cartão de visitas ao presidente antes de assumir a presidência do Supremo, em setembro, é um juiz egresso da magistratura carioca e com muita ascendência sobre seus antigos colegas. Foi-se o tempo em que o juiz bolsonarista Marcelo Bretas, autor da ordem de prisão do ex-governador Sérgio Cabral, era o ícone da magistratura carioca.

Se a magistratura desembarcou do bolsonarismo, a polícia ainda o apoia. E este é o maior temor da comunidade militar que acompanhou os desdobramentos da prisão ontem em Brasília. A polícia de São Paulo tem fortes núcleos bolsonaristas que têm criado problemas para Doria. A omissão da polícia militar no Distrito Federal durante os ataques ao Supremo e a falta de isonomia da corporação nas manifestações de rua em São Paulo, entre grupos pró e contra Bolsonaro, geram inquietações sobre a reação policial ante o prosseguimento de uma operação que, ao contrário dos inquéritos em curso em Brasília, tem a participação das corporações estaduais e não da Polícia Federal.

São temores como este que levaram os comandantes da operação a avisar aos policiais envolvidos quem era o alvo quando faltava apenas uma hora para sua deflagração. O mesmo cuidado deve cercar a custódia de Fabrício Queiroz no sistema penitenciário do Rio. Ao contrário de Adriano da Nóbrega, ex-capitão do Bope que também trabalhou para Queiroz, e foi morto numa operação ainda hoje nebulosa, Queiroz está desde hoje sob custódia do Estado e tudo o que lhe acontecer será de responsabilidade dos agentes públicos.

Se a operação é resultado de ventos que mudaram de direção, a biruta só não girou no Congresso. Desde a posse, há senadores pressionando pela instalação de um processo no Conselho de Ética contra o senador Flávio Bolsonaro. De lá pra cá, nada andou. As sessões remotas da pandemia, sem funcionamento de conselhos ou comissões, somadas ao crescente peso do Centrão, que agora avança sobre o Ministério da Educação, reforçam a inércia.

Entre os ventos que mudam e as inércias que permanecem, a pacata Atibaia (SP), conhecida pelo clima ameno e pela produção de frutas, resiste como palco de espetaculares operações. Só não dá para confundir o sítio atribuído ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o imóvel onde se escondia Queiroz. Nas fotos da operação, vê-se, acima da lareira da casa do advogado Frederick Wassef, um cartaz de propaganda do AI-5.

'Presidente não para de se enrolar sozinho' - VERA MAGALHÃES

O Estado de S. Paulo - 19/06

Vai ficando difícil, de novo por iniciativa própria de um presidente que não para de se enrolar sozinho, defender o discurso de que a crise de Queiroz não tem nada a ver com o presidente



A crise de Fabrício Queiroz não tem nenhuma relação, por ora, com o governo federal. Ele é investigado por atos cometidos quando era assessor parlamentar de Flávio, e não de Jair Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio.

É o filho senador e ex-deputado estadual que está no epicentro da crise Queiroz.

Ao usar o Palácio do Planalto e o horário do expediente para se reunir com ministros de Estado e líderes governistas no Congresso para discutir a prisão do amigo e ex-assessor do filho, o presidente passa um imenso recibo, leva para o Executivo federal mais uma de “n” crises que tem para administrar simultaneamente, todas elas com potencial explosivo e em concomitância com uma pandemia que ainda ceifa milhares de vidas no Brasil.

Bolsonaro não tratou com esses ministros da demissão do ministro da Educação, Abraham Weintraub, esse sim um tema de governo, nem da decisão, por 9 votos a 1, do Supremo Tribunal Federal de manter o inquérito das fake news, preocupação número 1 até quarta-feira.

Ao chamar para si a crise, Bolsonaro reforça aquilo que disse Sérgio Moro: que uma das grandes preocupações do presidente é usar as estruturas de Estado para proteger familiares e amigos, notadamente os filhos numerados e políticos.

Vai ficando difícil, de novo por iniciativa própria de um presidente que não para de se enrolar sozinho, defender o discurso de que a crise de Queiroz não tem nada a ver com o presidente. Ele mesmo tentou fazer isso depois da reunião, à noite, na live semanal nas redes sociais. Mas seu semblante catatônico, o corpo arqueado e o desânimo ao tratar do assunto, sem esconder o pavor, surtiram o efeito radicalmente contrário.

Bolsonaro já tem seu 'tchau, querida!' - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 19/06

A partir de agora, não há mais como o presidente se ocupar do governo


O governo Bolsonaro acabou. A reforma da Previdência, único marco que ficará destes dias, durem quanto durar, é, na verdade, herança do governo Temer, que só não conseguiu aprovar o texto porque teve de enfrentar o lavajatismo golpista e de porre de Rodrigo Janot. Isso à parte, sobra pregação golpista. E só.

Quanto tempo o “mito” ainda fica por aí? Não sei. Mas é “um cadáver adiado que procria”, para lembrar verso de Fernando Pessoa em caso bem mais nobre. E qualquer coisa que venha à luz, nessas circunstâncias, será necessariamente ruim.

Não temos mais um presidente, mas um refém do fundão do centrão. À medida que a sociedade vai saindo da clausura a que a condenou o coronavírus, cresce o preço político para manter o corpo na sala. Até a hora em que os próprios apoiadores resolvem enterrar o malcheiroso.

Lembram-se do “tchau, querida” de Lula, ao se despedir de Dilma, naquela gravação feita e divulgada ilegalmente por Sergio Moro? Esqueçam o mérito. Fixo-me nas palavras. Elas se transformaram numa espécie de emblema da derrocada do governo. Era também uma senha entre os que defendiam o impeachment.

Bolsonaro já tem os dois vocábulos imortais que servem para carimbar seu fim. E saíram de sua própria boca, em um dos habituais acessos de fúria. Falando a seguidores no Alvorada, deu a entender que, a partir daquele momento, passava a ter o comando das vontades do STF. Vociferou para o TIH (Tribunal da Ironia da História): “Acabou, porra!”.

Pois é... Acabou, porra!

A partir de agora, não há mais como o presidente se ocupar do governo. Enquanto estiver por aí, vai ter de pagar, às custas do futuro do Brasil, o preço para que não se formem os 342 votos na Câmara que o empurrariam para julgamento, e condenação certa!, no Senado por crime de responsabilidade.

Aqui e ali, as pessoas se espantam: “Caramba! O Fabrício Queiroz foi se homiziar justamente no sítio de Frederick Wassef, advogado dos Bolsonaros, que tinha estado no Palácio do Planalto no dia anterior, a convite do presidente, na posse de Fábio Faria, o ministro que simbolizaria a disposição para o diálogo?”.

Meus caros, vocês queriam o quê? De Goethe a Max Weber, estamos diante de uma derivação das chamadas “afinidades eletivas”. A Operação Anjo, no âmbito da qual Fabrício foi garfado, é uma referência ao apelido de Wassef entre os Bolsonaros: anjo. Eles todos devem saber por quê.

Queiroz foi preso no dia seguinte àquele em que Bolsonaro negou a democracia três vezes. O dia 17 de junho entrará para a história. Logo de manhã, o presidente anunciou às portas do Alvorada, referindo-se a magistrados de tribunais superiores: “Eles estão abusando. Está chegando a hora de tudo ser colocado no devido lugar”. À noite, foi ainda mais sombrio: “É igual uma emboscada. Você tem de esperar o cara se aproximar”.

Na sequência, foi arriar a bandeira em companhia do comandante do Exército, Edson Leal Pujol, que caía, ele sim, numa emboscada. Entre uma ameaça e outra, fez a mais grave de todas as afirmações desde que assumiu. E justamente na posse do novo ministro.

Nas barbas de Rodrigo Maia e Dias Toffoli, presidentes, respectivamente, da Câmara e do STF, o mandatário evocou as forças do caos: “Não são as instituições que dizem o que o povo deve fazer. É o povo que diz o que as instituições devem fazer”. Essa é a divisa dos tiranos, não dos democratas. “Povo”, para Bolsonaro, ele já deixou claro, se resume às suas milícias digitais e àqueles que comungam de seus, vá lá, valores, que ele chama “conservadores”, numa distorção miserável do sentido da palavra.

É o passado policial de Bolsonaro que põe fim a seu governo, ainda que o cadáver fique por aí. Mas o que já o impedia de governar é a sua absoluta incompreensão do que é a democracia. Sim, novas ameaças de autogolpe virão nos próximos dias. É de sua natureza.

Bolsonaro quer que acreditemos que os generais podem botar os tanques nas ruas para unir a história das Forças Armadas à de patriotas como Fabrício Queiroz.

Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Os Bolsonaro - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 19/06

cerco vai se fechando em torno dos Bolsonaro.


O “physique du rôle” do advogado Frederick Wassef o faria um ator indicado para filmes de gângster. Conheci-o fortuitamente num vôo de Brasília para o Rio, e a conversa começou com um mal-entendido. O cara que se sentou ao meu lado na primeira fila era espaçoso, correntes de ouro, e muito falante, não largava o celular, sem atender aos pedidos da aeromoça para desliga-lo, pois iriamos decolar.
Pedi então que o desligasse, pois estava colocando em risco os demais passageiros.

Ele pediu desculpas, olhou para mim e perguntou: “Você é o Merval Pereira?”. Quando confirmei, ele abriu os braços: “Você ia brigar com um fã seu ?”. Respondi rapidamente: “Brigar com você? Você é muito mais forte que eu. Só queria que o avião não caísse”.

Como não podia deixar de ser, começou a puxar conversa, bravateando sua relação íntima com os Bolsonaro. Queria dar uma entrevista à Globo. Nunca mais nos falamos, e passei a seguir suas peripécias apenas pelos jornais, até ontem, quando Fabricio Queiroz foi preso em sua casa em Atibaia.

Bonequinhos do mafioso Tony Montana, do filme Scarface , com roteiro de Oliver Stone, decorarem uma prateleira apoiando um cartaz a favor do AI-5, é só um detalhe a mais para significar ironicamente a relação mafiosa entre os dois e, por tabela, com os Bolsonaro. Não sei se os bonequinhos já faziam parte da decoração da casa, ou se Queiroz os levou para seu exílio dourado em Atibaia.

Mas, em qualquer caso, têm um simbolismo banal, mas muito expressivo. Contra as bravatas do presidente Bolsonaro, fatos. A ligação de Queiroz com o advogado Wassef, que se gaba de ser amigo íntimo do presidente e de seus filhos, só confirma os laços de juramento de sangue, bem ao estilo mafioso, que o une à família Bolsonaro.

Sumido há mais de ano, Queiroz sempre esteve sob a proteção dos Bolsonaro, na pessoa de Wassef, que volta e meia estava no Palácio da Alvorada dando conta dos processos em que atua em defesa dos membros do clã e, sabe-se agora, outras cositas más. Enquanto o país inteiro perguntava onde estava o Queiroz, os Bolsonaro sabiam perfeitamente. Esconder um fugitivo cujos crimes de que é acusado são ligados diretamente ao filho do presidente, envolvendo também o próprio Bolsonaro, que empregou em seu gabinete de deputado federal milicianos e seus parentes, alguns merecedores de homenagens como medalha de mérito, não é pouca coisa.

O “pacto de sangue que os une pode ser quebrado, principalmente se a mulher de Queiroz, contra quem há um mandado de prisão, vier se juntar a ele na cadeia. Várias mensagens de seu esconderijo, que, se sabe agora, nem tão clandestino era para a família Bolsonaro, foram enviadas por Queiroz, se dizendo abandonado.

Esse sentimento pode ser decisivo agora, que a polícia do governador João Doria, em parceria com o MInistério Público do Rio, encontrou-o em um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, local de outro sítio envolvido em caso político-criminal de nossa história recente.

Estão começando a surgir os fatos que tornam inócuas as bravatas de Bolsonaro. Já o eram anteriormente - como se diz, cão que ladra não morde -, pois ele sempre esbravejou, mas acabou acatando as ordens da Justiça. Com a prisão de Queiroz, a situação fica muito mais complicada para a família, e o cerco vai se fechando em torno dos Bolsonaro.

Os fatos, ao contrário, vão se clareando, mostrando que estava sendo protegido pelos Bolsonaro, e o advogado Wassef, figurinha fácil nos Palácios, era a ligação entre eles. A casa era um simulacro de escritório de advocacia, o que mostra a má fé do advogado, provavelmente para se valer da inviolabilidade garantida por lei para esse tipo de imóvel.

Wassef também mentia quando dizia publicamente não saber do paradeiro de Queiroz, enquanto o escondia há um ano em sua casa. Queiroz leva diretamente os Bolsonaro aos milicianos – que eles empregaram e condecoraram diversas vezes. Enquanto deputado, Bolsonaro deu medalha para o capitão Adriano, miliciano morto na Bahia recentemente. Queiroz empregou a mulher e a filha do miliciano no escritório dos Bolsonaro. Tinha até um serviço de vans em Rio das Pedras, tradicional reduto de milicianos do Rio. A rachadinha é apenas um dos problemas deles. É uma situação muito delicada, como nunca vimos antes, o envolvimento da família presidencial com criminosos, com milicianos.

* O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello esclarece que não votou no mérito do habeas-corpus pedido em favor do ex-ministro Abraham Weintraub. Posicionou-se apenas pelo cabimento do habeas-corpus.

Caso de polícia - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 19/06

O Brasil deveria aproveitar para refletir por que razão, desde a eclosão do escândalo do mensalão, a política se tornou um permanente caso de polícia


A prisão de Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro e amigo há décadas do presidente Jair Bolsonaro, suscita muitas perguntas incômodas que devem ser respondidas o quanto antes, para tranquilidade da Nação.

Queiroz foi preso sob acusação de interferir na coleta de provas no caso em que é investigado por suspeita de participação em esquema de “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. No esquema, funcionários de Flávio Bolsonaro, então deputado estadual, devolviam parte do salário que recebiam. O dinheiro era depositado numa conta de Queiroz, que fez movimentações bancárias consideradas suspeitas em fiscalização federal – inclusive um depósito de R$ 24 mil na conta da hoje primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Para o Ministério Público, trata-se de uma organização criminosa montada no gabinete de Flávio Bolsonaro.

Desde que o escândalo emergiu, em dezembro de 2018, o presidente e Flávio Bolsonaro, seu filho, dizem que se trata de perseguição política. A reação de Flávio Bolsonaro à prisão de seu antigo assessor segue nessa linha: “Mais uma peça foi movimentada no tabuleiro para atacar Bolsonaro. Em 16 anos como deputado no Rio nunca houve nenhuma vírgula contra mim. Bastou o presidente Bolsonaro se eleger para mudar tudo! O jogo é bruto!”, escreveu o senador numa rede social.

A tese da “perseguição política” pode ser boa para animar os camisas pardas bolsonaristas, assim como até hoje anima a tigrada petista na defesa do chefão Lula da Silva, mas, tanto em um caso como em outro, tem pouca serventia jurídica. É preciso ser um pouco mais objetivo em relação às muitas questões que requerem esclarecimento.

Em primeiro lugar, por que Queiroz estava numa casa do advogado Frederick Wassef, que tem Flávio e Jair Bolsonaro como clientes e grandes amigos? Por que Frederick Wassef disse duas vezes em 2019 que não sabia onde estava Queiroz, embora funcionários da casa onde ele foi encontrado, em Atibaia (SP), tenham informado que o ex-assessor de Flávio Bolsonaro estava lá havia cerca de um ano?

Por que Fabrício Queiroz, malgrado sua extensa folha de serviços prestados aos Bolsonaros e sua canina fidelidade à família, foi exonerado por Flávio Bolsonaro entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2018? Segundo o empresário Paulo Marinho, bolsonarista de primeira hora e que hoje é desafeto do presidente, os Bolsonaros ficaram sabendo na época, por intermédio de um informante na Polícia Federal, que as autoridades já estavam cientes das negociatas envolvendo Queiroz.

Também é lícito perguntar por que Queiroz intermediou a contratação, para o gabinete de Flávio Bolsonaro, da mulher e da mãe de um conhecido líder de milícia no Rio, que estava na cadeia. A explicação de que Queiroz o fez em “solidariedade” à família do amigo, “injustamente preso”, é ofensiva à inteligência alheia.

Por fim, mas não menos importante, por que razão, em meio a essas grossas suspeitas, o presidente Bolsonaro se esforçou tanto para trocar a chefia da Polícia Federal no Rio de Janeiro, atropelando até mesmo um de seus mais populares ministros, o ex-juiz Sérgio Moro? Na infame reunião ministerial de 22 de abril, convém lembrar, o presidente, exaltado, informou aos presentes que queria fazer a troca porque não iria esperar que sua família ou amigos fossem prejudicados “de sacanagem”, o que configura indisfarçável interferência política para fins pessoais.

Em resumo, estamos diante de um emaranhado de suspeitas sombrias envolvendo a família do presidente da República e, talvez, o próprio mandatário. Sendo o sr. Jair Bolsonaro um presidente que foi eleito com a retumbante promessa de acabar com a corrupção e a desfaçatez no País, é lícito esperar que ele e seu filho tenham boas explicações para todas essas dúvidas que ora inquietam os brasileiros de bem.

Enquanto aguarda ansioso por esses esclarecimentos, o Brasil deveria aproveitar para refletir por que razão, desde pelo menos 2005, com a eclosão do escândalo do mensalão, a política se tornou um permanente caso de polícia, a despeito de todas as promessas de saneamento. Está mais do que na hora de mudar – sem esperar a vinda de outro messias de quermesse, que anuncia milagres enquanto arruína o País.

Instituições funcionam na prisão de Queiroz - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 19/06

Em vez de enxergar conspirações, o clã Bolsonaro deveria perceber que organismos de Estado trabalham


A prisão do PM aposentado Fabrício Queiroz, escondido numa casa do advogado do presidente em Atibaia, próximo a São Paulo, não deixou que Bolsonaro desse a clássica parada na saída do Alvorada, para confraternizar com sua claque.

É mais um baque para o presidente, pois Queiroz, com mandado de prisão expedido pela Justiça do Rio a pedido do Ministério Público estadual, ser encontrado sob a proteção de Frederick Wassef coloca um novo entulho no Planalto.

O PM aposentado, amigo do chefe do clã Bolsonaro, ficou muito próximo do filho Flávio, a quem assessorou na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) até o deputado estadual ser eleito senador em 2018, no vácuo do salto que o pai deu do baixo clero da Câmara dos Deputados para o Planalto. Até lá, comprova o MP fluminense, Queiroz operou um esquema de “rachadinha”, desvio de parte de salários de assessores de deputados que teria sido lavada em operações com imóveis e outras feitas por Flávio e seu entorno. Nada que atinja diretamente o presidente, salvo cheques que esbarram nele, por terem sido depositados por Queiroz na conta da primeira-dama Michelle, justificados por Bolsonaro como pagamento de dívida. Pode ser.

As dimensões do estrago político ainda precisam ser inventariadas. Flávio, em sua primeira reação, vitimizou o pai, ao declarar que é tudo para atacá-lo. Já o presidente, no cacoete persecutório, teria enxergado uma estranha coincidência. Entre os mandados de busca e apreensão despachados pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, contra 11 parlamentares bolsonaristas, no inquérito das manifestações antidemocráticas, e a operação de Atibaia, determinada pela Justiça do Rio, acionada pelo MP estadual. Uma articulação tão intrincada deveria levar o presidente a desconfiar deste pensamento impulsivo.

Se puxado o fio a que está ligado Fabrício Queiroz, podem aparecer coisas desagradáveis ao clã Bolsonaro, não só na esfera financeira, mas no universo miliciano carioca. Porém, o presidente, caso não desse vazão aos impulsos de ver em tudo uma emboscada contra ele, constataria que este acúmulo de dissabores existe porque as instituições estão funcionando.

Os inquéritos no Supremo que atormentam o clã Bolsonaro — sobre fake news/agressões a ministros e à Corte no meio digital, e acerca da organização de manifestações antidemocráticas — surgiram de fatos objetivos. Este último foi aberto a pedido do procurador-geral da República; e o primeiro, por determinação do presidente do STF, Dias Toffoli, foi contestado, mas teve a constitucionalidade garantida pelo plenário do Tribunal.

O resto é consequência de investigações em curso dentro da lei. O presidente e família têm acumulado problemas nos últimos dias por uma razão: a Justiça, o MP e os organismos policiais, que atuam sob supervisão, atendendo a determinações do MP/Judiciário, estão trabalhando.

quinta-feira, junho 18, 2020

Queiroz adiciona imponderável no fundo do poço - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 18/06

Jair Bolsonaro percorre um cenário de fundo do poço. Nele, a pandemia e a ruína econômica misturam-se a uma agenda explosiva, que tem três itens: um inquérito criminal em que o presidente é acusado de intervir politicamente na Polícia Federal, dois inquéritos que varejam o aparato político-militante-empresarial do bolsonarismo e meia dúzia de pedidos de cassação da chapa presidencial na Justiça Eleitoral. A prisão de Fabrício Queiroz adicionou nessa conjuntura abismal um elemento explosivo: o imponderável.

Fabrício Queiroz está pendurado nas manchetes de ponta-cabeça há um ano e meio. Nesse período, Bolsonaro e o primogênito Flávio poderiam ter providenciado uma explicação para suas relações com o personagem. Mas forneceram apenas desconversa e manobras diversionistas. Consolidou-se a impressão de que a parceria com Queiroz, por inexplicável, tornou os Bolsonaro personagens indefesos. As circunstâncias da prisão colocam o amigo de três décadas do presidente e ex-assessor do filho dentro dos palácios de Brasília.

No enredo ficcional que os Bolsonaro construíram para tentar se distanciar da encrenca, pai e filho comportavam-se como se não devessem nada a ninguém, muito menos explicações. O Queiroz tem que explicar isso daí, dava de ombros o presidente. Quem tem que dar explicação é o senhor Queiroz, ecoava o Zero Um. Nessa versão, a primeira-família não mantinha mais contato com o investigado. Súbito, descobriu-se que Queiroz estava escondido num imóvel do advogado de Jair e Flávio, o doutor Frederick Wassef.

O advogado é frequentador assíduo dos palácios do Planalto e do Alvorada. Na véspera da prisão de Queiroz, o doutor esteve na posse do novo ministro das Comunicações, Fábio Faria. O lero-lero que tentava fazer crer que Queiroz era um personagem do passado, com o qual o presidente e seu filho não mantinham nenhum contato, tornou-se um atentado à inteligência alheia.

Até a manhã desta quinta-feira, Bolsonaro governava contra um pano de fundo em que piscava o letreiro luminoso com a pergunta incômoda: Onde está o Queiroz? Agora já se sabe onde estava e para onde foi levado o ex-faz tudo dos Bolsonaro. Com Queiroz na prisão, há uma nova pergunta na praça: onde está o Bolsonaro? O presidente não se animou a conversar com seus devotos no cercadinho do Alvorada. Logo terá que dizer meia dúzia de palavras sobre o ex-amigo. Se continuar soando incompreensível, aprofundará o poço sem se livrar do imponderável.

Preso preventivamente, sem prazo para sair, Queiroz tentará obter na Justiça um habeas corpus. O personagem pode percorrer agora um de dois cenários: pode se imolar, ateando fogo às próprias vestes. Também pode tocar fogo no circo. A lealdade aos Bolsonaro é desafiada por um detalhe: a prisão da mulher de Queiroz, Maria Oliveira de Aguiar.

quarta-feira, junho 17, 2020

O asqueroso roubo das vítimas - ROBERTO DAMATTA

ESTADÃO - 17/06

O investimento inconsciente na ambiguidade e na incoerência deixa a nu um sistema que corrói o regime democrático, desmoralizando o seu processo eleitoral


Meu instinto brasileiro de desconfiança, pois vivo num país de ladrões da coisa pública, acendeu a luz amarela na medida em que os nossos múltiplos “governos” foram autorizados a adquirir sem licitação, e com a mais justa urgência, remédios, aparelhos de respiração, máscaras e a construir hospitais e outras facilidades em função da expansão da covid-19. Falou em suspender licitação, eu imediatamente pensei em corrupção. Lamentavelmente, não deu outra.

Mencionei “governos”, mas poderia invocar o modo como atuam: por meio dos tradicionais conselhos e comitês. Esses coletivos de elite projetados para que as responsabilidades sejam diluídas e se esvaziem no velho jogo de empurra acusatório e “dentro da lei”. A coletividade de um conselho (ou comissão) dissolve contabilidades e protagonismo individual de modo que todos se salvam. É, portanto, comum no âmbito administrativo: o nível federal joga a responsabilidade para o estadual e este ao municipal que a empurra novamente para “cima” de modo que, com o passar do tempo, o engavetamento ou o pedido de vistas dos inquéritos abertos dentro do nosso legalismo aristocrático evaporem ou sejam engavetados.

Esses mecanismos impeditivos de atribuição de responsabilidade são parte estrutural no nosso sistema político-legal. Eles garantem que os nossos eleitos invertam seus papéis num regime democrático já que, devidamente “empossados”, eles deixam de ser nossos servidores e se tornam os que lucram com o nosso trabalho. Somos alvos de suas promessas como candidatos apenas para sermos usados e abusados depois que esses “eleitos” ocupem seus cargos quando então (com raras exceções) lucram e, como de uma “classe burocrática” que detém o poder de legislar e de (deslegislar), trabalham mais para a sua hegemonia e seus interesses do que para quem os elegeu. O investimento inconsciente na ambiguidade e na incoerência deixa a nu um sistema que corrói o regime democrático, desmoralizando o seu processo eleitoral!

Essa é uma das resistências mais óbvias para quem vai ao fundo do lamaçal da polícia brasileira neste momento no qual rondamos o suicídio democrático em paralelo a uma pandemia. Esse fato não previsto por nenhum dos muitos “Joãos de Deus” salvacionistas, que são parte e parcela da nossa concepção de mundo. Uma visão marcada pela imensa intenção – tanto à direita quanto à esquerda – de não “mexer” num “Estado” que vale mais para uns do que para todos. No Brasil, um Marx comunista foi virado pelo avesso, mas poucos têm consciência desse movimento.

O resultado, em meio à crise permanente, é o asqueroso roubo de equipamentos médicos de primeira hora pelas “autoridades administrativas” num habitual gangsterismo de família e compadrio, como é normal e banal no nosso sistema político.

Enoja, aos 83 anos, testemunhar essa iniquidade que rouba dinheiros, vidas e, além disso, confiança e esperança para não falar na total marginalização do sistema democrático. É contra esse asco que devemos resistir, já que ele é o núcleo da nossa antidemocracia.

Ora, se quem rouba dos nossos doentes são precisamente os eleitos em disputas regradas por todos os múltiplos tribunais cujos vocais não perdem a oportunidade de nos dar aulas de democracia, pois eles confundem sentenças com discursos, estamos todos envolvidos numa perversão. Elegemos quem logo vai roubar recursos públicos ou, pior do que isso, vai tentar realizar um republicanismo absolutista invertendo (ou traindo) suas promessas de campanha.

Tal reação seria o fim da democracia, ou o começo de uma maior compreensão do nosso papel como cidadãos? A prova do pudim está em comê-lo, disse num texto célebre Karl Marx. No nosso caso, comemos a ponto da indigestão o pudim da direita – um liberalismo sem competição e totalmente legalizado, tal como ocorria no velho Portugal das corporações de ofício –, mas (entrementes) também provamos em altas fatias o bolo da esquerda lulopetista. A prova é clara: comemos tanto de um lado quanto de outro o mesmo pudim. Hoje, porém, sentimos a sua amargura...