sexta-feira, julho 12, 2019

Vitória do bom senso - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 12/07

A mudança de atitude em relação à reforma da Previdência provavelmente deriva da construção de consenso, no País, sobre a urgência do saneamento do sistema.

Até pouco tempo atrás, a reforma da Previdência era considerada um tema politicamente tóxico, que poucos candidatos a cargo eletivo tinham coragem de defender – malgrado sua evidente necessidade. Agora, no entanto, o que não falta são políticos a reivindicar a paternidade da vitória acachapante no primeiro turno da votação da reforma da Previdência na Câmara. A notável mudança de atitude provavelmente deriva da construção de um consenso, no País, sobre a urgência do saneamento do sistema de aposentadorias, e esse processo não aconteceu de uma hora para outra nem dependeu de uma só pessoa.

É preciso lembrar, por exemplo, que o mais recente esforço em favor da reforma começou no governo de Michel Temer, que assumiu o ônus de enfrentar esse tema espinhoso mesmo sob pena de ampliar ainda mais sua já enorme impopularidade. Depois, o presidente Jair Bolsonaro teve de superar suas próprias convicções antirreformistas e, mesmo de modo hesitante, encaminhou uma proposta ainda mais ousada que a do ex-presidente Temer, incentivado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. Assim, ainda que o próprio governo não tenha se empenhado como deveria e poderia em favor da reforma, o tema praticamente monopolizou o debate nacional, do qual participaram formadores de opinião e funcionários do governo bastante qualificados e que conseguiram, à custa de muita perseverança, derrubar uma a uma as mistificações em torno da Previdência e alertar o País para os riscos de não reformar o sistema de forma abrangente.

Mesmo com atrasos causados pelas confusões protagonizadas pelos articuladores do governo, a reforma avançou e chegou ao plenário sem ter sido substancialmente desidratada, o que foi uma vitória dos deputados reformistas contra os grupos organizados interessados em manter privilégios de corporações – algumas das quais apoiadas explicitamente por deputados governistas e pelo próprio presidente Bolsonaro. Nessa fase, já estava ficando claro para todos que a reforma já não era mais do governo, que em vários momentos parecia querer sabotá-la, e sim do Congresso, o que foi reafirmado diversas vezes pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), seu grande fiador.

Rodrigo Maia assumiu a liderança das negociações para arregimentar apoio à reforma, muitas vezes sob duras críticas de Jair Bolsonaro e dos filhos do presidente, sempre dispostos a criar antagonismos com o que chamam de “velha política”. Sem ter a caneta presidencial para liberar cargos, verbas e poder, Maia teve de convencer seus pares a assumir o protagonismo de uma reforma sem a qual o País quebraria. A julgar pelo placar do primeiro turno, foi muito bem-sucedido nessa empreitada: foram 379 votos a 131, ou seja, 71 votos além do necessário para a aprovação do projeto. Houve apoio inclusive de vários deputados de oposição, o que, de quebra, ajudou a isolar ainda mais a esquerda corporativista radical formada pelo PT e por seus satélites, agarrados à pauta única do “Lula livre”.

Trata-se de grande demonstração de força, que Rodrigo Maia procurou capitalizar em discurso no plenário: “Não haverá investimento privado sem democracia forte. Investidor de longo prazo não investe em país que ataca as instituições”, disse o presidente da Câmara, em referência nada sutil aos seguidos ataques que Bolsonaro faz ao Congresso. E completou: “Nossos líderes são desrespeitados, são criticados de forma equivocada, mas são esses líderes que estão fazendo as mudanças no Brasil”.

A despeito da justificada celebração, a reforma da Previdência, mesmo em sua melhor forma, está incompleta. Não incluiu Estados e municípios, responsáveis por parte considerável do déficit do sistema. Há também concessões exageradas a esta e àquela categoria profissional e é possível que mais benefícios sejam criados ou ampliados até a última etapa de votação. Obstáculos não faltam. Por essa razão, Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente, do Senado, calcula que será necessário fazer uma nova reforma em no máximo dez anos.

O que importa, contudo, é que o desfecho do primeiro turno de votação é um forte indicador da mudança de humor da sociedade brasileira em relação às reformas. E ainda há muito a reformar.


O poder de convencimento da crise da Previdência - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 12/07

Votação do projeto revelou o enfrentamento do controle ideológico exercido por partidos


No rescaldo da votação em primeiro turno do projeto de reforma da Previdência, um ponto alto é o surpreendente apoio de 379 deputados, 71 a mais do que o mínimo necessário de 308 votos. As expectativas mais otimistas apostavam em 360.

Terminou indo bem mais além. Não se discute que uma das causas foi o competente trabalho político do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que soube ocupar os espaços deixados pela falta de coordenação por parte do Planalto, quase sempre enredado em questões menores, picuinhas ideológicas. Ou “besteiras”, nas palavras do general Santos Cruz, em entrevista à revista “Época”, depois de ser demitido da Secretaria de Governo, devido a tensões geradas no Palácio pela excessiva interferência familiar junto ao presidente Bolsonaro.

Tamanha margem de apoio na votação deve ter outras explicações. Não se pode menosprezar a influência das bases, a considerar que recente pesquisa Datafolha sinaliza que a aceitação popular da reforma ultrapassa numericamente a rejeição.

A diferença (47% a 44%) ainda está dentro da margem de erro, mas é significativo que este placar possa ser virado. Há incontáveis especulações sobre os motivos. Por exemplo, a maciça cobertura do assunto feita pelo jornalismo profissional.

Seja como for, houve um volume grande de desobediências no PSB e PDT, partidos de esquerda que fecharam questão contra a reforma.

De nada adiantou: no PDT, oito da bancada de 27 deputados (29%) votaram a favor da reforma, entre eles a jovem Tabata Amaral, que obteve expressiva votação em São Paulo; no PSB, o dissenso foi maior, tendo contrariado a ordem do partido 11 dos 32 deputados da legenda (34%).

Espera-se como se comportarão as direções partidárias, sob o risco de ficarem bem menores no Congresso caso expulsem os deputados. Este tipo de questão, porém, não contaminou os partidos de fé ideológica rígida, à beira da religiosidade: PT, PCdoB e PSOL.

Diante da patrulha, Tabata usou a rede social para explicar que não vê a reforma como do governo, e que ela é urgente e necessária. Também para reduzir as desigualdades, pois entende que o atual sistema previdenciário transfere renda de pobres para ricos.

A deputada diz que estudou o assunto. Certamente viu levantamentos oficiais que mostram a disparidade entre aposentadorias do funcionalismo público e dos empregados do setor privado, bem como as elevadas cifras que o Tesouro — leia-se, os contribuintes — transfere para bancar os benefícios dessas castas.

Não faltam estatísticas para provar o descalabro a que chegou a Previdência brasileira, que além de ser um instrumento de concentração de riquezas — a elite do funcionalismo aposentado está nas faixas de renda mais elevada — já representa mais da metade de todos os gastos da União, sem considerar o pagamento de juros.

Os deputados que rejeitaram a camisa de força do fechamento de questão apenas foram racionais.


Reforma para todos - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 12/07

Senado fará bem em adequar estados e municípios a novas regras previdenciárias


Com a reforma da Previdência perto da aprovação definitiva pela Câmara dos Deputados, são animadoras as notícias de que no Senado já se discutem propostas para adequar servidores estaduais e municipais às novas regras.

Os governos regionais acabaram excluídos do texto votado na quarta (10) em razão de uma combinação de mesquinharias políticas. Governadores de oposição, em especial do Nordeste, relutaram em apoiar publicamente a reforma, enquanto parlamentares favoráveis a ela se recusaram a ajudar administrações de adversários.

Há meios de reparar o dano, embora o entendimento partidário possa se mostrar difícil. Estuda-se a apresentação de uma proposta de emenda constitucional específica para os demais entes federativos, de modo a não atrasar a tramitação do projeto original.

Fato é que em boa parte dos estados as despesas previdenciárias já ameaçam diretamente a prestação de serviços básicos à população.

Segundo estudo da Instituição Fiscal Independente, órgão consultivo ligado ao Senado, em 2017 o déficit dos regimes estaduais chegou a R$ 89 bilhões, valor equivalente a nada menos de 14,7% da receita.

Em alguns casos, como os de Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, o rombo fica entre 25% e 30% da arrecadação. É absurdo que tamanha parcela dos recursos disponíveis se destine a um estrato diminuto da sociedade —enquanto carências em educação, saúde e segurança afetam a todos.

Observa-se hoje um óbvio desequilíbrio entre o número de funcionários que contribuem para a Previdência e o de inativos. A relação é de apenas 1,13 para 1, e em pelo menos quatro estados os aposentados e pensionistas já superam em quantidade os que estão na ativa.

Corporações influentes, como fiscais de renda, procuradores e membros do Judiciário continuam a ignorar restrições orçamentárias. Outras, como professores e policiais, numerosas e importantes, gozam de regras mais benevolentes.

Entre 2006 e 2015, o valor da remuneração média dos servidores estaduais cresceu 50,8% acima da inflação, ao passo que o benefício médio pago aos inativos subiu 32,7%. Em muitos casos ainda se permitem integralidade (aposentadoria com o último salário) e paridade (correções de benefícios equivalentes às dos salários da ativa).

Com déficits explosivos e serviços em colapso, não há mais espaço para subterfúgios. O mais simples e rápido é incluir todos os entes federativos na reforma nacional. Caso não seja possível, os Executivos e Legislativos locais precisam enfrentar o problema.

Em qualquer hipótese, os governadores, especialmente os de oposição, devem se dedicar mais a expor publicamente a situação de suas contas e a urgência dos ajustes.


quinta-feira, julho 11, 2019

Milagre brasileiro - FERNANDO SCHÜLER

FOLHA DE SP - 11/07

A reforma é quase um milagre porque nosso sistema político é disfuncional

A reforma da Previdência é quase um milagre. O Brasil, aliás, é uma espécie de milagre. Nos últimos anos, aprovamos reformas improváveis, como a PEC do Teto, a reforma trabalhista, a lei das terceirizações, e agora estamos perto de emplacar a reforma previdenciária.

A reforma é quase um milagre porque nosso sistema político é disfuncional. Nesta quarta-feira, 26 partidos votaram na reforma. Catorze deles com dez votos ou mais. Isto é, partidos relevantes, de tamanho médio, incapazes de resolver qualquer coisa, no Congresso, mas capazes de obstaculizar, complicar o jogo, cobrar fatura.

É isso que faz do Brasil a democracia mais fragmentada do planeta, com baixa efetividade institucional e alto custo político na tomada de decisões estratégicas. Mesmo dizendo que não iria fazer esse jogo, o governo liberou alguns bilhões em emendas e recursos para viabilizar a reforma. Alguns acham normal. Ouvi de um deputado que esta era uma forma de “democratizar” o Orçamento. Analistas dizem que o varejo político é um fato normal das democracias, que nosso presidencialismo de coalizão exige isso. De minha parte, só observo. Vejo isso mais como deformação do que uma virtude. Apenas uma deformação com a qual nos acostumamos.

A reforma também é um milagre pelo imenso peso das corporações no jogo político. Vamos lá: por que cargas d'agua o vigia do supermercado, que vira e mexe enfrenta a bandidagem na periferia de nossas cidades, vai se aposentar com 65 anos, e o segurança do Congresso com 53? Não discuto aqui o mérito do trabalho de ninguém, mas por quê? Acertou na mosca o Carlos Góes, quando provocou: para todas as categorias que pedem aposentadoria mais cedo por causa de “circunstâncias especiais”, tenho uma pergunta: sua categoria tem uma condição mais difícil que a de um pedreiro?

Uma explicação para o milagre da reforma é a mudança de mentalidade ocorrida no Brasil nos últimos anos. A última pesquisa Datafolha deu um sinal claro nessa direção: 47% da população agora apoia a reforma, e 44% são contra. Há pouco mais de dois anos, quando o ex-presidente Temer colocou esta pauta na ordem do dia, 71% eram contra. Nunca canso da frase de Weber: a política é o lento perfurar de tábuas duras.

Essa mudança não veio de graça. A reforma não se mostrou auto-evidente, como me sugeriu um amigo professor tempos atrás. Não há nada muito auto-evidente, em política. Houve um trabalho duro de centenas de economistas, think tanks, lideranças da sociedade e da política que colocaram esse tema na pauta, disputaram ideias, em especial no mundo digital, e souberam virar o jogo.

O milagre também parece ir acontecendo porque vivemos um período especial na nossa história política, de maior autonomia do Congressofrente ao Executivo. Algo que tenho chamado, na falta de uma expressão melhor, de modelo de corresponsabilidade. Acho graça da turma que fica discutindo sobre a paternidade da reforma. É do governo? Do Congresso? Do Rodrigo Maia? Daria para espichar muito essa lista. A reforma é fruto de uma aliança não explícita entre os liberais de Paulo Guedes e o centro político do Congresso. Se quiserem, os sociais-democratas ainda girando em torno do PSDB, de Samuel Moreira, e outros partidos. O que apenas corrobora uma velha provocação que gosto de fazer: é tanta a irracionalidade do Estado brasileiro, que por muito tempo não haverá muita distância entre a agenda do bom liberalismo e da boa social-democracia

Por fim, uma intuição: milagres não acontecem indefinidamente. Vinícius Torres Freire tocou nisso em sua coluna de ontem. O atual arranjo institucional brasileiro é precário. Meu ponto é apenas dizer que não se irá criar um novo ciclo virtuoso, no plano político, sem um ajuste nas regras do jogo.

Sendo mais específico: o mesmo trabalho de convencimento que se fez em torno da reforma da Previdência terá que ser feito em torno da reforma política. Rodrigo Maia não permanecerá eternamente na presidência da Câmara e há uma agenda difícil de reformas à frente. É ingênuo pensar que voltar alegremente ao velho modelo da coalizão majoritária, sob a batuta do executivo, enterrado nas últimas eleições. Precisamos de novas regras, e é bom que quem tem a cabeça no lugar comece a pensar logo sobre isso.

Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Uma boa reforma - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 11/07

Texto da Previdência é um avanço rumo à racionalidade orçamentária e à justiça social


O texto da reforma da Previdência aprovado em primeiro turno pela Câmara dos Deputados prevê a mais ampla alteração já feita nas aposentadorias do país.

Marco histórico à parte, mais importante é assinalar que, embora contenha falhas, a reforma significa inegável avanço rumo à racionalidade orçamentária e à justiça social —e merece ter seus dispositivos centrais preservados nas próximas etapas da tramitação.

Sua inovação mais importante, a fixação de idades mínimas para a obtenção dos benefícios, constitui prática corriqueira no mundo. Segundo estudo publicado pelo Ipea há dois anos, 164 de 177 países pesquisados aplicam tal exigência.

Em grande parte deles, aliás, o piso etário tem subido para acompanhar a tendência de aumento da longevidade da população, também observada no Brasil.

O texto votado pela Câmara estabelece como norma geral idade mínima de 65 anos para homens e 62 para mulheres —melhor seria se não houvesse diferenciação. O tempo mínimo de contribuição, hoje de 15 anos no setor privado, sobe a 20 apenas para os homens.

Ressalve-se, porém, que na prática esses limites mínimos não vigorarão de imediato para todos. Há regras de transição para alguns trabalhadores hoje na ativa, entre elas a que permite, em 2020, aposentadorias aos 61 (homens) e 56 (mulheres) —os números serão elevados gradualmente.

Também relevante para desestimular as aposentadorias precoces e racionalizar despesas é a adoção de critérios mais rigorosos para o cálculo dos benefícios e a concessão de pensões por morte.

A oposição tem atacado, em particular, a necessidade de 40 anos de contribuição para que o segurado obtenha um valor equivalente à média dos salários da ativa. Tal imposição, todavia, não afeta a maioria que se aposenta pelo salário mínimo, dado não serem permitidos benefícios de valor inferior.

O terceiro eixo fundamental da proposta é igualar, com algumas exceções, os regimes previdenciários dos setores público e privado, o que já se desenhava na reforma promovida em 2003. Em contrapartida pelos privilégios da carreira, o funcionalismo arcará com alíquotas maiores de contribuição, proporcionais ao salário.

Há omissões no texto, a mais grave delas a exclusão de estados e municípios. Corporações de servidores se mobilizam para obter normas mais favoráveis; as pensões militares serão definidas em outro projeto, de tramitação difícil.

No geral, entretanto, é razoável a distribuição dos sacrifícios inevitáveis para um país que destina hoje excessivos 13% de sua renda total à Previdência —percentual que crescerá e tomará espaço crescente da educação, da saúde e de outras prioridades se nada for feito.

A Política levou a reforma à vitória - MIRIAM LEITÃO

O Globo - 11/07

Reforma da Previdência foi aprovada com amplo apoio. Economia estimada pela Instituição Fiscal Independente será de R$ 714 bilhões


A reforma aprovada é ampla e terá impacto importante nas contas públicas, mas será menor do que o governo previa. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), ficou em R$ 714 bilhões a economia em 10 anos, sem contar outras possíveis mudanças. Ela cria uma espécie de lei de responsabilidade previdenciária para todos os entes da Federação. Portanto, os estados e municípios estão fora do projeto, na definição dos benefícios, mas eles terão que se esforçar para controlar suas despesas na área. A reforma introduz a idade mínima que o Brasil tenta ter há mais de 20 anos. O texto foi aperfeiçoado em alguns pontos ao tramitar no Congresso, mas manteve desigualdades. Na defesa de determinados privilégios, juntaram-se a esquerda e o bolsonarismo, uma realidade que só não é bizarra porque o Brasil sempre foi assim.

O centrão votou em peso na reforma, mas um placar de 379 a 131 mostra um movimento amplo de apoio. No eloquente discurso do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, houve várias indiretas ao próprio governo: “as soluções passam pela política. Não haverá investimento no país se não houver democracia. Eu não saí do meu objetivo nem quando fui atacado.” Todo mundo entendeu a quem ele se referia, e ao episódio em si. Mas o Planalto o elogiou. Era a hora da comemoração. Ontem foi o dia da festa para Rodrigo Maia, que nasceu no Chile, no exílio, filho de político, que tem entre seus nomes, além dos conhecidos, Felinto, Ibarra e Epitácio.

Um dos grandes saltos do projeto está no artigo 40, que deixa claro que estados e municípios terão que buscar equilíbrio financeiro e atuarial. O parágrafo 22º cria uma série de obrigações. Os estados e municípios não podem criar novos regimes próprios e para os que existem haverá lei federal estabelecendo as normas de funcionamento e responsabilidade em sua gestão. Diz ainda como eles vão migrar para o Regime Geral e serão fiscalizados pela União e o controle externo.

O que saiu, por erro do Congresso, foi a presença dos estados e dos municípios nos parâmetros das aposentadorias e pensões. Isso faz com que servidores tenham regras diferentes dependendo do ente federativo. Vai gerar mais confusão. O Congresso derrubou também o gatilho demográfico que permitiria, como em outros países, que a idade mínima fosse subindo, com o aumento da expectativa de vida.

Nessa reforma, como em todas as outras, as que foram aprovadas e as que fracassaram, a verdadeira clivagem nunca foi entre esquerda e direita. É entre quem defende ou não os interesses corporativos. O projeto, que começou tendo como um dos objetivos reduzir desigualdades, teve na reta final a esdrúxula militância corporativista do presidente Jair Bolsonaro.

Em alguns pontos o projeto melhorou no Congresso. Um deles foi o fim da tentativa de mudar o Benefício de Prestação Continuada (BPC). O grande problema com o BPC não é o benefício dado a quem chegou aos 65 anos com um quarto de salário mínimo de renda real per capita. Mas o fato de que a Justiça passou a dar o mesmo direito a quem tem uma renda maior do que essa. Pelo projeto, haverá agora uma definição clara sobre o limite dessa renda.

O principal problema com a reforma aprovada é que ela não cria um novo sistema que seja sustentável. Faz uma correção no atual regime, não ataca as desigualdades de tratamento e cristaliza injustiças. As regras de transição para os servidores que entraram antes de 2003 no serviço público ficaram mais brandas. Eles têm as vantagens da integralidade e da paridade e por isso a reforma tinha incluído a idade mínima para eles.

Pelo acordo que está sendo negociado, policiais federais, legislativos ou rodoviários poderão se aposentar aos 52 anos, as mulheres, e aos 53 anos, os homens. Enquanto isso, o Brasil está caminhando para a idade mínima de 62 e 65 anos. A não ser os professores, que ficarão com 57 e 60 anos. O policial da União sai o grande privilegiado dessa reforma.

A Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado refez as contas ontem e projetou uma economia de R$ 714 bilhões com a reforma em 10 anos. Inicialmente, a IFI já estimava um número menor do que o calculado pelo governo, de R$ 995 bi. Todas as contas terão que ser refeitas após as votações dos destaques. O risco é que as regras fiquem ainda mais leves, para alguns, após essas votações.

Avança a reforma do Estado - MERVAL PEREIRA

O Globo - 11/07

Rodrigo Maia foi o grande artífice da união em torno do substitutivo aprovado na Comissão Especial


A relevância da Câmara, como parte de um dos poderes da República, foi o destaque da sessão de ontem, quando a reforma da Previdência foi aprovada em primeiro turno por uma votação surpreendente pelo número de votos bem acima do necessário. Ao final, o presidente Rodrigo Maia já puxou para a Câmara duas novas reformas: a tributária e a reorganização do serviço público, mantendo o protagonismo na reforma do Estado brasileiro.

Há muito tempo não se viam deputados federais tendo o entendimento de que participavam de um momento histórico, sem receio de assumir suas posições.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, foi feliz ao definir as relações equilibradas entre o Legislativo e o Executivo como necessárias para uma democracia forte, chamando a atenção de que investidores, além das questões fiscais controladas, que indicam futuro mais seguro para seus investimentos, também olham para a qualidade da democracia praticada no país.

Raramente se viu no plenário da Câmara uma concordância tamanha. Todos eram favoráveis a uma reforma da Previdência. Um avanço diante da posição de anos atrás, quando muitos insistiam em que não havia déficit no sistema.

O que a oposição alegou é que esta reforma não era a correta para o país. Houve também outra aproximação de posições, no sentido de admitir, com maior ou menor ênfase, que a reforma impõe um sacrifício à população.

O dissenso ficou por contada visão política de cada um, a oposição batendo na tecla de que os menos favorecidos serão atingidos. Os favoráveis à reforma, e não apenas os deputados governistas, defendendo atese de que ela ataca os privilégios do atual sistema previdenciário.

Outra unanimidade ontem na Câmara foi abandeira nacional. Trazida ao plenário pelos favoráveis à reforma, foi também abraçada pela oposição, cada grupo ideológico transformando-a em um símbolo de sua luta.

Nossa bandeira jamais será vermelha, gritaram líderes departidos do centro-direita e liberais. Abandeira nacional não pode ser usada contra os mais pobres, devolveram os líderes da oposição.

A deputada Jandira Feghali, do PCdoB, chegou a dizer que era líder da minoria dentro da Câmara, mas que a oposição representava a maioria do povo brasileiro. Não foi isso o que as urnas mostraram nas últimas eleições, mesmo que o governo não tenha conseguido montar uma base parlamentar.

A maioria do plenário formou-se em torno não do governo, que não tem base majoritária, mas a favor de uma visão liberal da economia. A tendência conservadora da maioria dos eleitos para a Câmara parecia favorecera criação de uma base parlamentar sólida, mas a negociação política foi conduzida de maneira desastrada pelo novo governo.

A definição de um relacionamento não promíscuo com o Congresso foi um ponto positivo do governo Bolsonaro. Até mesmo a liberação das emendas parlamentares e de bancadas às vésperas da votação é do jogo democrático, pois os parlamentares vivem do que podem beneficiar suas bases eleitorais.

O que não é admissível é compra de votos por baixo do pano, através da corrupção, como vinha acontecendo desde o mensalão, chegando ao petrolão.

Mas Bolsonaro não entendeu que a falta de promiscuidade não significa, por si só, um tratamento republicano. O novo Palácio do Planalto não conseguiu manter um relacionamento profícuo com o Congresso, e gerou uma disputa de poder que foi prejudicial à democracia brasileira.

A reforma só saiu porque a Câmara foi convencida da sua necessidade, mesmo que potencialmente impopular, e decidiu encarar o desafio. À medida que as discussões foram se desenrolando, a opinião pública foi também evoluindo no entendimento dessa necessidade.

A tal ponto que ontem muitos deputados de diversos partidos fizeram questão de aparecer em conjunto na tribuna do plenário. Um ambiente hostil à reforma da Previdência transformou-se em favorável ao longo do debate, e pesquisas de opinião mostram que a maioria já a apoia.

Sem dúvida o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia, foi o grande artífice da união em torno do substitutivo aprovado na Comissão Especial. E pelo ambiente tranquilo em que transcorreu a votação, já que tem uma relação muito boa com os partidos de oposição —chegou a brincar dizendo que o DEM poderia apoiar o deputado Marcelo Freixo para a prefeitura do Rio — e conseguiu manter o plenário em desarmonia controlada.

A marcha da complacência - WILLIAM WAACK

O Estado de S. Paulo - 11/07

Bolsonaro está diante da oportunidade de tirar o País da estagnação


A tramitação da reforma da Previdência foi um exemplo de marcha da complacência. A provável aprovação se dá no limite do insustentável, quando as contas públicas já estão há tempos no alarme vermelho, o Estado perdeu qualquer capacidade de investimento e nem mais sustenta o próprio custeio.

Complacência é uma característica da sociedade brasileira. Foi assim com a inflação, tolerada até o limite do insustentável – a hiperinflação. Depois de duas décadas a resposta veio com o Plano Real, resultante do consenso de que a inflação corrói mais do que a moeda, corrói o tecido social.

Outro exemplo notável de complacência tem a ver com a corrupção. Ela nunca foi novidade. Mas o já conhecido pântano de roubalheira precisou de mais de uma década de aprofundamento e abrangência durante sobretudo (mas não só) governos do PT até provocar a onda de indignação e revolta populares conhecida como Lava Jato.

Vem daí a capacidade dos principais expoentes da Lava Jato de sobreviver com até certa facilidade às denúncias (não são a menor novidade para advogados de defesa) de que violaram as normas do direito ao combater os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. Para ser bem entendida nas suas origens, alcance e significados presentes, a Lava Jato precisa ser vista como um símbolo político de enorme relevância. É o símbolo de um enorme “basta” – do fim da complacência com a corrupção (se ela realmente acabou é outro capítulo).

A questão da Previdência repetiu a mesma trajetória. Especialistas como Fabio Giambiagi vinham alertando há DUAS DÉCADAS para o caminho insustentável das contas públicas brasileiras, devastadas sobretudo pelo crescimento real de gastos sociais, com destaque para o sistema de aposentadorias. Sem desmerecer o trabalho do especialista, os parâmetros fundamentais para esse tipo de previsão não eram segredo algum. Bastava considerar as taxas de crescimento da economia brasileira (incapaz de sustentar o nível de gastos sociais) e o fechamento da janela demográfica (a população brasileira ficando notadamente mais velha).

O fim da complacência com a miséria das contas públicas já estava desenhado na saída do impeachment de Dilma e foi claramente um foco central do governo Temer. Mas os acidentes da política agravaram a conta que a sociedade inteira está apenas começando a pagar. Em vez de lidar com a Previdência, o governo Temer usou o que restava de energia política para sobreviver a uma inepta denúncia de corrupção (talvez o maior gol contra da Lava Jato), sustentada em parte pela postura de grandes grupos de comunicação.

Qual é o “pai” da atual reforma da Previdência é uma discussão que serve apenas aos objetivos de curtíssimo prazo de diversas correntes políticas. Executivo como Legislativo tiveram igualmente seus méritos e defeitos ao tratar da reforma, com o Legislativo impondo uma agenda própria. A mentalidade e o cacoete corporativo continuam partes integrantes dos dois Poderes, e são condicionantes relevantes das ações de indivíduos e grupos político-partidários (cada um pensando só no seu).

Mas o fato histórico a ser registrado é o surgimento no Brasil de razoável consenso social e político sobre uma reforma que é necessária, mas, de forma alguma, suficiente. Jair Bolsonaro é o presidente quando ocorre fato que pode encaminhar uma fase capaz de tirar o Brasil da estagnação. Na esteira do mais recente período de bonança – o do superciclo das commodities e a descoberta do pré-sal – o então presidente Lula comportou-se de forma que muito contribuiu para transformá-lo num desastre do qual o País ainda não saiu. Vamos ver que uso Bolsonaro fará da sua oportunidade.

O semipresidencialismo - MICHEL TEMER

O Estado de S.Paulo - 11/07

Esse sistema seria um obstáculo às crises institucionais causadas pelo presidencialismo


Os fatos determinam o nascimento da lei. Muitas vezes demora. Os fatos repetem-se, exigindo nova realidade normativa. É da repetição, da reiteração, que o Legislativo se sensibiliza e muda o panorama normativo. Nas democracias é assim. A lei surge das realidades sociais retratadas pelos anseios populares.

Recordo o professor Miguel Reale, que lançou a didática e consistente teoria tridimensional do Direito: fato, valor e norma. Ou seja, em ocorrendo o fato, é ele valorado e, se valioso socialmente, nasce a norma. Nas democracias é assim para diferenciar os sistemas autoritários, em que a norma nasce muitas vezes da mente, da “cabeça” dos que comandam centralizadoramente. Para ficar na primeira hipótese, foi assim quando se convocou a Constituinte de 87/88. Quantas vezes delitos, ou seja, fatos cometidos com inaudita violência passam a ser catalogados como crimes hediondos. Foi assim quando os consumidores pleitearem proteção mais acentuada: fez-se o Código de Defesa do Consumidor. E outras centenas de exemplos.

Faço essas preliminares para tratar da modificação do sistema de governo. Não para já, porque o presidente, o vice-presidente e os eleitos do Legislativo o foram debaixo da ordem constitucional vigente. Portanto, deve-se pensar em 2022. E por que a proposta de modificação?

Porque os fatos estão se impondo naturalmente. Creio até que contribuí com eles. No meu governo trouxe o Congresso para governar com o Executivo. Alardeei que exercia um semipresidencialismo.

Foi essa fórmula, aliás, que me permitiu exercitar o governo com grandes e ousadas inovações, como a reforma trabalhista, a do teto dos gastos públicos, a reforma do ensino médio, a recuperação das estatais, a queda da inflação e dos juros a patamares civilizados. Ainda: com boa inserção internacional sustentando a tese do multilateralismo, que tem como exemplo positivo o recente acordo da União Europeia com o Mercosul. Revelando a integração Legislativo-Executivo,

não foi pequena a participação dos presidentes Rodrigo Maia e Eunício Oliveira nos temas que acabei de apontar. Rodrigo trabalhou arduamente para buscar a aprovação, ainda em 2017, da reforma da Previdência. Que só não se deu, quando tínhamos os votos necessários, em razão de conluio entre um agente privado e um agente público. Agora verifica-se dificuldade na relação entre Executivo e Legislativo a ponto de este último registrar que fará por conta própria as reformas da Previdência e tributária, naquilo que a imprensa tem chamado de “parlamentarismo branco”. Tudo indica, portanto, que está chegando a hora de entregar ao Legislativo participação expressa, transparente na execução das decisões governamentais. Não legislar apenas, mas executar. Partilhar com o Executivo a responsabilidade pela execução. E isso só é possível com a adoção do semipresidencialismo, em que o presidente da República tem funções relevantes, como a chefia das Forças Armadas, o comando da diplomacia, a indicação do primeiro-ministro e mesmo o veto ou a sanção de certas matérias governamentais.

Devo comentar as vantagens políticas desse sistema de governo, que seria obstáculo às crises institucionais como as causadas pelo presidencialismo, em que os impedimentos presidenciais acarretam traumas políticos que prejudicam o País. Vivi esses momentos.

Saliente-se, como escrevi no meu Democracia e Cidadania(Ed. Malheiros, p. 43), que no Brasil o presidente é eleito pela maioria do povo, mas por uma minoria partidária. Depois é preciso costurar o apoio político congressual, o que acarreta inúmeras críticas aos partidos políticos e ao Legislativo. Diria, sem medo de errar, que o Executivo e o Legislativo praticamente se antagonizam, na medida em que, de um lado, se exige a independência absoluta do Legislativo, como se este também não fosse “governo”, e, de outro, quando o presidente consegue montar sua base de apoio, ele o faz sob a acusação de fisiologismo e outras práticas condenáveis. Esquecem-se os que cobram independência integral do Legislativo que a Constituição também determina a harmonia entre os Poderes, o que significa trato institucional respeitoso e integrativo. Ainda, nunca é suficientemente respeitosa a relação dos partidos políticos e do Legislativo com o presidente e deste com aqueles. Mesmo quando a relação é com sua base de apoio. As intrigas vicejam, as brigas por espaços de poder são constantes, os partidos criticam o presidente e este crítica os partidos.

Veja-se que no presidencialismo se impõe a figura do articulador político, que deve fazer a interlocução do Executivo com o Congresso. Ora bem, no semipresidencialismo o primeiro-ministro, como chefe de governo, com sede no Parlamento, faz, naturalmente, essa articulação. Quando lhe falta a confiança do Parlamento, põe-se em pauta um “voto de desconfiança”. E se ele cai, naturalmente as forças políticas, com a participação do presidente da República, compõem um novo Ministério. Sem traumas. E sempre formando, naturalmente, maioria política.

Dir-se-á que já se tentou votar em plebiscito a adoção do parlamentarismo, por determinação de disposição transitória da Constituição. Não foi aprovada. Mas isso porque se levou à apreciação popular apenas a pergunta: você é a favor do parlamentarismo ou do presidencialismo? O eleitor não sabia de que parlamentarismo se tratava. Seria o inglês, em que o rei reina, mas não governa? Não. Um projeto integral seria submetido a referendo em que se verificaria que tanto o presidente da República como o primeiro-ministro têm funções relevantes, ao modelo português ou francês. No passado, quando o ministro Gilmar Mendes era presidente do TSE, estudamos esse assunto e chegamos até a formatar um anteprojeto. Sei que a matéria é delicada, mas não se pode deixar de discuti-la, já que, a nosso ver, aperfeiçoa o sistema.

Bolsonaro tem a dimensão de Collor - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 11/07

Todos os movimentos do presidente na reforma foram para oferecer privilégios

Não seria difícil para Jair Bolsonaro ampliar ou manter estável ao invés de ver diminuir o respaldo que recebe do cidadão brasileiro. Depois de seis meses de governo, o apoio incondicional ao presidente limita-se a 33%, um ponto percentual a menos do que tinha no mesmo período o ex-presidente Collor, o mais odiado do Brasil (Temer não aparece na pesquisa DataFolha). Bolsonaro foi eleito no auge de um ciclo de desgaste da esquerda brasileira. Capitalizar essa desilusão política deixada pelo PT de Dilma e Lula seria possível se ele conseguisse sedimentar uma posição de centro direita ou de direita, sem radicalismo.

O que se viu foi o contrário. Penso que erram os que dizem que Bolsonaro está fazendo o que o seu eleitor esperava dele. Ele fez uma campanha com um discurso radical, é verdade, mas foi eleito por um eleitorado bem mais equilibrado. Os radicais estão com ele, mas para ter 55,13% das urnas, o presidente recebeu votos que pertenciam ao PSDB, ao MDB, ao DEM e a outros partidos que gravitam no centro e em seus arredores. Todo o centro estava ávido para apoiar Bolsonaro e com ele governar.

E os eleitores de centro e centro direita também queriam acreditar que o capitão se estabilizaria depois de eleito. Qualquer um com mais de uma dúzia de neurônios poderia apontar este como o melhor caminho. Ninguém, além da turma raiz de Bolsonaro, esperava que o discurso radical virasse forma de governo. Não se pode, contudo, acusar o presidente de estelionato eleitoral. Ele disse que era isso mesmo o que faria, embora a maioria não acreditasse porque a alternativa era muito mais óbvia e inteligente.

Há quem afirme que Bolsonaro radicaliza para reduzir sua constante perda de popularidade e guardar pelo menos o apoio de parcela da população que se identifica com esse radicalismo. Desconfio ser o contrário. O presidente nunca tirou o pé do pedal que impulsiona e alimenta seu discurso radical. É com o pé embaixo, e por causa dele, que Bolsonaro perde seguidamente apoio e vai se isolando. E o pior para qualquer um nessa posição é que o círculo mais próximo, formado por parentes, amigos e o cordão dos puxa-sacos não o deixa ver o cerco se fechando.

Todo mundo sabe como começa um processo de isolamento. O seu desfecho também é conhecido, com o apequenamento da imagem e a deterioração da credibilidade do protagonista. Bolsonaro não precisaria ser prolixo ou caprichar na oratória para evitar o isolamento. Mesmo sendo tosco (o brasileiro não se incomoda com isso, como se viu no passado recente; tem gente que até prefere um presidente com a sua cara e seu jeito), Bolsonaro conseguiria manter-se em patamar alto em qualquer pesquisa se tivesse maleabilidade política, mesmo mantendo sua pauta conservadora. Não falo em aceitar jogo sujo ou deixar roubar. Me refiro ao nobre fazer político, vital para qualquer democracia.

Diante de um quadro em que a cada dia fica mais limitado, o presidente joga para a sua plateia de fiéis e de certa forma governa pensando exclusivamente nela. Alguém pode dizer que a reforma da Previdência atinge a todos e não mira nenhum grupo específico. Sim, mas a reforma em curso foi capturada pelo Legislativo e hoje é muito mais de Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre do que de Jair Bolsonaro. Além disso, Bolsonaro tem mais atrapalhado do que ajudado. Todos os movimentos do presidente na reforma foram para oferecer privilégios. Foi assim com os militares, com PMs e bombeiros, e agora com policiais federais, rodoviários e agente penitenciários.

O presidente ganharia muito mais se parasse de jogar para a sua galera. Mostraria grandeza se tentasse ser justo. Se, por exemplo, e apenas por exemplo, ao pedir privilégios aos policiais, mencionasse também professores, garis e motoristas de ônibus. Ou se ignorasse todas as pressões e jogasse para o Brasil, trabalhando para aprovar a reforma necessária, incondicionalmente. Aliás, grandeza é a marca dos maiores presidentes do Brasil. Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foram grandes. Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek foram grandes. Jair Bolsonaro, por ora, tem a dimensão de Fernando Collor.

Avanços e perda de oportunidade na reforma - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 11/07

Se idade mínima para a aposentadoria é positiva, redução de desníveis esbarrou nas corporações


Os 331 votos contrários à retirada da reforma da Previdência da pauta, proposta pela oposição, dados na noite de terça-feira, foram um indicador de que o projeto das mudanças ultrapassaria com alguma folga o apoio mínimo de 308 deputados, exigido para a aprovação de emendas à Constituição. O que ficou comprovado pelos 379 votos a favor da reforma, contra 131. Aprovado em primeiro turno, o projeto de emenda Constitucional (PEC) segue para a apreciação em segundo, com chances sólidas de ser referendado. O que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, deseja que ocorra ainda até domingo, a fim de que a PEC seja logo remetida ao Senado.

Caso não haja emendas que levem a que partes do projeto retornem à Câmara, a PEC da reforma, da maneira como está, traz avanços num sistema previdenciário que há tempos caducou, deixando de refletir a realidade demográfica do país, além de ser causa do agravamento de desigualdades.

A fixação, afinal, de uma idade mínima para a obtenção da aposentadoria (65 anos, homens; 62, mulheres) — nas Américas, apenas Brasil e Equador não seguem este parâmetro — é essencial para que seja contida a tendência de aposentados terem baixa idade média (no INSS, aquém dos 60 anos), quando a sobrevida das pessoas com mais de 60 anos chega aos 80, mesmo em regiões mais pobres. Tem lógica aritmética o crescimento descontrolado dos déficits previdenciários.

Também é um aperfeiçoamento a contribuição progressiva à Previdência — salários mais altos contribuem mais. No caso dos servidores, mais bem remunerados, em média, que os empregados na iniciativa privada, o desconto poderá chegar a 22%. Nada desmesurado, se for levado em conta que a alíquota mais elevada do Imposto de Renda é 27,5%. A reforma, porém, pressionada por corporações, principalmente de servidores, perde a oportunidade de corrigir distorções sociais no sistema, como prometido pelo Ministério da Economia. O próprio presidente Bolsonaro passou a trabalhar às claras para elevar privilégios de policiais federais, agentes rodoviários federais e polícia legislativa, que não aceitavam o limite de idade de 55 anos para aposentarem-se. Terminaram concordando ontem com os limites de 53 para homens e 52 para mulheres, e o estabelecimento de 15 anos de carreira, no caso da mulher, e do homens, 20. Para os novos policiais, admitidos depois da promulgação da PEC, valerão 20 anos e o limite de 55. Mais: os agentes na carreira terão garantidas a integralidade (ter o último salário como aposentadoria e a paridade (receber os mesmos reajustes do servidor ativo). Esta é uma das causas da enorme desigualdade entre aposentados, em favor dos servidores.

Nas perdas, inclui-se, ainda, a provocada pelo lobby das 77 deputadas, que conseguiram fixar em apenas 15 anos de contribuição a exigência para a aposentadoria do gênero.

Contas precisarão ser feitas, para se estimar quanto do trilhão de economia previsto em 10 anos será conseguido. Que não avance a desidratação da reforma.

quarta-feira, julho 10, 2019

Show de crianças vestidas como drags: respeito ou abuso? - VILMA GRYZINSKI

REVISTA VEJA

Pais levam meninos que se identificam como meninas transgêneros para desfilar e dançar em Denver; dizem que isso é expressão de amor e inclusão




Vestida para matar: criança levada para o “show de drag queens de todas as idades" (CBS/Reprodução)

Quando os militares americanos ocuparam o Afeganistão, depois de derrubar os talibãs que protegiam Osama Bin Laden, aconteceu um choque de civilizações.

Muitos ficaram horrorizados e perguntaram, através das cadeias de comando, o que deveriam fazer com os aliados locais a quem deveriam treinar, policiais e militares que exibiam orgulhosamente seus “meninos dançarinos”.

Resposta: a antiga tradição dos Pashtuns, a etnia predominante, deveria ser respeitada. Num país onde homens e mulheres nunca se misturam, os espetáculos de dança dos “bachabaze”, pintados ou vestidos com roupas femininas, eram parte da cultura local.

Os militares americanos que preferiam dar ordem de prisão ou de abrir fogo contra os exploradores de menores, às vezes raptados ou vendidos pelas próprias famílias miseráveis, acataram.

Os meninos afegãos continuaram a dançar e a ser exibidos pelos poderosos locais, que os emprestam ou alugam para ser estuprados por convidados depois das festas. Uma janela para esta barbárie foi aberta pelo livro O Caçador de Pipas.

Em questão de poucos anos, crianças americanas estão sendo levadas por seus pais e mães para dançar em público com roupas femininas.

Em Denver, o “show de drag queens para todas as idades” acontece todos os fins de semana há seis meses.

Cerca de dez crianças participaram do último, no domingo. A polícia manteve à distância um punhado de manifestantes que protestavam contra o espetáculo, com cartazes dizendo que isso é abuso infantil.

“Essas crianças são muito corajosas. Conseguem compartilhar seus talentos e seus dons”, disse à televisão CBS uma das acompanhantes, Elizabeth Mitchell. “Sou cristã e mãe de uma criança gay e minha neta está fazendo uma apresentação hoje. São muitas emoções e muitos conflitos para mim.”

Qual a distância entre sentimentos generosos como acolher, amar, respeitar, incluir e prover assistência médica e psicológica a uma criança transgênero, e a simples insanidade de colocar este rótulo definitivo em quem não idade ou maturidade para saber com certeza o que é “uma menina num corpo de menino” ou vice-versa?

O que é um amor de amor paternal ou simplesmente modismo ditado por “influencers”, essa palavra que se tornou detestável?

O que é até uma rejeição inconsciente a ter um filho gay e preferir enquadrá-lo na categoria hoje socialmente mais aceitável de trans?

Quando adultas, pessoas trans, em geral, não querem usar plumas e paetês ou exibir cabeça raspada e musculatura tatuada, entre outros estereótipos, mas parecer pessoas comuns do sexo com o qual se identificam. Fica mais fácil incorporá-las à paisagem social.

‘DESMOND IS AMAZING’
As crianças americanas incentivadas a se comportar como drag queens não são submetidas a violências sexuais como os pobres meninos afegãos. Mas há casos de claro abuso.

Andrew e Wendi Napoles, um casal de Nova York, começaram levando seu filho Desmond para desfilar na parada gay e acabaram por exibi-lo, na época com onze anos, em dança num bar imitando Gwen Stefani.

Os clientes, adultos homossexuais, jogavam dinheiro enquanto o menino magrinho, conhecido pelo selo “Desmond is Amazing”, se contorcia.

O menino foi levado a um programa matutino de televisão. Entrou rebolando como modelos de desfile de lingerie, com peruca cor-de-rosa, e se jogou no chão, numa performance muito aplaudida pelo público e pela dupla de apresentadores.

Se fosse uma menina de onze anos, vestida e maquiada como mulher adulta, seria um escândalo. Erotização precoce, irresponsabilidade criminosa dos pais e incentivo à pedofilia.

Por que com um menino que se apresenta como drag queen é diferente?

Porque o desejo saudável e necessário de combater preconceitos e proteger vítimas de tantos abusos por ser de alguma categoria da coleção de letras — LBGTQIA, e aumentando — virou uma imposição política, social e até legal.

O princípio libertário de que cada um viva como quiser, incluindo no pacote que faça sexo como e com quem quiser, tendo o interlocutor idade e consentimento necessários, está se transformando em seu oposto.

Nos Estados Unidos, com uma inquebrantável, até hoje, garantia de liberdade de expressão, é possível discutir, debater e discordar quando o assunto são as sérias questões envolvidas, no caso de crianças submetidas a tratamentos hormonais, entre outras mudanças sem volta.

Na Inglaterra, um país com outra tradição política e onde as leis costumam ser cumpridas, virou caso de polícia, literalmente.

Queixas por transfobia, baseadas num sentimento individual de ofensa e na lei de comunicações nocivas, já provocaram casos absurdos como o de Kate Scottow, levada detida pela polícia, na frente dos dois filhos, por ter chamado pelo Twitter um ativista transexual de “ele”.

Caroline Farrow foi processada por dizer que a mãe que levou seu filho de quinze anos para uma operação de mudança de sexo na Tailândia havia submetido o adolescente a “mutilação” e “castração”. A mãe, diretora de uma organização voltada para crianças trans, acabou retirando a queixa.

HORMÔNIOS SECRETOS
Tanto Kate quanto Caroline também são militantes, mas do lado oposto: contestam ativamente, pelas redes sociais, que um homem passe a ser mulher se assim o declarar e, em especial, a inclusão obrigatória de crianças na categoria transgênero pelo mesmo motivo.

Uma corrente feminista minoritária também se alinha nessa corrente e protagoniza brigas homéricas com ativistas trans. As mulheres sempre acabam apanhando.

Sem nenhuma militância, uma professora de uma escola britânica que tem o espantoso número de 17 estudantes trans declarou, sob anonimato, que a metade não se se encaixa no quadro de disforia de gênero.

Na verdade, afirmou, são crianças do espectro autista, influenciadas a se declarar transgêneros por outras, mais velhas. Uma adolescente autista estava esperando a idade legal para se submeter à mastectomia dupla, disse a professora.

Interromper a puberdade com tratamentos hormonais de crianças categorizadas como trans é a intervenção mais contestada, por motivos óbvios, no tratamento da disforia de gênero.

Os médicos britânicos são orientados a fornecer o tratamento sob segredo, sem conhecimento dos pais, se assim for pedido.

Qual a saída para tantas distorções absurdas, levando em consideração todas as incríveis complexidades envolvidas, desde a solidariedade humana mais elementar até a força da lei?

Antes dos 18 anos, os meninos dançarinos do Afeganistão são dispensados, às vezes com uma pequena compensação, por seus senhores.

Perdem a graça juvenil e caem nas desgraças de uma vida traumatizada. Geralmente, através da droga — o Afeganistão é o maior produtor de ópio e heroína do mundo.

O que é o ópio do povo, hoje, num lócus político-social onde pais e mães acreditam sinceramente que estão fazendo um bem às crianças que levam para um “show de drag queens de todas as idades”?

O lobby cartorial de sempre - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 10/07

A Medida Provisória (MP) n.° 876 corre o risco de caducar se não for aprovada até a quinta-feira

Baixada no dia 13 de março com o objetivo de melhorar o ambiente de negócios no Brasil, e tendo sido muito bem recebida pela iniciativa privada, uma vez que desburocratiza o funcionamento das Juntas Comerciais e agiliza os registros das empresas nesses órgãos, a Medida Provisória (MP) n.° 876 corre o risco de caducar se não for aprovada até a quinta-feira. O motivo é a reação contrária daqueles que, em plena época da internet, querem continuar trabalhando por meio de procedimentos tradicionais, morosos, caros e, mais grave ainda, que exigem atividades que se tornaram anacrônicas por causa do desenvolvimento tecnológico, não tendo mais razão de existir.

É esse, por exemplo, o caso dos vogais das Juntas Comerciais, que analisam os pedidos de registro que tramitam nesses órgãos. Os vogais não são funcionários das Juntas Comerciais e atuam apenas por indicação de entidades de classe independentemente de terem ou não conhecimento técnico na área. Na maioria das vezes, as indicações são políticas. Os vogais, que verificam a legalidade de atos de empresas, como criação, modificações, aquisições, fusões e extinções de empresas, também não recebem salários pelos serviços prestados, e sim jetons pelas reuniões semanais de que participam, o que totaliza, em média, uma remuneração mensal de R$ 10 mil. Dependendo de seu tamanho e volume de trabalho, as Juntas Comerciais podem ter entre 11 e 23 vogais.

Na versão encaminhada pelo Executivo para a Câmara dos Deputados, a MP n.° 876 nem sequer tratava da atuação dos vogais. O problema começou quando, na comissão especial encarregada de apreciá-la, o deputado Alexis Fonteyne (Novo-SP) propôs a extinção da figura jurídica dos vogais – cargo que, na Justiça do Trabalho, foi extinto em 1999 pela Emenda Constitucional n.° 24. Depois que a equipe econômica do governo apoiou a proposta, os vogais se mobilizaram para garantir a continuidade de suas funções.

Diante do impasse, o relator, deputado Áureo Ribeiro (SD-RJ), apresentou uma solução intermediária, deixando a cargo de cada Junta Comercial a decisão de aceitar ou não a indicação de vogais, mas eliminando a possibilidade de pagamento por seus serviços. Em seu parecer, ele afirmou que o instituto do “vocalato” não passa de um cabide de emprego e que sua continuidade leva o empresariado ao risco de “ficar no atraso e na burocracia”. O mesmo argumento foi apresentado pelo chefe do Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração do Ministério da Economia, André Santa Cruz. Ele classificou o lobby dos vogais como “uma defesa espúria de privilégios” e disse que, se a MP caducar, as Juntas Comerciais continuarão trabalhando com “estruturas medievais”.

A MP n.º 876 foi elaborada com base nas chamadas reformas de segunda geração do Banco Mundial, que têm por objetivo reduzir custos de transação, diminuir os gastos das empresas com atividades-meio e aumentar a segurança jurídica reivindicada pela iniciativa privada. Segundo a pesquisa Doing Business, do Banco Mundial, que avalia a facilidade de iniciar um negócio em 190 países, o Brasil ficou na 109.ª posição na edição deste ano. Entre outras inovações, a MP n.° 876 valoriza o princípio jurídico da boa-fé, ao garantir o registro automático nas Juntas Comerciais como regra e por facilitar os registros de firmas constituídas por microempreendedores individuais, empresas individuais de responsabilidade limitada e sociedades limitadas. Também determina que a declaração do advogado ou do contador da empresa tenha fé pública. Com isso, o pequeno negócio não teria mais de se preocupar com trâmites burocráticos, podendo concentrar a atenção na prospecção de mercados e na busca de investimentos.

O lobby dos vogais contra a MP n.º 876 é mais uma demonstração de como o cartorialismo continua impedindo a economia brasileira de se modernizar e de crescer. Num contexto de 13,6 milhões de desempregados, não faz sentido manter a burocracia para a abertura de empresas, obstruindo a geração de vagas de trabalho.


Presságios - PAULO DELGADO

O Estado de S.Paulo - 10/07

O mundo é da riqueza, das hierarquias e dos criadores. O povo nunca esteve tão fora de moda


Para entender a perda de poder do Estado é preciso mais talento humanista do que habilidade política. De maneira geral, governos usam sua força como oficina de testes para usufruir ou confrontar fatos dos quais com frequência são os causadores. Mas para entender como a sociedade está reagindo a tais iniciativas experimentais melhor mesmo é ampliar o ponto de observação e evitar a depressão e revolta que é viver sob governos ingênuos.

O mundo é da riqueza, das hierarquias e dos criadores. E o povo, ora, o povo nunca esteve tão fora de moda como agora. Estão aí três sistemas sociais poderosos que explicam o rápido processo de mudança a partir da atual revolução tecnológica e da crise do sistema financeiro. Chips & Pounds, dois impérios virtuais em guerra que vão se chocar e tirar do Estado a capacidade de vigiar e imprimir dinheiro.

A tecnologia acelera em ritmo cada vez maior e vem pervertendo tanto nosso sistema de reflexos que sua velocidade já é uma doença. O sistema financeiro, por sua vez, gigantesco e socialmente infértil, será engolido pela criptomoeda como o Uber comeu o táxi.

A tecnologia deu aos bancos um suporte material e um saber extraordinário sobre a angústia dos clientes, mas não lhes deu nenhuma sensibilidade sobre a experiência de salvá-los pela vida produtiva. Se o concentrado sistema bancário não enfrentar sua riqueza enganadora, usando de forma virtuosa a memória que armazena dos seus clientes, será tragado pela degenerescência do dinheiro virtual provocando um Alzheimer na riqueza.

Tecnologia e Moeda são impérios virtuais que se aproveitam do sono dos Parlamentos, anestesiados pelo narcisismo dos selfies e prisioneiros de qualquer Big Data que se ofereça. Notícias não compensam a falta de ideias. A maquinação digital é uma armadilha que consiste em transferir a legalidade de todas as coisas para os que armazenam os meios eletrônicos, fazendo o controle da verdade pertencer ao manipulador de dados.

O mundo está inundado de dinheiro fraco e caro. Dinheiro que se converteu em entorpecente provocando necessidade de antidepressivos. Os bancos não conhecem analogia e acham que nada tem que ver com eles o fato de que nos EUA e na Europa são cobradas taxas para o uso de drogas recreativas em cafés ou oferecidas drogas medicinais em dispensários para usuários. Nada repressivo, totalmente liberal. Se não criarmos abrigos para inadimplentes, ou alguma moeda social não contributiva, o dinheiro não circulará pela massa de excluídos e a mercadoria não mais será comprada pela maioria.

A exclusão social deve ser considerada uma droga e se os bancos não mudarem sua relação doentia com o tráfico de dinheiro, a moeda deve passar a ser tratado pelos sistemas de saúde, e não pelo sistema financeiro. A OMS sabe mais do mundo do que o FMI.

A política, e seu medo estúpido da economia e da tecnologia, infantilizou o papel da luta política, prisioneira do obsoleto estatuto do poder. Tipo de política que não usa nenhuma brecha para propor uma linha de fuga que possa reverter sua impotência diante da violência dos processos tecnológicos e financeiros.

Recomeçou o ciclo do grande endividamento.

A riqueza bancária e a informatização usam as facilidades da política, de direita ou esquerda, para penetrar sem lei nos países que não atravessaram nenhum grande acontecimento da História mundial. Com a concentração, a segurança econômica pressupõe subordinação bancária e não significa liberdade. O crédito imposto, o endividamento, virou um mecanismo de conformidade violento. A Pátria cobriu-se de juros, o nome do dinheiro caro.

A bravura dos que trabalham e produzem a riqueza perdeu aliados para disputas políticas ideologizadas, sem nenhuma ligação com a dor e o prazer trazidos pelo progresso. A alta tecnologia escondeu-se em paraísos fiscais, alimenta hackers, cria empresas virtuais, manipula e desorganiza governos a seu favor.

Enquanto a política não acorda para o problema real que aflige a pessoa comum, que é o novo mundo do trabalho e sua relação com a insegurança pessoal, a boemia bancária, indiferente à revolução tecnológica no mercado de mão de obra, adoece o crédito com o assédio ao necessitado.

A revolução digital e sua interferência na lógica dos empregos e dos negócios mudaram as exigências da vida. O desemprego dos capazes, surpreendidos por habilidades presas ao passado, aumentou a subordinação das pessoas a bancos e a remédios. E é essa prisão sem amigos, a ausência de decisões novas que façam a riqueza circular de forma ampla, mas fruto de algum compromisso coletivo da economia com o trabalho, que contamina a esperança na política. As hierarquias que dominam os interesses políticos não sabem escrever protocolos para que a criação e a circulação da riqueza existam na perspectiva de todos.

A política perdeu a noção de como os bens são produzidos. A convivência com este estado de coisas – veloz, deseducado, atrativo, desconhecido e sugado por juros – domina o dia dos governos. Um mecanismo que desregulamenta nosso futuro, com a perda da esperança no consenso produtivo e na criatividade do trabalho.

Nas crises de sociedades sem comando, as recompensas que ela acaba proporcionando são desproporcionais e descabidas ao extremo. Cresce demais para uns, desaparece para outros. O cerne do desequilíbrio é a predominância de um tipo novo de vitoriosos ousados na arquitetura do poder. A riqueza se concentra nas mãos de alguns grandes criadores de dinheiro “sem fábrica”, aliados aos hipercompetitivos personagens dos negócios midiáticos, políticos e financeiros.

Assim o mundo corre veloz com sua economia oca. Uma energia desagregadora fazendo e desfazendo valores. Sem monitoramento estatal sábio que possa unir riqueza, hierarquias e criadores, adeus, bemestar social. O custo desse erro tem sido assustador.

Depois da Previdência, jogo político recomeça e deve ficar mais tenso - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 10/07

Mesmo sem coalizão no Congresso, Bolsonaro deve enfrentar parlamentarismo branco


A tramitação da reforma da Previdência colocou alguma ordem na política e conteve desordem maior no governo. Depois da mudança nas aposentadorias, porém, não se sabe o que será do breve parlamentarismo branco nem se Jair Bolsonaro vai tolerar essa camisa de força. É melhor nem pensar o que vai ser se a reforma cair, resultado ora improvável.

Depois de aprovada a reforma, as peças do quebra-cabeça político devem ser embaralhadas, talvez algumas se percam e outras novas apareçam. O presidente continua sem coalizão política, os conflitos serão diferentes, a impaciência popular pode aumentar e as próximos reformas são bem menos consensuais na elite político-econômica, caso dos impostos.

Por ora, o miolão da Câmara, liderado por Rodrigo Maia, pretende seguir com seu plano de aprovar um programa próprio e cortar as asinhas de Bolsonaro. Vai ser mais difícil.

Para começar, haverá também um projeto de reforma tributária no Senado; um terceiro, ambicioso, do próprio governo; talvez um quarto, a ser apresentado pelos empresários amigos do governo. Essas propostas não se complementam, quando não se chocam de frente.

Além do mais, mesmo a reforma da Câmara, a de tramitação mais avançada e a mais respeitada, cria conflitos. Pretende manter inalterada a carga tributária, mas haverá quem passe a pagar mais e menos impostos; a reforma poda a autonomia tributária de estados e cidades. Isso dá rolo.

Governo e empresários amigos querem criar uma espécie de CPMF. Não se conhecem os detalhes dessa ideia, mas se sabe que isso cai muito mal entre os cidadãos comuns e na indústria.

O ministério da Economia diz agora que vai liderar o jogo, apresentando uma penca de reformas e medidas econômicas. Uma delas é o fim do gasto obrigatório em saúde e educação, plano politicamente explosivo, que ameaça as chances de uma reforma tributária ampla, mudança que não acontece no Brasil desde o início da ditadura militar.

O debate da Previdência provocou mais “fadiga de reformas” (tensão política, interesses contrariados e perda de benefícios sem que apareçam imediatamente resultados). Esse cansaço deve aumentar. O cidadão médio não vai sentir melhoras da economia até o ano que vem, se sentir. Quanto dura a paciência?

Sem o risco de sentença de morte de seu governo, que seria a derrota na Previdência, o presidente pode se sentir mais livre para enfrentar os demais Poderes. Mesmo com o risco que corria na tramitação da reforma, tomou decisões ou disse disparates que até ontem ameaçavam sua aprovação.

Em resumo, não se sabe se a coalizão do “parlamentarismo branco” liderada por Maia vai se manter, e com qual força. Há conflitos socioeconômicos à vista, como na reforma dos impostos, da CPMF, do IR e dos gastos com saúde e educação. Mas, para ter sucesso em reformas, o governo depende outra vez de Maia, que tem outro programa.

Por fim, vai ficar mais aparente a contradição do “parlamentarismo branco”: aprova reformas politicamente custosas que tendem a beneficiar o país e, pois, o governo, mas sem bônus para si. Bolsonaro ficaria com méritos sem ter feito o esforço desgastante da articulação política e de talhar benefícios sociais.

Este esquema de fazer sacrifícios políticos com vantagens incertas não faz sentido, os parlamentares sabem muito bem disso. Vão aderir a Bolsonaro? Improvável. Vão fazer as mudanças e emparedar o presidente?

Vinicius Torres Freire
Jornalista, foi secretário de Redação da Folha. É mestre em administração pública pela Universidade Harvard (EUA)

Governante menor - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 10/07

Que sorte, a de João Gilberto! Bolsonaro não o elogiou


Leio que o presidente Jair Bolsonaro reagiu com indiferença à notícia da morte de João Gilberto. Não decretou luto nem se deu ao respeito de emitir um comunicado lamentando a perda desse grande artista etc. —o discurso protocolar dos chefes de Estado, que pode não engrandecer o morto, mas também não apequena quem o emite. Que sorte, a de João Gilberto! Um elogio de Bolsonaro seria uma nódoa nas homenagens que lhe estão sendo prestadas por tanta gente importante, no Brasil e no exterior.

Outras glórias da cultura já morreram este ano, como Bibi Ferreira e Beth Carvalho, e não me lembro de ter escutado uma palavra de Bolsonaro a respeito. Beth era declaradamente de esquerda, mas não me consta que, no fim, a política tomasse muito tempo de Bibi. Bolsonaro, se fosse um estadista, e não um presidente com estofo de vereador, teria aproveitado para reverenciá-las e mostrar como um governante está acima de divergências e mesquinharias. Mas não faz isto, porque conhece bem o seu lugar. A rampa do Planalto não elevou sua estatura.

Diz-se que Bolsonaro não se pronuncia sobre certas pessoas porque não sabe quem são, nem tem quem o instrua. É possível. Seu universo de referências culturais não parece extrapolar a churrasqueira do condomínio onde morava, na Barra.

Mesmo os generais da ditadura, que ele tanto admira, eram intelectuais diante dele. Castello Branco gostava de teatro; Costa e Silva, diziam, fora craque em matemática no Colégio Militar; Geisel tinha fumaças de estadista e, por via das dúvidas, mantinha Golbery ao lado; e Figueiredo governava com os cavalos, mas seu irmão, Guilherme Figueiredo, era um escritor respeitado, inclusive pela esquerda. Já Médici, não: seu cérebro era uma extensão do radinho de pilha com que ele ia ao Maracanã.

Aliás, pela frequência com que Bolsonaro tem ido a estádios, só pode estar em campanha pela presidência da CBF.

Novas concessões e velhos defeitos - MIRIAM LEITÃO

O Globo - 10/07

Reforma iria cortar o rombo e diminuir privilégios. Avançará no primeiro item, mas manterá a desigualdade entre brasileiros


Quando o Brasil esperava que a discussão da reforma da Previdência finalmente começasse em plenário, os deputados passaram horas discutindo se deveria ou não ser aprovado um projeto que regulamenta a vaquejada. O assunto parecia despropositado, e era. Se a proposta não estava sendo votada é porque corria riscos de ser derrotada naquele momento. Para tentar angariar mais apoio, o governo fez novas concessões, como regras tributárias ainda mais flexíveis para igrejas, perdão de dívida rural e novas flexibilizações para mulheres.

O caminho escolhido foi desidratar ainda mais a reforma, dando novas vantagens aos policiais, ou fazendo o que o presidente Jair Bolsonaro propôs, que é tirar as forças de segurança da reforma. Nesse ponto, até faz sentido discutir a vaquejada. Com proteções dos grupos pelos quais o presidente faz lobby, a vaca vai mesmo para o brejo. A Previdência não está mudando, está confirmando seus defeitos.

Houve cristalização de privilégios corporativos. Os policiais já têm pelo texto da reforma muita vantagem em relação ao resto do país. Trabalharão menos e terão integralidade e paridade. As Forças Armadas também mantiveram, no projeto que ainda será analisado, esses mesmos privilégios. Outro problema da reforma é o de ter aceitado que os estados e municípios fiquem de fora, mantendo uma parte grande do desequilíbrio no sistema.

O objetivo proclamado da reforma era combater rombos e privilégios. Se for aprovada, reduzirá o rombo, mas não será possível caminhar para um sistema menos desigual. Não faz sentido dar a ninguém, numa reforma feita hoje, o direito de se aposentar com o último salário e acompanhar todos os aumentos da ativa. É exatamente isso que tem feito o custo dos inativos ser tão alto. Na reforma do governo Lula, isso foi mudado para o futuro. Quem entrou no serviço público até 2003 permaneceu tendo esses dois privilégios, mas daí em diante não.

A proposta atual provoca um retrocesso nesse avanço feito no governo Lula. Estabelece que algumas corporações continuarão tendo esses dois direitos, que são evidentemente excessivos para os tempos atuais, e diante do rombo previdenciário e da crise fiscal do país. Naquela mudança, feita pelo PT, todos passariam a receber até o teto do INSS e acima disso teriam que contribuir para o fundo de pensão dos funcionários públicos, só que eles sabotaram a própria reforma demorando 10 anos para constituir o Funpresp. Mas conceder esse direito numa reforma feita agora, e que veio embalada com o discurso de combate aos privilégios, é um absurdo completo.

Para se ter uma ideia, os brasileiros do regime geral tiveram uma piora. Antes, para se calcular o valor da aposentadoria eram levados em conta 80% dos seus salários, desprezando-se os 20% menores. Essa média é que ele receberia até o teto do INSS. Agora, serão levados em conta 100% dos salários. Isso puxará a média para baixo. Se for servidor e tiver entrado entre 2003 e 2013, receberá 60% da média de todos os salários, com 2% ao ano a mais a cada ano que contribuir além dos 20 anos. Se tiver entrado depois de 2013, é o teto do INSS. Já os policiais se aposentarão aos 55 e recusaram proposta do governo para baixar para 53. E todos os que estão na ativa vão receber a integralidade e a paridade.

Como resumiu o deputado Marcelo Ramos em entrevista a este jornal no último sábado:

—Estamos propondo que o pedreiro, o gari, o ajudante de servente trabalhem mais cinco anos até 65 anos e o policial federal não pode trabalhar até os 53? Não é razoável.

Excluir os estados e municípios da reforma é contratar a manutenção de um enorme desequilíbrio, na opinião do ex-governador Paulo Hartung que, no seu primeiro mandato, conseguiu a proeza de negociar 35 anos de trabalho para os policiais.

—As corporações são muito fortes junto ao governo federal, imagine como são fortes nos estados? Como há uma possibilidade muito fraca de ainda ser incluído, o mais provável é que cada estado tenha que fazer o seu esforço e o seu dever de casa —diz Hartung.

Com a manutenção de privilégios para corporações, com tratamentos diferenciados sendo cristalizados, deixou de fazer qualquer sentido chamar a reforma do governo Jair Bolsonaro de Nova Previdência. É a velha, com alguns novos parâmetros, com a idade mínima que tinha que ser instituída, mas que nem ela, a idade mínima, é igual para todos.

Que Estado queremos? - CRISTIANO ROMERO

Valor Econômico - 10/07

Reforma tributária é urgente, mas é preciso redefinir despesas

Há quase 30 anos o Congresso debate a necessidade de mudanças no sistema tributário. No mesmo período, especialistas avisam que, sem reforma, empresas brasileiras - e as estrangeiras que produzem aqui - jamais conseguirão competir no mercado internacional. Governadores alegam que, se a reforma acabar com a possibilidade de os Estados concederem incentivos para atrair investimento produtivo, a desigualdade entre os entes mais ricos da Federação, como São Paulo, e os mais pobres, como Alagoas e Maranhão, vai aumentar. Empresários se queixam há décadas da carga e da complexidade que dificulta e encarece o que deveria ser simples - o pagamento de tributos. A indústria reclama do fato de pagar mais impostos, mesmo sabendo-se que sua participação no PIB encolheu de forma significativa nas últimas três décadas.

Se ninguém está satisfeito com o sistema tributário, por que todas as tentativas de reformá-lo fracassaram? A última reforma foi realizada em 1988, durante a elaboração da Constituição. O texto não agradou, tanto que, três anos depois, o governo Collor começou a discutir mudanças. Outras propostas foram debatidas nas gestões de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), Lula (2003-2010), Dilma (2011-2016) e Temer (2016-2018), mas nada andou.

A derradeira tentativa séria ocorreu no segundo mandato de Lula, a partir do trabalho árduo do economista Bernard Appy, que, nos bastidores, foi boicotado por seu chefe - o então ministro da Fazenda, Guido Mantega. Appy especializou-se no tema e formulou proposta que está sendo adotada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), como ponto de partida para uma nova tentativa de reforma.

Maia quer fazer na área tributária o que empreendeu na Previdência: esquecer o governo e construir consenso dentro do Legislativo para votar reformas. É possível que a estratégia funcione porque a iniciativa de mudar o que não está funcionando parte do Congresso, e não do governo federal, parte interessada em modelos tributários que em geral centralizam ainda mais o poder em Brasília. É mais fácil tratar de questões regionais na casa do povo do que nos ministérios.

Durante muito tempo, acreditou-se na seguinte falácia: "só é viável fazer a reforma a partir de diálogo com os Estados, pois isso diminui a resistência das bancadas parlamentares". Ora, convidados para o convescote, secretários estaduais de Fazenda, em sua maioria técnicos bem intencionados, participam por educação ou para tomar nota das maquinações do governo central. Na prática, as propostas "acordadas" entre Ministério da Fazenda e Estados sempre foram bombardeadas pelo Parlamento antes de chegarem a instâncias relevantes da tramitação.

O eterno retorno do tema mostra, uma vez mais, que será debatido sem, antes, a sociedade definir o tamanho do Estado que os tributos vão financiar. Se for aprovada no formato em que saiu da comissão especial da Câmara, a reforma da Previdência será o primeiro passo na redefinição das prioridades do Estado brasileiro. As mudanças reduzirão o subsídio bilionário e injustificável das aposentadorias do funcionalismo federal; instituirá idade mínima num país em que, felizmente, as pessoas estão vivendo mais; promoverá redistribuição de renda e começará a enfrentar realidade inescapável - o fim, muito próximo, do bônus demográfico, isto é, do fato de haver mais brasileiros trabalhando do que aposentados, situação que lança a indagação: se a Previdência já é deficitária com o bônus, como ficará quando este acabar?

O que sabemos do atual regime tributário é mais ou menos isso: é amparado mais em tributos que incidem sobre o faturamento das empresas do que sobre a renda e a propriedade; é regressivo na tributação da renda, uma vez que a classe média e os ricos deduzem da tributação gastos com saúde e educação, o que no fim tira dinheiro da saúde e da educação públicas; taxa muito mais o consumo, fazendo com que os pobres paguem, em proporção da renda, mais imposto que os ricos; promove a exportação de tributos, um anacronismo sem paralelo no planeta; inibe o investimento produtivo e a formação de poupança privada; beneficia, com renúncia neste ano superior a R$ 300 bilhões, setores específicos da sociedade e da economia, sem qualquer avaliação dos resultados efetivos.

Se a reforma tributária voltará ao centro do debate, será útil que os parlamentares se debrucem sobre os gastos federais e a máquina estatal - faz sentido, por exemplo, a União manter seis bancos, além de Petrobras, Eletrobras e a gratuidade do ensino superior? - e, também, sobre o orçamento anual do "gasto tributário", uma forma de eternizar incentivos fiscais que, ao fim e ao cabo, concentram renda e perpetuam a pobreza e a brutal desigualdade de renda. A tabela mostra por setor que os donos do poder, escolhidos em Brasília, não mudam a triste realidade social.

Precisamos falar sobre fake news - DAVI ALCOLUMBRE

O GLOBO - 10/07

Confia-se a ponto de compartilhar, sem questionar

Minha mãe tem 74 anos e, como milhões de pessoas no mundo, faz uso frequente do celular. É com ele que, conversando por voz ou por vídeo, diariamente, vence a distância e a saudade dos netos e netas.

Mas, para ela, assim como para milhares e milhares de pessoas, o celular pode ser também uma fonte de engano. De vez em quando, por acreditar no que chega por meio de amigos no seu WhatsApp, me envia uma ou outra mensagem contendo uma fake news. A última foi sobre um suposto problema com a vacina da gripe que, por um momento, diferente de anos anteriores, a fez desistir de se vacinar.

Eu e minha mãe, como boa parte dos brasileiros, não nascemos na era digital. Nesta sociedade somos os chamados migrantes e, como tais, a tecnologia nos gera um certo estranhamento (e até constrangimento), embora nos fascine e facilite a vida.

Sejamos sinceros. Nada nem ninguém nos preparou para essas mudanças que revolucionaram a comunicação. Pior: é difícil destrinchar o que é verdade em tempo de fake news.

Um dos maiores estudos sobre a disseminação de notícias falsas na internet, publicado ano passado na revista “Science”, foi realizado pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), dos Estados Unidos, e concluiu que as notícias falsas se espalham 70% mais rápido que as verdadeiras e alcançam muito mais gente.

Isso porque as fake news se valem de textos alarmistas, polêmicos, sensacionalistas, com destaque para notícias atreladas a temas de saúde, seguidas de informações mentirosas sobre tudo. Até pouco tempo atrás, a imprensa era a detentora do que chamamos de produção de notícias. E os fatos obedeciam a critérios de apuração e checagem.

O problema é que hoje mantemos essa mesma crença, quase que religiosa, junto a mensagens das quais não identificamos sequer a origem, boa parte delas disseminada em redes sociais. Confia-se a ponto de compartilhar, sem questionar.

O impacto disso é preocupante. Partindo de pesquisas que mostram que notícias e seus enquadramentos influenciam opiniões e constroem leituras da realidade, a disseminação das notícias falsas tem criado versões alternativas do mundo, da História, das Ciências “ao gosto do cliente”, como dizem por aí.

Os problemas gerados estão em todos os campos. No âmbito familiar, por exemplo, vai de pais que deixam de vacinar seus filhos a ponto de criar um grave problema de saúde pública de impacto mundial. E passa por jovens vítimas de violência virtual e física.

No mundo corporativo, estabelecimentos comerciais fecham portas, profissionais perdem suas reputações e produtos são desacreditados como resultado de uma foto descontextualizada, uma imagem alterada ou uma legenda falsa.

A democracia também se fragiliza. O processo democrático corre o risco de ter sua força e credibilidade afetadas por boatos. Não há um estudo capaz de mensurar os danos causados, mas iniciativas fragmentadas já sinalizam que ela está em risco.

Estamos em um novo momento cultural e social, que deve ser entendido para encontrarmos um caminho seguro de convivência com as novas formas e ferramentas de comunicação.

No Congresso Nacional tramitam várias iniciativas nesse sentido, que precisam ser amplamente debatidas, com a participação de especialistas e representantes da sociedade civil.

O problema das fake news certamente passa pelo domínio das novas tecnologias, com instrumentos de combate ao crime, mas, também, pela pedagogia do esclarecimento.

O que posso afirmar, como presidente do Congresso Nacional, é que, embora não saibamos ainda o antídoto que usaremos contra a disseminação de notícias falsas em escala industrial, não passa pela cabeça de ninguém aceitar a utilização de qualquer tipo de controle que não seja democrático.

Davi Alcolumbre é presidente do Congresso Nacional

A Moro tudo, menos o papel de bobo - ELIO GASPARI

FOLHA DE SP/O GLOBO - 10/07

O ex-juiz e o coletivo da Lava Jato repetem o erro do PT e insistem na desqualificação das informações

O ministro Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato decidiram se defender das acusações que derivam das mensagens divulgadas pelo The Intercept Brasil desqualificando o seu conjunto. Como os textos teriam sido obtidos a partir de uma ação ilegal, não mereceriam crédito. Falta combinar com quem lê os diálogos e não acredita que o fim justifica os meios. O ministro Edson Fachin pode não ter acreditado na autenticidade do “aha uhu o Fachin é nosso” atribuído ao procurador Deltan Dallagnol. Mesmo duvidando, Fachin parece ter-lhe dado uma resposta hiperbólica:

“Juízes também cometem ilícitos e também devem ser punidos. (...) E assim se aplica a todos os atores dos Poderes e das instituições brasileiras, incluindo o Ministério Público.”

A estratégia negacionista destina-se a evitar a discussão do conteúdo das mensagens que se transformaram em denúncia de parcialidade. Coisa parecida fez o PT quando a Lava Jato começou a expor seus malfeitos. Não só o fim justificava os meios, como era tudo uma conspiração que chegava ao braço clandestino do governo americano. Lula acabou na cadeia e continua repetindo a mesma cantilena. Trata-se de converter todas as questões a um jogo de sim ou não. Se a pessoa acredita em Lula, deve acreditar numa conspiração. Se uma pessoa acredita em Moro e no coletivo da Lava Jato, deve acreditar noutra conspiração. A ideia deu errado para o PT e está dando errado para Moro. Cinquenta e oito por cento dos entrevistados pelo Datafolha consideraram inadequada sua conduta. Enquanto isso, a percentagem de pessoas que consideram justa a condenação de Lula está em 54%, o mesmo patamar de abril, quando as armações reveladas pelo Intercept eram desconhecidas. Muita gente concorda com as sentenças e condena o comportamento de Moro. O mundo de sim e não só existe na cabeça de quem quer receber atestados de onipotência ou de infalibilidade.

Até hoje não apareceu um só fato relevante que permita duvidar da autenticidade das mensagens reveladas pelo Intercept. Verificações parciais confirmaram a veracidade de alguns textos. Num caso, uma procuradora disse que não se reconhecia num diálogo. O Intercept mostrou de forma convincente como conseguiu identificá-la.

Até agora o material divulgado reuniu centenas de informações que poderiam demonstrar uma fraude. Bastaria um conflito cronológico para que a névoa que hoje paira sobre Moro se mudasse para cima do Intercept. Em 1983 a revista alemã Stern comprou por milhões de marcos os “Diários de Hitler”. Um renomado historiador atestou a autenticidade dos manuscritos. Na primeira hora surgiu uma pergunta: como Hitler poderia ter escrito as entradas dos dias seguintes ao 20 de julho de 1944, quando sofreu um atentado e foi ferido no braço? Daí em diante, testes químicos e investigações paralelas mostraram que o diário era uma fraude.

No caso das mensagens do Intercept não há um manuscrito, e as conversas poderiam ter sido editadas. Vá lá, que seja. Mas Moro não lembra de nada, nadinha. Como ministro da Justiça, tornou-se um figurante de eventos, até mesmo vestindo camisas de um time de futebol. (Apesar da amnésia, Moro lembrou-se de pedir desculpas ao Movimento Brasil Livre por causa de uma indelicadeza.) Nenhum procurador se lembra de coisa alguma. O apagão coletivo zomba da inteligência alheia quando se sabe que diversas pessoas já se reconheceram nos diálogos. (O PT também não sabia das roubalheiras.)

Nunca é demais lembrar, pode-se fazer de tudo pela Lava Jato e por Sergio Moro, até mesmo sustentar ele foi imparcial. O que não se pode fazer é papel de bobo.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

De última hora - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 10/07


O presidente Jair Bolsonaro, ao interferir na tramitação da reforma da Previdência para garantir aos policiais federais e à Polícia Rodoviária regra mais branda, fora da emenda principal, ajudou o trabalho da oposição de obstrução da votação.

Além de colocar em risco a própria economia de que seu governo necessita para dar início à Nova Previdência, com um fundo próximo a R$ 1 trilhão para bancar a transição para o regime de capitalização.

Nesse ponto está a fundamental diferença entre o que quer Bolsonaro e o projeto do ministro da Economia Paulo Guedes. Este já afirmou diversas vezes que uma reforma incompleta será boa para o governo atual, mas não resolverá o problema estrutural da Previdência.

O presidente parece ter entendido isso, e trabalha com o curto prazo, enquanto Guedes mira o futuro do sistema. A economia abaixo de R$ 900 bilhões vai dar um caixa extra ao governo, que terá mais espaço para investimentos, mas deixará para o futuro governo a necessidade de nova reforma.

Bolsonaro já é candidato declarado à reeleição, pode estar montando uma armadilha para si mesmo. Mas como um populista só pensa na próxima eleição, e não na próxima geração, essa pode ser uma estratégia do presidente, à revelia de Guedes.

Isso por que a cada emenda apresentada, abre-se espaço para discussões e perde-se tempo para chegar à votação final do mérito. A idéia é aprovar o mérito hoje, até a madrugada, e depois discutir os destaques.

Diante da necessidade de consolidar os votos para aprovar a emenda, na última hora várias propostas surgiram dentro do próprio governo. Há quem queira aproveitar a iniciativa de Bolsonaro para incluir outros agentes de segurança no pacote da PF, como até mesmo os guardas penitenciários e municipais. Esse seria o pior dos mundos, pois reduziria muito a economia da reforma.

Os governadores insistem na inclusão de servidores de Estados e Municípios, o que não tem o apoio da maioria dos deputados e pode afetar o resultado final. Por isso o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quer que a questão seja tratada fora do bojo da reforma, de preferência numa emenda constitucional que começaria a tramitar no Senado.

Outro destaque considerado “perigoso” é a proposta do PL para retirar os professores da reforma. Embora já tenha sido derrotada na Comissão Especial, o plenário ampliado pode ser sensível a uma proposta “a favor dos professores”.

A bancada feminina conseguiu também alterar a proposta, com um prazo de transição caindo de 20 para 15 anos, para ganhar uma aposentadoria equivalente a 60% do salário. A partir daí, a cada ano na ativa ganharão mais 2%.

Um movimento que parece ter sido controlado é o de deputados que queriam votar apenas quando o governo depositasse a verba para as emendas parlamentares liberadas. O argumento de que o governo poderia enganar os deputados, deixando de pagar o que prometeu, parece ter sido superado pelo receio de que a Câmara volte a ficar marcada pela negociação espúria de votos.

Uma das propostas que estava sendo negociada é a garantia do Senado de que a tramitação da emenda constitucional só começaria depois que o governo liberasse as verbas dos parlamentares.

Até o fim da noite a disposição do presidente da Câmara Rodrigo Maia era tentar votar o primeiro turno até a madrugada, mas, dependendo da obstrução da oposição – que pode apresentar até sete emendas -, é possível que a votação do primeiro turno fique para hoje pela manhã.

O receio dos que apóiam a reforma, que já teria dos votos necessários para ser aprovada, é que inclusões de vantagens de última hora para certas categorias abram espaço para novos grupos pressionarem os deputados.

Aumentando a desidratação da emenda constitucional. Uma metáfora elegante que a engenhosa arte da política encontrou para se referir ao desmonte da proposta original.

O racha do PSL - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 10/07


Ao contrário do que sugerem a razão e o bom senso, tem sido justamente o partido do presidente da República uma das maiores fontes de atribulações no curso da reforma da Previdência.

A reforma da Previdência percorreria um caminho bem menos sobressaltado se o governo do presidente Jair Bolsonaro tivesse aproveitado a proposta apresentada por seu antecessor, cuja tramitação na Câmara dos Deputados estava madura. Decerto, ao País interessa mais a aprovação da reforma de um sistema há muito insolvente e injusto do que a verificação de autoria do santo reformador.

Tendo o governo optado por apresentar um novo projeto – o que lhe era facultado, ainda que não recomendável –, o mínimo que se poderia esperar era o apoio incondicional do PSL ao texto. Afinal, trata-se do partido do presidente da República. Mas ao contrário do que sugerem a razão e o bom senso, tem sido justamente o PSL uma das maiores fontes de atribulações no curso da reforma da Previdência.

Ainda está fresca na memória a aflitiva demora para a aprovação do projeto pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, muito em função dos vaivéns protagonizados por parlamentares do PSL. O que se viu ali foi um agrupamento de políticos erráticos sob uma mesma sigla, não um partido coeso em torno da agenda do governo, da qual, presume-se, a reforma da Previdência seja a grande estrela.

Ao fim e ao cabo, o texto-base do projeto foi aprovado tanto na CCJ como na Comissão Especial, e com os votos do PSL. O que se teme agora é a sua desidratação por meio dos destaques que, certamente, serão apresentados pelos deputados no plenário da Casa.

A preocupação do governo – e de todos os brasileiros interessados na aprovação da reforma – é que o “racha” da bancada do PSL na Câmara dos Deputados – a terceira maior, com 54 parlamentares – sirva de pretexto para que outros partidos se sintam confortáveis para ceder a pressões corporativas que podem levar a uma substancial redução da economia com a reforma do sistema previdenciário, estimada em R$ 934 bilhões em dez anos.

Quase a metade dos parlamentares do PSL foi eleita em 2018 sob a bandeira da segurança pública, um manto que por vezes serve para encobrir a defesa sindical dos interesses de policiais federais, rodoviários e legislativos. Há semanas, estas categorias estão praticamente acampadas nos corredores do Congresso Nacional a fim de pressionar os parlamentares por mudanças no texto-base da reforma da Previdência que os beneficiem, flexibilizando regras como idade mínima para aposentadoria e regime de transição, entre outras. Até aqui, graças ao esforço de lideranças políticas responsáveis no Parlamento, essa pressão não tem surtido efeito. Não se sabe, contudo, o que poderá ocorrer quando das discussões no plenário da Câmara dos Deputados. Todo cuidado é pouco.

Há parlamentares do PSL que admitem até mesmo votar com a oposição destaques que beneficiem as categorias profissionais que defendem. É o caso do deputado Felício Laterça (RJ). “Precisamos entender a diferença de certas categorias. Vou bater nessa tecla até morrer. Se o PSL decidir não apresentar o destaque (a favor dos policiais) e a oposição o fizer, voto com a oposição”, disse o parlamentar ao Estado .O mesmo caminho pode ser seguido por outros deputados.

O governo foi alertado pela equipe econômica que, se o PSL ceder às pressões do corporativismo policial, uma “nova onda de pressão” poderá comprometer o resultado fiscal esperado com a aprovação da reforma previdenciária. É um risco grande demais para ser ignorado.

Resta ver como o presidente Jair Bolsonaro receberá esse alerta. Não é exagero dizer que a tibieza do PSL na defesa da reforma da Previdência tal como deve ser aprovada, ou seja, gerando ao País uma economia de quase R$ 1 trilhão, em boa medida reflete a falta de convicção que o próprio presidente tem de sua necessidade. Basta dizer que há poucos dias Jair Bolsonaro esteve pessoalmente empenhado em negociar com o Legislativo as reivindicações dos policiais, que ele trata como “aliados nossos”. Agora é o momento de os parlamentares colocarem cera nos ouvidos a fim de não sucumbir ao canto que poderá levar o País à ruína.

O peso do apoio popular à reforma da Previdência - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 10/07

Tendência de aumento da aprovação das mudanças é um recado aos políticos


O fato de pesquisa Datafolha haver detectado inédito apoio na população à reforma da Previdência tem muito a dizer, principalmente a deputados e senadores, aos quais cabe aprovar ou rejeitar a proposta de mudanças.

Não há país democrático em que este tipo de reforma transite sem fortes resistências. Toda vez, por exemplo, que a França precisa ajustar o custo para a sociedade dos chamados direitos sociais, a fim de adequá-los a imperativos econômicos e demográficos, o gás lacrimogênio dos batalhões de choque da polícia volta a flutuar nas ruas de Paris e de outras grandes cidades do país.

É parte do jogo democrático, mas, para o bem de todos, a começar pelas ditas classes desassistidas, essas reformas precisam ser feitas.

A brasileira já vem com grande atraso. Daí ser inadequado ampliar o leque de concessões já feitas a categorias do funcionalismo, cujo poder de pressão sobre Executivo e Legislativo, historicamente forte, impede medidas para tornar o Brasil menos desigual.

Entre abril e julho, segundo a pesquisa, a parcela da população contrária às mudanças previdenciárias, encolheu de 51% para 44%, enquanto a favorável ficou em 47%, seis pontos percentuais superior aos 41% da sondagem anterior. A diferença configura empate técnico, pela margem de erro, mas é importante destacar as tendências.

Pode haver incontáveis especulações e análises sobre os motivos deste movimento. Até entre os que votaram no petista Fernando Haddad em outubro houve aumento do apoio ao projeto do governo Bolsonaro (de 22% para 25%). Mesmo no funcionalismo — categoria contrária às mudanças, por ser privilegiada pelas atuais regras —, o grupo que se opõe, majoritário, ficou 11 pontos percentuais menor, e o dos que apoiam, oito pontos mais robusto.

A melhor hipótese é que afinal se alastra a intuição de que a crise econômica grave em que está o país só será debelada por um programa de ajuste que se inicie pelo reequilíbrio da Previdência. Com 13 milhões de desempregados, é raro não se conhecer alguém nesta situação.

Até há pouco, o crescimento do apoio à reforma era algo nada previsível. Reformas como esta necessitam de políticos com sensibilidade para entender o que de fato é do interesse público, no melhor sentido do termo. Por sobre partidos e ideologias.

Infelizmente, estes são produto escasso no mercado da política brasileira. Mas eles existem, obviamente em quantidades modestas.

A massa dos congressistas precisa admitir uma leitura deste Datafolha: a de que a demagogia de ser contra a reforma em defesa do “povo” — quando este só consegue se aposentar aos 65 anos, e com um salário mínimo de benefício ou pouco mais — possa estar com o prazo de validade em estágio de vencimento.