Movimentos no Brasil e no Afeganistão são bastante diferentes, mas projeto de nação indissociável da fé em Deus os conecta
Guilherme Casarões
Cientista político e professor da FGV-EAESP
Começou a temporada pré-eleitoral de comparações descabidas do Brasil com outros lugares do mundo. Em 2018, o voto em Fernando Haddad nos transformaria na Venezuela.
Agora, surfando a onda da trágica retomada do Afeganistão pelo Talibã, as redes bolsonaristas foram inundadas de comparações entre o Partido dos Trabalhadores e o grupo fundamentalista afegão —“se Lula for eleito, ele desarmará o povo, como estão fazendo lá!”, dizia a mensagem difundida, entre outros, pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
O mais irônico desses paralelismos é como envelhecem mal. Nos últimos dois anos, a deterioração política do Brasil —comandada por um populista e amparada pelas forças de segurança— é o que mais nos aproxima da Venezuela. Nessa mesma linha, é possível dizer que, se há alguma comparação possível entre Brasil e Afeganistão, ela passa pelo bolsonarismo.
A essa altura, está claro que Bolsonaro lidera um movimento reacionário, marcado por desrespeito às instituições democráticas, sectarismo religioso e violência política. Em muitos sentidos, um Talibã tropical. Obviamente, não são fenômenos comparáveis em termos de beligerância, organização e modus operandi, até porque se orientam por parâmetros civilizatórios e históricos muito distintos.
Mas há algo que os conecta em sua essência: um projeto de nação indissociável da fé em Deus.
Guardadas as proporções, bolsonarismo e Talibã são expressões do fenômeno do nacionalismo religioso. Estamos falando de uma visão de sociedade que condiciona o pertencimento nacional não a critérios legais de cidadania, mas à filiação religiosa.
Trata-se de um fenômeno global que ganhou força no pós-Guerra Fria, especialmente em regiões periféricas do mundo, onde a disputa entre capitalismo e comunismo foi sendo suplantada por expressões religiosas de afirmação nacional.
Nos últimos anos, a ideia de organização política em torno do eixo religioso-civilizacional expandiu-se para além dos grotões. A crise dos valores liberais do secularismo e do multiculturalismo criou condições para a ascensão da extrema direita, muitas vezes atrelada a uma cosmovisão fundamentalista religiosa.
Governos de países tão distintos como Estados Unidos, Hungria, Índia e Polônia passaram a defender a necessidade da regeneração espiritual de suas sociedades, tornando a religião o principal elemento de unidade nacional, em prejuízo a valores como diversidade, pluralismo ou tolerância.
O risco evidente desse nacionalismo antiliberal —seja de corte étnico, racial ou religioso— é a linha tênue entre a solidariedade e o supremacismo. Ninguém pode negar a importância dos laços de fé ou de sangue como fundamento da vida comunitária.
Ao mesmo tempo, tomar uma religião como moralmente superior às demais, a ponto de pregar a assimilação forçada, a segregação social ou até mesmo a eliminação literal de quem não pertence ao grupo, está na raiz de incontáveis conflitos nos últimos séculos.
A tragédia afegã é reflexo da radicalização desse nacionalismo religioso. Politicamente fragmentado em grupos etnolinguísticos e estruturas tribais, o Afeganistão foi capaz de resistir às invasões externas —primeiro britânicos, depois soviéticos, agora americanos— usando a religião como cimento social.
Desse processo longevo nasce um tipo de fundamentalismo islâmico brutal, que sacrifica direitos e liberdades em nome da afirmação soberana. Aos olhos do Talibã, a derradeira prova de lealdade à nação afegã é a demonstração de fé, nos seus termos mais radicais.
A rigor, o bolsonarismo não nasceu como movimento exclusivamente religioso, aglutinando diversos grupos antipetistas, de saudosos da ditadura a apoiadores da Lava Jato, de armamentistas a liberais, de ruralistas a cristãos de várias igrejas.
Aos poucos, contudo, os contornos religiosos foram dando o tom da atuação política de Bolsonaro, desde as coisas mais prosaicas, como cultos escondidos no Planalto e referências bíblicas em discursos oficiais, à indicação de ministros por rateio denominacional.
São abundantes as evidências de que ao menos parte do bolsonarismo é adepta a uma visão radical de nacionalismo cristão. Para além do que diz o próprio presidente, há declarações de ministros e aliados buscando condicionar políticas públicas a preceitos religiosos, além de apoiadores que enxergam o mandato de Bolsonaro como parte de uma guerra santa contra inimigos genéricos como o comunismo, o globalismo e o marxismo cultural.
Expressão escancarada desse projeto nacionalista religioso é o programa do partido criado por Bolsonaro (e nunca oficializado), a Aliança pelo Brasil, onde se lê o seguinte: “a relação entre esta Nação e Cristo é intrínseca, fundante e inseparável”.
É a materialização de um discurso do próprio presidente, ainda em 2017, em que bradou ser o Brasil um país cristão e que as minorias “deveriam se curvar” às maiorias —ou desaparecer. A evangelização forçosa de indígenas e a destruição de terreiros de religiões afro-brasileiras é indício de que esse plano, ainda que lentamente, já se encontra em marcha.
Não, caros leitores, o Brasil não se tornará um Afeganistão. Bolsonaro sequer é o pio cristão imaginado por seus idólatras. Por mais problemática que seja nossa democracia, penso que ela ainda é capaz de nos resguardar de qualquer movimento que queira fazer do Brasil um país de uma só fé.
Mas é necessário zelarmos pelos valores e mecanismos democráticos que sustentam nossa sociedade. Destrui-los é o primeiro passo para que o radicalismo sectário impere no futuro, num caminho possivelmente irreversível.