FOLHA DE SP - 23/08
Negar às pessoas nos usos de suas faculdades mentais essa possibilidade é um abuso em nome de um bem que já não existe
Eu acho que uma pessoa adulta nos usos das suas faculdades mentais e numa situação de sofrimento terminal deveria, sim, ter o direito de morrer. Negar às pessoas essa possibilidade é um abuso em nome de um bem que já não existe, a saber, a vida como horizonte.
Sei que o tema é delicado. Alguns podem interpretá-lo como uma defesa do suicídio como direito. Aqueles que assim o fizerem, que o façam. Não podemos nos defender de toda forma de interpretação, coisa que nos dias atuais muita gente parece se esquecer. Pensar publicamente não é uma atividade feita para agradar —inclusive aos patrocinadores, que, aliás, desejo que se danem no seu poder de limitar o uso da palavra pública.
Aborto é outro tema espinhoso. Já tive muitas opiniões sobre ele. Hoje as tenho em muito menor quantidade e qualidade.
Sei que existem pessoas que não comem carne nem usam proteína animal de qualquer tipo, mas que são a favor do aborto. Para muitos haveria uma contradição nessa atitude. Ou hipocrisia. Eu suspeito que, no caso de não comer carne, a pessoa acredita que isso será saudável para ela.
Já no caso do aborto, está em jogo a liberdade de ela transar e, se algo no processo der errado, por assim dizer, poder resolver o problema com o menor sofrimento físico possível, apesar de essa solução nunca ser de forma fácil do ponto de vista moral.
Óbvio que existe a dimensão da saúde pública. Óbvio também que em uma etapa lógica anterior, se pressupõe a ideia de que o feto não é um ser humano ainda. Penso que, em meio a um mundo em que a desumanização corre solta, a dificuldade em desumanizar o feto parece uma afetação de virgens no bordel.
Mas voltando ao que me interessa hoje, o tema da escolha pela morte assistida e legítima me parece significativo. Antes de tudo porque a população envelhece a olhos nus, e muita gente faria uso de uma saída de cena com classe se lhes fosse dada essa opção. Aliás, o filme “A Despedida”, de 2019, com Susan Sarandon e Kate Winslet, é excelente sobre o tema.
Cenas do filme 'A Despedida', de Roger Michell
Alguns poderão considerar essa afirmação um absurdo moral. Alguém escolher essa opção não implica que você seja obrigado a escolhê-la. Talvez, um dia, vivendo uma situação semelhante, você venha a entender a opção do outro.
Óbvio que há sofrimento. Mas é justamente em nome dele que se deve dar às pessoas o direito de morrer quando elas querem e quando a vida já não aparece como um horizonte fisiológico viável. Obrigar a uma pessoa no uso da sua inteligência a existir num corpo que já não mais é seu me parece uma violência moral muito maior.
Se há hipocrisia no vegetariano a favor do aborto —o que não me parece totalmente evidente—, aqui há com certeza. Se quero manter a pessoa viva porque eu a amo, mesmo que ela sinta que o melhor é repousar na pedra, o meu amor, sim, é de alguma forma impróprio.
A ideia de que a vida pertence a Deus me parece irrelevante. Se não acredito em Deus, entendo que a vida pertence apenas a mim, mas se sou terminal, ela já pertence à pedra.
Mas, mesmo que eu seja um crente, posso sê-lo de forma ousada e desafiar a afirmação religiosa institucional de que só Deus pode tirar a vida.
Posso escolher encará-lo, inclusive para perguntá-lo, afinal de contas, por que sou obrigado a ficar em agonia se poderia já descansar.
Detalhes jurídicos são o menor aqui. Em termos de lei, tudo pode, uma vez decidido que pode. Quanto ao fato de que médicos só podem salvar vidas, também é algo que se pode ajustar. E nem me falem sobre a possibilidade de uma descoberta milagrosa de cura: a ciência, nesse caso, está a favor de quem se sabe terminal. Não existem milagres na ciência.
O centro do problema é a possibilidade de se decidir que basta. Esse passo não significa o aniquilamento
da agonia moral. Significa a escolha de uma certa agonia moral em detrimento de outra, sendo a diferença capital a que quem quer sair de cena —que é quem deve decidir a qualidade da agonia moral que pretende enfrentar.
À medida que a humanidade envelhece, há que nos prepararmos para um mundo em que pessoas desistam dele.
FOLHA DE SP - 23/08
Ataques se sofisticam, e até funcionários das empresas são cooptados
Na semana passada, a rede de lojas Renner foi a mais nova vítima de um ataque de ransomware.
“Ransom” significa sequestro. E é exatamente isso que acontece. A vítima tem dados e sistemas sequestrados pelo atacante, que exige o pagamento de resgate em criptomoedas para restabelecer a normalidade. No caso da Renner, o pagamento inicial exigido foi de US$ 1 bilhão.
O impacto desse tipo de ataque é devastador. Até sexta (20) à noite, o site da Renner estava fora do ar com a frase “estamos com uma indisponibilidade sistêmica e nosso time está trabalhando para normalizar o acesso”. Em geral os ataques também paralisam operações essenciais do negócio, como contas a pagar e receber. Por isso os criminosos tendem a pedir valores gigantescos para devolver os dados.
Serviços da Renner ficam fora do ar após ataque hacker - Renner
Pagar o resgate não é uma boa opção. Como advogado, sempre lembro que o pagamento do resgate pode constituir crime de fraude processual. Mais do que isso, nada garante que os criminosos irão restabelecer os sistemas.
A exceção a essa recomendação é quando há vidas humanas em risco, nesses casos pagar o resgate pode ser justificável. No entanto, a situação da vítima é sempre sofrível. Ninguém merece a sensação de incredulidade, pânico, medo e impotência que surge ao se deparar com a tela do computador que anuncia o ataque.
O problema do ransonware é que ele se transformou em uma operação altamente profissionalizada. Existe até “call center” disponível 24 horas para que a empresa possa tirar dúvidas com os atacantes sobre como pagar o resgate e até barganhar o preço.
O imaginário popular gosta de pensar o autor desse tipo de ataque como sendo “o hacker”. No Brasil, tem sido usual até culpar “o hacker” por fatos inexplicáveis. No entanto, a imagem de um garoto solitário atacando empresas é passado.
Os atacantes de hoje são principalmente organizações criminosas e Estados nacionais. Como o ransonware é capaz de fazer dinheiro com risco relativamente baixo, há países autoritários que adotam a prática para fugir de sanções internacionais.
O ransonware pode também gerar responsabilidades legais para a vítima. A Lei Geral de Proteção de Dados obriga que as empresas adotem “medidas de segurança aptas a proteger dados pessoais de acessos não autorizados e de situações ilícitas de destruição ou perda”. Isso só aumenta o drama, já que a vítima pode ser posteriormente responsabilizada por danos por não seguir as medidas exigidas pela lei.
Mais preocupante ainda, os ataques estão se sofisticando. A tática mais recente é cooptar funcionários da empresa para ajudar no ataque. Isso acontece por meio de mensagens para os funcionários com textos como: “Se você instalar esse programa em qualquer computador ou servidor da sua empresa, remota ou fisicamente, você receberá 40% do resgate”. A mensagem fornece então um email dos atacantes e um perfil no Telegram para os interessados.
Por todas essas razões não é exagero dizer que está em curso uma pandemia de ataques de ransonware. Para contê-los, são necessárias medidas de várias naturezas que envolvam o setor privado, público, a comunidade científica e, sobretudo, mais cooperação internacional.
READER
JÁ ERA: Não fazer backup (cópia de segurança)
JÁ É: Desespero ao ser atacado por ransomware sem ter backup robusto
JÁ VEM: Mais empresas brasileiras e órgãos públicos atacados por ransomware
O GLOBO - 23/08
Agosto é um estranho mês, todos sabemos no Brasil. Por que não o seria sob Bolsonaro, que em si já é um estranhíssimo governo?
Numa noite dessas de agosto, vi nas redes um cantor sertanejo nos ameaçando de caos e até fome se não adotássemos o voto impresso.
Na minha santa ignorância, perguntei: mas o que pensa o outro?
Achava que os cantores sertanejos sempre se apresentam em dupla, mas o autor da ameaça faz uma carreira solo. Achava também que cantam amores perdidos, a natureza, um pé de serra, um animal de estimação.
O cantor se dizia ligado aos caminhoneiros, daí o caos e a fome que se espalhariam pelo país. Minha perplexidade foi ainda maior: diesel e gasolina aumentam desde o princípio do ano, o etanol já está 34% mais caro. Merecíamos um castigo tão grande, por optar pela votação eletrônica?
Tenho sonhado muito nos últimos anos. Todas as noites, sonhos disparatados, mas — o que fazer ?— sonhos adoram o absurdo.
Sinceramente fiquei com medo de dormir e sonhar com a multidão pedindo a volta dos orelhões com fichas nas bancas de jornal. Ou numa hipótese mais radical, cartazes exigindo a volta do Rhum Creosotado, aquele dos famosos anúncios nos bondes de antigamente.
A indecisão diante do sono me lembrou uma história muito contada. É a do pobre homem que vivia num cômodo abaixo de um boêmio que chegava tarde à noite e tirava ruidosamente as botas. As duas pancadas da bota batendo no assoalho arruinavam o sono do vizinho de baixo.
Um dia ele tomou coragem, foi até o boêmio e pediu que tirasse as botas silenciosamente. Ao voltar para casa de madrugada, um pouco bêbado, o homem tirou uma bota ruidosamente e se lembrou do vizinho, corrigindo-se logo e depositando a outra em silêncio.
Aconteceu o previsível: o pobre homem passou a noite esperando que a outra bota fosse depositada, até que subiu ao quarto do boêmio e pediu que jogasse logo a outra bota, pois precisava dormir e trabalhar bem cedo.
A situação de muitos de nós é parecida. Estamos à espera de um golpe sempre anunciado nas entrelinhas e temos vontade de que tentem logo, para resolvermos nossa vida.
Os historiadores teriam dificuldade de explicar um golpe liderado por um cantor sertanejo.
Leio que ele se arrependeu, amigos disseram que bebeu muito.
Outra perplexidade de agosto: um sertanejo bêbado cantando um tango é muito mais previsível do que propondo um golpe.
Mas, como se diz na linguagem popular, onde há fumaça há tanques, outras pessoas com chapéu de caubói aparecem na internet dizendo que acabou a tolerância, que agora o país pegará fogo se não adotarmos o voto impresso.
Rigorosamente, os biomas brasileiros estão pegando fogo. Não teremos como os afegãos a possibilidade de nos agarrarmos no trem de pouso de aviões que partem.
Nossa única chance seria abraçarmos os pássaros maiores, jaburus, gaviões, urubus-reis, nhambus, jacus, e tentar pousar noutras raras florestas do planeta.
Com todo o respeito a essas pessoas com chapéu de caubói que se sentem acima do Estado Democrático de Direito, é preciso lembrar que a população se sente cada vez mais distante do governo Bolsonaro.
As pesquisas mostram a crescente consciência de que Bolsonaro foi apenas um acidente histórico e de que, apesar da importância númerica das forças conservadoras no Brasil, ele não as representa na sua totalidade.
Quando essa consciência se cristaliza, a extrema direita isolada nada pode fazer, além de cargas de cavalaria como nos filmes de faroeste e desfiles de tanques enfumaçados.
A imposição pela força é uma visão idealista que não se sustenta nem à direita nem à esquerda. A exportação do socialismo empurrado por baionetas fracassou na Europa; o idealismo liberal de se instalar no Afeganistão foi um fracasso.
Por mim, podem jogar logo a segunda bota, apesar do barulho e do peso das esporas.