terça-feira, março 16, 2021

Entenda por que a vacina de Oxford/ AstraZeneca foi suspensa em países europeus


Alemanha, França, Espanha, Portugal e Itália disseram ter agido por precaução após relatos de trombose; não está comprovada relação entre casos e uso do imunizante


Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo

16 de março de 2021 | 05h00



O uso da vacina contra a covid-19 desenvolvida pela Universidade de Oxford em parceria com o laboratório AstraZeneca foi suspenso em mais cinco países europeus nesta semana. Alemanha, França, Espanha, Portugal e Itália disseram ter agido por precaução após relatos de casos de trombose, relação que não está comprovada com o uso do imunizante.


Anvisa diz que não há registro de coágulos ligados à vacina de Oxford no Brasil

A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda manter a aplicação de doses. No Brasil, a Anvisa diz que não há confirmação de problemas do tipo e especialistas afirmam que essas notificações ainda precisam ser profundamente investigadas. O Estadão separou respostas para perguntas mais importantes sobre o tema. Veja a seguir:

1. Quais são os casos relatados?


O debate sobre eventuais reações à vacina de Oxford começou semana passada, quando casos de coágulos no sangue em pessoas que receberam o imunizante foram registrados em países como Dinamarca e Áustria, onde houve um óbito atribuído a problemas dessa natureza. Mas não há confirmação de elo entre a vacina e os problemas vasculares.

Mais cinco países europeus suspenderam o uso da vacina em suas campanhas de vacinação contra a covid-19 nesta segunda-feira, 15. Alemanha, França, Espanha, Portugal e Itália dizem que tomaram a medida por precaução. A Itália já havia suspendido o uso de um lote na semana passada, após a morte de um militar e de um policial no sul do país. O Ministério da Saúde da Alemanha disse que a decisão teve por base um conselho do órgão regulador de vacinas do país, o Instituto Paul Ehrlich, que pediu investigação mais aprofundada. Lá foram sete casos, com três mortes.

2. Quais países suspenderam o uso da vacina de Oxford até agora?

Pelo menos 16 países: Áustria, Estônia, Lituânia, Letônia, Luxemburgo, Dinamarca, Espanha, França, Portugal, Alemanha, Itália, República Democrática do Congo, Irlanda, Bulgária, Noruega e Holanda.

3. O que é um coágulo e como geralmente é causado?

Um coágulo sanguíneo é uma bolha de sangue gelatinosa e espessa que pode bloquear a circulação. Os coágulos se formam em resposta a ferimentos e também podem ser causados ​​por muitas doenças, incluindo câncer e distúrbios genéticos, certos medicamentos e repouso prolongado na cama. Os coágulos que se formam nas pernas às vezes se desprendem e chegam aos pulmões ou ao cérebro, onde podem ser mortais.

O cirurgião cardiovascular Fábio Jatene, diretor da área cirúrgica do Instituto do Coração (Incor), explica que a trombose venosa profunda (TVP) e a embolia pulmonar têm múltiplos fatores de risco e que a ocorrência desses quadros na população não são raros. Estudos com a população americana estimam incidência de um caso de TVP a cada mil pessoas por ano. Se considerada uma população de 17 milhões, como a vacinada na Europa, o número de casos esperados seria de 17 mil, por isso o argumento dos especialistas de que a incidência desses eventos entre os imunizados está dentro do esperado para a população geral e pode não ter relação com a vacina.

4. O que são efeitos adversos de vacinas?

Efeitos adversos não são necessariamente ligados à vacina, mas a qualquer condição de saúde após aplicação da dose, mesmo sem ligação entre os fatos. Se alguém for vacinado e se acidentar, isso deve ser reportado mesmo que seja improvável qualquer elo com a vacina.

5. O que diz a fabricante?

A AstraZeneca diz não haver “prova de risco grave” de coágulo sanguíneo causado pela vacina. Conforme a AstraZeneca, dentre esses 17 milhões de pessoas vacinadas na Europa, foram registrados somente 22 eventos de embolia pulmonar e 15 casos de trombose venosa profunda, índices que estariam dentro do esperado para a incidência geral desses quadros na população.

"Os casos são em número muito menor do que seria esperado que ocorresse naturalmente em uma população geral deste tamanho e é semelhante ao observado em outras vacinas covid-19 aprovadas", disse. A companhia ressaltou ainda que, durante os ensaios clínicos, "o número de eventos tromboembólicos foi menor no grupo vacinado, embora o número desses eventos fosse pequeno de forma geral. Também não houve evidência de aumento de sangramento em mais de 60 mil participantes dos estudos".

6. Uma vacina pode causar coágulos sanguíneos?

As vacinas não costumam causar coágulos sanguíneos, disse Daniel Salmon, diretor do Instituto de Segurança de Vacinas da Universidade Johns Hopkins (EUA). Os coágulos sanguíneos são comuns na população em geral, e as autoridades de saúde suspeitam que os casos relatados em vacinados são mais provavelmente coincidentes e não relacionados à vacinação.

“Há muitas causas para a coagulação do sangue, muitos fatores de predisposição e muitas pessoas que estão sob maior risco - e muitas vezes também são as pessoas que estão sendo vacinadas agora”, disse Mark Slifka, um pesquisador de vacinas na Oregon Health and Science University. De 300 mil a 600 mil pessoas por ano nos Estados Unidos desenvolvem coágulos sanguíneos nos pulmões ou nas veias das pernas ou outras partes do corpo, de acordo com os Centros para Controle e Prevenção de Doenças.

7. O que dizem a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Agência Europeia de Medicamentos (EMA)?

A OMS recomenda manter a aplicação de doses do imunizante e um comitê consultivo da entidade planeja se reunir na terça-feira, 16, para discutir a vacina. O comitê de segurança da Agência Europeia de Medicamentos se reunirá na quinta-feira.

8. O Brasil usa a vacina de Oxford?

O imunizante de Oxford é uma das principais apostas do governo federal - junto da Coronavac, desenvolvida pelo laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan - para a campanha de imunização do Brasil. A Fiocruz será responsável por fabricar essa vacina no Brasil - a 1ª remessa, de 500 mil doses, deve ser ser entregue nesta quarta-feira, 17, após atrasos no cronograma por impasses na liberação de matéria-prima pelos chineses.

A aplicação da vacina de Oxford no Brasil começou, com o uso de doses importadas da Índia. Até agora, já foram distribuídas em todos os Estados e municípios quatro milhões de unidades produzidas no Instituto Serum, no país asiático. Mais oito milhões de doses fabricadas no mesmo local ainda serão entregues ao Brasil. Até julho, segundo o Ministério da Saúde, 112 milhões de doses da vacina serão entregues para o Programa Nacional de Imunização. A partir do 2º semestre, a Fiocruz prevê a incorporação de toda a tecnologia de produção, com fabricação 100% nacional, e a entrega de mais 110 milhões de unidades.

9. A vacina de Oxford tem registro da Anvisa?

A vacina de Oxford e a da Pfizer são as únicas que têm registro definitivo de uso pela Anvisa - ambas também contaram com a participação de voluntários brasileiros na sua fase três de testes. Já a Coronavac tem autorização para uso emergencial.

10. O que diz a Anvisa?

A Anvisa disse que não há registro de casos do tipo ligado à vacina e afirmou monitorar os relatos na Europa. O órgão, porém, disse monitorar cinco ocorrências suspeitas de tromboembolismo entre os quase 3 milhões de brasileiros que receberam o imunizante de Oxford. Ressaltou ainda que não foi estabelecida até agora ligação de causalidade entre a vacina e os eventos, em comunicado da Gerência Geral de Monitoramento de Produtos Sujeitos à Vigilância Sanitária. O documento foi emitido no dia 10, mas a assessoria da Anvisa afirmou ontem que não houve alteração. O informe diz ainda que o lote suspenso por alguns países da Europa não veio para o Brasil. A Anvisa ressaltou ainda que “por meio da área internacional, solicitou informações sobre a investigação promovida na Europa”.

11. E o que diz o Ministério da Saúde?

O Estadão procurou o Ministério da Saúde para comentar a suspensão do uso da vacina em outros países, mas ainda não recebeu resposta. Em boletim divulgado pela Secretaria de Vigilância em Saúde ontem, a pasta traz um balanço de eventos adversos pós-vacinação do primeiro mês de campanha no País. Conforme o boletim, que considera 5.874.000 doses aplicadas entre 18 de janeiro e 18 de fevereiro, 430 eventos adversos graves foram registrados – 0,007% dos vacinados.

O documento informa ainda o registro de 20.181 eventos adversos não graves, que costumam incluir dor no local da aplicação e dor de cabeça. Eles representam 0,34% dos imunizados. Entre os 430 eventos adversos graves, há 139 mortes, mas 70% delas já tiveram uma possível ligação com a vacina descartada. “Os demais casos estão com informações incompletas e aguardando complementação de dados (como laudos de necropsia, dentre outros). Nenhum dos óbitos foi considerado como tendo relação causal com as vacinas covid-19”, afirma .

12. Devo evitar a imunização com a vacina de Oxford?

Não. Qualquer orientação a respeito só pode ser dada pelas autoridades de saúde.

13. Como os especialistas brasileiras avaliam a suspensão?

Especialistas brasileiros ouvidos pelo Estadão dizem que, embora os registros exijam investigação, as evidências existentes até aqui não justificam uma interrupção. A decisão, considerada precipitada, pode atrapalhar a adesão da população à vacinação contra a covid-19. "Em princípio, as taxas (de ocorrência de coágulos) não são maiores em vacinados quando comparadas às da população geral. Isso é o que chamamos de associação temporal, ou seja, os dados até agora são de pessoas que adoeceram após a vacinação, mas não por causa da vacina", diz a epidemiologista Carla Domingues, que coordenou o Programa Nacional de Imunizações (PNI) de 2011 a 2019.

"Se essa suspensão acontece em países que têm várias opções de vacina, eles conseguem lidar. Mas em países onde a AstraZeneca responde pelo maior montante de doses, adoecer de covid é muito pior do que qualquer suspeita de reação da vacina", pondera Raquel Stucchi, professora de Infectologia da Unicamp.

14. Como os investigadores vão determinar se há uma conexão?

A Agência Europeia de Medicamentos disse na segunda-feira que estava trabalhando com a AstraZeneca e as autoridades de saúde para examinar "todos os dados disponíveis e as circunstâncias clínicas em torno de casos específicos".

As autoridades não detalharam como será essa avaliação. Mas ao avaliar uma possível conexão entre uma vacina e um efeito colateral sério, os pesquisadores geralmente se concentram em estimar com que frequência esses problemas médicos seriam esperados para aparecer por acaso no grupo de pessoas em questão.

Isso pode significar olhar para as pessoas do mesmo grupo antes de serem vacinadas. Também pode significar olhar para um grupo semelhante de pessoas. Se a taxa desses problemas for maior no grupo vacinado do que seria esperado em uma população comparável, isso é um sinal de que o problema de segurança pode ser real, ou pelo menos vale a pena mais escrutínio.

Essas investigações normalmente não dependem de uma descoberta definitiva se a vacina foi a causa de uma morte ou de um problema médico sério, porque na maioria dos casos isso não pode ser determinado de forma conclusiva. Mas os pesquisadores levam em consideração o histórico clínico, como o tratamento médico de uma pessoa antes de ser vacinada.

Os investigadores também têm em mente os fatores que podem aumentar a probabilidade de um grupo de pessoas adoecer. Os idosos, que foram priorizados nas campanhas de vacinação em todo o mundo, correm maior risco de desenvolver coágulos sanguíneos do que os mais jovens. Ministérios da Saúde de outros países também estão conduzindo investigações, e as autoridades de saúde desses países aguardam os resultados das autópsias. /COM INFORMAÇÕES DO NEW YORK TIMES

Ativistas do cancelamento só conseguem conversar com os próprios espelhos - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 16/03

Espírito da diversidade é haver um sósia de si mesmo, como mostrou recente polêmica sobre Amanda Gorman


Da primeira vez que li sobre o assunto, sorri. Quando o assunto voltou a aparecer, ri alto e depois fiquei em silêncio, pensativo, como quem contempla as ruínas de uma civilização.

O caso é anedótico, ou parece: Amanda Gorman foi a jovem poeta negra que leu o seu “The Hill We Climb” na tomada de posse de Joe Biden. Mas, na hora de contratar tradutores para a sua obra na Holanda e na Espanha, os primeiros escolhidos foram logo “cancelados”.

Na Holanda, a tradutora seria Marieke Lucas Rijneveld, vencedora do Booker Internacional em 2020. Quando se soube do nome, uma jornalista e ativista negra iniciou as hostilidades contra a escolha. Segundo parece, Marieke é uma autora branca; e uma autora branca, pelos vistos, não pode traduzir o poema de uma jovem negra.

Eis o meu primeiro sorriso: tivesse esse ativismo começado mais cedo e jamais escritores negros como James Baldwin ou Ralph Ellison teriam conhecido leitores fora dos Estados Unidos. No caso de Baldwin, por exemplo, não teria havido uma Marguerite Yourcenar para o traduzir e divulgar.

Mas, depois do sorriso, veio a gargalhada e a melancolia: na Espanha, Victor Obiols, um conhecido tradutor catalão foi contratado pela editora Univers para fazer o trabalho. Pouco depois, foi desconvidado. Imagino que, além de não ser negro, também não era mulher. Moral da história?

Hoje, o espírito da “diversidade” é haver sempre um sósia de nós próprios. Ou, no caso de Amanda Gorman, é haver uma mulher jovem, negra, ativista e talvez americana para fazer a tradução.

Confrontado com o fato, o tradutor espanhol perguntou: se assim é com Amanda, será que só um grego do século 9º a.C. vai poder traduzir Homero? Só um inglês do século 16 pode traduzir Shakespeare? Em caso afirmativo, prevejo dificuldades nesse quesito. Mas prevejo mais: o mundo desumano que esse pensamento exclusivista defende.

Para começar, é um pensamento exclusivista que atraiçoa o próprio poema. Não tinha ainda prestado atenção às palavras de Amanda Gorman. Fui lê-las agora com os óculos postos.

Para minha surpresa, o poema defende um novo país que seja uma união “comprometida com todas as culturas/ cores, personagens e/ condições”.

Só assim será possível pôr “nossas diferenças de lado” e ultrapassar o ódio que prometia “quebrar nossa nação” (referência ao assalto do Capitólio, que aliás inspirou os versos).

Será que os ativistas que se julgam donos de Amanda Gorman conhecem o conteúdo do poema? Será que o leram?

Não parece. O cancelamento de dois tradutores pelo simples fato de terem a cor de pele errada é a negação da mensagem da obra. Mas é também uma negação mais profunda: a da nossa comum humanidade.

Como lembrava o filósofo Adam Smith na sua “Teoria dos Sentimentos Morais”, aquilo que nos torna humanos é a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro. Para usar as palavras de Smith, é através dessa “simpatia” que somos capazes de imaginar as alegrias e os sofrimentos dos nossos semelhantes. A moralidade procede daqui: se somos capazes de imaginar as provações dos outros, temos obrigação de as evitar. Porque, em certo sentido, nós somos eles.

O filósofo tinha razão —e a história só lhe deu ainda mais razão. O tirano pode ser de esquerda ou direita. Mas a sua primeira atitude é tentar impedir que os seus asseclas se coloquem no lugar dos outros.

Pelo contrário: os outros são reduzidos a uma condição sub-humana, como se não pertencessem à mesma espécie.

Azar: para existir justiça, seja racial ou qualquer outra, tem de existir primeiro essa empatia mínima.
Mas uma parte do ativismo contemporâneo recusa qualquer possibilidade de empatia. E até tem uma expressão para quem se coloca no lugar do outro: “apropriação cultural”.

O mundo que esse ativismo deseja é um mundo autorreferencial, onde cada um está fechado na sua bolha, falando para um espelho, e onde ninguém entende realmente ninguém.

É um mundo onde não pode existir justiça porque a possibilidade de ligação aos outros, aos seus dramas ou aspirações, foi cortada pela raiz.