quinta-feira, julho 23, 2020

Bolsonaro trata Waterloo do Fundeb como vitória - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 23/07


"Alguém quer saber sobre Fundeb aí?", indagou Jair Bolsonaro às margens do espelho d'água do Alvorada. Postados na borda oposta, os devotos do mito tinham várias demandas. Mas ninguém, exceto Bolsonaro, parecia interessado em conversar sobre o fundo de financiamento da educação básica, que a Câmara aperfeiçoara na véspera. "O governo conseguiu ontem mais uma vitória, aprovamos o Fundeb", ele insistiu. "O Senado deve seguir o mesmo caminho."

Para sorte de Bolsonaro, seus adoradores não estavam informados sobre a surra que o governo levara no plenário da Câmara. Do contrário, poderiam imaginar que o vírus lhe tivesse subido à cabeça.

"Uma negociação que levou anos", disse o confinado aos visitantes. De fato, a discussão sobre o Fundeb arrastava-se desde 2015. Intensificara-se no ano passado, no alvorecer da gestão Bolsonaro. Durante um ano e meio, o governo tratou o debate como parte da guerra ideológica que instalou na Educação.

A certa altura, Bolsonaro soou como uma espécie de anti-Napoleão, um imperador se descoroando: "Foi uma votação quase unânime." Ele se queixava desde cedo de ter sido chamado de "derrotado" pela "maldita imprensa".

Bolsonaro esticou a prosa: "Seis ou sete votaram contra." Absteve-se de mencionar que os gatos pingados que se opuseram ao aperfeiçoamento do Fundeb na votação da Câmara são justamente os bolsonaristas mais fieis.

"Se votaram contra devem ter seus motivos", afirmou o capitão, antes de condenar os proto-bolsonaristas a um inusitado isolamento social: "Precisa perguntar pra eles por que votaram contra. Alguns dizem que a minha bancada votou contra. A minha bancada não tem seis ou sete. A minha bancada é bem maior do que isso daí."

A deputada Bia Kicis (PSL-DF), uma das vozes ultra-bolsonaristas que votaram contra a emenda constitucional que vitaminou o Fundeb, foi destituída do posto de vice-líder do governo na Câmara. Não é a primeira destituição. Não será a última.

Bolsonaro vem renovando seu quadro de vice-líderes. Troca aliados de primeira hora por soldados do centrão, tratados como heróis da resistência. Na votação do Fundeb, o deputado Arthur Lira (PP-AL), principal voz do centrão e novo líder informal do governo, tentou adiar a sessão. Foi ignorado pelos próprios pares.

Ficou entendido que a bancada fisiológica pró-Bolsonaro, embora seja potencialmente "bem maior do que isso daí", está acorrentada aos interesses do Planalto por grilhões de barbante.

"A verdade vos libertará", anota o versículo preferido do capitão, extraído do evangelho de João. "A esquerda não engole mais uma derrota", disse Bolsonaro na encenação do Alvorada, vinculando-se a uma mentira.

A emenda constitucional aprovada pela Câmara tornou o Fundeb permanente, elevando de 10% para 23% a fatia da União no fundo. O governo tentou adiar para 2022 a vigência das novas regras. Foi derrotado. Quis transferir 5% do fundo para um novo Bolsa Família, em fase de gestação. Não colou.

Pleiteou a destinação de 5% do fundo turbinado para o ensino infantil. Para conseguir, teve de pagar um pedágio, elevando de 20% para 23% a fatia da União no novo Fundeb. Propôs que a verba do salário dos professores fosse desviada para o pagamento de aposentadorias. Foi ignorado.

"Eu queria dar 200%, mas não tem dinheiro", afirmou o anti-Napoleão do Alvorada. "Então, foi negociado. Passou para 23%, de comum acordo. (...) O PT passou 14 anos no poder e não fez nada..."

A ficha de Bolsonaro demora a cair. Mas a lição a ser extraída pelo presidente da votação que revitalizou o Fundeb é a seguinte: a maneira mais rápida de acabar com a guerra ideológica na Educação é perdê-la.

Juntaram-se no plenário da Câmara para derrotar o governo: o presidente da Casa, Rodrigo Maia, os neo-aliados do centrão e toda a oposição. Ao tentar converter em vitória uma derrota tão acachapante, Bolsonaro transformou os jardins do Alvorada numa Waterloo de hospício, ornamentada por emas.

O ‘lavajatismo’ está órfão - WILLIAM WAACK

ESTADÃO - 23/07

Com os heróis da Lava Jato encurralados, um fenômeno político perde força


A frase que ressoa com força no topo da Procuradoria-Geral da República e entre vários ministros do STF é a seguinte: “A Lava Jato não vai acabar, mas vai acabar o lavajatismo”. Como toda encarniçada luta política, também nesta briga-se, em primeiro lugar, por impor uma narrativa.

A que vigora entre quem tem força política ou posição institucional para enfrentar a “Lava Jato” é a de que a força-tarefa de Curitiba se desenvolveu como grupo político com agenda própria e capacidade de dominar decisões das esferas políticas, nisto incluindo Executivo e Legislativo. Mas, para sorte do País, o grupo de procuradores, juízes e policiais da Lava Jato se perdeu no meio do caminho, e cabe agora dar um jeito nisso.

Os principais expoentes da força-tarefa enxergam exatamente o contrário. Em especial a decisão de terça-feira do presidente do STF de impedir buscas no gabinete do senador José Serra em Brasília – atendendo à queixa do próprio presidente do Senado – foi por eles qualificada como tentativa de “dificultar a investigação de poderosos contra quem pesam evidências de crimes” (Deltan Dallagnol, procurador da força-tarefa).

Era algo já previsto na literatura que consumiram: deixados entregues a si mesmos, sem controles externos (como o do Ministério Público), os políticos só produziriam medidas para se proteger e garantir seus interesses (lícitos ou ilícitos). Desnecessário dizer que, para o grupo da Lava Jato, o STF sempre foi visto como parcialmente entrelaçado aos diversos interesses políticos, incluindo ilícitos.

O grupo de Curitiba faz questão hoje de se distanciar do “lavajatismo”, uma denominação que, no seu mínimo denominador comum, expressa um anseio punitivista que ignora consagrados princípios legais contanto que se peguem corruptos. É difícil entender a eleição de Jair Bolsonaro sem a repercussão social e política do “lavajatismo”, mas seu potencial eleitoral para 2022 é um ponto de interrogação cujo tamanho aumenta à medida que transcorre o tempo desde que o ex-juiz Sérgio Moro – de longe a maior expressão da Lava Jato – deixou o Ministério da Justiça.

Moro embarcou na política aparentemente sem um plano claro. Deixou-se levar pelas circunstâncias de um jogo que ele não dominava e elas o obrigaram ao famoso “salto no escuro” – que foi a saída do governo, uma atitude que hoje parece muito mais de preservação do que de ataque. As armas de Moro para atingir Bolsonaro até o momento revelaram-se pouco contundentes, enquanto as do STF contra ele (onde se arguirá a suspeição do então juiz) ainda surgirão.

Ocorre que as circunstâncias estão fazendo com que ele desenvolva um discurso de candidato, postura que não quer (ainda ?) assumir. Onde é convidado a se pronunciar, Moro começa hoje falando de economia, de melhoria do ambiente de negócios, de segurança jurídica e de reformas estruturantes. Evita qualquer postura que o possa associar a radicalismos do espectro político. Defende “união”, “harmonia” e um por enquanto vagamente definido “centro democrático” como linha de atuação.

Não parece disposto de forma alguma a assumir a herança do “lavajatismo”, na medida em que seus heróis de ontem são hoje figuras encurraladas do ponto de vista político e institucional, e na linha do tempo estão longe ainda de um novo teste das urnas. Parece intuir que só o combate à corrupção e o apego à lei e à ordem não trarão vitória eleitoral, diante de um momento político no qual as profundas consequências da dupla crise econômica e de saúde pública estão apenas começando.

A Lava Jato ainda produz ações de repercussão, como a deflagrada contra o senador José Serra, mas que surgem como eco de um passado tornado rapidamente longínquo diante da percepção de quais são os piores problemas da atualidade. O “lavajatismo”, que era também um ânimo de mudança, está perdendo sua principal referência.

Afundando na armadilha da renda média - ZEINA LATIF

ESTADÃO ´23/07

A educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média


É mais fácil um país pobre tornar-se um país de renda média do que este se tornar rico. Os economistas Homi Kharas e Indermit Gill, do Banco Mundial, identificaram essa dificuldade e a denominaram como “armadilha da renda média” em 2007.

Muitos países conseguiram sair da pobreza por meio de políticas governamentais para elevar o estoque de capital da economia. Foi o caso do Brasil. No entanto, o mesmo receituário não seria suficiente para tornar o país rico, independentemente das restrições fiscais. No século 21 ainda menos, por conta do avanço tecnológico.

As dificuldades são de duas naturezas. A primeira é mais técnica: o investimento em infraestrutura e capital instalado gera crescimento do PIB, mas em intensidade decrescente ao longo do tempo. Ficar rico exige passos além: ganhos de produtividade, o que depende de muitas variáveis.

A segunda dificuldade é política. É necessário um arranjo institucional mais sofisticado – envolvendo a academia, imprensa, órgãos públicos e privados – para se construir consensos sobre políticas pró-crescimento. Boa vontade dos governantes é essencial, mas não basta.

Há um grande consenso entre economistas mundo afora de que a educação de qualidade é variável-chave para um país sair da armadilha da renda média. No entanto, em países de renda média não se nota mobilização de atores políticos nessa direção e tampouco envolvimento da sociedade. No Brasil não é diferente e, para piorar, o debate técnico ainda não está suficientemente maduro.

Nesses países, o setor produtivo é, grosso modo, pouco sofisticado, sendo menos penalizado com a falta de mão de obra qualificada em comparação ao que ocorre em países ricos, que produzem tecnologia e buscam inovação. O que o mobiliza não é a cobrança por educação de qualidade, mas sim benefícios diretos. É o que se vê agora no Brasil com a reação contrária de muitos ao fim da desoneração da folha e à reforma tributária. A elite, que não depende da escola pública, também pouco exerce pressão política.

Como resultado, o desenho de políticas públicas de educação acaba sendo mais influenciado por sindicatos e políticos de viés populista.

É nesse contexto, agravado pela omissão do governo, que foi a aprovado o novo Fundeb. O foco principal do expressivo aumento de recursos foram os gastos com a folha, deixando pouca flexibilidade para gestores escolherem a melhor forma para elevar a qualidade do ensino. Esse tema, por sua vez, ficou praticamente de fora.

Em países pobres, com baixo acesso à escola, é crucial elevar os gastos com educação. O Brasil percorreu esse primeiro percurso, mas não de forma eficaz. Há maior inclusão, mas temos o dobro de taxa de evasão escolar em relação a países parecidos. E não seria correto apontar os salários dos professores como explicação para esse resultado. Segundo o Banco Mundial, o piso salarial dos professores está em linha ao de países com renda per capita similar, havendo evolução bem mais rápida na carreira devido a promoções automáticas, além de a previdência ser mais generosa.

Direcionar mais recursos para abrir vagas e aumentar salários é tarefa fácil e traz resultados e dividendos políticos rapidamente. Difícil mesmo é pular para um segundo estágio de elevar a qualidade do ensino, como fizeram os países ricos, para manter os jovens motivados na escola e prepará-los para a vida. Especialistas apontam a necessidade de afastar professores pouco eficientes, enfrentar sindicatos, treinar professores, revisar currículos e adequar as escolas para a nova realidade tecnológica.

Perdemos a chance de um debate político amparado tecnicamente sobre como melhorar a educação, aprendendo com os casos de sucesso. Nos agarramos a fórmulas fáceis e que deveriam estar superadas.

Será que teremos de esperar o problema educacional começar a prejudicar investimentos de forma visível, como ocorre na questão ambiental, para o debate ficar mais maduro? Por ora, o que estamos fazendo é nos afundar na armadilha.

CONSULTORA E DOUTORA EM ECONOMIA PELA USP