terça-feira, junho 16, 2020

Tiranias só sobrevivem porque pessoas aceitam o aberrante como normal - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 16/06

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos


1. Foi Hannah Arendt quem popularizou a expressão “banalidade do mal”. Quando estava em Jerusalém, cobrindo para a New Yorker o julgamento de Adolf Eichmann, Arendt concluiu que aquele homem não era o monstro amoral que se poderia imaginar.

Era apenas um funcionário que cumprira ordens sem pensar seriamente no que fazia. Essa explicação de Arendt nunca me convenceu. Motivo simples: Eichmann não era um personagem menor. Era um nazista convicto e um operacional decisivo do Holocausto.

Mas se a análise de Arendt não serve para Eichmann, o que ela nos diz sobre a “banalidade do mal” mantém a sua validade.

Quando falamos do comportamento dos alemães durante o Terceiro Reich, há teses para todos os gostos.

Os alemães colaboraram com o regime (ou, pelo menos, não se opuseram) porque o antissemitismo era endêmico na sociedade.

Os alemães se submeteram a Hitler porque a reverência pela autoridade era um traço de caráter.

Os alemães toleraram a indignidade porque também temiam pelas suas vidas.
Angelo Abu/Folhapress

Admito que todas essas explicações sejam válidas. Mas a “banalidade do mal”, entendida como ausência de pensamento e de empatia, é a mais poderosa.

Que o diga Brunhilde Pomsel, que só agora conheci. O documentário intitula-se “Uma Vida Alemã” e consiste numa longa entrevista com essa mulher, que na altura das filmagens, em 2016, tinha 104 anos. Acabaria por morrer no ano seguinte.

Entendo o interesse pela personagem: não é todos os dias que encontramos uma das secretárias de Joseph Goebbels, o chefe da propaganda nazista. E que nos tem a dizer Brunhilde com uma clareza impressionante?

De início, ela ensaia as explicações clássicas para a submissão: pais autoritários; educação prussiana; medo da ditadura. E ignorância, muita ignorância sobre assuntos políticos.

Mas, depois, nos momentos de confissão mais sincera, tudo que vemos é a mediocridade do pensamento e da imaginação.

Nas vésperas da derradeira vitória eleitoral dos nazistas, em março de 1933, Brunhilde inscreve-se no partido para conseguir um bom emprego.

Depois, já no Ministério da Propaganda, Brunhilde fala do salário (ótimo), dos colegas (simpáticos), das roupas (elegantes), dos móveis (modernos) e até do próprio Goebbels (sempre bem vestido, apesar de coxear).

Nem o fato de ter uma amiga judia, que lentamente foi desaparecendo da sua vida, é analisado com tempo e seriedade. Sabemos que foi assassinada em Auschwitz, no último ano da guerra, e não se fala mais do assunto.

Dizer que Brunhilde Pomsel representa o mal seria ridículo, até porque a própria, aos 104 anos, reconheceu a desumanidade do regime.

O documentário é importante por outro motivo: as tiranias só sobrevivem porque as pessoas banais aceitam o aberrante como normalidade. Essa falha de pensamento, essa sabotagem da imaginação moral, essa redução da ética à mera conveniência pessoal é o sonho úmido dos tiranos.

Ontem como hoje, confesso que tenho mais medo desses seres banais do que dos monstros propriamente ditos.

2. Minha coluna da passada sexta-feira recebeu incontáveis emails. Metade dos leitores entendeu o ponto, que era essencialmente filosófico, concordando ou discordando.

A outra metade preferiu delirar, como se eu estivesse a defender ações do Exército sobre manifestantes, a beleza da Confederação americana ou a biografia de escravocratas. Como dizia o pai de George Costanza, “serenity now!”.

Repito, mais lentamente, para o pessoal que tem problemas cognitivos: falar em “tolerância liberal” não significa respeitar igualmente todas as opiniões ou obras que existem.

Significa entender que o espaço público deve ser o mais neutro possível para que as vozes do passado e do presente possam coexistir na sua grandeza ou miséria. Uma sociedade adulta aprende com tais grandezas e misérias, até para evitar repetir os mesmos erros.

Isso não significa que um jornal não possa escolher os colunistas que entende, que certas obras de arte não devam ser discutidas ou que certas estátuas não possam ser removidas para um museu ou para um depósito.

Significa, tão só, que a melhor forma de fazer isso não é pela perseguição de hereges, pela remoção censória de filmes e séries ou pela destruição pura e simples de estátuas ou monumentos. Esses são os métodos dos fascistas, não dos democratas.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Ordens absurdas - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 16/06

Bolsonaro é contra ‘ordens absurdas’, mas são dele as ordens e declarações mais absurdas


Tem um probleminha a mais na nota em que o presidente Jair Bolsonaro fala em nome das Forças Armadas e avisa que elas não cumprem “ordens absurdas”: é exatamente dele, do presidente da República, que partem as ordens, os projetos, as decisões e as declarações mais absurdas.

Na campanha de 2018, o então deputado do baixo clero já exigia que a realidade e as pesquisas se adaptassem às suas vontades. Se não confirmavam o que ele achava que tinha de ser, acusava os institutos de fraude e só parou de brigar com eles quando a realidade e a sua vontade convergiram e sua candidatura disparou.

Na eleição, Bolsonaro e seu entorno disseram, ameaçadoramente, que só havia uma alternativa: a vitória ou a vitória. Só respeitariam o resultado se ele ganhasse; se perdesse, seria roubo. Um ano depois, já presidente, Bolsonaro fez algo nunca visto no mundo: acusou de fraude a eleição que ele próprio venceu. Acusou, mas não comprovou.

No governo, Bolsonaro manteve a toada. O desmatamento não é o que ele quer? Demite o presidente do Inpe. O desemprego não é conveniente? Cacetada no IBGE. Uma extensa pesquisa mostra que não há uma “epidemia de drogas” no País? Manda a Fiocruz engavetar. Atenção! Estamos falando de Inpe, IBGE e Fiocruz, orgulhos nacionais.

A “ordem absurda” de Bolsonaro que mais teve consequências foi a demissão do diretor-geral da PF, para ele bisbilhotar diretamente as investigações contra filhos, amigos e aliados. Foi por dizer “basta!” e não acatar essa ordem que o ex-juiz Sérgio Moro saiu do governo e deixou uma investigação do Supremo contra Bolsonaro.

Dúvida: se as FA não cumprem “ordens absurdas”, o que dizer do general da ativa Eduardo Pazuello diante dos achismos do presidente na Saúde? O isolamento social salva vidas, mas não se fala nisso. A cloroquina foi descartada para a covid-19 até pela FDA dos EUA, mas no Brasil pode-se usar à vontade – inclusive os dois milhões de doses imprestáveis para americanos. Só faltava o presidente dar uma ordem absurda – e criminosa – para invadirem hospitais de campanha e mostrar que, ao contrário do que dizem a realidade e os governadores, estão vazios. Não falta mais!

E que tal mudar a metodologia, e até o horário, de divulgação dos dados da pandemia (agora quase 45 mil mortos e um milhão de contaminados)? O presidente acha mais de mil mortos em 24 horas muito ruim para ele e a reeleição. Então, melhorem-se os números. O Brasil chocou o mundo, mas STF, Congresso, mídia e a comunidade médica e científica não engoliram o que Pazuello engoliu a seco. E o governo recuou.

Outra “ordem absurda”: para Abraham Weintraub passar por cima da Constituição e da autonomia universitária e nomear 25% dos reitores federais durante a pandemia. Ou seja: passar uma boiada, fazer caça às bruxas e acabar a “balbúrdia” nas universidades. Mas também não funcionou. As instituições gritaram, o Senado disse não e Bolsonaro revogou a MP relâmpago.

Na sequência, o governo divulgou o balanço da violência em 2019 e excluiu, ora, ora, os dados referentes à polícia, que crescem ano a ano. A alegação foi “inconsistência”, o que, ok, pode acontecer, mas o passado condena. O governo esconde números incômodos e os policiais são da base eleitoral e alvo de cooptação por Bolsonaro. Depois de desmatamento, desemprego, covid-19, emprego... foi só um erro técnico?

Bolsonaro está em meio agora a “ordens absurdas” com efeito bumerangue: foi ele quem nomeou Weintraub, que não trouxe nenhuma solução, só problemas. E foi ele quem deu a ordem para as FA não seguirem “ordens absurdas” e “julgamentos políticos” de outro Poder, o que remete ao imperial: “A Constituição sou eu”. Há controvérsias. E resistência.

Militares e a democracia - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 16/06

A Costa Rica decidiu livrar-se das Forças Armadas e vive muito bem sem elas


Declarações e notas da elite castrense divulgadas nos últimos dias mostram que alguns de nossos generais ainda não entenderam o que é democracia e menos ainda o papel das Forças Armadas em uma.

Primeiro foi o general Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, que, em entrevista à revista Veja, afirmou que não há risco de as Forças Armadas desferirem um golpe, mas alertou que o “outro lado” não pode “esticar a corda”. Queixou-se especificamente de comparações de Bolsonaro a Hitler.
Conheça os militares no primeiro escalão do governo Bolsonaro

Receio que Ramos esteja desatualizado quanto ao nível de liberdades democráticas em vigor no país. Até onde vai a teoria, a oposição sempre pode esticar a corda (o fato de poder não quer dizer que deva), e todo cidadão sempre pode comparar qualquer um a Hitler (também não quer dizer que deva). Aliás, Bolsonaro não fez outra coisa que não esticar a corda desde que assumiu o poder.

Logo em seguida, o presidente Jair Bolsonaro e os generais Hamilton Mourão (vice-presidente) e Fernando Azevedo (ministro da Defesa) soltaram uma nota em que dizem que as Forças Armadas não aceitam tentativas de tomada de poder decorrentes de “julgamentos políticos”. Da última vez que abri a Constituição, vi que todos os cidadãos brasileiros estão obrigados a acatar decisões da Justiça, quer as considerem políticas, apolíticas, justas ou injustas. Pode-se discuti-las, lamentá-las, mas não desobedecer a elas.

Eu esperaria que, a essa altura, os militares tivessem aprendido mais sobre as virtudes da democracia. Seu valor, é oportuno lembrar, não está nas figuras que elege —Collor, Dilma e Bolsonaro não me deixam mentir—, mas nos meios não violentos que ela oferece para que nos livremos de maus governantes. Eles são o voto, processos penais e eleitorais e o impeachment, todos perfeitamente legais.

Em tempo, a Costa Rica decidiu livrar-se das Forças Armadas e vive muito bem sem elas.

O espetáculo da pobreza - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 16/06

Dobrou o número de favelas. Aumentou 107,7% em apenas dez anos


O Brasil avança rápido para completar uma nova “década perdida”. Vai ser o quarto período consecutivo de crescimento econômico obsceno (média anual de 2,1%).

Desta vez, o ciclo será encerrado na tragédia de uma pandemia. Já são mais de 44 mil mortos sob o desgoverno de Jair Bolsonaro na Saúde.

A lupa do IBGE ajuda a entender o que aconteceu com o país na última década, quando a população passou de 196 milhões para 210 milhões, com um crescimento de 7,1%

Dobrou o número de favelas. Aumentou 107,7% em apenas dez anos. Eram 6.329 em todo o país, em 2010. Agora são 13.151.

É crescente a favelização das cidades. Em 2010 o muro social era visível em 323 municípios. Foi estendido para 734 cidades — ficou 127,2% maior.

Já são 5,1 milhões de habitações nesses aglomerados subnormais na classificação do IBGE. Eram 3,2 milhões. Aumentou 59% na década.

Uma de cada quatro dessas casas está no Rio e em São Paulo. Mas há cidades como Belém com mais da metade (55,5%) dos lares situados em comunidades. Em Vitória do Jari, no Amapá, nove mil dos 12 mil habitantes (74% da população) sobrevivem em favelas, grotas, palafitas, mocambos ou similares.

O Brasil produziu um espetáculo de pobreza nas últimas quatro décadas. Houve políticas sociais para mitigação dos efeitos, em geral descontinuadas a cada governo. Por isso, nove de cada dez favelas estão a menos de cinco quilômetros de hospitais do Sistema Único de Saúde, mas essas unidades não têm infraestrutura necessária para atendimento.

O quadro de desigualdades tende a ser agravado na surpresa pandêmica com a queda de até 10% no PIB. Sem programas efetivos de renda mínima, democracia tende a se tornar luxo para a maioria.

Há uma ironia histórica nesse ciclo de pauperização. Começou na ditadura e se amplia sob uma coalizão de civis e fardados aposentados que cultuam o obscurantismo militarista.

Negando a Ciência na pandemia e ingressando sem bússola na recessão, o governo Bolsonaro até agora só conseguiu oferecer ao país um futuro baseado na abertura de cassinos e na multiplicação do comércio de armas, com garantia de isenção de rastreamento. Isso, talvez, seja um estágio superior da inépcia.

Fora, Weintraub - EDITORIAL FOLHA DE SP

Folha de S. Paulo - 16/06

Jagunço do bolsonarismo e prócer do golpismo, envergonha a democracia e a pasta



Não há mais a menor condição de Abraham Weintraub continuar ministro de Estado do Brasil. Esse jagunço do bolsonarismo, que parece ter a ambição de superar o chefe nos modos e nos métodos, envergonha a democracia nacional e seguirá arruinando o futuro de uma geração de jovens enquanto estiver no Ministério da Educação.

Se não for demitido pelo presidente Jair Bolsonaro —que o faria não por convicção, mas por mero instinto de sobrevivência—, Weintraub precisa ser processado por crime de responsabilidade perante o Supremo Tribunal Federal.

Motivos abundam. Se alguém entendia, erradamente, que as ameaças a juízes da corte constitucional na reunião de 22 de abril não poderiam ser usadas como prova em tribunais, por se tratar de encontro reservado e de assunto que não concernia à investigação original, agora perdeu esse argumento.

Ao prestigiar ato com um punhado de golpistas neste domingo (14), em Brasília, Abraham Weintraub reiterou as agressões —inclusive com o mesmo insulto, “vagabundos”— dirigidas a ministros do STF no encontro ministerial de abril.

A falta do uso da máscara, obrigatória no Distrito Federal, rendeu ao capanga estrelado do bolsonarismo uma multa de R$ 2.000. Mas a sua falta de compostura, muito mais grave, foi a gota d’água para que ele seja expelido do cargo.

A lei dos crimes de responsabilidade (1.079/1950) sujeita ministros de Estado à perda do cargo, com até cinco anos de inabilitação para exercerem função pública, por atentarem contra o livre exercício do Poder Judiciário, por se valerem de ameaça para constranger juízes e por comportarem-se de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro.

Weintraub, que defende e reitera que ministros do Supremo Tribunal Federal, insultados por ele, sejam encarcerados, incide nessas hipóteses, além de em outras, penais comuns, pelas quais autoridades do Ministério Público tampouco deveriam deixar de processá-lo.

Em termos políticos, cada minuto em que Weintraub permanece no cargo significa mais crise e desgaste para a já amplamente rejeitada aventura de Jair Bolsonaro.

Do ponto de vista administrativo, dezenas de milhões de jovens e crianças brasileiras, que dependem do ensino público, continuarão entregues à sua incompetência e ao seu obscurantismo.

Sob o ângulo institucional, a manutenção de um auxiliar que professa a destruição de um dos pilares da democracia faz do presidente da República um cúmplice desses crimes de responsabilidade.

Cabe a Bolsonaro decidir se adere ao golpismo de Weintraub ou se o demite e recupera condições para tirar o governo da rota do desastre

Ópera bufa - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 16/06


O país virou uma grande ópera bufa, que não termina em tragédia, mas pode se transformar, como aconteceu com o gênero do século XVIII, que começou como um mero entretenimento no intervalo das óperas sérias e acabou ganhando autonomia.

Temos que torcer para que o governo Bolsonaro seja apenas o intervalo, o mais curto possível, que nos levará, aos trancos e barrancos, à peça principal. Os personagens cômicos da ópera bufa sempre existiram, mas saíram do baixo clero para o proscênio nessa quadra de pandemia e pandemônio.

Um Mussolini de hospício surge de repente num cavalo branco emprestado, fantasiado de presidente do Brasil, que mais e mais torna-se mesmo uma republiqueta de bananas. Um personagem do grande Chico Anysio, guiado pelo absurdo, vivia repetindo “Eu odeio pobre”. Pois temos até um ministro, Abraham Weintraub, supostamente da Educação, que disse na fatídica reunião ministerial de abril: “Eu odeio a expressão "povos indígenas”.

Os militares que abundam na estrutura burocrática de nosso serviço público acabam levando ladeira abaixo o prestígio das Forças Armadas que, inertes, não reagem a essa corrosão de imagem que já é registrada em pesquisas de opinião. Por falar nelas, quando, em um país sério, a possibilidade de um golpe militar se transformaria em conversa de botequim (quando os botequins estavam abertos) ?

Ou serviria para dar um ar de seriedade a uma militância de extrema-direita mais cênica do que real, mas nem por isso tolerável e menos perigosa, acampada sob a denominação genérica de 300 ? O nome vem do filme baseado em uma história em quadrinhos de Frank Miller, com o brasileiro Rodrigo Santoro no papel do rei persa Xerxes. Classificado como propagador da violência militar e da eugenia, o filme ficou marcado como de extrema-direita, o que justifica o nome do grupo de Sara Giromini, dita Winter, que nem chega perto dos 300 de Esparta na Batalha das Termópilas.

São alguns gatos pingados estimulados pela retórica agressiva do governo Bolsonaro, sendo o próprio presidente um propagandista do grupo. Na falta de material humano suficiente para tornar realidade suas bravatas, sobra à terrorista visão marqueteira para impressionar a opinião pública. Desde encenar na frente do Supremo Tribunal Federal uma patética mimetizacão da Klu Klux Klan, com seus capuzes e tochas acessas, outro símbolo da direita selvagem, até atacar o (STF) com fogos de artifício.

Foi tardiamente presa, menos pelo que pode fazer do que pelo simbolismo de suas ações midiáticas. Como se estivéssemos em uma ópera bufa, o cavaleiro glorioso não passa de um mau soldado seguido por uma vivandeira de quinta categoria. Ambos tornam vexaminosos os enredos em que se metem, e levam junto consigo a credibilidade das Forças Armadas. Pelo menos enquanto os militares que o cercam não forem desautorizados de representarem o Exército no apoio às loucuras de Bolsonero, como o apelidou a revista inglesa The Economist, representante maior do liberalismo econômico, e não um panfleto comunista.

O vice-presidente Hamilton Mourão, que tem o hábito de escrever e declarar uma coisa e depois explicar com seu oposto, disse que Bolsonaro não conta com as Forças Armadas para um autogolpe: “ (...) ele sabe que as Forças Armadas não o acompanharão em uma aventura dessa natureza. É isso que ele quis dizer”.

A exegese de Mourão seria importante se não estivesse banalizada pela sua própria incoerência, assim como o golpe militar está tão vulgarizado que já se tornou uma paródia de si mesmo. Está claro há muito tempo que é preciso desbaratar a rede que financia fake news, ataques à democracia e manifestações como as que foram feitas em frente ao Palácio do Planalto e ao QG do Exército.

É uma turma que trabalha com a intenção de pressionar o STF, o Congresso e outras instituições e nunca recebeu qualquer crítica do presidente Bolsonaro. E essa investigação vai acabar conectada ao inquérito das fake news no STF e do financiamento ilegal na campanha presidencial de 2018 que corre no TSE.

Nesse novo mundo pós-pandemia, o Brasil tornou-se um pária entre as nações ocidentais. Um país que, por incúria e negligência de um governante insano, se colocou no ranking dos mais atingidos pela pandemia, levando a que fronteiras sejam fechadas à sua gente e a seus produtos, já atingidos pela péssima fama das políticas ambientais do governo.

Esticando a corda - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 16/06

Para o general Luiz Eduardo Ramos, o Judiciário estará provocando uma reação militar se entender que houve irregularidade na campanha de Bolsonaro


O Supremo Tribunal Federal (STF) advertiu que não tolerará mais intimidação por parte do bolsonarismo, originada seja das infectas redes sociais, seja dos movimentos de camisas pardas travestidos de patriotas, seja do primeiríssimo escalão do Executivo.

Ao reagir ao disparo de fogos de artifício contra o prédio do Supremo, feito por bolsonaristas no sábado, o presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, ordenou a responsabilização dos delinquentes, citando uma “eventual organização criminosa”. O resultado da reação do Supremo não tardou, e alguns celerados já foram presos. Se o bolsonarismo estava testando os limites das instituições democráticas, sabe agora que o preço de tanta desfaçatez é a cadeia. É bom, portanto, que os que inspiram esse comportamento delinquente dos camisas pardas saibam que chegará o dia em que terão de responder por isso. Não à toa, o ministro Dias Toffoli, em nota, disse que as atitudes dos bolsonaristas, “financiadas ilegalmente”, têm sido “reiteradas e estimuladas por uma minoria da população e por integrantes do próprio Estado”.

O presidente do Supremo acrescentou que a Corte “se socorrerá de todos os remédios, constitucional e legalmente postos, para sua defesa, de seus ministros e da democracia brasileira”. Isso já está acontecendo: correm no Judiciário investigações sobre inúmeras suspeitas que recaem sobre os liberticidas que chegaram ao poder em 2018, desde o financiamento ilegal de campanha até a organização de uma máquina de destruição de reputações na internet. Perto do que já se sabe a respeito disso, o disparo de fogos de artifício contra o Supremo é traque.

Ante essa pressão, não parece ter sido casual que na sexta-feira o presidente Jair Bolsonaro tenha emitido nota para “lembrar à Nação brasileira que as Forças Armadas estão sob a autoridade suprema do presidente da República” e que essas Forças “não aceitam tentativas de tomada de Poder por um outro Poder da República, ao arrepio das leis ou por conta de julgamentos políticos”. Trata-se de uma ameaça explícita do presidente de recorrer às Forças Armadas caso algum dos processos que correm contra ele afinal o tire da Presidência. A nota é assinada ainda pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, e pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo – e ambos se fizeram reconhecer no texto como generais, embora sejam da reserva. Ou seja, há aí a pretensão de indicar uma unidade militar em torno do presidente e de intimidar quem ousa contrariá-lo.

O mesmo fez o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo. À revista Veja, o general disse que é “ultrajante” a ideia de que os militares pensem em golpe, mas “o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda”. O “outro lado” a que se refere o ministro são as instituições, sobretudo o Judiciário – que, na visão do general, estará “esticando a corda” e provocando uma reação militar se entender que houve irregularidade na campanha de Bolsonaro e cassar a chapa. Para o ministro, qualquer resultado que não seja a absolvição do presidente será “casuístico” – logo, inaceitável.

Trata-se de golpismo escancarado. Ora, quem “estica a corda”, dia e noite, é o presidente da República. Na quinta-feira, dia 11, Bolsonaro incitou seus seguidores a invadir hospitais para verificar “se os leitos estão ocupados ou não”, pois, segundo o presidente, “tem um ganho político dos caras”, referindo-se aos governadores, a quem acusa de aumentar o número de mortos pela pandemia de covid-19 para responsabilizá-lo.

É um atentado de múltiplas dimensões. Além de estimular a invasão de hospitais e de colocar em risco a vida dos invasores e dos internados, o presidente, sem nenhuma prova, acusa médicos de forjarem atestados de óbito e governadores de inventarem mortos. Ora, se o presidente estivesse mesmo interessado em saber o que se passa nos hospitais, bastaria acionar seu Ministério da Saúde, que existe para isso, e não atiçar seus seguidores a atuarem como polícia política. “Invadir hospitais é crime – estimular também”, disse o ministro do STF Gilmar Mendes, lembrando o óbvio.

Como salientou outro ministro do STF, Luís Roberto Barroso, é preciso indicar claramente que “há diferença entre militância e bandidagem”. E lugar de bandido, seja ele quem for, é na cadeia.