sexta-feira, maio 29, 2020

Ele grita a sua impotência. Ou: Vamos ver como seria o "gorpe do Parmito" - REINALDO AZEVEDO

UOL - 29/05



Imagem: Reprodução/Disney

Quanto mais o presidente Jair Bolsonaro grita, mais revela a sua incapacidade de realizar aquilo com que nos ameaça: desfechar um golpe de estado. É claro que seu comportamento nesta quinta foi execrável. Em que democracia do mundo o chefe do Poder Executivo, seja exercido por um presidente, seja por um primeiro-ministro, se refere ao Poder Judiciário naqueles termos? Não existe. Faz mal ao país. Cria tensões internas e prejudica sua imagem no mundo, o que afasta investimentos. Golpe? Não! Não haverá.

Mas especulemos sobre tal cenário para dar relevo à sandice. Então vamos lá: os senhores oficiais-generais botam seus tanques na rua, seus aviões nos ares e decretam um bloqueio marítimo. Soldados invadem emissoras de televisão e rádio e as redações de jornais e portais. Blindados cercam o Congresso Nacional e o Supremo, e ordens de prisão são expedidas para os 11 ministros do tribunal e os presidentes das respectivas Casas Legislativas.

Nos Estados, suponho, os respectivos comandantes das Polícias Militares, aderindo ao golpe com suas tropas, teriam de dar voz de prisão, numa primeira conta, a pelo menos 18 governadores. Enquanto isso, o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, num esforço de guerra — ou de golpe — converteria o setor metalúrgico à produção de contêineres frigoríficos para juntar os cadáveres da Covid-19 com os da resistência à quartelada. O Zero Um, o Zero Dois e Zero Três se dedicariam a redigir os atos institucionais.

O que diria o mundo? Bem, de imediato, o Brasil seria expulso do Mercosul, com a Argentina fechando as suas fronteiras, cessaria todo o comércio com a União Europeia, e Donald Trump pouco poderia fazer pelo "Capitão" porque teria se enfrentar o Congresso dos EUA. O Brasil seria uma ilha de coronavírus cercada de generais por todos os lados, a bater continência para um capitão golpista. O dólar escalaria o Everest, as empresas com ação em Bolsa iriam para o vinagre, e as elites empresarial e financeira que hoje toleram Bolsonaro lhe dariam um pé no traseiro. Quantos dias — não meses — duraria a aventura? Poucos. Terminariam todos na cadeia.

Sem contar que o Exército, na hipótese de topar a quartelada, teria de dar um golpe também na Aeronáutica e na Marinha, que estão voando e navegando para Bolsonaro. Há, sim, radicais e porras-loucas entre os militares, como há entre civis, mas essa é uma conversa de insanos. Quando o general Fernando Azevedo e Silva, ministro da Defesa, simula a ordem unida com os desvarios do capitão, dá a ele a ilusão de que um golpe seria possível, o que o leva a radicalizar o discurso.

Digo, e muitos não gostarão de ler, que o golpe seria o caminho mais curto para Bolsonaro ser espirrado do poder. Só não é desejável porque pessoas morreriam, ficaríamos ainda mais pobres e levaríamos algumas décadas para nos levantar do opróbrio internacional. Agora vamos ao Bolsonaro às portas do Alvorada:
"Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais, tomando de forma quase que pessoal certas ações."

Estava se referindo, claro, ao Poder Judiciário, como se, a partir de gora, o Supremo não mais tivesse autonomia para tomar decisões.

Qual é a verdade? Todas as vezes em que ele tentou ultrapassar a linha da legalidade, é bom que fique claro, foi, sim, tolhido pelo tribunal. Daí o seu rancor. Quanto vale o seu "acabou, porra"? Uma nota de R$ 3. Os ministros podem, se quiserem, endurecer ainda mais o jogo? Podem. Por que não o fazem? Porque gera tensão interna, que reflete nos indicadores da economia e podem tornar ainda mais ineficiente um governo já sofrível, o que faz ainda mais difícil a vida dos pobres.

O faniquito de Bolsonaro é o faniquito da impotência.

Ele grita a sua impotência. Ou: Vamos ver como seria o "gorpe do Parmito"

Talentos no confinamento - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 29/05

A ponto de me tornar campeão carioca de descascar laranjas, regar as plantas e passar o aspirador



Entre as surpresas com que o confinamento nos tem brindado, estão os talentos que muitos de nós estamos exibindo. É assim, por exemplo, que, depois de surgirem nos primeiros dias com os cabelos espavoridos e de raízes subitamente brancas, nossas belas comentaristas da televisão já voltaram à forma que as consagrou. Como as profissionais com que se cuidavam também estão em casa, tudo indica que as moças da TV desenvolveram habilidades que o dia a dia não lhes permitia explorar. Para nós, espectadores, o melhor foi descobrir que nossa admiração por elas não se alterou nos dias de descabelo.

Homens e mulheres que, até há pouco, não sabiam nem abrir uma lata ou ferver água estão se revelando mestres no preparo de saladas, omeletes, nhoques e brigadeiros. Os mais ousados começaram a se aventurar na complexidade dos suflês, moquecas e crêmes brulés, e estou sabendo de uns poucos que, nestes dois meses, já pensam em produzir o Ph.D das iguarias: uma bouillabaisse. Tanta sofisticação não elimina, claro, um problema que, agora, todos estamos tendo de encarar —lavar os pratos.

O maior avanço, no entanto, está na tecnologia. Pessoas notórias por sua aversão a ela e, de tão incapazes, sujeitas a quebrar o braço ao fazer ponta num lápis, estão aprendendo a gravar vídeos pelo celular, dar aulas online pelo Zoom e comunicar-se com os amigos pelo FaceTime. A pandemia nos transformou a todos em talking heads —ninguém mais tem pernas, e é assim que nos apresentamos agora uns para os outros.

Quanto a mim, estou evoluindo de forma galopante. Logo poderei disputar o campeonato carioca de descascar laranjas, regar as plantas e passar o aspirador na casa. Há um grande prazer em saber que se executou bem essas tarefas.

Mas, no confinamento, nada supera a certeza —e o alívio— de, a cada dia, constatar que não cometemos nenhuma imprudência 15 dias antes.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Com que forças conta Bolsonaro? - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 29/05

Presidente atacou de novo as instituições dentro do seu projeto autoritário. Limites têm sido colocados, e ele os testa diariamente


O Brasil está em situação grave. Os militares do gabinete e o ministro da Defesa acham que o presidente Jair Bolsonaro tem razão e só fazem reparos ao tom. Acreditam que, sim, o Supremo Tribunal Federal (STF) está exorbitando de suas funções. Não está, mas a opinião dos militares dos quais se cercou o reforça, e ele então decide escalar e assim fortalece sua militância. Por outro lado, na reforma da Previdência foi feito um grande agrado às polícias militares, com a extensão aos PMs do benefício dado às Forças Armadas: a manutenção da integralidade e da paridade. Isso aumentou o apoio das PMs ao presidente. Bolsonaro ontem fez ameaças ao Supremo e ao ministro Celso de Mello. Quem vai impor limites? Perguntei isso a uma alta autoridade, e ouvi que as instituições já estão impondo limites.

Na visão dessa autoridade, o que os ministros Celso de Mello e Alexandre de Moraes estão fazendo é impondo limites. O plenário do STF tem feito isso também. Câmara e Senado, quando mudam propostas ou rejeitam projetos, estão avisando ao presidente quais são as fronteiras entre os poderes.

— As instituições estão fazendo um risco no chão — disse essa autoridade.

A já tradicional gritaria matinal foi, ontem, mais estridente. Cada palavra foi bem estudada. E a entonação. Quando ele elevou a voz para dizer “Acabou, porra!” estava enviando mensagem à militância. Tudo o que faz ou diz é gravado para ser usado em campanhas ou no seu projeto autoritário. Para esse uso foi gravada a reunião ministerial. O filho 03 foi de novo escalado para ameaçar a democracia. A fala do deputado Eduardo é de que não é uma questão de “se” mas de “quando” acontecerá a “ruptura”. Foi dita na noite da quarta-feira para acalmar a militância de extrema-direita assustada com a operação de busca e apreensão do inquérito das fake news. O projeto de Bolsonaro é este mesmo: a ruptura. Adianta pouco as negativas de que não haverá golpe militar porque as democracias morrem de outra maneira.

O Supremo Tribunal Federal está em duas encrencas. O tribunal aprovou o fim da condução coercitiva do investigado (ADPFs 395 e 444). E se Abraham Weintraub não atender à ordem do ministro Alexandre de Moraes? A segunda encrenca é o início polêmico desse inquérito. Foi aberto de ofício, o ministro Alexandre de Moraes foi nomeado sem sorteio e tropeçou no início com a censura à revista “Crusoé”. Ao longo do tempo, contudo, o processo ganhou relevância política, não porque mirou a direita, mas porque está investigando indícios de crime.

Os próprios militares que estão no governo não defendem o que um deles definiu para outro alto integrante do poder como “milícia digital”. Mas o presidente colocou toda a força da presidência para defender exatamente essa milícia digital, investigada pelo Supremo. “Com dor no coração ouvi aqueles que tiveram a sua casa violada,” disse o presidente. “Essa mídia social me trouxe à presidência.”

Bolsonaro está deliberadamente fazendo uma confusão entre liberdade de expressão e o crime de divulgar fake news, caluniar, difamar, organizar-se para atacar através de robôs, contratar empresas de disparos em período eleitoral, financiar manifestações antidemocráticas. É isso que está sendo investigado. O grande desafio da democracia é criar antídotos contra esses ataques às instituições. O Congresso também prepara uma lei dura para evitar o uso criminoso das mídias sociais. As próprias plataformas estão estabelecendo normas. Não é ameaça à liberdade de expressão. O presidente sabe disso.

Ele está claramente querendo intimidar o Judiciário. Por efeito bumerangue, conseguiu aumentar a união dentro da Corte, como se viu no curto e claro discurso do ministro Luiz Fux, avalizado por Dias Toffoli, em defesa de Celso de Mello. Bolsonaro acredita que neutralizou o Ministério Público com a nomeação de Augusto Aras, a quem ofereceu ontem publicamente o cargo de ministro no STF. Acredita que consegue o apoio das Forças Armadas, pelas vantagens que deu aos oficiais, e que tem o respaldo das PMs, pelo ganho dado aos policiais militares.

Durante a tarde, enquanto Bolsonaro conversava com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, mandou o recado:

– É bom dialogar, mas é bom ficar claro que nós vamos continuar reafirmando que a nossa democracia é o valor mais importante do nosso país e as instituições precisam ser respeitadas.

Bolsonaro tentará ignorar recados e passar por cima dos limites.

Vírus matou mais emprego que recessão - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 29/05

Número de empregos perdidos desde a epidemia é maior que na crise de 2014-2016



A Grande Recessão brasileira levou mais ou menos dois anos para dizimar 2,5 milhões de empregos, que desapareceram entre dezembro de 2014 e dezembro de 2016. A Grande Catástrofe da epidemia já destruiu mais de 3 milhões de empregos (na comparação com abril do ano passado).

Depois da Grande Recessão, o número de pessoas ocupadas em algum tipo de trabalho ainda continuou a cair até chegar ao fundo do poço em março de 2017. Levou mais dois anos, até 2019, para que tivéssemos um março dos tempos do pico do emprego.

Do saldo de empregos criados nesse tempo, dois de cada três eram de assalariados sem carteira assinada e “por conta própria” sem CNPJ, informal de todo, a julgar pelos dados da Pnad, a pesquisa do IBGE.

O emprego formal jamais voltou àqueles tempos pré-Grande Recessão. Pelos dados do registro de empregos formais do Ministério da Economia (Caged), ainda em dezembro do ano passado estavam desaparecidos 1,7 milhão de empregos com carteira assinada. Apenas neste ano, se foram mais 860 mil empregos com carteira assinada.

Quando a destruição vai parar? Não sabemos. Além do fato de que se trata de uma catástrofe, não sabemos quase nada desta crise. Não há com que comparar tamanho desastre. Hipóteses são formuladas apenas para que se possa ter uma ideia que possa ser corrigida assim que aparecem os primeiros e ainda muito preliminares retratos da devastação.

Além da desinformação inevitável, por ora, não há medidas novas do impacto da epidemia nem ideias novas para evitar ruína maior. O país está catatônico, apavorado, como quase o mundo inteiro, e ainda desgraçado pelo desgoverno e pela discussão agora aberta de golpe, impeachment ou alguma destruição institucional extra.

Nem é preciso mencionar, a sabotagem das medidas de isolamento, a falta de política federal de controle da doença e a descoordenação nacional já prolongaram a duração da pior fase da epidemia aqui no Brasil. Sem perspectiva de melhora, não há hipótese de retomada organizada. O país preferiu se atolar em um cemitério sem fim.

Economistas do Bradesco, por exemplo, trabalham com a hipótese tentativa de que o fundo do poço da renda do trabalho ocorreria em algum momento do terceiro trimestre (ressalte-se, entre os distantes julho e setembro). Supondo que se trate de um bom chute informado, a bola de neve da crise ainda vai engrossar.

O auxílio emergencial de R$ 600 terá algum efeito de mitigar o massacre. Pelas estimativas de despesa do governo, a soma desses auxílios equivaleria a cerca de um quarto da soma de todos os rendimentos do trabalho pagos por mês no país, pelo registro da Pnad. Equivale ao valor anual de quase dois Bolsa Família, mas pagos por mês.

Mas essa renda extra não vai salvar setores que vendem bens e serviços mais caros, menos ainda aqueles que estão fechados e que, na reabertura, sofrerão especialmente os dados da vida anormal sob epidemia: restaurantes, serviços pessoais, comércios, viagem, entretenimento.

Já há evidências anedóticas de lojas e restaurantes que, reabertos, não conseguem faturar para pagar os custos de manutenção da reabertura.

O medo da doença e o medo do futuro (para quem ainda tem o que gastar) colocam o consumidor na retranca. O crédito bancário entrou na retranca. O investimento entrou em colapso.

A epidemia será comprida por causa do isolamento à moda brasileira, entre selvagem e negligente. A crise econômica correrá em paralelo.

No escuro contra o vírus - CELSO MING

O Estado de S.Paulo - 29/05

A flexibilização da quarentena em São Paulo, o epicentro da epidemia no Brasil e no auge da crise, pode passar a ideia de que a crise está passando. Mas é falsa.


O governador do Estado de São Paulo, João Doria, apresentou um programa multicolorido que pretende ser uma flexibilização inteligente do isolamento social a partir de 1.º de junho, baseada na ponderação de critérios técnicos. Mas a iniciativa é uma demonstração das enormes dificuldades a serem enfrentadas na escolha de políticas públicas no meio da incerteza.

Em princípio, a flexibilização seletiva deveria se basear em levantamentos sobre o comportamento do vírus, sobre o índice de contaminação, de capacidade do atendimento da rede hospitalar e do grau de imunização da população. Foi por isso que a Organização Mundial da Saúde (OMS) vinha recomendando testes, testes e mais testes.

Mas as estatísticas disponíveis no Brasil são de uma precariedade gritante. Apenas uma ínfima parcela da população foi testada e a maioria das informações técnicas em que se basearam as decisões tomadas não passa de conjunto de hipóteses com alguma probabilidade de acontecer. O País não tem nem sequer estatísticas atualizadas sobre a real incidência de mortes causadas pelo coronavírus. Na quarta-feira, passavam de 4,1 mil as vítimas cuja causa mortis ainda aguardava diagnóstico, o que dá 16% sobre o total.

A liberação progressiva das atividades baseada em critérios geográficos é também questionável. O Município de São Paulo, por exemplo, foi enquadrado em zona laranja, que comporta início de flexibilização. No entanto, os municípios do entorno levam tarja vermelha, portanto continuam sujeitos à quarentena rígida.

O programa parece não levar em conta que muita gente que trabalha em São Paulo, no comércio e nos serviços que começam a ser liberados mora nos municípios vizinhos. É o vendedor que tem casa em Guarulhos, mas trabalha num shopping de São Paulo; é o pessoal que vive no ABC, em Barueri, em Mairiporã e que tem emprego fixo em São Paulo. Como controlar esses furos?

É preciso ver, também, se o faturamento proporcionado pela abertura parcial do comércio, que exige obediência a restrições não inteiramente claras, compensará o aumento do custo fixo de manter a loja aberta. As autoridades impõem a observância de certo número de exigências prévias que, de antemão sabemos, não serão controladas nem fiscalizadas pelas prefeituras.

Enquanto isso, certos sanitaristas vêm advertindo que esses e outros esquemas de flexibilização da quarentena podem ser prematuros diante do agravamento da doença. Nesse caso, São Paulo e o Brasil acabariam por repetir o caso do Chile, cujas autoridades contavam com a pandemia em retração, reabriram a atividade econômica, mas, em semanas, passaram a enfrentar novo alastramento do coronavírus.

Enfim, as autoridades do Estado e do País estão tomando decisões de enorme gravidade praticamente no escuro. E isso acontece não porque estejam erradas – algo que nenhum avaliador tem condições de concluir com algum grau de certeza –, mas porque a precariedade do conhecimento do comportamento do vírus não clareia a estrada pela frente. Como este é um megaexercício de tentativa e erro, essas políticas podem acabar se tornando sucessão de avanços e recuos. E de muitas mortes.

Dúvidas sobre a solvência da dívida - CLAUDIA SAFATLE

Valor Econômico - 29/05

A situação é extremamente dramática, diz o economista Edmar Bacha


A saída para a economia, no período pós- pandemia, é retomar a agenda de reformas com foco na solvência da dívida interna. A dívida bruta como proporção do PIB terá uma escalada, saindo de 75,5% para a casa dos 90% do PIB este ano. Os sinais já são inquietantes. A dívida mobiliária teve resgate líquido de R$ 240 bilhões nos primeiros quatro meses do ano e os prazos dos títulos estão se encurtando.

Essa preocupação ficou clara durante o debate ontem, na Câmara, entre os economistas Arminio Fraga, Ilan Goldfajn, ambos ex-presidentes do Banco Central, Ana Paula Vescovi, ex-secretária do Tesouro Nacional, e Edmar Bacha, um dos responsáveis pelo Plano Real.

Será importante, também, redesenhar os programas sociais para focá-los em quem realmente precisa da ajuda do Estado. A crise da covid-19 mostrou que é necessário fazer o ajuste de forma “justa”, salientou Vescovi.

O auxílio emergencial de R$ 600 que teria, segundo dados oficiais, atingido cerca de 38 milhões de brasileiros que não tinham qualquer ajuda estatal, deverá ser prorrogado por mais um par de meses, em menor valor. Em um novo formato, ele poderia transformar-se em um programa de renda básica como resultado de mudanças, inclusive, no seguro-desemprego.

O presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), deixou, durante o debate, uma informação relevante: Hoje a grande discussão que divide o governo é se a retomada da economia terá que ser feita com base em investimentos públicos ou se deve-se priorizar o investimento privado. Essa é uma divisão que sempre se apresenta nos momentos mais graves de crise, a despeito da absoluta falta de recursos do Tesouro Nacional para investir.

“A situação é extremamente dramática”, disse Bacha, para quem o país enfrenta uma “depressão” econômica. Ele chamou a atenção para pautas que devem ser evitadas tais como tabelamento dos juros ou elevação impostos, conforme proposta que tramita no Senado, de elevar para 50% a alíquota da CSLL cobrada dos bancos, para não se abrir a porta para uma “crise bancária”. E assinalou a importância de se fazer uma distribuição de renda no país sem que para isso tenha que haver “guerra ou revolução”. Os demais participantes concordam com a premência de uma redução das desigualdades e veem possibilidades de investimentos atrativos em saneamento e em infraestrutura, desde que as regras do jogo sejam bem definidas e respeitadas.

Para Ilan, já se sabe que a pandemia da covid-19 será mais longa e terá maior custo do que se imaginou no início da crise e, portanto, “não é hora de grandes gastos em obras públicas”. Segundo ele, há duas questões que merecem atenção: o auxílio emergencial e que a oferta de crédito chegue às pequenas empresas.

Ilan também condenou duas propostas que circulam no governo: a emissão de moeda para financiar o aumento do gasto decorrente da pandemia; e a venda de reservas cambiais com o mesmo propósito. Não há emissão sem custo e se há 20% do PIB em reservas cambiais, do lado do passivo há 20% do PIB em dívida, salientou.

Lembrou ainda que os depósitos remunerados, que permitiriam a emissão de moeda remunerada, são parte de propostas que tramitam no Congresso à espera de aprovação.

Arminio, avisou que olharia “o copo meio cheio” e viu saídas a partir de um ajuste fiscal que ele calcula em torno de 8 pontos percentuais do PIB, que não será feito da noite para o dia. “O Brasil vai ter que fazer escolhas” que, se não forem bem feitas, o futuro será a repetição “dos piores momentos do passado elevado ao cubo”.

Uma das reformas que todos os participantes colocam como prioritária é a do Estado, ou administrativa, para que o horizonte do gasto com pessoal corrija a despesa de cerca de 14% do PIB, hoje menor apenas do que a da África do Sul. Há outras como a tributária e a patrimonial e questões menos tangíveis, como confiança do investidor no país e segurança jurídica dos contratos. Para recuperar a confiança é preciso estabilidade institucional.

Ana Paula Vescovi mostrou a situação das contas públicas antes e depois da pandemia. Fica claro que o país estava em processo de ajuste fiscal, mas foi pego ainda em condições extremamente frágeis.

A pandemia vai elevar em 7 pontos percentuais o déficit primário do governo central. As contas no critério nominal vão encerrar o ano com déficit de 16,3% do PIB, ou R$ 1,12 trilhão, e a dívida bruta saltará para 94,2% do PIB este ano e para 102,8% do PIB em 2028. Os cálculos pressupõem obediência à lei do teto de gastos.

Pequenas empresas
O governo espera que o Programa de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Pronampe) esteja sendo oferecido pelo sistema bancário a partir de segunda-feira. O programa destina às microempresas cerca de R$ 15,9 bilhões com prazo de 36 meses e custo de taxa Selic mais 1,25%.

Os juros que foram aprovados pelo Congresso são tabelados, portanto, em 4,25% ao ano. De antemão, assessores do Ministério da Economia já vislumbram a contrariedade dos bancos privados em operar com essa linha de crédito, pois alegam que 4,25% não seria suficiente para cobrir os custos operacionais. Além do preço, o sistema privado também deverá temer o risco de crédito. Para o dinheiro chegar nas microempresas é bastante provável que a Caixa tenha que ser, mais uma vez, acionada.

Privatização
Começou a tramitar no Congresso Nacional o projeto de lei nº 2.715, que suspende qualquer privatização por 12 meses após o fim do período de calamidade pública. De autoria do depurado Enio Verri, (PT-PR), o projeto tem o apoio da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae) e de diversas outras entidades sindicais. A suspensão das privatizações até 2022 se justificaria pelas atuais condições de mercado, segundo argumentam os seus defensores. Para o presidente da Fenae, Sérgio Takemoto, porém, “a Caixa e as demais empresas públicas estão comprovando, especialmente nesta crise, o quanto elas são imprescindíveis para o país”.Está na fila da privatização a Caixa Seguridade e a empresa de Loterias.

É bom Jair obedecendo - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 29/05

Democracia é o regime dos erros sucessivos


Faz bem o Supremo Tribunal Federal em impor limites a Jair Bolsonaro e a seus asseclas. Eles já deram repetidos sinais de que, deixados livres, não se deteriam diante de nada em seu intento de transformar o país em uma monarquia terraplanista.

A trupe bolsonarista tem o estranho dom de desmoralizar tudo de que se aproxima. Em alguns casos, o movimento é voluntário, como se vê nos esforços do grupo para erodir instituições como Legislativo, imprensa e o próprio Judiciário.

Em vários outros, a perversão não é pretendida, mas fruto de incompetência. É disso que foram vítimas a saúde pública, as perspectivas para a economia, que só pioram, e a própria Presidência da República, rebaixada a enredo de filme pastelão na reunião ministerial a que tivemos acesso por decisão do STF.

Institucionalmente, o ideal seria que fossem a PGR ou o Congresso a cortar-lhes as asinhas. Como Aras e Maia se acovardam, só resta mesmo o STF. Daí não decorre que o processo ocorra sem asperezas.

O chamado inquérito das fake news, que atinge em cheio a máquina de propaganda bolsonarista, surgiu como um teratoma, que desafia as melhores práticas do direito e caminha perigosamente perto de criminalizar opiniões. Ainda assim, é um expediente legal e válido. Por quê? Porque o STF diz que é.

De forma um pouco cínica, dá para definir a democracia como o regime dos erros sucessivos. O primeiro a errar são os eleitores, que tendem a escolher desqualificados para governá-los. Em seguida, vêm o Executivo, que invariavelmente faz enormes besteiras, o Legislativo, que só piora as coisas, e, por fim, o Judiciário, detentor da “ultima defaecatio”.

A democracia funciona porque assegura a paz social. E a paz social só é possível quando todos os agentes concordam que a palavra final nas disputas é a do STF. Na democracia, não existe hipótese de desobedecer ao Supremo. É ele que tem o direito de errar por último.

Conspiração do jaguapoca - JOSÉ DE SOUZA MARTINS

Valor Econômico - 29/05

Os palavrões do presidente em reunião revelam um homem que só interage agredindo. Seu inimigo invisível tem o nome da onça que é menos onça do que deve ser


A reunião dos ministros, de 22 de abril, agora acessível a todos, foi convocada pelo general Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil, para o estabelecimento de um pacto em favor do Plano Pró-Brasil, de retomada do crescimento econômico. Um Plano Marshall brasileiro, explicou, aludindo equivocadamente ao plano americano que, após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), assegurou o dinheiro para a recuperação e o progresso econômico dos países derrotados.

Braga Netto se referia à política do New Deal, que o presidente Franklin Roosevelt pôs em prática para recuperar a economia americana da grande crise econômica de 1929.

Seu plano é, no fundo, um plano de investimentos estatais em infraestrutura, para criar emprego e renda e seus multiplicadores. Um plano de desenvolvimento econômico com efeitos sociais diretos em oposição ao plano neoliberal de Paulo Guedes, que é um plano só de crescimento econômico, com efeitos sociais indiretos. E o objetivo político de eleger Bolsonaro em 2022, proclamou ele.

O plano de Braga Netto não parece limitado a tentar salvar o PIB e os lucros do grande capital, como é o de Guedes. O é, porém, de forma indireta. Induz a interiorização dos centros de decisão do desenvolvimento econômico. Há aí, em germe, um potencial neonacionalismo, oposto à geopolítica bolsonarista de satelização do Brasil em relação aos EUA.

A proposta de Braga Netto talvez se inspire, por ouvir dizer, na “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, livro de John Maynard Keynes, economista da Universidade de Cambridge, influente no pós-guerra. No Brasil, ideias que seriam reconhecidas mais tarde como antecipações do keynesianismo já haviam sido aplicadas, com grande êxito, pelo banqueiro brasileiro José Maria Whitaker, ministro da Fazenda do governo provisório de Getúlio Vargas, em 1930-1931.

A compra e queima dos estoques de café, sem mercado em decorrência da crise de 1929, manteve o fluxo de renda, e com ele os fazendeiros seriam pagos pelo café encalhado, e com o dinheiro pagariam os colonos pela colheita pendente. O que manteve a vitalidade do mercado e da indústria brasileira, já estabelecida desde o final do século XIX, com grande capacidade ociosa para substituir importações.

O que parecia ser uma reunião de bajuladores do presidente da República foi, na verdade, um questionamento da política econômica do ministro Paulo Guedes.

Guedes percebeu e pulou na hora. Repreendeu o general e disse que a alusão ao Plano Marshall revelava um despreparo enorme. A recuperação da economia deveria se basear em investimentos privados, e não em investimentos estatais. Impugnou Keynes. O general gaguejou e concordou. Não estava preparado para compreender o alcance e as implicações da proposta que fazia.

Dada a palavra aos presentes, houve algumas vozes na linha de questionamento de Guedes. A mais explícita foi a do ministro Rogério Marinho, economista: “Não podemos começar uma discussão com verdades absolutas e com dogmas...”.

Falou em favor de uma política de obras de infraestrutura, com inversão de recursos públicos. Questionou a preocupação de Guedes e de outros membros do governo de que, com a pandemia, “as coisas continuam como eram antes”. “Não são como eram antes, aqui e no mundo inteiro”, afirmou Marinho. E com razão. Uma nova ordem econômica terá que surgir inspirada em valores econômicos, mas também sociais, antineoliberais.

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, alertou Guedes: “Vamos ter que fazer algumas revisões de políticas públicas no Brasil (...), coloque aí a questão dos valores” (sociais), ordenou. Citou números de quilombolas, idosos, crianças e mulheres em abrigos. Aqueles que, em certa época, as esquerdas definiam como excluídos.

As intervenções de Bolsonaro ficaram desconectadas das outras falas. Pegava deixas no que os outros diziam e via em tudo prova de conspiração contra sua pessoa. Confessou medo. Antes da Presidência, quando ia ao médico, pedia que seu nome não constasse das receitas, para não ser envenenado. Vê inimigos por trás de tudo. “Tem gente deles plantada aqui dentro”, enfatizou.

Os palavrões pronunciados por ele na reunião são irrelevantes para a compreensão do que está se passando no escurinho do poder. Os palavrões de cunho fecal e sexual revelam um homem que só interage agredindo. Seu inimigo invisível tem um nome, que ele mencionou duas vezes: Jaguapoca.

Socializado na cultura caipira, no dialeto caipira encontrou nos remanescentes tupi que nele há a palavra que indica o que pensa desse temido inimigo:

Jaguapoca, a onça que é menos onça do que deve ser. Daí depreciar todos os que com ele não se alinham, onças que esturram, mas que são apenas m. e estrume.

José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "O Cativeiro da Terra" (Contexto).

O inquérito aberto pelo STF é legal; ilegal é o golpismo de Bolsonaro - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 29/05

Não use, ó moralista da isenção, a investigação como desculpa para sua covardia


Havendo quem queira usar a suposta irregularidade do inquérito 4.781 para flertar com o golpismo de Jair Bolsonaro ou, diante dele, omitir-se, decretando um empate moral entre as partes, fique à vontade. Mas é falso. Quando no exercício das competências penais originárias, previstas no artigo 102, inciso I, alínea "b", da Constituição, o STF preside o inquérito e exerce a supervisão judicial. Qual a novidade?

Também o artigo 2º da lei 8.038 e os artigos 230 a 234 do regimento interno do STF, que tem força de lei, disciplinam a questão. Essa conversa de ilegalidade do inquérito é papo furado. De resto, está, claro: Alexandre de Moraes não vai oferecer a denúncia. O conteúdo do inquérito será remetido ao Ministério Público, que continua titular da ação penal.

"Ah, não poderia ter sido aberto de ofício, e o relator não poderia ter sido escolhido pelo presidente do STF". Poderia, como dispõe o artigo 43 do regimento interno do tribunal. "Mas se fala ali em 'infração à lei penal na sede ou dependência do Tribunal'". É o mais ridículo de todos os óbices.
Relembre afirmações falsas de Bolsonaro

Como bem lembrou André Mendonça, atual ministro da Justiça quando advogado-geral da União, "os fatos que atingem essa Corte Suprema e seus Ministros são preponderantemente praticados pela internet (espacialidade delitiva não prevista na literalidade da norma, dada a data de sua edição: 27/10/1980). Ou seja, a abrangência da previsão regimental ora sob análise equivale à jurisdição da Corte, que, nos termos do artigo 92, § 2º, da Constituição Federal, alcança todo o território nacional."

Ignorância se corrige, má-fé, não.

A verdade é que as origens da pregação golpista, parte investigada no inquérito, estão sendo exumadas. E, como quer o apóstolo Paulo, muitos estão se vendo face a face. Não é por acaso que Augusto Aras, procurador-geral da República Bolsonarista, recorre a uma ADPF que saiu da pena do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) para, diz ele, delimitar o alcance do inquérito.

Randolfe é ou era da turma "Muda Senado", que saía por aí a se esgoelar, junto com a tropa golpista, em favor da "CPI da Lava Toga". A serviço da Lava Jato e do sergio-morismo, os valentes elegeram o Supremo como inimigo. Cadê os Dallagnois e Pozzobons que, a exemplo de blogueirinhas buliçosas, faziam tutoriais de como difamar a corte em nome do combate à corrupção?

Sim, é uma vergonha sem par que o STF tenha de ter aberto um inquérito de ofício. O Ministério Público Federal deveria tê-lo solicitado. Mas como o faria se era parte ativa da cultura da difamação? Como agir se muitos de seus próceres estavam na origem da campanha contra o tribunal, na qual, agora, Bolsonaro pega carona na sua aventura golpista?

E, ora vejam, o MPF, que não apenas se omitiu diante da escalada autoritária como a alimentou, continua a exercer a sua força destrutiva. Reaparece explorando a fissura dos viciados na cloroquina do combate à corrupção. Ressurge a maximização de uma obrigação moral e administrativa como norte da democracia e como ponto de chegada, não como meio, da virtude.

Eis a PGR a servir de pátio de manobra da sanha de Bolsonaro contra os governadores. A Lava Jato destruidora de instituições --que morreu como projeto de poder de Sergio Moro e dos "white blocs" do MPF-- renasce em espírito com Aras, agora sob os auspícios do bolsonarismo.

E, desta feita, os valorosos moralistas contribuirão para esconder a montanha de mortos com uma montanha de acusações. A campanha eleitoral de 2022 já começou. Por ora, o único adversário de Bolsonaro são as instituições. As investigações da PGR tendem a ser o crematório de milhares de pretos de tão pobres e pobres de tão pretos anônimos.

Sim, os ladrões estão aí. Sempre estiveram e têm de ser combatidos. A questão é definir o que preservar nessa luta. Até agora, temos destruído instituições e valores democráticos.

Não use, ó moralista da isenção, o inquérito 4.781 como desculpa para a sua covardia ou omissão. Não há nada de errado com ele. Quanto a você...

Reinaldo Azevedo
Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”.

Algumas notas para resistir - FERNANDO GABEIRA

ESTADÃO - 29/05

Depende de nós frear a marcha totalitária, deter o obscurantismo. É só querer


O poeta Carlos Drummond escreveu estes versos: Deus me deu um amor no tempo de madureza/ quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. Conversando com um político da minha geração, esta semana, lembrei-me do poeta quando ele disse: “Deus nos deu uma luta pela democracia, nos últimos anos de vida”.

Não esperávamos por essa. No entanto, não dá mais para ignorar que o sinal vermelho do regime autoritário está aceso no Brasil.

De um lado, vê-se um presidente falando em armar o povo, como Mussolini ou Chávez, e isso diante de uma plateia de generais indiferentes à gravidade desse discurso; de outro, um general falar em crise institucional porque um ministro do Supremo apenas cumpriu um artigo do regimento interno, despachando um pedido para o procurador-geral da República considerar: a perícia no telefone do presidente da República.

Nossa atenção estava toda concentrada na pandemia, o maior desafio depois da 2.ª Guerra Mundial. Mas um ministro diz na reunião do conselho que é preciso aproveitar nossa atenção no coronavírus para passar uma boiada de medidas que não suportam a luz do sol.

Pois muita coisa está se passando diante dos nossos olhos consternados com a sucessão de mortes e amedrontados com a síndrome respiratória aguda. Bolsonaro seduziu as Forças Armadas com verbas orçamentárias e uma suave reforma da Previdência. E mais ainda, fez um apelo ao salvacionismo que viaja no espírito deles desde a Proclamação da República e abarrotou o governo com militares.

Tudo indica que estão anestesiados. Generais reagem com sonolência a um projeto de milícias armadas. Sabem que Bolsonaro é homem de denunciar fraudes nas eleições que venceu, logo estará pronto para pegar em armas quando for derrotado adiante.

A origem positivista marcada pela aliança com a ciência foi jogada no lixo e um general se adianta para substituir médicos e inundar o Brasil com uma cloroquina que a OMS não aprova. Se as Forças Armadas resolveram encampar a política negacionista de Bolsonaro diante do vírus, se aceitam que milhares de mortes sejam debitadas na sua conta, é porque já decidiram mandar para o espaço o tipo de credibilidade que ganharam nos últimos anos.

Elas vêm pra cima com o mesmo ímpeto com que os militares venezuelanos defendem o seu governo autoritário. Por isso é preciso preparar a resistência.

A primeira lição é não ver essa luta, que para alguns se dá no final da vida, com os mesmos olhos da juventude. Mesmo porque só generais incompetentes veem uma nova batalha como se fosse a repetição da anterior.

Nada de armas. Num conflito moderno, a superioridade moral é decisiva. Eles vão se enrolar nas benesses do governo numa das crises mais profundas da História.

Olhar para o mundo. Não como no passado, exportando relatórios clandestinos e, com alguns contatos, denunciar desrespeito aos direitos humanos. Isso não é mais o principal. Agora existe a internet, uma infinidade de contatos possíveis com o planeta. Não precisamos comover apenas com corpos torturados, mas convencer os outros povos de que um governo cuja política destrói sistematicamente a Amazônia e favorece epidemias como a do coronavírus é ameaça também à existência deles.

Compreendo que ter o mundo a favor não basta para derrubar um regime autoritário. A Venezuela é um exemplo de que sem uma força coesa internamente não se chega a lugar nenhum. Aí está realmente o problema central: o instrumento. Ele precisa ser uma frente democrática ampla, madura, sem conflitos de egos, sem estúpidas lutas pela hegemonia, tão comuns na esquerda.

Chegamos perto disso no movimento pelas diretas. Candidatos a um mesmo posto conviviam harmonicamente no período de lutas e mais tarde buscavam caminho próprio nas eleições. Mas o próprio movimento das diretas é muito velho para o momento. Novas forças surgiram. Atores políticos menos experientes, mas com a capacidade de falar para milhões de pessoas, entraram em cena.

Na conversa que tive com o amigo disposto a lutar a última luta da vida, chegamos à conclusão de que é preciso apenas um núcleo que saiba contornar as bobagens dos que só pensam no poder e consiga estimular a criatividade social, diante dessa ideia de que a democracia não pode morrer no Brasil.

Não adianta ficar reclamando que o Congresso e o Supremo não conseguem frear a marcha totalitária. Isso depende de nós: é só querer. Na verdade, milhares hoje dão sua pequena contribuição, criticando, resistindo, às vezes até ridicularizando pelo humor.

Todo esse esforço molecular está, na verdade, ligado entre si. O que às vezes impede a consciência dessa união é o desprezo pela política, compreensível pelo que ela se tornou no Brasil.

Mas não se trata de aderir a um partido, militar no sentido clássico. A luta contra o coronavírus, por exemplo, é uma ampla frente pela vida que vai do carregador de maca ao cientista. As pessoas estão unidas pela urgência do presente, sem perguntar de quem é a culpa pelo vírus.

Da mesma forma, não interessa agora saber de quem é a culpa pela marcha do obscurantismo. É preciso detê-la.

FERNANDO GABEIRA É JORNALISTA

As certezas do ferrabrás - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/05

Bolsonaro não tem dúvida nenhuma. Para ele, 'algo de muito grave está acontecendo com nossa democracia'. Sim, está - mas a democracia está reagindo


Foi aos gritos que o presidente Jair Bolsonaro informou a seus concidadãos que não tolerará mais “um dia igual a ontem” - em referência à quarta-feira passada, quando a Polícia Federal, por ordem do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, fez buscas em residências de militantes bolsonaristas suspeitos de integrar uma organização criminosa destinada a intimidar integrantes daquela Corte. Segundo ele, “ordens absurdas não se cumprem”. Diante de declarações tão peremptórias por parte do presidente - na prática, um ultimato -, é o caso de perguntar o que acontecerá se “um dia igual a ontem” se repetir.

Como é certo que teremos muitos outros dias como esse, das duas uma: ou o presidente não fará nada, posto que numa democracia nada há a fazer a não ser respeitar as ordens judiciais, ou partirá para a desobediência - prenúncio de um golpe que muitos bolsonaristas desejam ardentemente deflagrar. Para o deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos do presidente, o segundo cenário é o mais provável. Referindo-se a “um momento de ruptura”, disse: “Não é mais uma questão de se, mas de quando isso vai acontecer”.

Ao que parece, contudo, a escalada retórica do chefe do Executivo, de sua família e dos camisas pardas bolsonaristas começa a encontrar resistência mais firme entre militares da ativa e da reserva, inclusive os que integram o governo. “Quem é que vai dar golpe? As Forças Armadas? Que é que é isso? Estamos no século 19?”, reagiu o vice-presidente Hamilton Mourão em entrevista ao site G1. Para o general da reserva, essa ruptura prenunciada por Eduardo Bolsonaro está “fora de cogitação”. Embora tenha dito que não falava pelas Forças Armadas, Mourão afirmou conhecer o ânimo militar e declarou: “Não vejo motivo algum para um golpe”.

Na mesma linha, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, que também é general da reserva, declarou que “ninguém está pensando em golpe” e que “intervenção militar não resolve nada” - um recuo e tanto para quem antevia “consequências imprevisíveis” caso o Supremo continue a tomar decisões contrárias ao presidente.

Em artigo para o Estado, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, disse que as Forças Armadas “não se deixarão tragar e atrair por disputas políticas nem por objetivos pessoais, de grupos ou partidários”. O general Luiz Eduardo Ramos também garante enfaticamente que as Forças Armadas não pensam em golpe, antes repelem a ideia.

Se é assim, cabe então aos militares desarmar os espíritos no Palácio do Planalto, a começar pelo próprio presidente, pois é ele que contribui decisivamente para ampliar o clima de ruptura - muito conveniente para seu projeto autoritário de poder. Nesse projeto - que tem no chavismo seu estado da arte -, as instituições e órgãos de Estado convertem-se em forças auxiliares do presidente, seja para perseguir inimigos, seja para dar completa liberdade de ação ao governo. Foi isso o que o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro denunciou quando pediu demissão.

Essa deliberada confusão só é possível com uma interpretação ardilosa dos valores democráticos. Para o bolsonarismo, por exemplo, a liberdade de expressão, quando invocada pelo presidente e seus devotos, é uma licença para cometer crimes diversos, como injúria e ameaça a ministros do STF.

Tudo isso, é claro, serve para que Bolsonaro se passe por vítima e, assim, dê substância ao discurso segundo o qual suas ações deletérias são uma necessária reação a supostas agressões de seus inimigos. Para Bolsonaro, por exemplo, o inquérito do STF resultou de “atitudes de certas pessoas individuais (sic)” - como se este ou aquele ministro do Supremo tivesse tomado decisões apenas para confrontá-lo.

Se tiver alguma dúvida sobre a lisura do inquérito do STF, no entanto, o presidente pode consultar o que já escreveu a esse respeito seu atual ministro da Justiça, André Mendonça. Embora hoje veja as investigações como um potencial risco à democracia, Mendonça, quando era advogado-geral da União, informou que o inquérito tinha total respaldo na Constituição - no que estava absolutamente correto.

A questão é que Bolsonaro não tem dúvida nenhuma. Só certezas - como a de que todos devem se curvar a suas vontades. Para Bolsonaro, “algo de muito grave está acontecendo com nossa democracia”. Sim, está - mas a democracia está reagindo.

Jair subiu no tanque - BRUNO BOGHOSSIAN

FOLHA DE SP - 29/05

Tanques e likes empurram Bolsonaro para o tudo ou nada

Presidente amplia ameaças de intervenção militar e recorre a uma base cada vez mais fervorosa


Jair Bolsonaro é hoje consideravelmente mais impopular do que era um mês atrás. Atualmente, há muito mais brasileiros que consideram o governo ruim ou péssimo do que gente que aprova seu desempenho. O presidente agora se equilibra em cima de tanques e diante de uma base cada vez mais fervorosa.

O governo nasceu sob a expectativa positiva de 65% dos brasileiros, segundo uma pesquisa feita antes da posse. Bolsonaro rapidamente jogou fora essa boa vontade e se acomodou sobre uma divisão dos brasileiros em três terços, que consideravam o governo bom, regular e ruim.

O arranjo estava longe de ser confortável para qualquer político, mas deu alguma estabilidade a um presidente que cometeu barbaridades diárias e se mostrou incapaz de apresentar um programa minimamente coerente para o país.

Os números da última pesquisa Datafolha, realizada nos últimos dias, mostraram que esse panorama mudou. As crises sanitária, política e econômica empurraram uma fatia razoável de brasileiros para o campo crítico a Bolsonaro. A proporção de entrevistados que rejeitam o governo subiu para 43%, enquanto sua parcela de apoiadores se manteve em 33%. A diferença entre os dois percentuais representa cerca de 20 milhões de pessoas.

Bolsonaro recorreu a outros métodos para preservar seu poder. Passou a fazer acenos ainda mais frequentes às Forças Armadas e lançou ameaças abertas de intervenção militar. Nesta quinta (28), o presidente divulgou um discurso favorável a uma ação fardada sobre o STF. Nenhum comandante o contestou.

O atrevimento golpista serve para demonstrar força, intimidar autoridades e energizar uma base crescentemente identificada com seu líder. A maioria do núcleo bolsonarista concorda com a ideia de armar a população, apoia a participação de militares no governo e acha que o presidente só queria melhorar sua segurança pessoal —e não interferir na Polícia Federal. Esse grupo empurra Bolsonaro para o tudo ou nada.

Caneta sem tinta - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 29/05

Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores


O presidente Bolsonaro conseguiu cimentar uma união interna no Supremo Tribunal Federal (STF) que já vinha sendo formada no cotidiano da Corte diante dos riscos à democracia desenhados pela retórica agressiva dos militantes bolsonaristas, em manifestações avalizadas pelo próprio presidente, e em atitudes agressivas das milícias, digitais ou não, contra seus membros.

Para além desse sentimento até mesmo de autopreservação, não fosse a ameaça à democracia, os ataques ao decano do STF, ministro Celso de Mello, tornaram-se exemplares da falta de limites desses militantes, que o decano classificou de “bolsonaristas fascistóides”.

Celso de Mello, aliás, já previa os problemas que a radicalização política poderia causar à democracia no país. Em 2018, com problemas de saúde que o impediam de se locomover normalmente, pensou em se aposentar. Começou mesmo uma conversa sobre seu substituto, e indicou indiretamente ao presidente Michel Temer que se sentiria feliz se a advogada-geral da União, Grace Mendonça, fosse indicada para sua vaga.

No final do ano, com a polarização política acirrada na campanha presidencial, ele avisou a Grace que continuaria até o final de seu período, e entrará na compulsória por fazer 75 anos, em novembro.

A operação de busca e apreensão da Polícia Federal de quarta-feira, que tanto incomodou o presidente Bolsonaro, estava prevista há pelo menos um mês, e só não foi realizada antes devido à pandemia, como noticiei na minha coluna “Golpe frustrado”, de 22 de abril.

Como já havia a perspectiva de que Bolsonaro estava tentando interferir na Polícia Federal na saída do então ministro da Justiça Sérgio Moro, o ministro Alexandre de Moraes determinou que fosse mantida a mesma equipe da PF que trabalhava no caso há um ano. Com isso, evitou que a operação pudesse ser inviabilizada por questões burocráticas ou vazamentos com viés político.

Os membros do Supremo riscaram uma linha de onde não admitirão passar os desmandos do presidente e seus seguidores. Em consequência, as duas novas tentativas do governo de reverter decisões do Supremo têm chances próximas de zero de vingar, tanto o habeas corpus a favor do ministro Abraham Weintraub, quanto o pedido de fim do inquérito sobre fake news feito pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras.

Há uma jurisprudência firmada de que o tribunal não deve receber pedido de habeas corpus contra atos de seus ministros. Quanto ao inquérito, mesmo os que, a princípio, consideraram que era uma demasia do presidente Dias Toffoli, hoje entendem que os fatos descobertos nas investigações justificam sua existência, indo muito além da auto defesa que parecia ser o objetivo inicial.

Trata de ataques à democracia. Além do mais, iniciado de maneira equivocada, esse inquérito foi colocado nos eixos muito devido às críticas que recebeu. O ministro Alexandre de Moraes comanda as investigações, e não julgará, o PGR Aras tem conhecimento delas e foi atendido na tese de que os deputados não deveriam ser alvos de busca e apreensão em suas residências.

A fala do presidente Bolsonaro ontem de manhã foi reveladora de seus intentos, mas ele não tem meios legais para afirmar que “acabou”, se referindo à ação da PF autorizada pelo ministro Alexandre de Moraes contra as fake News. Não há nada que ele possa fazer contra o STF, que, como disse Rui Barbosa, tem o direito de errar por último.
É preocupante que ele não aceite limites que a democracia impõe, queixando-se de que sua caneta não tem tinta. Não imagino que tenha algum tipo de apoio fora dessas milícias digitais para tomar qualquer providência fora da lei. Vários militares, inclusive o vice-presidente, Hamilton Mourão, reafirmaram ontem que não há possibilidade de golpes militares. Os comandantes das Três Armas não são tão condescendentes quanto seus colegas da reserva com relação às extravagâncias políticas do presidente Bolsonaro. Enquanto ficar na retórica, e não houver nenhuma medida prática para desautorizar o STF, vamos viver nesse clima de tensão permanente. Para parar o STF, nem mesmo mandando o soldado e o cabo, como disse o filho 03 Eduardo, para fechá-lo.

Inaceitáveis pressões sobre o Supremo - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 29/05

Bolsonaro e família atacam a Corte, aumentam o desrespeito à Carta e o desprezo à democracia


O presidente Bolsonaro tem exercitado com grande competência a capacidade de criar tensões políticas, característica marcante de seu comportamento, acompanhada de uma irascível posição anti-Ciência, que foi ficando mais exposta no agravamento da crise de saúde pública da Covid-19.

Agora, cresce em irresponsabilidade no enfrentamento inaceitável que passou a fazer ao Supremo, a mais alta Corte do país. Afrontá-la é um ataque à Constituição, à democracia.

O Planalto se insurge contra as buscas e apreensões ordenadas à Polícia Federal pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, no inquérito que preside sobre a produção de fake news e ataques nas redes sociais contra juízes da Corte, no qual foi incluído o ministro da Educação, Abraham Weintraub, pelas agressões de baixo nível que fez ao Supremo na reunião ministerial de 22 de abril. Alexandre de Moraes já tinha passado a ser alvo da ira do radicalismo bolsonarista ao atender a pedido do PDT e impedir a posse, na direção-geral da PF, de Alexandre Ramagem, próximo a Bolsonaro e filhos. Por “desvio de finalidade”, dada esta proximidade nada republicana.

Em reunião com ministros e assessores na noite de quarta, Bolsonaro decidiu que o ministro da Justiça, André Mendonça, e não a Advocacia-Geral da União, como de praxe, encaminharia pedido de habeas corpus em favor de Weintraub e de todos os atingidos pelos mandados de busca e apreensão. Outro acinte. O governo assumiu, assim, além da defesa de seu ministro, que atacou de forma baixa os ministros da Corte, também o lado de políticos, de militantes e de empresários acusados de usar as redes sociais para difamações e de financiar toda essa operação. Outro desvio de finalidade.

Na manhã de ontem, Bolsonaro pregou a desobediência a “ordens absurdas” — como os mandados de segurança. Não há registro de que um presidente já tenha feito o mesmo, insurgindo-se contra determinações judiciais. Reclamou ainda de decisões monocráticas. Que, de fato, se fossem tomadas pelo plenário da Corte, teriam mais sustentação. Mas não há justificativa para a abusada postura de Bolsonaro diante do STF, para o qual deu um basta, outra atitude repulsiva, autocrática. Tom semelhante teve ameaça feita pelo filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, de uma ruptura contra o Supremo.

Também inaceitável é a tese bolsonarista de que o direito constitucional à liberdade de expressão protege os autores de mentiras e ataques pelas redes sociais, alcançados agora pelo inquérito do STF. A defesa não resiste a qualquer julgamento em tribunal. Serve apenas para abastecer a militância radical e pouco ilustrada.

Na manhã de ontem, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, procurou suavizar o efeito de sua ameaça de “consequências imprevisíveis”, caso prosseguisse o pedido de confisco do celular de Bolsonaro, no inquérito da saída de Moro do governo. Que sinalize a moderação do presidente, para que haja mesmo harmonia entre os Poderes.