terça-feira, maio 26, 2020

A democracia nas mãos - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 26/05

Uma sociedade civil fraca deixa os indivíduos isolados perante o poder

De vez em quando, esqueço. Encontro um amigo, um colega, um vizinho e estendo a minha mão. Ele recua, instintivamente, como se eu fosse um exibicionista tarado abrindo a gabardine.

Gracejamos, embaraçados, e eu recolho o adereço, como quem cobre as partes pudicas. Ele, para aliviar o prejuízo, oferece o cotovelo.

A conversa é breve —distância social, lembra?— e as expressões faciais são insondáveis —todos usamos máscara, lembra? Sem aperto de mão, sem conversa e sem expressão, que estamos ali fazendo? Nada. É bom dia, ou boa tarde, ou boa noite e até à próxima.

Confesso: nunca fui um entusiasta do aperto de mão. Conheço a história: em tempos antigos, era uma forma dos cavaleiros mostrarem que não estavam armados etc.

Pessoalmente, e por razões literárias, sempre preferi aquela pequena vênia que é possível ler, ou observar, nas histórias da senhora Jane Austen. Melhor ainda: uma vênia acompanhada por um bater de pés.

Mas se os canibais da civilização têm razão quando afirmam que apertos de mão já pertencem ao passado —até o doutor Anthony Fauci, a cabeça pensante da Casa Branca, o decretou— é preciso entender o que estamos perdendo.

Não, não é apenas um hábito anacrônico. É talvez um dos alicerces mais importantes de qualquer democracia liberal.

Leitores de Alexis de Tocqueville sabem o que digo. Por esses dias, tenho viajado novamente com o aristocrata francês por terras do Tio Sam. O ano é 1831 e o objetivo de Tocqueville é estudar o sistema prisional americano. Essa, pelo menos, é a justificação formal para visitar o país.

O interesse filosófico é outro: tentar compreender como funciona a nova era democrática que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por submergir toda a Europa.

O resultado desse estudo é “Da Democracia na América”, e uma das observações mais notáveis de Tocqueville lida, precisamente, com apertos de mão. Os americanos podem divergir radicalmente em matéria de renda ou riqueza. Mas, quando se encontram na rua, apertam as mãos, conversam, sorriem como se fossem do mesmo planeta.

No fundo, Tocqueville encontrava no novo mundo um hábito de sociabilidade que não existia no velho. Seria impensável que um nobre francês, deambulando pela vila, cumprimentasse assim um camponês. E mais impensável seria conversar com ele sobre as banalidades da vida.

Para Tocqueville, esse hábito traduzia a paixão pela igualdade social que existia em todos os americanos, independentemente da conta bancária. E essa paixão pela igualdade, paradoxalmente, só reforçava a liberdade. Como?

Porque a liberdade depende da “arte da associação”, ou seja, da capacidade que os americanos tinham (e ainda têm, embora menos) de se associarem civicamente em mil propósitos ou projetos.

Como afirmava o autor, os maiores inimigos da liberdade são a centralização do poder e o individualismo excessivo. A “arte da associação” tempera esses dois demônios.

Tocqueville compreendeu essa verdade que hoje nos parece evidente: a ausência de uma sociedade civil forte deixa os indivíduos isolados e fracos perante o poder.

Razão pela qual, como bem lembrava Roger Scruton nas suas visitas ao leste da Europa durante o comunismo, uma das primeiras medidas de qualquer governo autoritário é o enfraquecimento e a destruição da sociedade civil e das suas formas de associação.

Vizinhos desconfiam de vizinhos. Amigos são delatores de amigos. Universidades deixam de ter autonomia, igrejas são perseguidas, clubes de bairro se evaporam. Entre o governo e o indivíduo, só há deserto e nada. O indivíduo não tem para onde fugir —o supremo sonho do tirano.

Pelo contrário: sociedades civis fortes e independentes do poder central são um sintoma de vitalidade democrática.

O mundo pós-corona não terá apertos de mão? Nem conversas de circunstância? Nem sorrisos?

Estaremos, cada um de nós, enfiados na nossa bolha, fugindo dos outros como se eles fossem apenas transmissores de doença?

Cuidado, bom povo: esse é o ambiente natural da ditadura, não da democracia. Não há democracia que resista a um exército de desertores.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salve-se quem puder - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 26/05

Se o despreparo de autoridades é resultado da democracia, precisamos rever alguns conceitos


Juro que a última coisa que quero são as hemorroidas do Bolsonaro. O que me impressionou no incrível vídeo da reunião ministerial não foram tanto os palavrões nem as posições antirrepublicanas, que já sabíamos que viriam, mas o completo despreparo das autoridades ali presentes.

A desinteligência começa na própria ideia de gravar o vídeo. Desde Richard Nixon, nenhum político com mais de dois neurônios manda imortalizar situações que revelem a intimidade do poder, a menos que esteja obrigado por lei. No caso de reuniões de gabinete, não existe essa obrigação. Mesmo quando os participantes não confessam nenhum crime, acabam mostrando as entranhas dos processos decisórios, que nunca são bonitas de ver.

No caso específico, porém, há, se não confissões, indícios abundantes de crimes de responsabilidade e até de delitos penais ordinários. Depende só de Rodrigo Maia e de Augusto Aras o início de processos que podem levar à destituição do presidente.

O que realmente preocupa é o alheamento dos hierarcas. O Brasil atravessa uma crise sanitária sem precedentes e que deixará um rastro de destruição econômica raramente vista. As autoridades, porém, não falam nada de aproveitável sobre economia e mal mencionam a saúde. Estão mais preocupadas em adular o chefe e antagonizar adversários políticos. Parecem viver numa realidade paralela na qual só o que importa é a escatologia vascular do presidente.

Se esse é o resultado da democracia, precisamos rever alguns conceitos. Exigir que candidatos a presidente sejam aprovados no Enem e no psicotécnico talvez seja excessivo, mas acho que faz sentido reforçar um desenho institucional no qual certas decisões especialmente sensíveis tenham de passar por órgãos técnicos mais difíceis de aparelhar. Em tese, as agências funcionam um pouco com essa filosofia.

Precisamos dar um jeito de não ficar na mão de gente desse quilate.

Zambelli antecipou operação da PF contra governadores - VERA MAGALHÃES E MARCELO MORAES


Zambelli antecipou operação da PF contra governadores

Equipe BR Político


A deputada bolsonarista Carla Zambelli (PSL-SP) demonstrou ter informações privilegiadas sobre investigações da Polícia Federal, ao adiantar na segunda-feira, 25, em entrevista à Rádio Gaúcha, que a PF estava prestes a deflagrar operações para investigar irregularidades cometidas por governadores durante a pandemia.


A deputada Carla Zambelli (PSL-SP) Foto: Dida Sampaio/Estadão

“A gente já teve algumas operações da Polícia Federal que estavam ali, na agulha, para sair, mas não saíam. E a gente deve ter, nos próximos meses, o que a gente vai chamar, talvez, de ‘Covidão’ ou de… não sei qual vai ser o nome que eles vão dar… mas já tem alguns governadores sendo investigados pela Polícia Federal”, disse a parlamentar.

Um dia depois da fala de Zambelli, nesta terça-feira, 26, a PF deflagrou a Operação Placebo, que atinge o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), um dos principais desafetos do presidente Jair Bolsonaro. Agentes cumprem mandado de busca na residência oficial do governador e no escritório da primeira-dama do Estado, Helena Witzel.

Na mesma entrevista, Zambelli afirmou que o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro fazia uma “investigação seletiva”, com “predileção pelo PT”. “Ele tinha predileção em investigar e condenar o PT, legitimamente (…) Se falava (dentro da Polícia Federal) sobre a falta de suporte operacional para que a investigação corresse mais solta. Hoje, eu olho para trás e verifico que essa falta de suporte operacional pode estar ligada ao fato de que o Sérgio Moro tinha uma investigação seletiva”, disse.

Antes da operação que atinge Witzel ser deflagrada, outro bolsonarista, o deputado Filipe de Barros (PSL-PR) demonstrou ter informações privilegiadas. Ele afirmou pelo Twitter, no último dia 24, que bastou Moro “sair do Ministério da Justiça que a Polícia Federal voltou às ruas em operações de combate à corrupção, agora no COVIDÃO”, escreveu.

Seu Sérgio diz que @jairbolsonaro não teve compromisso com a pauta de combate à corrupção.

Mais uma vez, os FATOS desmentem sua narrativa mentirosa.

Bastou sair do Ministério da Justiça que a Polícia Federal voltou às ruas em operações de combate à corrupção, agora no COVIDÃO.

— Filipe Barros (@filipebarrost) May 25, 2020


Interferência na PF
A Operação Placebo ocorre pouco mais de um mês depois da saída de Moro da pasta e da troca tanto do comando da PF quanto da superintendência do Rio de Janeiro, e em meio a um cenário de denúncias sobre tentativa de interferência do presidente Bolsonaro na corporação. De acordo com acusações feitas por Moro, desde meados do ano passado, o presidente Bolsonaro pressionava para que houvesse troca no comando da PF do Rio de Janeiro, em especial o ex-diretor-geral Maurício Valeixo.

Uma investigação sobre a suposta interferência do presidente foi aberta a pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, e autorizada pelo ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF).

Vídeo da reunião, divulgado pelo decano na última sexta, mostra que olhando para o então ministro da Justiça, Bolsonaro diz: “Esse serviço nosso é uma vergonha, que eu não sou informado e não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, eu vou interferir. Ponto final”. O presidente segue negando que estava se referindo à PF.

Damares pediu prisão de governadores
Na reunião ministerial de 22 de abril, a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) chegou a dizer governadores e prefeitos fossem presos pelas medidas adotadas para enfrentamento à pandemia da covid-19.

“A pandemia vai passar, mas governadores e prefeitos responderão processos e nós vamos pedir inclusive a prisão de governadores e prefeitos. E nós tamo subindo o tom e discursos tão chegando (sic). Nosso ministério vai começar a pegar pesado com governadores e prefeitos. Nunca vimos o que está acontecendo hoje”, disse Damares, durante a reunião.

Guerra pela mente de Bolsonaro - CARLOS ANDREAZZA

O Globo - 26/05

Weintraub ganharia o troféu Bolsonarinho não houvesse a concorrência do presidente da Caixa



O vídeo da reunião ministerial de 22 de abril consiste numa farândola de bajuladores, entre ressentidos e vitimizados, que disputam o posto daquele cujo extremismo melhor demonstraria fidelidade incondicional ao presidente; isto enquanto, na costura de quatro momentos, Jair Bolsonaro deixa clara a intenção de interferir na PF para proteger os seus, familiares e amigos, de investigações.

De proposta concreta, ao longo daquelas duas horas em que um governo de autocratas se exibiu, houve somente a de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente. Não para combate à Covid-19, mas para uso da janela de oportunidades escancarada pela gravidade da doença: aproveitar que as atenções da sociedade estariam voltadas ao enfrentamento da peste e fazer passar a boiada. A boiada: demissão de fiscais, anistia a desmatadores etc.

Não deveria haver surpresa ante a inexistência de debate sobre políticas públicas num encontro do conselho de ministros de Bolsonaro. Este governo é narrativo, de modo que, reunidos os seus principais agentes, só se poderia esperar um desfile de versões e jactâncias, em que prevalecem aflições não com o impacto do vírus sobre o povo, mas com o impacto do que seria a exploração do vírus pelos adversários sobre a percepção da sociedade.

Estão lá os homens virtuosos, que são diferentes (talvez do centrão que o chefe coopta) e que se sacrificam pelo mito — que se sacrificou por nós. Abraham Weintraub, em seu esforço — sem agenda própria — por evidenciar as bordoadas e os processos que toma, reconhece estar ainda aquém do presidente: “Fez mais do que eu. Levou uma facada.”

O ministro da Educação — pela prisão dos “vagabundos” do STF — seria o vencedor do troféu Bolsonarinho não houvesse a concorrência do presidente da Caixa, Pedro Guimarães, desesperado para ser ministro, responsável pelo Bolsa Jair, “o maior programa da história da humanidade”, cujas bravatas nos informam também que dispõe de 15 armas e de goela para litro de cloroquina. Guimarães, guloso, armado e perigoso, pronto para matar e morrer na guerrilha contra a tirania de Doria e Witzel, está na vanguarda da resistência bolsonarista pela liberdade das hemorroidas — e talvez tenha sido mesmo a inspiração do presidente para aquela pregação armamentista miliciana.

Fica expressa a preocupação de Bolsonaro não com o direito de o cidadão ter e poder portar armas, mas em munir a população para combater medidas restritivas temporárias de governantes eleitos.
Armamento para subsidiar a desobediência civil. Não para proteger garantias individuais. Uma compreensão deturpada do que seja liberdade.

E não me venha liberal bolsonarista — este oximoro — com o papo de que a fala do presidente estaria escudada no espírito da segunda emenda da Constituição dos EUA. Conheço o texto. O que Bolsonaro disse, no entanto, nada tem com o que seria defesa de um Estado livre contra a opressão; sendo um estímulo explícito à ação contra decretos de governadores e prefeitos — decretos destinados a tolher a sanha de um vírus assassino e submetidos a controle de constitucionalidade.

Esse conjunto assombroso de campanhas, algumas mesmo criminosas, em uma reunião ministerial eclipsou a mais aberta batalha — sobre o futuro do programa econômico de Paulo Guedes — travada ali. As ideias do ministro da Economia vão questionadas dentro do governo. A agenda reformista liberal está em xeque. A pressão desenvolvimentista cresce, impulsionada pela demanda social por que o Estado induza a economia. O vento virou. “Não existem verdades absolutas” —diz Rogerio Marinho, o desafiante. É uma guerra pela mente de Bolsonaro; que está tentado, Dilma Rousseff em matéria econômica que é.

A alternativa tentadora, que o vídeo mostra ser encarnada também por Braga Netto e Tarcísio de Freitas, pode ser resumida nesta fala do ministro do Desenvolvimento Regional — que trabalha por ter um Minha Casa Minha Vida para chamar de seu:

“Se vamos gastar R$ 600 bilhões para resolver uma situação que é emergencial e todos reconhecemos que é necessária, e darmos segurança à população, no caso alimentar, para evitarmos o caos, para diminuirmos a mortalidade das empresas, muito bem. Tá correto. Essa é a boa direção. Por que não 5%, 6%, 7% desse total, 10% desse total, em obras de infraestrutura? Por que não termos a capacidade de alavancarmos emprego num momento em que a retomada, todos os economistas aqui reconhecem, vai ser muito lenta?”

Guedes não reconhece.

A propósito: aquela reunião fora convocada, por Braga Netto, para tratar do tal — ainda obscuro — Pró-Brasil, um PAC com estofo militar. Mais tarde naquele dia, sem a presença do ministro da Economia ou de qualquer representante da pasta, o programa seria apresentado.

Ainda na reunião ministerial, mencionada a possibilidade de privatizar o Banco do Brasil, o presidente pediu que se deixasse aquilo para 2023; mas ele não pensa em eleição.

É uma guerra pela mente de Bolsonaro; o de cabeça já feita.

Tortuosas falas do time econômico - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 26/05

Equipe econômica mostrou aderência aos valores distorcidos e aos maus modos do governo. Não é uma ilha de racionalidade no meio desta crise


A equipe econômica se saiu muito mal na reunião ministerial. O ministro Paulo Guedes colocou a economia a reboque do projeto da reeleição, e os presidentes do Banco do Brasil, Caixa e BNDES fizeram triste figura. Rubem Novaes, totalmente fora do rumo, disse que o pico da pandemia já havia passado, Pedro Guimarães deu um show de servilismo, Gustavo Montezano disse duas vezes que subscrevia as palavras de Ricardo Salles, que havia proposto solapar as leis, aproveitando o foco da imprensa na Covid-19. Roberto Campos mostrou que se sente à vontade em reuniões de governo, que nada têm a ver com o papel do Banco Central.

O mercado ontem comemorou com alta na bolsa e queda do dólar porque avaliou que não houve nada demais na reunião. A visão míope e imediatista dos operadores já é conhecida. Ontem o “Financial Times” trouxe na primeira página uma matéria corrosiva sobre o presidente Jair Bolsonaro e os destinos do Brasil. O “FT” é formador de opinião no mundo dos grandes investidores. Na reunião, a equipe econômica mostrou aderência aos valores distorcidos e aos maus modos do governo. Não é uma ilha de racionalidade. E não sabe como tirar o país da crise.

A reunião era para discutir o plano econômico pós-pandemia, que havia provocado ruídos. Paulo Guedes disse que via nele “as digitais” de Rogério Marinho, que em resposta pediu o abandono dos dogmas. O presidente Jair Bolsonaro passou a palavra a Guedes, logo após a apresentação do ministro Braga Netto, dizendo que ele era “o ministro mais importante nessa missão aí”. Mas não arbitrou o conflito que ficou latente entre Guedes e Marinho. Até porque Bolsonaro foi para lá com uma agenda própria, que não era o plano ali discutido, nem a pandemia do coronavírus.

Na primeira fala de Guedes já houve uma parte suprimida, mas da qual se depreende que ele também entrou na teoria da conspiração que culpa a China pela pandemia. “A China (parte excluída) deveria financiar o Plano Marshall.” Sua rejeição ao modelo estatista — que está embutido no Pró-Brasil — poderia ter sido ótima. Mas o argumento que ele usou foi que aquilo iria “destruir a candidatura do presidente, que vai ser reeleito se seguirmos o plano das reformas estruturantes.” E mais adiante Paulo Guedes volta a falar. “Vamos fazer todo o discurso da desigualdade, vamos gastar mais, precisamos eleger o presidente.” Quando a ministra da Agricultura disse que os juros para a produção agrícola eram de 9%, Paulo Guedes então dissertou sobre a natureza do Banco do Brasil — nem tatu nem cobra — e seu destino: “Tem que vender essa porra.”

Apesar da retórica crua, ele nunca encontrou apoio do presidente. Bolsonaro prometeu para depois da reeleição. “Em 2023.” Mas a verdade é que ele não deixou Guedes avançar na agenda liberal. E naquela fala o ministro mostrou que tem uma preocupante visão dos bancos estatais:

— O senhor já notou que o BNDE e a Caixa são nossos, públicos, a gente faz o que quer.

Não faz não. Foi isso que quebrou a Caixa em outros governos. Mas a Caixa tem sido tratada como parte do aparato bolsonarista. Para exibir sua sabujice, Pedro Guimarães prometeu tomar um litro de cloroquina, disse que tinha 15 armas e chamou home office de “frescurada”. Soltou vários palavrões, à moda do chefe. E superou o “nunca antes”, do lulismo, disse que o auxílio emergencial — que é temporário e provocou o tormento das enormes filas — é “o maior programa de inclusão de pessoas da história da humanidade”.

Rubem Novaes disse que falaria como “pessoa que olha os números” e mostrou que confunde oscilação com tendência:

— O tal pico, o tal famoso pico, que gerava tantas preocupações, a minha sensação é de que esse pico já passou.

O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, defendeu algumas ideias sensatas, mas desafinou quando disse que “a mídia joga medo”, e por isso “a classe mais alta tem mais medo do que a classe baixa, porque tem mais acesso à informação, e informação enviesada”. Se o projeto era um Banco Central independente, na atual gestão ele está perdendo a independência que tinha.

A visão de conjunto da reunião desmonta a ilusão de uma equipe econômica técnica. Ela é política, perdeu seu foco, não tem projeto. Guedes chegou a dizer que “o alerta aí do Weintraub é válido”. Explicou que falava dos “valores”. Que valores?

Os generais bolsonaristas - RANIER BRAGON

Folha de S. Paulo - 26/05

Consequências imprevisíveis ocorrerão se o país se curvar a bravateiros de pijama



Devido ao despreparo e ao completo apego à estupidez, Jair Bolsonaro conseguiu a proeza —involuntária, claro— de fazer soar palatável a participação de militares na gestão política do país. Mesmo com a lembrança da nefasta ditadura finda em 1985, em comparação ao Jair Futebol Clube qualquer XV de Piracicaba acaba parecendo um carrossel holandês.

As Forças Armadas não são de Lula, Temer ou Bolsonaro, mas do Estado brasileiro. E têm que se subordinar ao comando civil e ao império da lei.

É isso ou a república de bananas, cuja volta, queremos crer, só é desejada por desmiolados que acham divertido passar vergonha coletiva na rua, fantasiados de verde e amarelo.

Por isso, olhemos a mudez dos generais bolsonaristas na já célebre reunião de 22 de abril.

Associaram-se, acoelhados, à defesa das hemorroidas presidenciais, ao banditismo do projeto arma para todos, ao ladino que aproveita a "calmaria" da Covid para dar seus pulinhos, à beatice histérica da ministra sem noção, ao arroubo à Chuck Norris do garganteiro da Caixa e ao autopiedoso libelo puxa-saquista do inqualificável Weintraub. Uma catarse só assombrada pelo medo de, perdido o poder, serem todos presos pela obra que ora edificam. Foi a reunião de loucos, impostores, fanáticos, aproveitadores, militares sectários, e uns poucos estarrecidos, como bem resumiu Janio de Freitas.

Se a inação foi torpe, a ação se mostrou pior. O general Eduardo Pazuello chancelou depois a recomendação do uso do remédio que, segundo o maior estudo feito no mundo até agora, não só é ineficaz contra a Covid-19 como eleva o risco de morte. Que nome se dá a isso?

Carregando todo o amargor de quem desgraçadamente defende o indefensável, o general Augusto Heleno resolveu alertar que eventual apreensão do celular do chefe trará "consequências imprevisíveis", para alvoroço das vivandeiras de pijama. Já as vivemos, general, mas não serão arreganhos autoritários que farão parar o rumo da história.

Jornalistas não podem voltar a Findomundistão de Bolsonaro e general Heleno - REINALDO AZEVEDO

UOL - 26/05


Já defendi aqui, como sabem, que a imprensa parasse de cobrir a pantomima funesta armada em frente ao Palácio da Alvorada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo general Augusto Heleno, chefe do Gabinete da Insegurança Institucional (GII). Folha, Band e Grupo Globo fazem a coisa certa e anunciam que seus jornalistas não mais darão plantão em frente ao Alvorada enquanto não lhes for garantida a devida tranquilidade para trabalhar. Os jornais Correio Braziliense e Metrópoles tomaram decisão idêntica.

É o certo. Demorou! Aquele ritual diário de grosseria e estupidez tinha de ter fim. Digo mais: ainda que o ministro do G(in)SI pusesse homens armados para proteger os jornalistas, tratar-se-ia de um despropósito. A patuscada serve para que Bolsonaro faça embaixadinha para seus fanáticos desocupados, insuflando ele próprio os ataques aos jornalistas.

A propósito: o que fazem lá aquelas pessoas? Não trabalham? Vivem de renda? Estão com a vida ganha? Quem lhes paga a conta? Quando militantes profissionais de esquerda assediavam imprensa, ministros do Supremo ou simples adversários políticos, eu fazia a mesma pergunta.

Afinal, cumpre que nós, jornalistas profissionais, nos perguntemos: o que vamos fazer lá? Ouvir insultos e impropérios? Sofrer ameaças? Ser alvos da boçalidade abjeta, do cretinismo cru, do ressentimento ignorante? E tudo aquilo para quê?

Que informação relevante sai de lá? Resposta: nenhuma! Se Bolsonaro quer falar apenas para os seus, que fale! Se emissoras e jornais que lá permanecerem quiserem dar "furos" fantásticos às portas do Alvorada e à beira do abismo, que o façam então.

Convenham: este é um governo incapaz de anunciar qualquer coisa de útil e de relevante em uma reunião ministerial de 1 hora e 55 minutos. Por que seria diferente à porta do Alvorada? Aliás, cumpre notar à margem que o chefe da nação diz menos palavrões entre seus sectários do que na conversa com os seus ministros — que não têm um vocabulário muito melhor do que o seu, e isso inclui o, por assim dizer, "festejado" Paulo Guedes.

Chega! Fazemos um trabalho essencial em defesa da democracia que Bolsonaro quer destruir — e essa é a razão principal do seu ódio. Vimos como trata seus próprios ministros: aos berros, esmagando-lhes a individualidade, intimidando-os, infantilizando-os. Ele próprio, quando lhe foi dado falar, foi o primeiro a desviar o foco do encontro. Não tem conhecimento, não tem norte, não tem método, não tem nada. Só rancor e ressentimento. Até contra seus auxiliares.

Seus subordinados lhe devem obediência. E cada um lá sabe por que aceita a humilhação. Há gente ali com milhões de motivos. Poderia ser a hierarquia normal da democracia. Como vimos, não é. Que se virem! Nós, os jornalistas, não somos nem funcionários nem militantes de Bolsonaro.

Num dado momento da reunião, com a elegância habitual, entre palavras de baixo calão, o presidente notou que os ministros e o alto escalão só estavam ali porque ele havia vencido a eleição. Muitos saíram da obscuridade e da mediocridade para o estrelato. E onde poderiam brilhar? Ora, num ambiente em que o pouco que sabem pode passar por iluminação. E, nesse grupo, com efeito, Bolsonaro é mestre.

Como é? O presidente falou que elogios da imprensa renderiam demissão? Quero aqui aplaudir com entusiasmo o trabalho sem igual dos seguintes patriotas:
- Paulo Guedes (Deseconomia);
- general Braga Netto (Casa Incivil);
- general Augusto Heleno (Gabinete da Insegurança Institucional);
- general Fernando Azevedo e Silva (Sem Defesa);
- Ernesto Araújo (Relações com o Olavistão);
- Ricardo Salles (Desmatamento & Boiada);
- general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria do Desgoverno);
- Pedro Guimarães (Caixa de Armas);
- Rubem Novaes (Porra daquele Banco);
- Marcelo Álvaro Antonio (Laranjal);
- Onyx Lorenzoni (Bando de Pobre Pidão);
- Gustavo Montezano (Amigo dos Filhos);
- Fábio Wajngarten (Hostilidade à Imprensa)

Sobrariam muitos elogios também para Sérgio Moro, mas ele já foi chutado do Ministério da Injustiça.

Pois que se refestelem, então, na autocomplacência, no autoelogio e na autoestima.

ARMADILHA DO G(in)SI

Leio no "Poder 360":
"Desta vez, os bolsonaristas tiveram o dobro do espaço que habitualmente é destinado a eles no local. Ficaram em 2 "cercadinhos" -1 ao lado da imprensa e outro à frente.
(...)
O Gabinete de Segurança Institucional costuma permitir a entrada de aproximadamente 30 pessoas. Havia cerca de 60 na manhã desta 2ª feira (25.mai). Os apoiadores se dividiram em 2 grupos.

Depois que o presidente foi embora hoje, o grupo de apoiadores que estava do outro lado da rua andou livremente até a frente da área destinada à imprensa. De lá, hostilizaram os profissionais, junto com o grupo que já estava posicionado ao lado dos repórteres (como ocorre diariamente).

CONCLUO

Parabéns, general Augusto Heleno!

Que os veículos de comunicação que ora se afastam da cobertura ponderem bastante antes de voltar a enviar seus repórteres ao local ainda que a segurança seja reforçada. É preciso também respeito.

Enquanto o presidente se comportar como um arruaceiro, que fique a falar para seus militantes. Por que jornalistas profissionais, que põem em risco a própria saúde em busca de informação; que atuam sob rígidos manuais de conduta da profissão e das empresas; que cumprem o dever de fazer indagações ao presidente, têm de ser insultados por ele próprio e por outros desocupados truculentos?

Entendo que igual decisão deveriam tomar todos os veículos profissionais de comunicação. E que lá permaneçam os que têm vocação para a sabujice e o puxa-saquismo.

Bolsonaro leva a reputação do país a profundezas nunca antes atingidas. Eis aí: mais uma notícia a ganhar o planeta, caracterizando o Findomundistão em que Bolsonaro e seus bambas transformam o Brasil.

Bolsonaro leva descompostura refinada de Barroso - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 26/05
Habituado a raciocínios cuja profundidade pode ser atravessada por uma formiga com água pelas canelas, Jair Bolsonaro talvez não tenha notado. Mas o miolo do discurso proferido por Luís Roberto Barroso ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral foi dedicado a criticar o seu governo. Sem mencionar o nome de Bolsonaro, que o assistia por videoconferência, Barroso deslocou a Presidência do capitão do mundo conservador para o universo do atraso. As palavras do magistrado soaram como uma descompostura.

"A falta de educação produz vidas menos iluminadas, trabalhadores menos produtivos e um número limitado de pessoas capazes de pensar criativamente um país melhor e maior", disse Barroso a certa altura. "A educação, mais que tudo, não pode ser capturada pela mediocridade, pela grosseria e por visões pré-iluministas do mundo. Precisamos armar o povo com educação, cultura e ciência."

O magistrado acertou dois coelhos com um parágrafo. Respondeu ao insulto de Abraham Weintraub, que defendera a prisão dos "vagabundos do STF" numa frase vadia proferida na reunião ministerial de 22 de abril, cujo vídeo foi jogado no ventilador por ordem de Celso de Mello, decano do Supremo. Respondeu também ao próprio Bolsonaro, que associara a política de isolamento social à ideia de golpe.

Vale a pena ouvir novamente o Bolsonaro da reunião de 22 de abril: "Como é fácil impor uma ditadura no Brasil! Como é fácil!. O povo tá dentro de casa. Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo! Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua."

Sobre Weintraub, o que Barroso declarou, com outras palavras, foi mais ou menos o seguinte: "O Ministério da Educação não merece ser comandado por tamanha mediocridade." Para Bolsonaro, foi como se o novo presidente do TSE, que também é membro do Supremo, dissesse algo assim: "Fale-me em armamentismo que eu puxo logo o iluminismo, que não atira para matar."

Noutro trecho do seu discurso, Barroso espetou: "Só quem não soube a sombra não reconhece a luz que é viver em um Estado constitucional de direito, com todas as suas circunstâncias. Nós já percorremos e derrotamos os ciclos do atraso. Hoje, vivemos sob o reinado da Constituição, cujo intérprete final é o Supremo Tribunal Federal."

O ministro acrescentou: "Como qualquer instituição em uma democracia, o Supremo está sujeito à crítica pública e deve estar aberto ao sentimento da sociedade. Cabe lembrar, porém, que o ataque destrutivo às instituições, a pretexto de salvá-las, depurá-las ou expurgá-las, já nos trouxe duas longas ditaduras na República."

Referia-se à ditadura do Estado Novo, sob Getúlio Vargas (1937-1945); e à ditadura militar (1964-1985), um regime cultuado por Bolsonaro.

Numa referência indireta ao negacionismo entoado pelo presidente da "gripezinha", Barroso solidarizou-se com os familiares dos mortos do coronavírus. E elogiou duas lideranças femininas que gerenciaram adequadamente a pandemia em seus respectivos países: a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Arden; e a chanceler da Alemanha, Angela Merkel. Ambas adotaram o distanciamento social, refugado por Bolsonaro.

O discurso de Barroso conteve recados certos para um destinatário incerto. Tomado pelas atitudes que adotou em 16 meses de governo, Bolsonaro meteu-se num autoengano que pressupõe que a distinção entre verdade e falsidade, entre realidade e fantasia, entre conservadorismo e atraso desaparece numa cabeça que se desligou dos fatos para viver num Brasil paralelo.

Ele poderia pelo menos derramar uma lágrima - PEDRO CAFARDO

Valor Econômico - 26/05

O presidente perdeu grande oportunidade de unir o país


Vendo a fatídica reunião ministerial e observando que a pandemia não foi citada pelo presidente da República, fica claro que por arrogância ou mesmo por burrice ele perdeu uma grande oportunidade para se tornar um líder a ser lembrado pelos brasileiros durante gerações.

Em situações de fragilidade política ou econômica, os líderes, muitas vezes por oportunismo, costumam fabricar guerras para unir o povo em torno de um objetivo comum. George W. Bush, por exemplo, declarou “Guerra ao Terror” em 2001, invadiu o Iraque em 2003 e se reelegeu em 2004.

Aqui, o presidente não precisava inventar nada. Quando já estava sob pressão da recessão em curso, caiu no colo dele uma guerra mundial em que todos estão no mesmo lado e poderia unir o país. A patologia domina tanto seu comportamento que não percebeu que ele não precisaria criar inimigos locais e menores. Tinha um inimigo contra o qual todos lutariam a seu lado.

Imagine-se que, no início da pandemia, ele tivesse logo admitido a autoridade da OMS para o enfrentamento da covid-19 e determinado que seu ministro da Saúde seguisse ipsis litteris todas as orientações da entidade.

Em vez de ficar durante dois meses desdenhando a doença, que chamou de “gripezinha”, poderia ter feito um pronunciamento convocando todos os brasileiros, inclusive os petistas que votaram em Fernando Haddad, para fazer parte de um mutirão nacional para salvar vidas. Diria em discurso que não existe vírus de direita ou de esquerda. Que naquele momento estava esquecendo todas as desavenças eleitorais, a facada de Juiz de Fora e as divergências ideológicas para convocar os brasileiros verde-amarelos ou vermelhos para uma batalha de vida ou morte.

Dificilmente o presidente enfrentaria oposição a uma atitude como essa. Quem ficasse contra seria execrado nas mídias. Ele poderia então dizer que as reformas, admiradas pela classe empresarial, ficariam hibernando durante alguns meses, até que a batalha contra o vírus terminasse. Sob seu comando, formaria um conselho com entidades médicas para decidir as políticas públicas na área sanitária.

Outro conselho, com políticos e economistas, estabeleceria medidas para enfrentar a perda de renda dos trabalhadores, as dificuldades de caixa das empresas e a recessão econômica. Ninguém poderia se recusar a participar dessas iniciativas. A oposição seria desarmada e ele poderia colocar a responsabilidade pela recessão, embora já prevista antes da pandemia, na tragédia global. Poderia produzir um déficit fiscal do tamanho que quisesse. A crise global seria justificativa para tudo.

A Presidência da República, tão ágil para operar nas redes sociais, poderia aproveitar essa expertise e enviar diariamente mensagens personalizadas às famílias das vítimas, manifestando pesar pelas perdas. Seria um carinho certamente muito admirado pelos brasileiros, tivessem eles votado ou não no presidente. Mas não, ele resolveu contrariar a ciência e desdenhar a importância da doença, como se fosse um curandeiro enviado dos céus.

Ainda hoje, com mais de 23 mil brasileiros mortos, o presidente e sua equipe próxima procuram argumentos para passar a ideia de que há exagero da mídia ao noticiar o avanço da covid-19. Não importam as tristes imagens dos choros de parentes de mortos, das covas abertas às milhares, dos caixões enfileirados. Tudo é considerado exagero da mídia, terrorismo com o povo. Grave é que pessoas humildes tendem a acreditar nisso, até que morra alguém da família.

Um dos ministros chegou a fazer comparações entre o número de mortos vítimas de câncer com os da covid-19. Esqueceu-se da elementar diferença de que a segunda é uma doença contagiosa, que aumenta em proporção geométrica se não for contida por remédios, vacinas ou isolamento social. E não temos nem remédios nem vacinas.

Fanáticos aficionados do presidente cobram da mídia tradicional imparcialidade para ouvir o “outro lado”: aqueles que defendem a inexpressividade da doença e a facilidade com que ela poderia ser curada pelo uso de um remédio milagroso, a cloroquina, cuja ineficácia já foi comprovada pela ciência. Dar espaço a essas opiniões seria como dar visibilidade a pessoas que defendem teses absurdas, como a de que Terra não é redonda. Posições como essas só poderiam sair em seções humorísticas.

Alguns líderes mundiais aumentaram sua popularidade durante a pandemia, porque se solidarizaram, lutaram e choraram ao lado dos cidadãos. O presidente da Argentina, Alberto Fernández, que estava com índices de popularidade em queda, recuperou-se por sua atuação na crise sanitária. O próprio americano Donald Trump inicialmente desdenhou a doença, mas depois mudou de posição ao ver o avanço das infecções e das mortes. Aqui, o presidente imitou Trump à risca na sua fase negacionista e não teve sagacidade para imitá-lo de novo quando ele se rendeu à ciência.

Nunca é tarde para admitir erros. O prefeito de Milão, Giuseppe Sala, no início da epidemia na Itália compartilhou um vídeo com o slogan “Milão não para”. Pouco tempo depois, percebeu o erro, pediu desculpas à população e parou Milão.

Dificilmente o presidente terá hombridade para admitir que errou, pedir desculpas, aceitar os postulados da ciência e tornar o governo brasileiro civilizado.

Não dá para saber se, em uma mudança radical, o presidente será capaz de derramar pelo menos uma lágrima pelos mortos. Nem se uma mudança de comportamento, a esta altura, seria benéfica ou não à sua imagem. Talvez seja tarde demais para que os brasileiros venham a se esquecer das bobagens que disse e dos maus exemplos que deu. De qualquer forma, seria muito bom para o Brasil e os brasileiros. Juntos, sem viés partidário, certamente será possível salvar a vida de milhares de pessoas.

Se não por misericórdia, pelo menos por oportunismo, o presidente da República poderia ter unido o país. É guerra. Mas temos no comando alguém que não nasceu para general nem para estadista.


Populismo está levando o Brasil à catástrofe - GIDEON RACHMAN

Valor Econômico/Financial Times - 26/05

País está pagando um preço alto pelas travessuras de seu presidente


Em visita ao Brasil no ano passado, conversei com uma destacada financista sobre os paralelos entre Donald Trump e Jair Bolsonaro.

“Eles são muito parecidos”, disse ela, antes de acrescentar: “Mas Bolsonaro é muito mais burro”. Essa resposta me pegou de surpresa, uma vez que o presidente dos Estados Unidos não é tido, de modo geral, como um grande intelecto. Mas minha amiga insistiu. “Veja só”, disse ela. “Trump administrou uma grande empresa. Bolsonaro nunca conseguiu passar de um capitão no Exército.”

A pandemia de coronavírus me recordou essa observação. O presidente do Brasil tomou uma atitude impressionantemente semelhante à de Trump - mas ainda mais irresponsável e perigosa.

Ambos os dirigentes ficaram obcecados com as supostas virtudes curativas do medicamento antimalária hidroxicloroquina. Mas, enquanto Trump simplesmente assume essa defesa por conta própria, Bolsonaro obrigou o Ministério da Saúde brasileiro a emitir novos protocolos, que recomendam o medicamento para pacientes de coronavírus. O presidente dos EUA brigou com seus assessores científicos. Mas Bolsonaro demitiu um ministro da Saúde e levou seu substituto a pedir exoneração. Trump manifestou simpatia por manifestantes anticonfinamento; Bolsonaro participou de suas manifestações.

Infelizmente, o Brasil já está pagando um preço alto pelas travessuras de seu presidente - e as coisas estão se agravando de forma acelerada. O coronavírus chegou ao Brasil de forma relativamente tardia. Mas o país tem a segunda maior taxa de infecção do mundo e o sexto maior número de vítimas fatais da covid-19. O número de mortes no Brasil, que responde por cerca de metade da população da América Latina, agora dobra a cada duas semanas, comparativamente à frequência de cada dois meses registrada no duramente atingido Reino Unido.

A configuração econômica e social do Brasil permite concluir que o país sofrerá severamente com a aceleração da pandemia. O sistema hospitalar em São Paulo, a maior cidade brasileira, já está próximo do colapso. Com grandes parcelas dos habitantes vivendo em condições de grande densidade populacional, e sem poupança, o desemprego em massa poderá levar à fome e ao desespero ao longo dos próximos meses.

Mas seria justo responsabilizar Bolsonaro? O presidente, empossado em 1º de janeiro de 2019, não é, evidentemente, responsável pelo vírus - nem pela pobreza e pela superconcentração de pessoas que transformaram a covid-19 em tamanha ameaça ao país. Ele também não conseguiu impedir que muitos dos governadores e prefeitos brasileiros impusessem regimes de confinamento em Estados e municípios. Mas, ao estimular seus seguidores a desprezar os regimes de confinamento e ao contestar seus próprios ministros, Bolsonaro é responsável pela resposta caótica que permitiu que a pandemia fugisse ao controle. Em decorrência disso, os danos à saúde e à economia sofridos pelo Brasil tendem a ser maiores e mais profundos do que poderiam ter sido. Outros países que enfrentam condições sociais ainda mais difíceis, como a África do Sul, tiveram uma reação muito mais disciplinada e eficaz.

Se a vida fosse uma saga sobre a moralidade, as excentricidades de Bolsonaro em torno do coronavírus levariam o Brasil a se voltar contra seu presidente populista. Mas a realidade pode não ser tão simples.

Não há dúvida de que Bolsonaro passa por problemas políticos. Seus índices de popularidade despencaram e estão agora abaixo de 30%; cerca de 50% da população desaprova o tratamento dado por ele à crise. O apoio de que ele gozava no passado da parte dos conservadores tradicionais - desesperados por se livrar do Partido dos Trabalhadores, de esquerda - está atualmente em processo de esfacelamento. Sergio Moro, seu ministro da Justiça de alta popularidade dedicado ao combate à corrupção, pediu demissão no mês passado. As denúncias de Moro sobre os esforços do presidente em interferir nas investigações policiais foram suficientemente explosivas para levar o Supremo Tribunal a abrir uma investigação capaz de levar ao seu impeachment.

Mas um impeachment no Brasil é um processo na mesma medida político quanto é jurídico. As infrações que levaram à retirada de Dilma do cargo de presidente em 2016 foram de ordem razoavelmente técnica. Pesou mais o fato de Rousseff ter sucumbido a um índice de aprovação de 10% nas pesquisas e de a economia ter sofrido uma profunda recessão. Os índices de aprovação de Bolsonaro ainda estão muito acima do ponto mais baixo registrado por Dilma. E, num momento em que a economia se encaminha, indubitavelmente, para uma recessão profunda e para uma escalada do desemprego, sua retórica anticonfinamento pode lhe proporcionar alguma proteção política. O professor Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas (FGV) de São Paulo, diz: “O que Bolsonaro quer é se dissociar da crise econômica que se aproxima”.

As medidas de isolamento social condenadas por Bolsonaro poderão, na verdade, lhe valer do ponto de vista político. Poderão evitar as manifestações de massa responsáveis pelo impulso dado à campanha a favor do impeachment de Dilma. E dificultarão a tarefa dos políticos de tramar e negociar nas famosas “salas enfumaçadas” - processo necessário para costurar um impeachment bem-sucedido. Tramar pelo telefone não é a mesma coisa. Alguns políticos poderão sentir que mergulhar o Brasil em uma crise política não é conveniente no meio de uma pandemia.

Mas a união nacional não vai se instaurar enquanto Bolsonaro for presidente. Num clássico estilo populista, ele prospera com base na política da divisão. O Brasil já é um país profundamente polarizado, repleto de teorias de conspiração. As mortes e o desemprego causados pela Covid-19 estão sendo exacerbados pela liderança de Bolsonaro. Mas, de maneira perversa, uma calamidade de saúde e econômica poderá criar um ambiente ainda mais propício para a política do medo e da irracionalidade.

O investigado e o investigador - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 26/05

Visita do presidente Bolsonaro à PGR expõe Augusto Aras

Bolsonaro e Aras ainda ruminam a derrota no Supremo


Jair Bolsonaro fez uma visita surpresa a Augusto Aras, procurador-geral da República. Foi à procuradoria apenas para “apertar a mão do nosso novo colegiado maravilhoso da PGR”. Recebeu “a alegria de sempre”, segundo Aras.

Teria sido mais um encontro imprevisto, fechado e rápido, se Bolsonaro não fosse um investigado e Aras o seu investigador em inquérito sobre crimes de responsabilidade na Presidência. Esse detalhe deu relevo à cena de ontem, em Brasília.

Ambos ainda ruminam a derrota no Supremo, na divulgação dos registros da reunião ministerial de abril.

Aras pediu ao juiz Celso de Mello uma censura muito mais abrangente do que a solicitada pela defesa do presidente. Argumentou que a transparência ao público, reivindicada por outro investigado, o ex-ministro Sergio Moro, daria à oposição chance de “uso político, pré-eleitoral (2022)”, criando “instabilidade” e “querelas”.

O juiz respondeu-lhe em 55 páginas. Lembrou a Aras que, no regime democrático, o Ministério Público não pode sequer manifestar a “pretensão” de restringir o direito de investigado ou réu em ver produzidas ou ter acesso a provas que possam favorecê-lo. A Constituição impõe publicidade aos atos de agentes públicos, observou. E, no caso, nem o governo se preocupara em tratar a reunião com sigilo.

Aras perdeu a batalha, mas tem o poder final de denunciar — ou não — o presidente. Pode decidir antes da aposentadoria do juiz Celso de Mello, em novembro. Ou deixar para a época de sucessão na Procuradoria-Geral e de escolha do substituto de outro que se aposentará no STF, Marco Aurélio Mello. De toda forma, Bolsonaro o deixou exposto na visita de ontem.

O presidente abstraiu a pandemia e segue em campanha pela reeleição. No roteiro incluiu o domínio de agências de espionagem, órgãos de controle externo e o Ministério Público. Ano passado, apresentou critérios peculiares para escolha do procurador-geral. Na essência, desejava a virtual conversão da PGR em anexo do Planalto. Bolsonaro, agora, só depende de Aras.

Temporariedade - ANA CARLA ABRÃO

ESTADÃO - 26/05

Há agora uma chance de avançarmos na direção de flexibilizações também nas contratações do setor público

Nunca tudo foi tão temporário. Mesmo antes da covid-19, transitoriedade, agilidade e flexibilidade já eram temas recorrentes nas análises do mercado de trabalho que vinha se mostrando em franca transformação. Atividades ganharam outro ritmo com os avanços tecnológicos e a digitalização. Projetos se tornaram mais frequentes e o modo de trabalho ágil se transformou na nova forma de acelerar entregas. Nesse novo mundo, também novas necessidades e competências emergiram fruto de demandas urgentes, de mudança nas prioridades, de alternância nos problemas e de crescente rapidez na busca de soluções.

O mercado de trabalho precisou se adaptar e a reforma trabalhista foi nessa direção, garantindo ao setor privado maior flexibilidade. O setor público, mais uma vez, ficou para trás. A forma de contratação continua a mesma, os contratos de trabalho continuam sendo quase que vitalícios e a gestão de pessoas se vê comprometida por estruturas de carreiras que em nada valorizam o mérito e tampouco alavancam competências. Mas há agora uma chance de avançarmos na direção de flexibilizações também lá. Não é uma reforma administrativa como a que precisaremos enfrentar mais cedo, antes do que mais tarde. Mas já é um primeiro passo nessa longa jornada que nos espera.

Me refiro aqui à Medida Provisória nº 922, pautada pelo presidente Rodrigo Maia para análise pela Câmara dos Deputados. A motivação da MP é a atualização da legislação que rege a contratação temporária no âmbito do setor público. Embora já previsto na Constituição Federal e regulamentado pela Lei 8.745, esse regime de contratação demanda uma urgente atualização. Ao ampliar as hipóteses que justificam a contratação temporária e possibilitar a contratação de servidores públicos aposentados e de militares da reserva para o desempenho de atividades temporárias, a MP 922 vai nessa direção. Afinal, qual a justificativa para a contratação de servidores estatutários para o desempenho de atividades temporárias ou emergenciais – que por definição se extinguem uma vez atingidos seus objetivos – quando esses servidores gozam de estabilidade funcional e detêm vínculos empregatícios que duram cerca de 60 anos? A pergunta é simples mas a resposta certa, que é a contratação temporária, coloca gestores à mercê dos ministérios públicos que insistem na abertura de concursos públicos e na contratação de servidores estatutários para o exercício de toda e qualquer função pública, por mais transitória e simples que seja a atividade.

Se aprovada, a MP 922 viabilizará a atuação pontual e tempestiva do Estado em ações que garantam um melhor funcionamento da máquina como, por exemplo, na redução de processos acumulados – caso dos pedidos de aposentadorias no INSS; no atendimento a situações de emergência humanitária – como vimos ocorrer em Roraima com os refugiados venezuelanos; nos projetos específicos de pesquisa e desenvolvimento ou mesmo na atenção emergencial em casos de calamidade pública que são, por natureza, temporários e transitórios e não justificam a contratação de servidores estáveis.

Estabelece-se assim o necessário respaldo jurídico para que essa agilidade também contribua para evitar um inchaço ainda maior da máquina pública, com as conhecidas consequências sobre os gastos públicos. Isso poderá ser estendido para todas as esferas da Federação, caso uma importante emenda seja acatada, além de alguns outros importantes avanços, se outras duas emendas também forem incorporadas ao texto final. Estas últimas resgatam alguns dos instrumentos de gestão de pessoas que foram se perdendo ao longo do tempo no setor público. É o caso da emenda que propõem a exigência de avaliação geral da política de pessoal temporário, recolocando planejamento e dimensionamento correto dessa força de trabalho na pauta e também a de avaliação de desempenho anual desses trabalhadores temporários. Garante-se assim que a qualidade do trabalho desses servidores seja medido e avaliado, resgatando o conceito há muito perdido no serviço público no Brasil, onde o resultado – e não o processo – deve nortear o trabalho.

Todos essas questões ficaram ainda mais evidentes no atual momento. Agilidade, flexibilidade, rapidez de resposta, simplificação dos processos e temporariedade são características necessárias para que possamos, como Estado, dar a resposta que a população precisa. Se isso tudo já era importante antes para garantir ganhos de eficiência na máquina pública agora, em tempos de pandemia, tornou-se imprescindível para que possamos salvar vidas. Dado que o governo não soube usar o tempo para atualizar nossa máquina pública lá atrás, enviando a proposta de reforma administrativa, que ao menos o Congresso use o entendimento da temporariedade para aprovar a MP 922 e fazer uma parte desse dever de casa tão atrasado.

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAMENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

Bom senso acima de tudo - RUBENS BARBOSA

ESTADÃO - 26/05

Acima de partidos e ideologias, o interesse nacional deve ser a tônica na recuperação


Análises e estudos das principais organizações internacionais indicam que a pandemia pode estender-se por um período maior que o antecipado. A vacina contra a covid-19 promete tardar para ser comercializada.

A recessão global vai ser profunda e demorada. As consequências sobre a economia e o comércio internacional poderão ser devastadoras, com grave queda do crescimento e do desemprego global.

A recuperação do Brasil não vai ser rápida, nem o País sairá mais forte, como alguns anunciam. Os efeitos sobre o Brasil hão de perdurar por muito tempo caso medidas drásticas não sejam tomadas. É tempo de repensar nossas vulnerabilidades e aproveitar para passar o Brasil a limpo, de modo a modernizá-lo com menor desigualdade regional e social. E também definir o lugar do Brasil no mundo, como uma das dez maiores economias, inserido de forma competitiva nos fluxos dinâmicos do comércio internacional.

O Executivo – levando em conta o pacto federativo – tem um compromisso inadiável com a aprovação e execução de reformas (sobretudo a tributária e a administrativa) e com medidas regulatórias, simplificação e desburocratização para aumentar a competitividade da economia, tornar mais ágeis as agências reguladoras e tornar efetivas as prometidas desestatizações e vendas de centenas de empresas estatais/paraestatais e concessões de serviços públicos.

Será indispensável um trabalho conjunto e coordenado com o Congresso para avançar nas medidas legislativas essenciais para criar condições de atrair investimentos do setor privado interno e externo. Com a tendência a maior informalidade e pobreza na saída da pandemia, será inevitável, na área social, discutir como tornar permanente o programa de auxílio emergencial para dar proteção a quase 80 milhões de beneficiários. A gravidade da crise, que afetou a todos, exigirá menos atritos entre os Poderes e mais agilidade e rapidez dos legisladores para discutir essas agendas ainda este ano.

Em vista do impacto da crise sobre a economia em todos os países, haverá crescimento do papel do Estado como indutor do investimento público e privado. A exemplo do que ocorre nos EUA e na Europa, o governo central deverá aumentar seu gasto para estimular a recuperação da economia, com impacto fiscal inevitável pela flexibilização de medidas de contenção fiscal, mas com políticas para o controle das contas públicas em médio prazo (âncora fiscal). No caso do Brasil, à luz das políticas liberais do governo, a ênfase está posta na importância da participação do setor privado na fase de recuperação. O envolvimento do setor privado e de organismos financeiros internacionais, contudo, não será automático e dependerá de condições mínimas de segurança jurídica para o investimento, de prioridade em relação a projetos de concessão e obras públicas e de sinalização clara de transparência no trato com o governo.

A ausência de liderança e de uma clara visão estratégica de médio e longo prazos para a condução do processo de recuperação do País pode impedir que medidas duras sejam tomadas para fazer o Brasil superar o impacto da crise. Não existe vácuo em política. Alguém terá de ocupar esse espaço.

O grupo de trabalho criado pelo Executivo e presidido pela Casa Civil deveria ser o catalisador dos esforços visando à recuperação da economia e liderar, em nome do presidente da República, a efetiva coordenação entre representantes dos três Poderes, dos órgãos reguladores e outros que interferem no processo administrativo.

As atividades desse grupo começaram a ser tratadas na famosa reunião ministerial agora tornada pública. Seu âmbito poderia ser ampliado e envolver, além do Executivo, nos próximos três meses, outros segmentos da sociedade: Congresso, economistas, empresários, trabalhadores e instituições técnicas especializadas. O Ministério da Economia começa a traçar cenários e a fazer estimativas para o day after, que – se espera – devem estar articulados com o grupo de trabalho.

Será importante conseguir um consenso mínimo para acelerar a implementação de políticas e de medidas essenciais com o objetivo de retomar o crescimento, reduzir o desemprego e aperfeiçoar as funções do Estado.

Não se pode esperar a adesão de todos ao programa que vier a ser aprovado, pela radicalização das posições em vista da divisão política existente hoje. É sintomático – e um desafio para outras forças políticas – que o PT tenha decidido engajar-se nessa discussão e dar inicio à formulação de projeto de retomada econômica, criação de empregos, reestruturação do Estado e da soberania nacional. O bom senso aconselha que o interesse nacional, acima de partidos e ideologias, com visão de médio e longo prazos, deva ser a tônica das discussões.

Caso a situação política não permita avançar com essa agenda, a alternativa será o aprofundamento da crise econômica, política e social, com a paralisia dos governos federal e dos Estados e municípios, com alto custo para a população.

Nada é mais difícil de executar, mais duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova ordem de coisas, já ensinava Maquiavel. Essa lição de realismo deveria ser seguida hoje pelos formuladores de políticas em Brasília.

PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)

Nascidos um para o outro - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 26/05

Tanto o presidente Jair Bolsonaro como o chefão petista Lula da Silva se associam na mais absoluta falta de escrúpulos, em níveis que fariam até Maquiavel corar


Não há dúvidas. Jair Bolsonaro e Lula da Silva nasceram um para o outro.

Tanto o presidente da República como o chefão petista se associam na mais absoluta falta de escrúpulos, em níveis que fariam até Maquiavel corar. Pois o diplomata florentino que viveu entre os séculos 15 e 16, malgrado tenha descartado a retidão moral absoluta como fator essencial para o bom governo, formulou uma ideia de ética específica para a política, segundo a qual, entre outras regras, o governante jamais deve colocar seus interesses pessoais acima dos interesses do Estado nem agir como se seu poder fosse ilimitado: “O príncipe que pode fazer o que quiser é um louco”, escreveu em sua obra mais conhecida, O Príncipe (1532).

Jair Bolsonaro e Lula da Silva unem-se como siameses. Enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva. Tudo o que fazem diz respeito exclusivamente a seus projetos de poder, nos quais o Estado e o povo deixam de ser o fim último da atividade política e passam a ser meros veículos de suas aspirações totalitárias.

Ambos, Bolsonaro e Lula, só se importam com o sofrimento e a ansiedade da população na exata medida de seus objetivos eleitorais. O petista, por exemplo, declarou recentemente que “ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus para que as pessoas percebam que apenas o Estado é capaz de dar a solução, somente o Estado pode resolver isso”.

Tão certo de sua inimputabilidade, Lula da Silva nem se preocupou em ao menos aparentar retidão moral, como recomendava Maquiavel aos príncipes de seu tempo, entregando-se à mais vil exploração política do sofrimento causado pela pandemia de covid-19. Lula da Silva é, assim, o anti-Maquiavel: enquanto o florentino elogiou seus conterrâneos por preferirem salvar sua cidade em vez de salvar suas almas, Lula saúda a morte de seus compatriotas como uma espécie de sacrifício religioso em oferenda à estatolatria lulopetista.

Já Bolsonaro, bem a seu estilo, continua a menosprezar os milhares de brasileiros mortos na pandemia, agora com requintes de crueldade. Depois do infame “e daí?”, expressão que usou ao reagir à informação sobre a escalada do número de mortos no Brasil, o presidente da República não viu nenhum problema em fazer piada com a desgraça do país que ele foi eleito para governar. “Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma Tubaína”, brincou Bolsonaro.

Nem se deve perder tempo procurando graça onde, definitivamente, não há. Diante das dramáticas circunstâncias, só riu da blague bolsonarista quem não nutre nenhuma empatia ou respeito pelo sofrimento dos outros. Para o presidente da República, só os direitistas são dignos de salvação – por meio da cloroquina, que Bolsonaro, baseado em estudos fajutos, quer que os brasileiros tomem para que o País supere rapidamente a pandemia e “volte ao normal”. Já os “esquerdistas” – isto é, todos os que não são bolsonaristas –, que bebam refrigerante.

Bolsonaro e Lula são o resultado mais vistoso da degradação violenta da atividade política, aquela que, na concepção de Maquiavel, deveria almejar a todo custo o bem coletivo. Cada um à sua maneira, um mais truculento, o outro mais dissimulado, o presidente e o petista se consideram fora do alcance das considerações éticas que deveriam moderar o poder e que estão no coração das sociedades democráticas.

Lula trabalha desde sempre para cindir o País – e sua recente celebração do coronavírus pode ser vista como uma espécie de corolário macabro da concepção doentia segundo a qual os brasileiros recalcitrantes, que ainda não aceitam o projeto de Estado autoritário idealizado pelo lulopetismo, devem ser castigados pela natureza para que aprendam de uma vez por todas que Lula sempre tem razão. Bolsonaro faz exatamente o mesmo, e ainda enxovalha publicamente quem se recusa a aceitá-lo como salvador.

O bolsonarismo é um monstrengo antidemocrático que só ganhou vida e ribalta por obra e graça do lulopetismo. A uni-los, a sede de poder absoluto. Mas, como já ensinou Maquiavel, não há poder que dure para sempre.

Alguém ainda crê que este governo seja liberal? - JOEL PINHEIRO DA FONSECA

FOLHA DE SP - 26/05

O Estado é uma potencial ameaça à liberdade, mas não a única; a opinião pública também é


Como no Brasil tudo é possível, não foram poucos os autoproclamados liberais que embarcaram com entusiasmo no bolsonarismo. O casamento de aparências tem durado, mas depois de assistirmos ao vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, aquele mix insólito de Escolinha do Prof. Raimundo e discurso fascista, alguém ainda acredita que exista amor?

Um a um, cada ministro fazia sua esquete. Desnudou-se a essência do governo: bajulação do líder, arroubos militantes e preocupação única e exclusiva com o projeto de poder. A maior epidemia em cem anos? Importava apenas na medida que colocou governadores como rivais do presidente, e como cortina de fumaça para passar o trator na Amazônia.

Bolsonaro expressou seu desejo de uma população armada para intimidar prefeitos e governadores. Isso caberia num congresso chavista; mas num governo que se diz “liberal”?

Vamos definir os termos. Liberal é quem defende o valor da liberdade individual para a vida em sociedade. Isso começa com um sistema político no qual haja equilíbrio de poderes e limites a seu exercício.
Só assim podemos ter uma sociedade civil com dinamismo próprio, que não apenas orbite —por coação ou bajulação— a autoridade política.

E só assim as pessoas podem ser livres para viver suas vidas de acordo com seus valores e crenças, dando seu melhor e assumindo risco de suas escolhas, dentro de limites necessários para a boa convivência e o respeito à lei.

Ser liberal não é ser contra o Estado. Ele é uma potencial ameaça à liberdade, mas não a única. Como bem nos lembra John Stuart Mill em “Sobre a Liberdade”, a opinião pública também é. Pouco se tem falado desse efeito do projeto bolsonarista: a corrosão da sociedade civil e do debate público.

Massas de fanatizados gritando, ameaçando, xingando a Rede Globo e Sergio Moro de “comunistas”, atacando jornalistas e espalhando fake news são nocivas à liberdade individual, que requer pensamento maduro, responsabilidade e compromisso com a verdade.

“Ah, mas o Guedes…”. Sim, o ministro Paulo Guedes tem uma agenda de reformas liberais na economia. Ótimo. A liberdade econômica é condição necessária, mas não suficiente, de uma sociedade liberal. E mesmo esse plano abstrato tem tido pouco sucesso prático.

Em 2019, quando os ventos sopravam a favor, o governo entregou basicamente a reforma da Previdência, e com atraso. Nada de abertura, nada do “trilhão” das privatizações. Neste ano, com Congresso mais hostil, demandas de gasto da epidemia e necessidade de compor com o centrão, os ventos sopram contra. Será que as entregas econômicas vão aumentar?

As promessas grandiosas de Guedes não se cumprem e começam a gerar ceticismo. Na reunião ministerial ficou clara a rivalidade entre ele e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.

Isso sem falar daquilo que prometeu e não fez: reforma tributária, administrativa. Em seu lugar, fala de nova CPMF e de contratar jovens para fazer estrada e jurar à bandeira. Defendeu o equilíbrio fiscal para Bolsonaro porque este afastaria o risco de impeachment.

Um presidente autoritário interfere nos órgãos de controle e insufla uma militância golpista. No meio disso, abraça o que há de mais fisiológico na política nacional, enquanto o ministro da Economia discute Keynes. Saúde pública e economia afundam. Ninguém parece saber o que está fazendo. Bajulação, fanatismo, autoritarismo e bagunça. Se essa é a tão propalada “primavera liberal”, imagine o inverno.

Joel Pinheiro da Fonseca
Economista, mestre em filosofia pela USP.

A ficha de Weintraub - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 26/05

Ataque torpe ao Supremo pode ao menos contribuir para encerrar gestão ruinosa


Dadas as dimensões e a relevância da pasta que comanda, Abraham Weintraub talvez seja, entre os muitos ministros ineptos do governo Jair Bolsonaro, o mais potencialmente danoso ao país.

O titular da Educação reúne todos os atributos vis do bolsonarismo instalado no Executivo federal: ignorância arrogante, revanchismo ideológico, rejeição ao diálogo, agressividade doentia e sabujice acima de qualquer noção de respeito à função pública.

A própria imbecilidade pode impedir Weintraub de provocar um mal maior. Não é de hoje que manifestações lunáticas o desmoralizam e ameaçam sua permanência no posto —e a registrada no vídeo da fatídica reunião ministerial de 22 de abril desponta como a mais grave delas até o momento.

Na peça se vê o chefe do MEC, após mesuras tristonhas ao presidente e lamúrias raivosas contra Brasília, dar vazão a um dos mais escandalosos rompantes autoritários do encontro. “Eu, por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia. Começando no STF.”

Até para os padrões destrambelhados do governo Bolsonaro, não é difícil imaginar o mal-estar provocado por um ataque de tamanha torpeza ao Supremo Tribunal Federal —onde se conduz inquérito que, no limite, pode resultar no afastamento do mandatário.

Não por acaso, intensificou-se o rumor sobre a insatisfação do Planalto com o auxiliar, que estaria ainda a dificultar acertos com os novos aliados do centrão. No domingo (24), Weintraub tentou pateticamente sanar o insanável.

“Não ataquei leis, instituições ou a honra de seus ocupantes”, escreveu. “Alguns, não todos, são responsáveis pelo nosso sofrimento, nós cidadãos”, completou, acrescentando covardia à boçalidade.

Cumprirá ao STF reagir com altivez à diatribe temerária. O ministro já foi alvo de um pedido de impeachment, por conduta indecorosa e irresponsável, arquivado em março por uma razão formal —a iniciativa, de parlamentares, caberia ao procurador-geral.

Em abril, o Supremo abriu inquérito para apurar crime de racismo por parte de Weintraub, em razão de ataques preconceituosos à China que também renderam crise diplomática com o maior parceiro comercial do Brasil. Em 22 de abril, o falastrão se queixou também de processos que o envolvem na Comissão de Ética da Presidência.

A opulência desse prontuário contrasta com o vazio do MEC, onde as raríssimas medidas acertadas, como o adiamento do Enem, resultam das pressões da sociedade que tanto irritam o ministro.

O cão de guarda - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 26/05

É da vigilância cidadã da imprensa que fugia Salles, que já havia mentido ao rejeitar as denúncias de ONGs


A mais explícita prova da importância do jornalismo profissional para a saúde da cidadania quem forneceu foi o ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles no seu pronunciamento na reunião ministerial cuja integralidade a Nação, embasbacada, pôde ver e ouvir semana passada, no desdobramento do processo aberto no Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar a denunciada interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal.

A bem da verdade, tenho que ressaltar que Salles foi apenas imprudente e, ao fazer o elogio da esperteza a serviço da imoralidade na ação pública, destacou a importância da suposta “tranquilidade” que a vigilância da imprensa dava ao se concentrar na cobertura da Covid-19 para abrir caminhos a medidas que, em tempos normais, encontrariam obstáculos na reação da opinião pública, e dos sistemas Judiciário e Legislativo, alertados pela imprensa.

Disse ele, como se desse instruções a comparsas sobre como bater a carteira dos desavisados: “ (...) pra isso, precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de Covid-19, e ir passando a boiada, e mudando todo o regramento, simplificando normas. (...) Agora é hora de unir esforços pra dar de baciada a simplificação, é de regulatório que nós precisamos, em todos os aspectos”.

É justamente essa a atribuição da imprensa, fazer com que a Nação saiba os projetos e desígnios do Estado, e possa debatê-los. Era isso, exatamente, que o ministro não queria que acontecesse. A “opinião pública” surgiu através principalmente da difusão da imprensa, como maneira de a sociedade civil nascente se contrapor à força do Estado absolutista e legitimar suas reivindicações no campo político.

Não é à toa, portanto, que o surgimento da “opinião pública” está ligado ao Estado moderno, que pressupõe transparência do poder público, e não manobras sub-reptícias que, se precisam da escuridão para serem efetivadas, é porque beneficiam algum setor, e não a sociedade.

É por isso que o papel da imprensa profissional é o de ser o cão de guarda da sociedade, segundo definição clássica do presidente dos Estados Unidos Thomas Jefferson, que dizia que, para cumprir essa missão, a imprensa deve ter liberdade para criticar e condenar, desmascarar e antagonizar.

A diferença entre figuras como Bolsonaro e Jefferson está não apenas aí, mas também. No sistema democrático, a representação é fundamental, e a legitimidade da representação depende da informação. “Uma nação conversando consigo mesma” é a definição de jornalismo do teatrólogo americano Arthur Miller, enquanto para Rui Barbosa, a imprensa é a vista da nação. “Através dela, acompanha o que se passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam ou roubam, percebe onde lhe alvejam ou nodoam, mede o que lhe cerceiam ou destroem, vela pelo que lhe interessa e se acautela do que ameaça”.

É dessa vigilância cidadã que fugia Ricardo Salles, que já havia mentido oficialmente ao rejeitar as denúncias de ONGs de que o desmatamento da Amazônia estava crescendo muito, depois que justamente ele, aproveitando que o país está preocupado com as vidas que estão sendo ceifadas pela Covid-19, afrouxou as normas de fiscalização na região.

Como demonstrou o ministro do Meio Ambiente, o jornalismo continua sendo um espaço público em torno do qual se forma o consenso para a construção da democracia, e é através dele que a sociedade opina e recebe informações que lhe permitirão tomar posição diante de decisões do governo.

Recentemente, o chefe do Gabinete do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), General Augusto Heleno, depois de se queixar da imprensa, disse que o governo tem as redes sociais para defende-lo das críticas. Confundiu militância política e fake news com informação com credibilidade. Assim como Bolsonaro confunde os organismos oficiais de inteligência e informação com seu sistema particular que, por ser clandestino e ilegal, não tem credibilidade. O bom jornalismo depende da credibilidade de quem o faz, e essa credibilidade está posta em xeque pelas milícias digitais a serviço do governo, qualquer governo.

Bolsonaro tem de explicar o projeto armamentista - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 26/05

Afirmações gravadas no vídeo da reunião ministerial requerem esclarecimentos do presidente


Do execrável conjunto da obra exposta pelo vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, liberado pelo ministro do STF Celso de Mello, há muitas cenas que falam por si, e outras que merecem mais atenção e alertas pelas graves implicações para a estabilidade e a paz no país. Bolsonaro sempre defendeu a liberalização de armas e colocou o tema em destaque na sua campanha. Não engana ninguém, portanto, quando trabalha para cumprir sua promessa.

Se seguisse os devidos trâmites para despejar mais armas e munições nas ruas e residências, os embates em torno de sua plataforma armamentista ocorreriam normalmente no Legislativo, e os conflitos seriam mediados na Justiça. Mas Bolsonaro não deixa mais dúvidas de que deseja desmantelar os freios e contrapesos necessários para conter excessos de cada um dos Poderes, sendo que o Executivo brasileiro já é muito forte. Com um presidente ideologicamente espaçoso, vive-se em tensão, no limite de crises institucionais.

Na questão das armas, o Congresso já teve de conter Bolsonaro por baixar decretos presidenciais que ilegalmente alteravam o Estatuto do Desarmamento — uma lei aprovada pelo Congresso —, ato digno de ditaduras. Foi forçado, então, a enviar projetos ao Congresso. Incontido, porém, o presidente determinou ao Exército que revogasse portarias que obrigavam a adoção de normas para facilitar o rastreamento de armas e munições, a fim de permitir sua identificação: origem, proprietário etc. Sem isso, a elucidação de crimes cometidos com armas de fogo ficará muito mais difícil ou impossível.

No vídeo ele aparece gritando o jargão: “povo armado jamais será escravizado!”. Mas não revelou quem são os agentes da escravidão que tirariam a liberdade dos brasileiros, ameaça também vista pelo “militante” Abraham Weintraub, ministro da Educação. Bolsonaro, no entanto, fez uma referência nada sutil à possibilidade de reações armadas contra decisões de prefeitos e governadores com as quais não se concorde.

Significa, então, que o presidente imagina que seria cabível romper as medidas de isolamento social, às quais se opõe, com arma na mão. Ele próprio se viu indo à rua com dedo no gatilho para lutar contra a intenção “de um bosta de um prefeito” que por decreto obrigue que as pessoas fiquem em casa. Bolsonaro defenderia insurreições armadas quando os tais freios e contrapesos barrassem a sua vontade e a do seu grupo dentro dos espaços da Constituição. Isso se chama golpe.

Pode ser que o Planalto alegue que o presidente estava em um momento particularmente agitado, e não poderia imaginar que aqueles arroubos, não apenas dele, seriam divulgados.

Ainda assim é inaceitável que a plataforma armamentista do governo possa esconder projetos aventureiros, irresponsáveis, de tentativas de desestabilização da ordem constituída, que jogaria o Brasil de volta ao passado distante, em prejuízo de várias gerações.