O Estado de S.Paulo - 17/05
Somente mães e pais que estão com elas sabem o que isso significa: oscilações de humor, teimosias bobas, resistência a muitas coisas que não existiam, dias bons, dias não tão bons e dias ruins
As crianças estão em casa há dois meses! Somente mães e pais que estão com elas sabem o que isso significa: oscilações de humor, teimosias bobas, resistência a muitas coisas que não existiam, dias bons, dias não tão bons e dias ruins, tédio e tédio choroso, manhas, birras e tudo o mais que quem tem filhos conhece muito bem.
Pudera! Elas perderam o que faziam de melhor: as brincadeiras com os pares, motor de seu desenvolvimento e crescimento, e a convivência com outros adultos que não os pais para dar um suspiro – um respiro – do estilo deles de amar, de ficar bravo, de ter raiva, de cobrar. Cada um de nós faz isso de um jeito, e estar o tempo todo submetido a um ou dois desses estilos cansa a criançada.
Resultado? Trabalho dobrado para os pais e, como ainda está em vigor, na maioria das casas, a tradição de ser mais das mães esse trabalho com os filhos, são elas que mais têm arcado com todas essas tarefas. Ah! E não podemos esquecer de acrescentar o trabalho remunerado que, de casa, muitas mulheres precisam honrar. Não se trata de jornada dupla e sim tripla: casa, filhos e trabalho profissional!
Cuidar dos filhos, já estressados a esta altura, não é fácil. Temos muitas crianças com crises de choro, medo do adoecimento e até da morte dos pais, ansiosas e angustiadas, com pesadelos, e tudo isso exige muito das mães.
Pois bem: para cuidar de tantas situações, algumas bem delicadas, a mãe – e/ ou o pai – precisa também cuidar de si mesma, já que, quem não está bem está quase sempre à beira de um descontrole, mesmo que temporário. E esses descontroles não afetam apenas os filhos: afetam, principalmente, a própria pessoa que se descontrolou. Sim, porque, depois, vem a culpa, o arrependimento, a raiva de si mesmo.
Como mães e pais podem se proteger e ter o autocuidado em situação tão estressante? Primeiramente, tratando da própria saúde mental. Um passo importante é reconhecer medos, inseguranças, angústia e outras emoções. É normal ter medo, por exemplo, mas quando ele não é reconhecido pode se expressar de outras maneiras e prejudicar o cotidiano. O autoconhecimento facilita o conhecimento das diversas emoções que nos assaltam e, consequentemente, a maneira de lidar com elas. Sentimentos não reconhecidos podem se transformar em um estorvo.
É também o conhecimento de si que possibilita identificar quais atividades podem auxiliar a pessoa a se distrair, relaxar, a reduzir estresse e ansiedade. Pode ser música, dança, meditação, exercícios de respiração, de ioga, jogos de tabuleiros, filmes etc. Aliás, melhor do que brincar com os filhos, o que eles podem e devem fazer sozinhos, é reunir a família na prática de exercícios. Em geral, a garotada curte isso. O que não podemos é exigir deles comportamentos de adultos nessas atividades.
Mas como encontrar tempo para isso se as crianças exigem e demandam a mãe o tempo todo? Elas precisam ser ensinadas a respeitar o tempo de descanso e trabalho dela! Muitas não aprenderam porque era pequeno o tempo para estar com os filhos e, nesse período, os pais atendiam a todos os chamamentos. Agora é a hora desse aprendizado!
Para as crianças, vale muito colocar um indicador visual, pois torna concreta a ideia da espera, de ter de aguardar. Por exemplo: uma mãe colocou um cone de sinalização na porta do cômodo da casa em que trabalha sempre que precisa fazer reunião ou não pode ser interrompida. Para surpresa dela, funcionou!
Ter um tempo para se apaziguar é importante, e recolher as crianças para dormir antes dos pais possibilita isso. Pode dar trabalho? Pode, por alguns dias, no início. Depois, os pais poderão desfrutar momentos de quietude em casa. Cuidar de si é trabalhoso, sim, mas é o que permite que a saúde, física e mental, seja mantida. Por isso, força e coragem!
É PSICÓLOGA
domingo, maio 17, 2020
Quanticamente - LEANDRO KARNAL
O Estado de S.Paulo - 17/05
Considero muito danosos todos os que vestem sua trapaça com o manto da ciência
Advertência aos físicos profissionais: nada sei de física quântica. Suspeito que, apesar dessa declaração inicial, eles gostarão do texto.
O termo quântico entrou no vocabulário popular há alguns anos. Pode ser lido em anúncios de “programação neurolinguística quântica” ou associado à ação de algum coach. Em um debate, quando a pessoa encontra alguém racional e muito cético como eu, geralmente diz que eu não conheço a física quântica. Sim, é verdade e meu interlocutor, provavelmente, também não.
Não estão convencidos do vasto cipoal que viceja entre a física científica e o campo adjacente? O indiano Amit Goswami desenvolve o conceito de “misticismo quântico”. Ele começou como físico profissional, inclinou-se à parapsicologia e, depois, utilizou o conceito de “criatividade quântica” e analisou o “ativista quântico”. Começamos por um doutor em física, ou seja, alguém de formação sistemática na área. Imagine o que passa pelo porão.
Sempre fiz a distinção entre dois campos que respeito muito. O primeiro é o da ciência, que busca causas e efeitos verificáveis e debates com os pares. O segundo campo é o da crença pura, aquele impulso de relação com o sagrado como necessidade interior. Considero fundamental, para compreender a humanidade, saber que existe o remédio testado em laboratório e a oração testada no interior de cada ser.
Há um campo novo e pantanoso que, grosso modo, seria o da pseudociência. Física quântica não é pseudociência. Falo da apropriação do termo para tentar achar uma realidade fora do verificável, algo que estaria oculto ao sensível e externo à lógica clássica. Alguns que se apoderam de conceitos da física passam a falar de alinhamento de energias, vibração em sintonia com forças positivas e estabelecem princípios que seriam insofismáveis como “lei da atração”. Existem “curas quânticas” e “saltos quânticos” e por aí vai o laço de “supercordas”.
Reflitam, minha querida leitora e meu estimado leitor. O drama da pseudociência é que ela não tem a dignidade tradicional da fé e jamais terá o reconhecimento da ciência. A física quântica possui décadas de debates e de experimentos. São cientistas que, tendo dominado a física clássica de Newton e apreendido as reformulações de Einstein, passaram a pesquisar novos paradigmas. O “guru quântico” não sabe a fórmula simples para calcular a velocidade. Seria incapaz de ler um texto de Erwin Schrödinger (1887-1961) ou de Niels Bohr (1885-1962). Ainda assim, tem por meta aplicar princípios da física quântica a você e ao projeto de vida alheia. Como alguém que nunca entendeu mecânica clássica pode passar para a física quântica? Pior: como uma pessoa que desconhece tanto o mundo newtoniano como as propostas da física quântica pode desejar aplicar ao que quer que seja de forma minimamente correta?
O quântico virou metáfora de “fora do observável”, “distinto do ortodoxo”, algo que as pessoas comuns afeitas a coisas concretas não poderiam perceber. Em outras palavras, uma mistificação no sentido que estou utilizando aqui. Uma tentativa de se apropriar da solidez da ciência, do esforço de formação e do penoso método científico para elaborar uma salada indigesta de propostas religiosas e científicas, pegando o pior de cada um dos dois mundos.
Física quântica é proposta científica de grandes laboratórios e centros de pensamento. Religiões são expressões densas da humanidade há milênios. “Treinamento quântico para superar nós energéticos” constituem-se, unicamente, em picaretagem pura, desonestidade, caça-níqueis para crédulos. Quando algum guru quântico vier a você oferecendo qualquer produto com o termo, peça para ele explicar de forma clara e racional a visão sobre partículas e sobre ondas do ponto de vista da física e como isso pode ser demonstrado na “alma” de um indivíduo.
Crenças são fundamentais. Quando pessoas colocam crenças como base para tratamentos, passam a ser perigosas. A maioria dos seres humanos busca a quimioterapia em casos de um câncer e não deixa de utilizar um recurso religioso. A combinação é clássica e não me incomoda. Grandes gurus de fama internacional acabam fazendo terapias tradicionais em hospitais. Aqueles que passaram a vida incorporando espíritos ultrapoderosos que curam com imposição de mãos ou facas enferrujadas acabam em um asséptico centro cirúrgico, sem espíritos, apenas com médicos céticos e bem treinados.
Já disse aqui que considero simpático o terraplanismo. Penso nele como uma espécie de seita exótica ao redor de menires celtas dançando nus na lua cheia. Tenho medo e considero criminosos os que negam as vacinas. E, acima de tudo, considero muito danosos todos os que vestem sua trapaça com o manto da ciência. Entreguem-se a Deus, entreguem-se a Stephen Hawking ou a qualquer pensador, jamais se entreguem a alguém que prometa “cura quântica”. Boa semana para todos, quânticos e não quânticos.
Considero muito danosos todos os que vestem sua trapaça com o manto da ciência
Advertência aos físicos profissionais: nada sei de física quântica. Suspeito que, apesar dessa declaração inicial, eles gostarão do texto.
O termo quântico entrou no vocabulário popular há alguns anos. Pode ser lido em anúncios de “programação neurolinguística quântica” ou associado à ação de algum coach. Em um debate, quando a pessoa encontra alguém racional e muito cético como eu, geralmente diz que eu não conheço a física quântica. Sim, é verdade e meu interlocutor, provavelmente, também não.
Não estão convencidos do vasto cipoal que viceja entre a física científica e o campo adjacente? O indiano Amit Goswami desenvolve o conceito de “misticismo quântico”. Ele começou como físico profissional, inclinou-se à parapsicologia e, depois, utilizou o conceito de “criatividade quântica” e analisou o “ativista quântico”. Começamos por um doutor em física, ou seja, alguém de formação sistemática na área. Imagine o que passa pelo porão.
Sempre fiz a distinção entre dois campos que respeito muito. O primeiro é o da ciência, que busca causas e efeitos verificáveis e debates com os pares. O segundo campo é o da crença pura, aquele impulso de relação com o sagrado como necessidade interior. Considero fundamental, para compreender a humanidade, saber que existe o remédio testado em laboratório e a oração testada no interior de cada ser.
Há um campo novo e pantanoso que, grosso modo, seria o da pseudociência. Física quântica não é pseudociência. Falo da apropriação do termo para tentar achar uma realidade fora do verificável, algo que estaria oculto ao sensível e externo à lógica clássica. Alguns que se apoderam de conceitos da física passam a falar de alinhamento de energias, vibração em sintonia com forças positivas e estabelecem princípios que seriam insofismáveis como “lei da atração”. Existem “curas quânticas” e “saltos quânticos” e por aí vai o laço de “supercordas”.
Reflitam, minha querida leitora e meu estimado leitor. O drama da pseudociência é que ela não tem a dignidade tradicional da fé e jamais terá o reconhecimento da ciência. A física quântica possui décadas de debates e de experimentos. São cientistas que, tendo dominado a física clássica de Newton e apreendido as reformulações de Einstein, passaram a pesquisar novos paradigmas. O “guru quântico” não sabe a fórmula simples para calcular a velocidade. Seria incapaz de ler um texto de Erwin Schrödinger (1887-1961) ou de Niels Bohr (1885-1962). Ainda assim, tem por meta aplicar princípios da física quântica a você e ao projeto de vida alheia. Como alguém que nunca entendeu mecânica clássica pode passar para a física quântica? Pior: como uma pessoa que desconhece tanto o mundo newtoniano como as propostas da física quântica pode desejar aplicar ao que quer que seja de forma minimamente correta?
O quântico virou metáfora de “fora do observável”, “distinto do ortodoxo”, algo que as pessoas comuns afeitas a coisas concretas não poderiam perceber. Em outras palavras, uma mistificação no sentido que estou utilizando aqui. Uma tentativa de se apropriar da solidez da ciência, do esforço de formação e do penoso método científico para elaborar uma salada indigesta de propostas religiosas e científicas, pegando o pior de cada um dos dois mundos.
Física quântica é proposta científica de grandes laboratórios e centros de pensamento. Religiões são expressões densas da humanidade há milênios. “Treinamento quântico para superar nós energéticos” constituem-se, unicamente, em picaretagem pura, desonestidade, caça-níqueis para crédulos. Quando algum guru quântico vier a você oferecendo qualquer produto com o termo, peça para ele explicar de forma clara e racional a visão sobre partículas e sobre ondas do ponto de vista da física e como isso pode ser demonstrado na “alma” de um indivíduo.
Crenças são fundamentais. Quando pessoas colocam crenças como base para tratamentos, passam a ser perigosas. A maioria dos seres humanos busca a quimioterapia em casos de um câncer e não deixa de utilizar um recurso religioso. A combinação é clássica e não me incomoda. Grandes gurus de fama internacional acabam fazendo terapias tradicionais em hospitais. Aqueles que passaram a vida incorporando espíritos ultrapoderosos que curam com imposição de mãos ou facas enferrujadas acabam em um asséptico centro cirúrgico, sem espíritos, apenas com médicos céticos e bem treinados.
Já disse aqui que considero simpático o terraplanismo. Penso nele como uma espécie de seita exótica ao redor de menires celtas dançando nus na lua cheia. Tenho medo e considero criminosos os que negam as vacinas. E, acima de tudo, considero muito danosos todos os que vestem sua trapaça com o manto da ciência. Entreguem-se a Deus, entreguem-se a Stephen Hawking ou a qualquer pensador, jamais se entreguem a alguém que prometa “cura quântica”. Boa semana para todos, quânticos e não quânticos.
Sobrevivência pessoal - ALBERT FISHLOW
ESTADÃO - 17/05
As políticas de Bolsonaro são ainda piores que as de Trump: ele até já negou o coronavírus
Todos os lugares do globo foram atingidos pelo coronavírus. Com o número de mortes chegando a mais de 300 mil e os casos positivos a mais de 4,5 milhões, as pessoas estão cada vez mais abatidas. De um lado, a ciência real toma consciência da complexidade do vírus e os seus efeitos abrangentes sobre jovens e adultos. E levará tempo para uma vacina eficaz ser testada e produzida de modo adequado.
Por outro lado, as pessoas começam a se cansar da falta de acesso ao seu trabalho e lazer. E há um impacto notável e possivelmente permanente sobre os pobres. Eles são os únicos que necessitam trabalhar e não podem viver separados de outras pessoas e não têm condições de educar seus filhos. Os ricos aproveitam e usam as reuniões pelo Zoom, têm acesso a todo tipo de entretenimento, da ópera ao cinema e à política pública.
Ao mesmo tempo, o desemprego disparou e a renda nacional dos países despencou. O comércio internacional encolheu e o G-20 não pode depender da OMC em busca de uma política e uma estratégia coerentes.
Inversamente, a política parece estar se dirigindo, como ocorreu durante a Grande Depressão, no sentido de um aumento de tarifas e cotas, dando menor atenção a um bem maior. Os países se tornam cada vez mais nacionalistas, populistas, autocráticos e sensíveis à torrente de notícias falsas na internet.
Estratégias alternativas vêm sendo adotadas por alguns países, uma vez que a pressão para uma abertura exige ação governamental. Em muitos casos a pressão surge depois de meses de um fechamento praticamente total e uma circulação muito limitada das pessoas. E quase todos eles continuaram a realizar testes generalizados como parte fundamental do processo de abertura.
No caso de outros países, como EUA e Brasil, a política pública tem sido diferente. Decisões para abrir o comércio em geral têm sido dominadas com vista às próximas eleições, a se realizarem em questão de meses, e a necessidade de ênfase na produção econômica, mais do que qualquer preocupação ética pelas vidas que vêm sendo perdidas.
A campanha de Trump para sua reeleição não ajuda diante da sua preferência pelos comícios e sua capacidade peculiar de adulterar toda e qualquer opinião contrária à dele. Ele descartou as afirmações do Dr. Anthony Fauci, que tem tido um papel crucial na promoção de uma visão mais racional do problema, e inversamente, declarou vitória imediata contra o coronavírus.
Agora, Estados e municípios americanos precisam controlar o vírus sem mais ajuda federal. E eles necessitam de pequenos subsídios para fazer frente a circunstâncias inesperadas. Hoje, operar enormes déficits requer compensações. Se são unidades da federação governadas por democratas, nada mais será feito. Se republicanos estiverem envolvidos nesses governos, a situação de alguma maneira será ajustada.
As políticas de Bolsonaro são ainda piores. Já no início ele negou a existência do coronavírus. O Brasil, infelizmente, continua a sofrer. Na última contagem, os números oficiais eram de 218 mil casos com 14,8 mil mortes. Esses dados não são confiáveis. No Reino Unido a proporção é duas vezes maior. Mas mostram que o Brasil vem se equiparando aos EUA em número de mortes, um dado espantoso.
Com a renúncia do ministro da Justiça, Sergio Moro, as críticas ao governo aumentaram. Provas parciais de vídeos de conversas sugerem que a imunidade dos filhos de Bolsonaro teve mais a ver com a saída do ministro do que outra coisa. E especialmente desagradável é o total desinteresse do presidente pelos números de mortos em meio a uma escassez total de equipamentos de saúde.
O que vemos nesses casos é uma maior preocupação com a sobrevivência pessoal do que um foco nas políticas nacional e econômica. Nos EUA, pelo menos, a próxima eleição demonstrará se uma estratégia de longo prazo mais racional vai emergir, concentrada num maior acesso à assistência médica, impostos mais altos para os mais ricos e um foco aumentado na educação. No Brasil, a derrota de candidatos de direita nas prefeituras para políticos ávidos para reconstruir um Brasil próspero e democrático a partir do centro servirá como primeiro sinal de uma recuperação e de um avanço mais rápido./TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
ECONOMISTA E CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR EMÉRITO NAS UNIVERSIDADES DE COLUMBIA E DA CALIFÓRNIA EM BERKELEY.
As políticas de Bolsonaro são ainda piores que as de Trump: ele até já negou o coronavírus
Todos os lugares do globo foram atingidos pelo coronavírus. Com o número de mortes chegando a mais de 300 mil e os casos positivos a mais de 4,5 milhões, as pessoas estão cada vez mais abatidas. De um lado, a ciência real toma consciência da complexidade do vírus e os seus efeitos abrangentes sobre jovens e adultos. E levará tempo para uma vacina eficaz ser testada e produzida de modo adequado.
Por outro lado, as pessoas começam a se cansar da falta de acesso ao seu trabalho e lazer. E há um impacto notável e possivelmente permanente sobre os pobres. Eles são os únicos que necessitam trabalhar e não podem viver separados de outras pessoas e não têm condições de educar seus filhos. Os ricos aproveitam e usam as reuniões pelo Zoom, têm acesso a todo tipo de entretenimento, da ópera ao cinema e à política pública.
Ao mesmo tempo, o desemprego disparou e a renda nacional dos países despencou. O comércio internacional encolheu e o G-20 não pode depender da OMC em busca de uma política e uma estratégia coerentes.
Inversamente, a política parece estar se dirigindo, como ocorreu durante a Grande Depressão, no sentido de um aumento de tarifas e cotas, dando menor atenção a um bem maior. Os países se tornam cada vez mais nacionalistas, populistas, autocráticos e sensíveis à torrente de notícias falsas na internet.
Estratégias alternativas vêm sendo adotadas por alguns países, uma vez que a pressão para uma abertura exige ação governamental. Em muitos casos a pressão surge depois de meses de um fechamento praticamente total e uma circulação muito limitada das pessoas. E quase todos eles continuaram a realizar testes generalizados como parte fundamental do processo de abertura.
No caso de outros países, como EUA e Brasil, a política pública tem sido diferente. Decisões para abrir o comércio em geral têm sido dominadas com vista às próximas eleições, a se realizarem em questão de meses, e a necessidade de ênfase na produção econômica, mais do que qualquer preocupação ética pelas vidas que vêm sendo perdidas.
A campanha de Trump para sua reeleição não ajuda diante da sua preferência pelos comícios e sua capacidade peculiar de adulterar toda e qualquer opinião contrária à dele. Ele descartou as afirmações do Dr. Anthony Fauci, que tem tido um papel crucial na promoção de uma visão mais racional do problema, e inversamente, declarou vitória imediata contra o coronavírus.
Agora, Estados e municípios americanos precisam controlar o vírus sem mais ajuda federal. E eles necessitam de pequenos subsídios para fazer frente a circunstâncias inesperadas. Hoje, operar enormes déficits requer compensações. Se são unidades da federação governadas por democratas, nada mais será feito. Se republicanos estiverem envolvidos nesses governos, a situação de alguma maneira será ajustada.
As políticas de Bolsonaro são ainda piores. Já no início ele negou a existência do coronavírus. O Brasil, infelizmente, continua a sofrer. Na última contagem, os números oficiais eram de 218 mil casos com 14,8 mil mortes. Esses dados não são confiáveis. No Reino Unido a proporção é duas vezes maior. Mas mostram que o Brasil vem se equiparando aos EUA em número de mortes, um dado espantoso.
Com a renúncia do ministro da Justiça, Sergio Moro, as críticas ao governo aumentaram. Provas parciais de vídeos de conversas sugerem que a imunidade dos filhos de Bolsonaro teve mais a ver com a saída do ministro do que outra coisa. E especialmente desagradável é o total desinteresse do presidente pelos números de mortos em meio a uma escassez total de equipamentos de saúde.
O que vemos nesses casos é uma maior preocupação com a sobrevivência pessoal do que um foco nas políticas nacional e econômica. Nos EUA, pelo menos, a próxima eleição demonstrará se uma estratégia de longo prazo mais racional vai emergir, concentrada num maior acesso à assistência médica, impostos mais altos para os mais ricos e um foco aumentado na educação. No Brasil, a derrota de candidatos de direita nas prefeituras para políticos ávidos para reconstruir um Brasil próspero e democrático a partir do centro servirá como primeiro sinal de uma recuperação e de um avanço mais rápido./TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
ECONOMISTA E CIENTISTA POLÍTICO, PROFESSOR EMÉRITO NAS UNIVERSIDADES DE COLUMBIA E DA CALIFÓRNIA EM BERKELEY.
O Brasil acaba de afundar 10 Titanics - CELSO MING
ESTADÃO 17/05
A situação já é acachapante e é pior ainda quando não se veem perspectivas de saída que possam provir de um governo errático
Quando era secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Josef Stalin disse: “Uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”.
Neste final de semana, o Brasil contabiliza mais de 15 mil mortes pelo coronavírus. Para quem acha que esse número não passa de estatística, cabe outra observação. O naufrágio mais trágico da História foi o do Titanic, em 1912. Nesse desastre morreram 1,5 mil. No Brasil, são agora 10 Titanics em apenas dois meses, baixa de dois ministros da Saúde e nenhuma estratégia nacional para enfrentamento da pandemia.
O presidente Bolsonaro avisou dois dias antes da demissão do ministro Nelson Teich que acabou a busca de consenso e que agora é guerra, com ele no comando. O combate à pandemia será o que ele quer, e não o que determinam os epidemiologistas.
Se para decretar o novo estado de guerra o presidente se aferrasse à necessidade de novos decretos para liberação da atividade econômica e suspensão do isolamento social, como ele gostaria, provavelmente continuaria não tendo sucesso porque esse campo é da competência de governadores e prefeitos. O cavalo de pau poderá ser dado de imediato, deve imaginar ele, com a adoção do protocolo do uso da cloroquina em qualquer fase da doença, providência que os dois ministros anteriores não aceitaram.
A cloroquina não é chá de flor de laranjeira, que pode ser tomado à vontade, sem efeitos colaterais. Pelo que concluem abundantes estudos realizados no mundo nos três últimos meses, o uso de cloroquina produz graves efeitos colaterais no funcionamento do coração. Ou seja, a adoção dessa droga como política pública pode ser entendida como eliminadora de vidas. O presidente Bolsonaro não pretende ser responsabilizado por isso, porque acaba de assinar medida provisória que isenta dirigentes que nesta crise possam ter tomado alguma decisão de política pública que e lhes trouxesse problemas futuros.
A questão de fundo tem a ver com a maneira de lidar com a pandemia. Todas as recomendações, desde a feita por técnicos até pela Organização Mundial da Saúde (OMS), são de que o contra-ataque à doença exige união nacional e muito diálogo. Mas a atitude que agora toma o presidente vai na outra direção. O critério técnico na adoção de protocolos e procedimentos passa a ser a vontade dele: “Fui eleito e quem manda aqui sou eu”.
Bolsonaro enxerga tudo como grande conspiração de âmbito nacional cujo objetivo é alijá-lo da Presidência. Nela, segundo ele, estão envolvidos líderes do Congresso, ministros do Supremo, governadores, a imprensa e, obviamente, a esquerda radical. Quando reage, como vem reagindo, contra a maneira como os técnicos e governadores vêm combatendo a doença, Bolsonaro quer, acima de tudo, como já reconheceu, “salvar o governo”. Mas o resultado aponta para outra direção. Quanto mais se enrola em confusões e intervenções estapafúrdias, mais se desqualifica como líder nacional. O desfecho desse processo é uma incógnita.
Economia e coronavírus
Enquanto isso, a economia se deteriora. Na última sexta-feira, o Banco Central divulgou o IBC-Br, indicador criado para antecipar o conhecimento do comportamento do PIB. E o resultado foi o que se esperava: queda da atividade econômica de 5,9% em março sobre fevereiro. Março não foi mais “brabo” do que foi abril. Nem março e abril foram mais “brabos” do que provavelmente serão maio e junho.
Dias antes, o País soube que as vendas do varejo recuaram 2,5% em março sobre fevereiro. E, também em março, a indústria de transformação despencou 9,1%. Os números de abril serão piores. As últimas estatísticas sobre desocupação são da Pnad, que acusa 1,1 milhão a mais de desempregados no primeiro trimestre do ano. A crise vai aumentar em muito essa magnitude, mesmo sabendo-se que ficaram precárias as condições de levantamento de dados, quando mais da metade da população permanece isolada em suas casas. Ou seja, as novas estatísticas podem embutir distorções.
A perda de emprego e de renda continuará por derrubar a demanda nos próximos meses, o que, por sua vez, deverá produzir ainda mais desemprego e quebra da atividade econômica. Impossível saber o tamanho do estrago na área fiscal nas três áreas de governo, não só pelo aumento de despesas, como pela quebra da arrecadação.
Uma situação tão ruim já é, por si só, acachapante. E é mais ainda quando não se veem perspectivas de saída que possam provir de um governo errático. O governo é um Titanic.
A situação já é acachapante e é pior ainda quando não se veem perspectivas de saída que possam provir de um governo errático
Quando era secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Josef Stalin disse: “Uma morte é uma tragédia; um milhão de mortes é uma estatística”.
Neste final de semana, o Brasil contabiliza mais de 15 mil mortes pelo coronavírus. Para quem acha que esse número não passa de estatística, cabe outra observação. O naufrágio mais trágico da História foi o do Titanic, em 1912. Nesse desastre morreram 1,5 mil. No Brasil, são agora 10 Titanics em apenas dois meses, baixa de dois ministros da Saúde e nenhuma estratégia nacional para enfrentamento da pandemia.
O presidente Bolsonaro avisou dois dias antes da demissão do ministro Nelson Teich que acabou a busca de consenso e que agora é guerra, com ele no comando. O combate à pandemia será o que ele quer, e não o que determinam os epidemiologistas.
Se para decretar o novo estado de guerra o presidente se aferrasse à necessidade de novos decretos para liberação da atividade econômica e suspensão do isolamento social, como ele gostaria, provavelmente continuaria não tendo sucesso porque esse campo é da competência de governadores e prefeitos. O cavalo de pau poderá ser dado de imediato, deve imaginar ele, com a adoção do protocolo do uso da cloroquina em qualquer fase da doença, providência que os dois ministros anteriores não aceitaram.
A cloroquina não é chá de flor de laranjeira, que pode ser tomado à vontade, sem efeitos colaterais. Pelo que concluem abundantes estudos realizados no mundo nos três últimos meses, o uso de cloroquina produz graves efeitos colaterais no funcionamento do coração. Ou seja, a adoção dessa droga como política pública pode ser entendida como eliminadora de vidas. O presidente Bolsonaro não pretende ser responsabilizado por isso, porque acaba de assinar medida provisória que isenta dirigentes que nesta crise possam ter tomado alguma decisão de política pública que e lhes trouxesse problemas futuros.
A questão de fundo tem a ver com a maneira de lidar com a pandemia. Todas as recomendações, desde a feita por técnicos até pela Organização Mundial da Saúde (OMS), são de que o contra-ataque à doença exige união nacional e muito diálogo. Mas a atitude que agora toma o presidente vai na outra direção. O critério técnico na adoção de protocolos e procedimentos passa a ser a vontade dele: “Fui eleito e quem manda aqui sou eu”.
Bolsonaro enxerga tudo como grande conspiração de âmbito nacional cujo objetivo é alijá-lo da Presidência. Nela, segundo ele, estão envolvidos líderes do Congresso, ministros do Supremo, governadores, a imprensa e, obviamente, a esquerda radical. Quando reage, como vem reagindo, contra a maneira como os técnicos e governadores vêm combatendo a doença, Bolsonaro quer, acima de tudo, como já reconheceu, “salvar o governo”. Mas o resultado aponta para outra direção. Quanto mais se enrola em confusões e intervenções estapafúrdias, mais se desqualifica como líder nacional. O desfecho desse processo é uma incógnita.
Economia e coronavírus
Enquanto isso, a economia se deteriora. Na última sexta-feira, o Banco Central divulgou o IBC-Br, indicador criado para antecipar o conhecimento do comportamento do PIB. E o resultado foi o que se esperava: queda da atividade econômica de 5,9% em março sobre fevereiro. Março não foi mais “brabo” do que foi abril. Nem março e abril foram mais “brabos” do que provavelmente serão maio e junho.
Dias antes, o País soube que as vendas do varejo recuaram 2,5% em março sobre fevereiro. E, também em março, a indústria de transformação despencou 9,1%. Os números de abril serão piores. As últimas estatísticas sobre desocupação são da Pnad, que acusa 1,1 milhão a mais de desempregados no primeiro trimestre do ano. A crise vai aumentar em muito essa magnitude, mesmo sabendo-se que ficaram precárias as condições de levantamento de dados, quando mais da metade da população permanece isolada em suas casas. Ou seja, as novas estatísticas podem embutir distorções.
A perda de emprego e de renda continuará por derrubar a demanda nos próximos meses, o que, por sua vez, deverá produzir ainda mais desemprego e quebra da atividade econômica. Impossível saber o tamanho do estrago na área fiscal nas três áreas de governo, não só pelo aumento de despesas, como pela quebra da arrecadação.
Uma situação tão ruim já é, por si só, acachapante. E é mais ainda quando não se veem perspectivas de saída que possam provir de um governo errático. O governo é um Titanic.
Se este mundo fosse meu... - LYA LUFT
ZERO HORA -RS - 17/05
Neste estado de entressono em que nem velamos nem dormimos, alinhavei há pouco o texto abaixo, que agora arrumo como quem arma um brinquedo muito amado.
Se este mundo fosse meu, eu reinventaria a vida. As pessoas seriam mais tranquilas e pacientes - não demais, ou seriam moles e sem graça.
Se este mundo fosse meu, eu mudaria os amores, que seriam menos controladores, menos inseguros, menos egoístas e jamais cruéis. Não perfeitos, pois seriam amores humanos com todos os nossos jeitos e carências.
Se este mundo fosse meu, não haveria terras sem gentes nem gentes sem terras mas todos teriam um lar para viver, florestas para passear, campos para correr ou plantar, ruas para se encontrar, árvores para admirar. Mas ninguém tentaria tirar a terra do outro, pois haveria espaço de sobra para cada um.
Se este mundo fosse meu, haveria mais música e cantos do que gritos e xingamentos, mais palavras ditas com afeto, ou com sabedoria, com alegria. Mas haveria também segredos e prantos e chamados e confidências, porque, mais uma vez, seríamos apenas humanos... mas sem hipocrisia nem perversidade.
Se este mundo fosse meu, não haveria mães sem filhos nem filhos sem mães... e pais também. Porque arrancarem alguém assim do nosso lado é um horror que ninguém merece.
Se este mundo fosse meu, eu deletaria a mentira, a hipocrisia, a pobreza, a miséria, a fome e o abandono. Mas deixaria umas mentirinhas inocentes para depois a gente rir junto, tipo "claroooo que eu ainda te amo!". E deixaria alguma necessidade, alguma ambição e desejos para que sempre houvesse vontade de melhorar.
Se este mundo fosse meu, eu inventaria viagens para conhecer todos os lugares do mundo como em mil tapetes mágicos que nunca se chocariam nos ares porque seríamos espertos demais.
Se este mundo fosse meu, eu desinventaria a solidão e a morte. Pois todos teríamos ao menos um amor e várias amizades, e em lugar de adoecer e morrer, quando velhinhos mas ainda lúcidos e firmes, iríamos nos desvanecendo devagar, cada vez mais leves e transparentes, sem agonia ou desespero - porque todos saberiam que essa separação seria só transitória.
E, se este mundo fosse meu, seríamos no fim como fiapos de nuvens e novelos de cores pairando, girando ou voando em pura beleza, reflexos de luz e formas móveis, pelo espaço afora ou perto dos que nos amam. Se este mundo fosse meu, seria em tudo maravilhoso e bom.
Neste estado de entressono em que nem velamos nem dormimos, alinhavei há pouco o texto abaixo, que agora arrumo como quem arma um brinquedo muito amado.
Se este mundo fosse meu, eu reinventaria a vida. As pessoas seriam mais tranquilas e pacientes - não demais, ou seriam moles e sem graça.
Se este mundo fosse meu, eu mudaria os amores, que seriam menos controladores, menos inseguros, menos egoístas e jamais cruéis. Não perfeitos, pois seriam amores humanos com todos os nossos jeitos e carências.
Se este mundo fosse meu, não haveria terras sem gentes nem gentes sem terras mas todos teriam um lar para viver, florestas para passear, campos para correr ou plantar, ruas para se encontrar, árvores para admirar. Mas ninguém tentaria tirar a terra do outro, pois haveria espaço de sobra para cada um.
Se este mundo fosse meu, haveria mais música e cantos do que gritos e xingamentos, mais palavras ditas com afeto, ou com sabedoria, com alegria. Mas haveria também segredos e prantos e chamados e confidências, porque, mais uma vez, seríamos apenas humanos... mas sem hipocrisia nem perversidade.
Se este mundo fosse meu, não haveria mães sem filhos nem filhos sem mães... e pais também. Porque arrancarem alguém assim do nosso lado é um horror que ninguém merece.
Se este mundo fosse meu, eu deletaria a mentira, a hipocrisia, a pobreza, a miséria, a fome e o abandono. Mas deixaria umas mentirinhas inocentes para depois a gente rir junto, tipo "claroooo que eu ainda te amo!". E deixaria alguma necessidade, alguma ambição e desejos para que sempre houvesse vontade de melhorar.
Se este mundo fosse meu, eu inventaria viagens para conhecer todos os lugares do mundo como em mil tapetes mágicos que nunca se chocariam nos ares porque seríamos espertos demais.
Se este mundo fosse meu, eu desinventaria a solidão e a morte. Pois todos teríamos ao menos um amor e várias amizades, e em lugar de adoecer e morrer, quando velhinhos mas ainda lúcidos e firmes, iríamos nos desvanecendo devagar, cada vez mais leves e transparentes, sem agonia ou desespero - porque todos saberiam que essa separação seria só transitória.
E, se este mundo fosse meu, seríamos no fim como fiapos de nuvens e novelos de cores pairando, girando ou voando em pura beleza, reflexos de luz e formas móveis, pelo espaço afora ou perto dos que nos amam. Se este mundo fosse meu, seria em tudo maravilhoso e bom.
Resolvam isso aí! - LUIZ CARLOS AZEDO
CORREIO BRAZILIENSE - 17/05
“A carreira militar é um canal de ascensão social, mas não é nem deve ser uma rampa de acesso direto ao poder político”
O aperto de mãos entre o falecido general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, e o recém-empossado presidente José Sarney, em 1985, na transição do regime militar à democracia, simbolizou o momento em que a tutela militar sobre a nação, iniciada pouco antes da Guerra do Paraguai(1864 a 1870), ainda no Império, havia acabado. Durante mais de um século, até então, militares da ativa atuaram politicamente e se pronunciaram sobre a vida institucional do país, muitas vezes de forma truculenta e brutal. O gesto pôs um ponto final na ditadura implantada após a destituição do presidente João Goulart, em 1964.
Na madrugada de 15 de março de 1985, com a nação perplexa diante da internação de Tancredo Neves no Hospital de Base de Brasília, o então ministro do Exército, com a Constituição na mão, convencera as lideranças políticas da época de que o vice-presidente eleito, José Sarney, deveria tomar posse. Havia controvérsias, alguns achavam que Ulysses Guimarães, o líder do MDB, deveria assumir interinamente e convocar novas eleições. O então chefe da Casa Civil, ministro Leitão de Abreu, ajudou a dirimir dúvidas entre os dois principais protagonistas da democratização: Sarney queria que Ulysses assumisse. Seria o caos. Para evitar a crise, Ulysses sempre defendeu o contrário. O general comunicou a decisão da maioria: “Boa noite, presidente!”, disse-lhe ao telefone.
Nos bastidores do finado governo Figueiredo, alguns generais pretendiam aproveitar a situação para manter o regime. Além do próprio presidente da República, o ministro do Exército, Walter Pires, e o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Octávio Medeiros. Durante a madrugada, Pires ameaçou movimentar as tropas para manter João Batista Figueiredo, mas Leitão de Abreu disse-lhe que já não era mais ministro. Sua demissão viria publicada no Diário Oficial. Leônidas Pires Gonçalves era o novo chefe militar. Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, não transmitiu o cargo. À Presidência, Sarney convocou uma Constituinte e passou o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, Fernando Collor de Mello, com a Constituição de 1988 em plena vigência. Presidiu o país em meio a turbulências, uma hiperinflação galopante e milhares de greves operárias e ocupações de terras, mas ajudou a construir um Estado democrático.
Certos momentos parecem congelar a História, como aquele do aperto de mãos do general e o político. No século passado, o principal foi Conferência de Yalta, na Crimeia, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, o segundo de três encontros entre Franklin Roosevelt (Estados Unidos), Winston Churchill (Reino Unido) e Josef Stálin (União Soviética), com o objetivo de repartir as zonas de influência entre as três potências vitoriosas. Entretanto, com o fim da União Soviética e o colapso dos regimes comunistas da Europa, o fio da história foi retomado, descongelando um filme iniciado com o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, no qual o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi morto por um nacionalista sérvio, pretexto para a Áustria-Hungria, da qual faziam parte a Bósnia e a Croácia, declarar guerra à Sérvia, um mês depois, dando início à I Guerra Mundial.
Ressentimentos
No Brasil dos anos 1980, os militares se retiraram do poder derrotados, mas em ordem. Foram mais bem-sucedidos na estratégia de abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel do que na condução da economia, devido ao fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), colapsado pela crise do petróleo. A anistia recíproca de 1979, consolidada pela nova Constituição, pôs uma pedra sobre o passado. Todas as tentativas de revisão que colocaram em risco esse pacto entre os militares e a antiga oposição foram rechaçadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Restaram a eterna dor dos familiares dos desaparecidos e a frustração e ressentimento daqueles que viam na caserna uma via de ascensão ao poder político, e não, exclusivamente, uma vocação militar, como acontece desde 1985. A vida militar, que exige estudo, disciplina e sacrifícios, é um canal de ascensão e mobilidade social, como certas profissões liberais e carreiras do serviço público, mas não é nem deve voltar a ser uma rampa de acesso direto ao poder político na democracia.
Somente durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que bajulou e foi bajulado pelos comandantes militares, voltou-se a discutir o papel das Forças Armadas, numa ótica de projeção nacional na globalização, além da atualização e modernização das forças armadas e suas doutrinas. O ressentimento em relação à marginalização imposta por governos anteriores, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, porém, foi estimulado. Entretanto, o governo de Dilma Rousseff foi um desastre em relação aos militares. Havia ojeriza recíproca, por causa do passado, que os militares dissimulavam, mas a “presidenta” fazia questão de compartilhar, até nos elevadores. Quando o governo colapsou, com sua nova matriz econômica, em meio à recessão e a Lava-Jato, os militares lhe deram o troco. “Resolvam isso aí!”, dizia o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um grande líder militar, aos políticos que se queixavam. Era a senha para o impeachment.
Enfraquecido por denúncias, o presidente Michel Temer devolveu aos militares o Ministério da Defesa, nomeando o general Joaquim Silva e Luna para o cargo. O resto da história estamos assistindo. O engajamento dos militares na eleição de Jair Bolsonaro, na onda do descontentamento popular com a corrupção e a recessão; a formação de um governo assumidamente reacionário nas ideias, ultraliberal na economia e conservador nos costumes; no Palácio do Planalto. Generais pragmáticos, alguns com o cacoete do mandonismo, outros com gosto pela política do baixo clero, são comandados por um ex-capitão nostálgico dos tempos da linha-dura de Costa e Silva e Emílio Médici e Presidente errático. Certo estava o “Coronel Y”, nos idos da Revolução de 1930, que mais tarde viria a ser o marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, ao defender uma Lei de Inatividade que obrigasse todo militar a se desligar definitivamente da carreira ao assumir funções civis e deixar a fila das promoções andar. Como a célebre fotografia dos Três Grandes e Yalta, a questão militar foi “descongelada”. No lugar da mão amiga, já estamos vendo o braço forte exibir seus músculos, como se fosse uma reprise cinematográfica.
“A carreira militar é um canal de ascensão social, mas não é nem deve ser uma rampa de acesso direto ao poder político”
O aperto de mãos entre o falecido general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército, e o recém-empossado presidente José Sarney, em 1985, na transição do regime militar à democracia, simbolizou o momento em que a tutela militar sobre a nação, iniciada pouco antes da Guerra do Paraguai(1864 a 1870), ainda no Império, havia acabado. Durante mais de um século, até então, militares da ativa atuaram politicamente e se pronunciaram sobre a vida institucional do país, muitas vezes de forma truculenta e brutal. O gesto pôs um ponto final na ditadura implantada após a destituição do presidente João Goulart, em 1964.
Na madrugada de 15 de março de 1985, com a nação perplexa diante da internação de Tancredo Neves no Hospital de Base de Brasília, o então ministro do Exército, com a Constituição na mão, convencera as lideranças políticas da época de que o vice-presidente eleito, José Sarney, deveria tomar posse. Havia controvérsias, alguns achavam que Ulysses Guimarães, o líder do MDB, deveria assumir interinamente e convocar novas eleições. O então chefe da Casa Civil, ministro Leitão de Abreu, ajudou a dirimir dúvidas entre os dois principais protagonistas da democratização: Sarney queria que Ulysses assumisse. Seria o caos. Para evitar a crise, Ulysses sempre defendeu o contrário. O general comunicou a decisão da maioria: “Boa noite, presidente!”, disse-lhe ao telefone.
Nos bastidores do finado governo Figueiredo, alguns generais pretendiam aproveitar a situação para manter o regime. Além do próprio presidente da República, o ministro do Exército, Walter Pires, e o chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Octávio Medeiros. Durante a madrugada, Pires ameaçou movimentar as tropas para manter João Batista Figueiredo, mas Leitão de Abreu disse-lhe que já não era mais ministro. Sua demissão viria publicada no Diário Oficial. Leônidas Pires Gonçalves era o novo chefe militar. Figueiredo saiu pelos fundos do Palácio do Planalto, não transmitiu o cargo. À Presidência, Sarney convocou uma Constituinte e passou o cargo ao sucessor eleito pelo voto direto, Fernando Collor de Mello, com a Constituição de 1988 em plena vigência. Presidiu o país em meio a turbulências, uma hiperinflação galopante e milhares de greves operárias e ocupações de terras, mas ajudou a construir um Estado democrático.
Certos momentos parecem congelar a História, como aquele do aperto de mãos do general e o político. No século passado, o principal foi Conferência de Yalta, na Crimeia, entre 4 e 11 de fevereiro de 1945, o segundo de três encontros entre Franklin Roosevelt (Estados Unidos), Winston Churchill (Reino Unido) e Josef Stálin (União Soviética), com o objetivo de repartir as zonas de influência entre as três potências vitoriosas. Entretanto, com o fim da União Soviética e o colapso dos regimes comunistas da Europa, o fio da história foi retomado, descongelando um filme iniciado com o atentado de Sarajevo, em 28 de junho de 1914, no qual o arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do Império Austro-Húngaro, foi morto por um nacionalista sérvio, pretexto para a Áustria-Hungria, da qual faziam parte a Bósnia e a Croácia, declarar guerra à Sérvia, um mês depois, dando início à I Guerra Mundial.
Ressentimentos
No Brasil dos anos 1980, os militares se retiraram do poder derrotados, mas em ordem. Foram mais bem-sucedidos na estratégia de abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel do que na condução da economia, devido ao fracasso do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), colapsado pela crise do petróleo. A anistia recíproca de 1979, consolidada pela nova Constituição, pôs uma pedra sobre o passado. Todas as tentativas de revisão que colocaram em risco esse pacto entre os militares e a antiga oposição foram rechaçadas, inclusive pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Restaram a eterna dor dos familiares dos desaparecidos e a frustração e ressentimento daqueles que viam na caserna uma via de ascensão ao poder político, e não, exclusivamente, uma vocação militar, como acontece desde 1985. A vida militar, que exige estudo, disciplina e sacrifícios, é um canal de ascensão e mobilidade social, como certas profissões liberais e carreiras do serviço público, mas não é nem deve voltar a ser uma rampa de acesso direto ao poder político na democracia.
Somente durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que bajulou e foi bajulado pelos comandantes militares, voltou-se a discutir o papel das Forças Armadas, numa ótica de projeção nacional na globalização, além da atualização e modernização das forças armadas e suas doutrinas. O ressentimento em relação à marginalização imposta por governos anteriores, principalmente o do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, porém, foi estimulado. Entretanto, o governo de Dilma Rousseff foi um desastre em relação aos militares. Havia ojeriza recíproca, por causa do passado, que os militares dissimulavam, mas a “presidenta” fazia questão de compartilhar, até nos elevadores. Quando o governo colapsou, com sua nova matriz econômica, em meio à recessão e a Lava-Jato, os militares lhe deram o troco. “Resolvam isso aí!”, dizia o comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, um grande líder militar, aos políticos que se queixavam. Era a senha para o impeachment.
Enfraquecido por denúncias, o presidente Michel Temer devolveu aos militares o Ministério da Defesa, nomeando o general Joaquim Silva e Luna para o cargo. O resto da história estamos assistindo. O engajamento dos militares na eleição de Jair Bolsonaro, na onda do descontentamento popular com a corrupção e a recessão; a formação de um governo assumidamente reacionário nas ideias, ultraliberal na economia e conservador nos costumes; no Palácio do Planalto. Generais pragmáticos, alguns com o cacoete do mandonismo, outros com gosto pela política do baixo clero, são comandados por um ex-capitão nostálgico dos tempos da linha-dura de Costa e Silva e Emílio Médici e Presidente errático. Certo estava o “Coronel Y”, nos idos da Revolução de 1930, que mais tarde viria a ser o marechal Castelo Branco, o primeiro presidente do regime militar, ao defender uma Lei de Inatividade que obrigasse todo militar a se desligar definitivamente da carreira ao assumir funções civis e deixar a fila das promoções andar. Como a célebre fotografia dos Três Grandes e Yalta, a questão militar foi “descongelada”. No lugar da mão amiga, já estamos vendo o braço forte exibir seus músculos, como se fosse uma reprise cinematográfica.
Na dúvida, não compartilhe - MARTHA MEDEIROS
O GLOBO - 17/05
As fake news podem ter seu alcance reduzido se nos habituarmos a checar tudo o que for suspeito
Mantenha-se honesto e resista ao impulso do compartilhamento irresponsável
A notícia vazou e percorreu todas as salas de aula: Fulana, da sétima série, estava grávida. Uma garota de 13 anos, em plenos anos 1970. Os pais já haviam sido chamados pela direção. Os comentários variavam de "pobre inocente, não sabia o que estava fazendo" até "começou cedo na safadeza". A garota sumiu uns dias, os ânimos serenaram e a verdade finalmente apareceu: colegas rivais haviam espalhado o boato. Uma brincadeirinha.
Boatos costumavam circular em locais restritos. Colégios, clubes, escritórios, no máximo pelas ruas do bairro: o prejuízo das vítimas era localizado. Vítimas? Exagero. Boato não feria nem matava, diziam. Eu discordava em silêncio. Boato feria e matava, sim. Era um golpe baixo que ficava sem punição e que não deixava cicatrizes visíveis - alguém enxerga a alma destroçada dos outros?
Nunca imaginei que esta perversidade se sofisticaria. Hoje o boato ganhou um nome em inglês, seu alcance é ilimitado e o estrago não é pequeno: viramos, todos, seres manipuláveis - quando não manipuladores. Ninguém escapa do abjeto universo das fake news.
Água quente mata o coronavírus. Cartório registra primeira criança com o nome Alquingel. Governo russo solta leões na rua para forçar as pessoas a ficarem em casa. Se a notícia parece plausível ou se é completamente insana, tanto faz. Em segundos estará infestando as redes e transformando a todos em idiotas: os que propagam a desinformação e os que nela acreditam.
Ingerir vinagre engana bafômetros. Facebook doará um real para cada curtida que você der neste site. Sim, sim, não custa tentar, vá que. Porém, passando adiante essas falsidades, vamos criando, com pretensa boa-fé, um mundo fictício.
Até que você lê um texto ridículo atribuído a Arnaldo Jabor, e repassa sem checar se é do Jabor mesmo. Ou assiste a um vídeo do Fabio Assunção dizendo coisas que não batem com o perfil dele, mas você ignora as evidências de que é apenas um clone e posta o vídeo no seu grupo de WhatsApp. O mundo fictício que você está ajudando a criar já não é mais fruto da sua boa-fé, mas da má-fé de quem está manipulando a sua inocência ou sua ignorância através de uma indústria cibernética de disseminação de mentiras.
As fake news podem ter seu alcance reduzido se nos habituarmos a checar tudo o que for suspeito. O material veio mal escrito? Não traz a data em que o pretenso fato aconteceu? É passível de montagem? Então, verifique sua autenticidade em sites como Boatos.org, Catraca Livre, E-Farsas, Aos Fatos e Agência Lupa. Uma busca rápida no Google funciona também. Mantenha-se honesto e resista ao impulso do compartilhamento irresponsável. Você é bacana demais para difundir asneiras ou, pior ainda, virar cabo eleitoral de criminosos.
As fake news podem ter seu alcance reduzido se nos habituarmos a checar tudo o que for suspeito
Mantenha-se honesto e resista ao impulso do compartilhamento irresponsável
A notícia vazou e percorreu todas as salas de aula: Fulana, da sétima série, estava grávida. Uma garota de 13 anos, em plenos anos 1970. Os pais já haviam sido chamados pela direção. Os comentários variavam de "pobre inocente, não sabia o que estava fazendo" até "começou cedo na safadeza". A garota sumiu uns dias, os ânimos serenaram e a verdade finalmente apareceu: colegas rivais haviam espalhado o boato. Uma brincadeirinha.
Boatos costumavam circular em locais restritos. Colégios, clubes, escritórios, no máximo pelas ruas do bairro: o prejuízo das vítimas era localizado. Vítimas? Exagero. Boato não feria nem matava, diziam. Eu discordava em silêncio. Boato feria e matava, sim. Era um golpe baixo que ficava sem punição e que não deixava cicatrizes visíveis - alguém enxerga a alma destroçada dos outros?
Nunca imaginei que esta perversidade se sofisticaria. Hoje o boato ganhou um nome em inglês, seu alcance é ilimitado e o estrago não é pequeno: viramos, todos, seres manipuláveis - quando não manipuladores. Ninguém escapa do abjeto universo das fake news.
Água quente mata o coronavírus. Cartório registra primeira criança com o nome Alquingel. Governo russo solta leões na rua para forçar as pessoas a ficarem em casa. Se a notícia parece plausível ou se é completamente insana, tanto faz. Em segundos estará infestando as redes e transformando a todos em idiotas: os que propagam a desinformação e os que nela acreditam.
Ingerir vinagre engana bafômetros. Facebook doará um real para cada curtida que você der neste site. Sim, sim, não custa tentar, vá que. Porém, passando adiante essas falsidades, vamos criando, com pretensa boa-fé, um mundo fictício.
Até que você lê um texto ridículo atribuído a Arnaldo Jabor, e repassa sem checar se é do Jabor mesmo. Ou assiste a um vídeo do Fabio Assunção dizendo coisas que não batem com o perfil dele, mas você ignora as evidências de que é apenas um clone e posta o vídeo no seu grupo de WhatsApp. O mundo fictício que você está ajudando a criar já não é mais fruto da sua boa-fé, mas da má-fé de quem está manipulando a sua inocência ou sua ignorância através de uma indústria cibernética de disseminação de mentiras.
As fake news podem ter seu alcance reduzido se nos habituarmos a checar tudo o que for suspeito. O material veio mal escrito? Não traz a data em que o pretenso fato aconteceu? É passível de montagem? Então, verifique sua autenticidade em sites como Boatos.org, Catraca Livre, E-Farsas, Aos Fatos e Agência Lupa. Uma busca rápida no Google funciona também. Mantenha-se honesto e resista ao impulso do compartilhamento irresponsável. Você é bacana demais para difundir asneiras ou, pior ainda, virar cabo eleitoral de criminosos.
A natureza fiscal da epidemia - SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 17/05
Não estamos vivendo uma depressão econômica que requeira ativismo fiscal
O grande economista inglês John Keynes —o maior economista da primeira metade do século 20 e criador da macroeconomia— nos ensinou que, em uma economia em meio a uma depressão, o setor público pode gastar, além da receita de que dispõe, que não há problemas fiscais. O déficit público estimula a economia, que cresce e sai da depressão.
O crescimento econômico gera receita de imposto, e a relação da dívida com o produto melhora pelos seguintes motivos: o aumento dos impostos contribui para reduzir o numerador, e a elevação do crescimento econômico amplia o denominador.
Adicionalmente, a redução do desemprego e a melhora das condições financeiras das empresas prolongam o crescimento: desalentados voltam a procurar emprego, e a redução das falências contribui para conservar o capital organizacional de empresas.
Em condições de depressão econômica e de desemprego aberto, esses três efeitos são fortes o suficiente para compensar o impacto primário do aumento do déficit sobre a solvência do setor público.
O resultado líquido é a redução da dívida pública como proporção do produto. No frigir dos ovos, o setor público ajudou a economia a sair do buraco e sua solvência melhorou.
Todos ganham.
Keynes se deparou com um dos raros casos em que há uma solução relativamente simples e correta para um problema muito complexo.
Apesar de o desemprego estar elevado no Brasil e de nós termos entrado na crise sanitária a partir de uma situação de desemprego aberto, o que estamos a enfrentar em nada lembra uma depressão econômica que requeira ativismo fiscal.
A situação é de natureza muito distinta. O setor público eleva (e elevará) muito o déficit público em 2020 para permitir que as pessoas fiquem em casa se protegendo da pandemia.
Houve a decisão de socializar, na forma de aumento do endividamento público, os custos privados do combate à pandemia.
Se a política pública for bem desenhada, ela não elevará o emprego. Liquidamente ela reduzirá o emprego. Sem as políticas públicas de sustentação da renda, as pessoas iriam para as ruas procurar alguma renda.
No atual episódio, o crescimento da dívida não será compensado pela elevação do crescimento econômico e do emprego. Talvez haja, a longo prazo, se as políticas forem bem desenhadas e conseguirem impedir a falência de empresas eficientes, algum ganho de crescimento pela manutenção do capital organizacional das empresas.
A atual política fiscal não é prioritariamente política macroeconômica de sustentação da renda e do emprego.
Trata-se de uma política social de minimização dos impactos desastrosos da supressão da atividade produtiva sobre a vida das pessoas —principalmente, ou assim deveria ser, das mais vulneráveis.
Nas sociedades orientais, em que há o entendimento de que seguro social é atribuição individual, e não do Estado, boa parcela do custo da supressão da atividade produtiva foi jogada diretamente para as famílias.
Na China, por exemplo, as famílias, ricas e pobres, diminuíram suas poupanças —não me pergunte como chinês pobre poupa porque não tenho a menor ideia— para custear parcela dos gastos da quarentena.
É necessário, portanto, termos muita parcimônia no desenho dos programas e no comprometimento do Orçamento. Não estamos fazendo política contracíclica keynesiana de sustentação
da demanda agregada.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
Não estamos vivendo uma depressão econômica que requeira ativismo fiscal
O grande economista inglês John Keynes —o maior economista da primeira metade do século 20 e criador da macroeconomia— nos ensinou que, em uma economia em meio a uma depressão, o setor público pode gastar, além da receita de que dispõe, que não há problemas fiscais. O déficit público estimula a economia, que cresce e sai da depressão.
O crescimento econômico gera receita de imposto, e a relação da dívida com o produto melhora pelos seguintes motivos: o aumento dos impostos contribui para reduzir o numerador, e a elevação do crescimento econômico amplia o denominador.
Adicionalmente, a redução do desemprego e a melhora das condições financeiras das empresas prolongam o crescimento: desalentados voltam a procurar emprego, e a redução das falências contribui para conservar o capital organizacional de empresas.
Em condições de depressão econômica e de desemprego aberto, esses três efeitos são fortes o suficiente para compensar o impacto primário do aumento do déficit sobre a solvência do setor público.
O resultado líquido é a redução da dívida pública como proporção do produto. No frigir dos ovos, o setor público ajudou a economia a sair do buraco e sua solvência melhorou.
Todos ganham.
Keynes se deparou com um dos raros casos em que há uma solução relativamente simples e correta para um problema muito complexo.
Apesar de o desemprego estar elevado no Brasil e de nós termos entrado na crise sanitária a partir de uma situação de desemprego aberto, o que estamos a enfrentar em nada lembra uma depressão econômica que requeira ativismo fiscal.
A situação é de natureza muito distinta. O setor público eleva (e elevará) muito o déficit público em 2020 para permitir que as pessoas fiquem em casa se protegendo da pandemia.
Houve a decisão de socializar, na forma de aumento do endividamento público, os custos privados do combate à pandemia.
Se a política pública for bem desenhada, ela não elevará o emprego. Liquidamente ela reduzirá o emprego. Sem as políticas públicas de sustentação da renda, as pessoas iriam para as ruas procurar alguma renda.
No atual episódio, o crescimento da dívida não será compensado pela elevação do crescimento econômico e do emprego. Talvez haja, a longo prazo, se as políticas forem bem desenhadas e conseguirem impedir a falência de empresas eficientes, algum ganho de crescimento pela manutenção do capital organizacional das empresas.
A atual política fiscal não é prioritariamente política macroeconômica de sustentação da renda e do emprego.
Trata-se de uma política social de minimização dos impactos desastrosos da supressão da atividade produtiva sobre a vida das pessoas —principalmente, ou assim deveria ser, das mais vulneráveis.
Nas sociedades orientais, em que há o entendimento de que seguro social é atribuição individual, e não do Estado, boa parcela do custo da supressão da atividade produtiva foi jogada diretamente para as famílias.
Na China, por exemplo, as famílias, ricas e pobres, diminuíram suas poupanças —não me pergunte como chinês pobre poupa porque não tenho a menor ideia— para custear parcela dos gastos da quarentena.
É necessário, portanto, termos muita parcimônia no desenho dos programas e no comprometimento do Orçamento. Não estamos fazendo política contracíclica keynesiana de sustentação
da demanda agregada.
Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.
O Brasil não será o mesmo depois da pandemia - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS
O Estado de S. Paulo - 17/05
O acordo com o “Centrão” garante que o projeto liberal de Guedes naufragou de vez
O coronavírus é o maior choque das últimas décadas. Espalhou-se rapidamente pelo mundo e é bastante letal. Como ainda não temos remédios definitivos ou vacina, a única recomendação da ciência é reduzir a circulação das pessoas por meio de uma quarentena, com diferentes graus de intensidade.
Esse recolhimento produz uma parada súbita na atividade econômica, uma vez que muitas empresas fecham e as pessoas ficam, em sua maior parte, nas suas casas. Essa situação resulta, muito rapidamente, em uma forte recessão na economia.
Como já vimos no caso de vários países, após três ou quatro meses o surto inicial do vírus começa a se reduzir e, cautelosamente, as regras de confinamento começam a ser abrandadas.
Neste momento, descobre-se que ficar fechado em casa por um longo período é uma experiência única, que será marcante na vida de todos. Ninguém será o mesmo quando tudo isso acabar. Vejo alterações em pelo menos três dimensões: enquanto cidadãos, trabalhadores e consumidores.
As pessoas, provavelmente, estarão mais próximas de uma vida mais simples e mais natural, que vai afetar, inclusive, o seu estilo de vida e o tipo de alimentos desejados, mais naturais, menos industrializados, orgânicos.
Na esfera do trabalho, muita gente terá aprendido a operar à distância e conhecido muitas técnicas e ferramentas novas, que inclusive tendem a elevar a produtividade. Entretanto, muitas pessoas perderão renda, ficarão desempregadas e dependerão por um tempo de mecanismos de transferência de renda. Para esse grupo, a demanda de alimentos se voltará para os mais básicos. Ainda na dimensão do trabalho, a pandemia vai levar muitas companhias a adotar técnicas mais automatizadas.
Finalmente, o consumidor, além da mudança de hábitos, também está alterando a forma de comprar, entrando firme na direção do e-commerce e dos novos canais de comercialização.
As empresas também serão diferentes. Na verdade, muitas nem sequer sobreviverão à recessão pela qual todos estão passando, inclusive o Brasil, mas as que conseguirem atravessar esse percurso também irão se alterar.
Pensemos um pouco no caso do comércio. O confinamento levou as famílias para a compra por internet em larga escala. Com isso, muitos consumidores aprenderam a usar novas ferramentas, inclusive comparação de preços, levando a um crescimento enorme neste canal de comercialização. As empresas já preparadas deram um salto nas vendas e se beneficiarão muito. Entretanto, muitas companhias nem sequer dispunham do canal. Como na situação pós-covid muitas pessoas ainda evitarão aglomerações, essas empresas sofrerão muito. Por outro lado, as empresas menores necessariamente terão de se encaixar nas plataformas de vendas das grandes. A organização do mercado mudará muito.
Todas essas mudanças ocorrerão no Brasil de forma muito intensa, até porque nossa economia vai cair muito mais do que pensávamos há algum tempo. Hoje, projetamos uma contração de 7,8% no PIB, algo sem precedentes, em meio a uma instabilidade enorme, capitaneada pelo radicalismo e falta de rumo do governo federal.
Sairemos da crise do coronavírus muito mais pobres. Nossa renda per capita ao cabo deste ano será algo como 15% menor em relação a 2014!
Ao mesmo tempo, o país será ainda mais desigual: o desemprego vai crescer muito e a tecnologia avançará na direção da automação. Finalmente, o pior ministro da educação de todos os tempos trouxe um enorme retrocesso na área.
O acordo com o chamado “Centrão” garante que o projeto liberal do ministro Paulo Guedes naufragou de vez, especialmente pela implosão de qualquer reorganização do regime fiscal. Da mesma forma, o Plano tipo Geisel (chamado Pró-Brasil) tem chance zero de dar minimamente certo.
A pergunta que fica: como recompor no futuro um arranjo que permita sonhar de novo com crescimento econômico?
Economista e sócio da MB Associados.
O acordo com o “Centrão” garante que o projeto liberal de Guedes naufragou de vez
O coronavírus é o maior choque das últimas décadas. Espalhou-se rapidamente pelo mundo e é bastante letal. Como ainda não temos remédios definitivos ou vacina, a única recomendação da ciência é reduzir a circulação das pessoas por meio de uma quarentena, com diferentes graus de intensidade.
Esse recolhimento produz uma parada súbita na atividade econômica, uma vez que muitas empresas fecham e as pessoas ficam, em sua maior parte, nas suas casas. Essa situação resulta, muito rapidamente, em uma forte recessão na economia.
Como já vimos no caso de vários países, após três ou quatro meses o surto inicial do vírus começa a se reduzir e, cautelosamente, as regras de confinamento começam a ser abrandadas.
Neste momento, descobre-se que ficar fechado em casa por um longo período é uma experiência única, que será marcante na vida de todos. Ninguém será o mesmo quando tudo isso acabar. Vejo alterações em pelo menos três dimensões: enquanto cidadãos, trabalhadores e consumidores.
As pessoas, provavelmente, estarão mais próximas de uma vida mais simples e mais natural, que vai afetar, inclusive, o seu estilo de vida e o tipo de alimentos desejados, mais naturais, menos industrializados, orgânicos.
Na esfera do trabalho, muita gente terá aprendido a operar à distância e conhecido muitas técnicas e ferramentas novas, que inclusive tendem a elevar a produtividade. Entretanto, muitas pessoas perderão renda, ficarão desempregadas e dependerão por um tempo de mecanismos de transferência de renda. Para esse grupo, a demanda de alimentos se voltará para os mais básicos. Ainda na dimensão do trabalho, a pandemia vai levar muitas companhias a adotar técnicas mais automatizadas.
Finalmente, o consumidor, além da mudança de hábitos, também está alterando a forma de comprar, entrando firme na direção do e-commerce e dos novos canais de comercialização.
As empresas também serão diferentes. Na verdade, muitas nem sequer sobreviverão à recessão pela qual todos estão passando, inclusive o Brasil, mas as que conseguirem atravessar esse percurso também irão se alterar.
Pensemos um pouco no caso do comércio. O confinamento levou as famílias para a compra por internet em larga escala. Com isso, muitos consumidores aprenderam a usar novas ferramentas, inclusive comparação de preços, levando a um crescimento enorme neste canal de comercialização. As empresas já preparadas deram um salto nas vendas e se beneficiarão muito. Entretanto, muitas companhias nem sequer dispunham do canal. Como na situação pós-covid muitas pessoas ainda evitarão aglomerações, essas empresas sofrerão muito. Por outro lado, as empresas menores necessariamente terão de se encaixar nas plataformas de vendas das grandes. A organização do mercado mudará muito.
Todas essas mudanças ocorrerão no Brasil de forma muito intensa, até porque nossa economia vai cair muito mais do que pensávamos há algum tempo. Hoje, projetamos uma contração de 7,8% no PIB, algo sem precedentes, em meio a uma instabilidade enorme, capitaneada pelo radicalismo e falta de rumo do governo federal.
Sairemos da crise do coronavírus muito mais pobres. Nossa renda per capita ao cabo deste ano será algo como 15% menor em relação a 2014!
Ao mesmo tempo, o país será ainda mais desigual: o desemprego vai crescer muito e a tecnologia avançará na direção da automação. Finalmente, o pior ministro da educação de todos os tempos trouxe um enorme retrocesso na área.
O acordo com o chamado “Centrão” garante que o projeto liberal do ministro Paulo Guedes naufragou de vez, especialmente pela implosão de qualquer reorganização do regime fiscal. Da mesma forma, o Plano tipo Geisel (chamado Pró-Brasil) tem chance zero de dar minimamente certo.
A pergunta que fica: como recompor no futuro um arranjo que permita sonhar de novo com crescimento econômico?
Economista e sócio da MB Associados.
Vada a bordo! - EDITORIAL O ESTADÃO
O Estado de S. Paulo - 17/05
Naquilo que já podemos chamar de “doutrina Bolsonaro”, o presidente da República não é responsável por nada
Naquilo que já podemos chamar de “doutrina Bolsonaro”, o presidente da República não é responsável por nada.
O Brasil passou dos 14 mil mortos pela pandemia de covid-19, mas o presidente Jair Bolsonaro considera que não tem nada a ver com isso. Sempre que questionado, transfere a responsabilidade para os governadores e prefeitos. “Não sou coveiro”, chegou a dizer. “Não adianta a imprensa querer colocar na minha conta essas questões que não cabem a mim”, afirmou, como se presidisse outro país. E, quando o número de mortos no Brasil superou os da China, arrematou: “E daí, quer que eu faça o quê?”.
O Brasil já atravessa uma crise econômica sem precedentes, em que grande parte dos trabalhadores do setor privado sofreu redução salarial e milhões simplesmente perderam ou perderão seus empregos, mas o presidente parece muito mais interessado em seus projetos para aliviar os pontos na carteira de motoristas imprudentes, para favorecer a compra de armamentos pela população e para acabar com a “ideologia de gênero” nas escolas.
Bolsonaro quer ser visto como um líder determinado a reavivar a economia, mas é incapaz de indicar um rumo para sua equipe econômica, cujo chefe, o outrora poderoso ministro Paulo Guedes, é desautorizado pelo presidente toda vez que seus interesses eleitoreiros são afetados. E, sempre que pode, Bolsonaro dá uma forcinha para as corporações de funcionários públicos, a quem serviu diligentemente em suas três décadas como deputado medíocre, enquanto os milhões de brasileiros que mergulharam na pobreza em razão da crise devem se espremer em filas intermináveis, correndo o risco de se contaminarem com o coronavírus, para obter uns caraminguás que lhes permitam pelo menos comer.
O presidente reclama que a imprensa o maltrata sistematicamente, deixando de falar das “coisas positivas” que seu governo faz, como cobrou o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos – que não esclareceu que “coisas positivas” seriam essas. Ou seja, a responsabilidade pela sensação generalizada de desgoverno é da imprensa, e não da escandalosa inépcia presidencial.
Bolsonaro reclama, ademais, que seu poder é tolhido pelo Judiciário, desafiado pelos governadores de Estado, menosprezado pelo Congresso e ignorado até mesmo pelos seus próprios ministros, mas, quando tem a oportunidade de dizer o que pretende fazer com esse poder que tão enfaticamente reivindica, Bolsonaro deixa claro que seus únicos objetivos são proteger a família, enrolada na Justiça, e evitar que o desastre social e econômico causado pela pandemia de covid-19 abrevie seu mandato.
A “doutrina Bolsonaro” é aquela em que o líder se ausenta sempre que chamado a tomar decisões críticas, não sobre os assuntos frívolos e delirantes que interessam somente à minoria radical dos celerados camisas pardas que o tratam como líder messiânico e infalível, e sim sobre temas que afetam profundamente a vida de todos os brasileiros, da atual e das futuras gerações. E se ausenta porque, como sabem cada vez mais eleitores, é completamente despreparado para ser presidente da República – algo que já era claro antes mesmo que o primeiro vírus da covid-19 atravessasse a fronteira nacional.
Bolsonaro lembra Francesco Schettino, capitão do navio de cruzeiro Costa Concordia, que naufragou na costa italiana em 2012, acidente que deixou 32 mortos. A embarcação bateu numa rocha graças a uma manobra desastrada de Schettino, que, para completar, abandonou o navio antes dos demais passageiros. Ficou célebre o diálogo entre Schettino e o chefe da Capitania dos Portos, que mandou o capitão voltar para o navio: “Vada a bordo!”, ordenou o chefe, acrescentando um italianíssimo palavrão.
Ao primeiro sacolejo do navio que foi eleito para capitanear, Bolsonaro, como Schettino, desceu à praia e de lá assiste ao naufrágio. Consta que, na já famosa reunião ministerial de 22 de abril, Bolsonaro teria dito que “a barca está afundando” e que era preciso ajuda dos seus ministros para “salvar o governo”. Se é assim, “vada a bordo”, presidente.
Naquilo que já podemos chamar de “doutrina Bolsonaro”, o presidente da República não é responsável por nada
Naquilo que já podemos chamar de “doutrina Bolsonaro”, o presidente da República não é responsável por nada.
O Brasil passou dos 14 mil mortos pela pandemia de covid-19, mas o presidente Jair Bolsonaro considera que não tem nada a ver com isso. Sempre que questionado, transfere a responsabilidade para os governadores e prefeitos. “Não sou coveiro”, chegou a dizer. “Não adianta a imprensa querer colocar na minha conta essas questões que não cabem a mim”, afirmou, como se presidisse outro país. E, quando o número de mortos no Brasil superou os da China, arrematou: “E daí, quer que eu faça o quê?”.
O Brasil já atravessa uma crise econômica sem precedentes, em que grande parte dos trabalhadores do setor privado sofreu redução salarial e milhões simplesmente perderam ou perderão seus empregos, mas o presidente parece muito mais interessado em seus projetos para aliviar os pontos na carteira de motoristas imprudentes, para favorecer a compra de armamentos pela população e para acabar com a “ideologia de gênero” nas escolas.
Bolsonaro quer ser visto como um líder determinado a reavivar a economia, mas é incapaz de indicar um rumo para sua equipe econômica, cujo chefe, o outrora poderoso ministro Paulo Guedes, é desautorizado pelo presidente toda vez que seus interesses eleitoreiros são afetados. E, sempre que pode, Bolsonaro dá uma forcinha para as corporações de funcionários públicos, a quem serviu diligentemente em suas três décadas como deputado medíocre, enquanto os milhões de brasileiros que mergulharam na pobreza em razão da crise devem se espremer em filas intermináveis, correndo o risco de se contaminarem com o coronavírus, para obter uns caraminguás que lhes permitam pelo menos comer.
O presidente reclama que a imprensa o maltrata sistematicamente, deixando de falar das “coisas positivas” que seu governo faz, como cobrou o ministro da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos – que não esclareceu que “coisas positivas” seriam essas. Ou seja, a responsabilidade pela sensação generalizada de desgoverno é da imprensa, e não da escandalosa inépcia presidencial.
Bolsonaro reclama, ademais, que seu poder é tolhido pelo Judiciário, desafiado pelos governadores de Estado, menosprezado pelo Congresso e ignorado até mesmo pelos seus próprios ministros, mas, quando tem a oportunidade de dizer o que pretende fazer com esse poder que tão enfaticamente reivindica, Bolsonaro deixa claro que seus únicos objetivos são proteger a família, enrolada na Justiça, e evitar que o desastre social e econômico causado pela pandemia de covid-19 abrevie seu mandato.
A “doutrina Bolsonaro” é aquela em que o líder se ausenta sempre que chamado a tomar decisões críticas, não sobre os assuntos frívolos e delirantes que interessam somente à minoria radical dos celerados camisas pardas que o tratam como líder messiânico e infalível, e sim sobre temas que afetam profundamente a vida de todos os brasileiros, da atual e das futuras gerações. E se ausenta porque, como sabem cada vez mais eleitores, é completamente despreparado para ser presidente da República – algo que já era claro antes mesmo que o primeiro vírus da covid-19 atravessasse a fronteira nacional.
Bolsonaro lembra Francesco Schettino, capitão do navio de cruzeiro Costa Concordia, que naufragou na costa italiana em 2012, acidente que deixou 32 mortos. A embarcação bateu numa rocha graças a uma manobra desastrada de Schettino, que, para completar, abandonou o navio antes dos demais passageiros. Ficou célebre o diálogo entre Schettino e o chefe da Capitania dos Portos, que mandou o capitão voltar para o navio: “Vada a bordo!”, ordenou o chefe, acrescentando um italianíssimo palavrão.
Ao primeiro sacolejo do navio que foi eleito para capitanear, Bolsonaro, como Schettino, desceu à praia e de lá assiste ao naufrágio. Consta que, na já famosa reunião ministerial de 22 de abril, Bolsonaro teria dito que “a barca está afundando” e que era preciso ajuda dos seus ministros para “salvar o governo”. Se é assim, “vada a bordo”, presidente.
Novilingua bolsonarista - MERVAL PEREIRA
O Globo - 17/05
À medida que a crise avança, conceitos democráticos vão sendo deformados, e palavras, distorcidas pelo governo federal, como na novilíngua de ‘1984’, obra de George Orwell
À medida que a crise avança, vamos assistindo à involução dos hábitos e costumes republicanos, tendo o presidente Jair Bolsonaro como protagonista e ministros como coadjuvantes de uma tragédia, onde os conceitos democráticos vão sendo deformados e palavras distorcidas, a exemplo da “novilingua” criada pelo escritor inglês George Orwell na novela 1984, na qual o autoritarismo muda o sentido das palavras para melhor acomoda-las a seus interesses.
Nesse mundo distópico, o ministério da Verdade cuidava de criar a realidade, controlar a verdade oficial. Palavras ganham sentido inverso do original, ou simplesmente desaparecem por desnecessidade, como “liberdade”. Um lema resume o sentido da “novilingua” orwelliana: “Guerra é paz, escravidão é liberdade, ignorância é força”. Hoje, no Brasil, quando Bolsonaro está muito irritado com sua segurança pessoal, ele promove o chefe do setor.
Orwell escreveu 1984 pensando nos regimes comunistas, mas o autoritarismo de direita tem os mesmos vícios de distorcer os fatos a seu favor. A mais recente demonstração de como é possível torcer o sentido das palavras para tentar mudar a realidade é a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que nunca proferiu o nome da “Polícia Federal” na já famosa reunião ministerial em que foi acusado pelo ex-ministro Sergio Moro de tê-lo ameaçado de demissão.
Depois de idas e vindas, com versões que contradiziam o presidente, até mesmo do ministro Luiz Eduardo Ramos, a transcrição oficial do áudio feita pela Advocacia-Geral da União (AGU) revela que, sim, o presidente se referiu à Polícia Federal. Confrontado com a realidade, o que faz Bolsonaro? Explica na “novilingua”: “Está a palavra PF. Duas letras. (...) Tem a ver com Polícia Federal, mas é a reclamação PF no tocante ao serviço de inteligência”.
Faz lembrar o conto de Machado de Assis “A Sereníssima República” , no qual relata uma disputa entre os candidatos Nebraska e Caneca, onde o vencedor seria sorteado em um saco contendo duas bolas com os nomes dos concorrentes. A bola sorteada tinha o nome de Nebraska, mas sem a letra final “a”. Caneca, o derrotado, impugnou o resultado, e pediu que um filólogo analisasse a situação.
O professor fez malabarismos de pseuda filologia até que transformou o nome “Nebraska” em “Caneca”, revelando o verdadeiro vencedor do sorteio. E ainda esnobou os ouvintes: “ (...) é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas”.
Também o ministro Braga Neto, Chefe do Gabinete Civil, utilizou-se da “novilingua” para explicar o inexplicável: “O presidente respeita a ciência, mas ele tem visto radicalismos”. Esse seria o caso de um “duplipensar”, palavra que Orwell criou em 1984 para definir a possibilidade de um indivíduo ter pensamentos contraditórias entre si.
O ministro da Economia Paulo Guedes, que aderiu ao histrionismo bolsonariano, explicou em “novilingua” o direito que ele acha que o presidente Bolsonaro tem de se infectar: “É um direito dele ser infectado, porque ele não está infectando ninguém.”
O vice-presidente General Hamilton Mourão, em recente artigo, criticou a imprensa: "Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação." Outros ministros, como Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, vêm batendo na mesma tecla, pedindo noticias boas para contrabalançar as más, e querendo que as 15 mil mortes de brasileiros sejam noticiadas como meros números proporcionais ao tamanho de habitantes dos países, como se transformar vidas humanas em meras estatísticas reduzisse o estrago. Mesmo assim, São Paulo tem mais mortes que a China, e Recife mais mortos que a Argentina.
Na verdade, repetem a famosa situação do ditador Costa e Silva que, ao queixar-se de um dono de jornal de críticas demasiadas, ouviu a explicação: “São criticas construtivas”. E respondeu: “Eu gosto mesmo é de elogios construtivos”.
Não conhecem a máxima: notícia é tudo aquilo que o governo não quer ver publicado. O resto é propaganda.
À medida que a crise avança, conceitos democráticos vão sendo deformados, e palavras, distorcidas pelo governo federal, como na novilíngua de ‘1984’, obra de George Orwell
À medida que a crise avança, vamos assistindo à involução dos hábitos e costumes republicanos, tendo o presidente Jair Bolsonaro como protagonista e ministros como coadjuvantes de uma tragédia, onde os conceitos democráticos vão sendo deformados e palavras distorcidas, a exemplo da “novilingua” criada pelo escritor inglês George Orwell na novela 1984, na qual o autoritarismo muda o sentido das palavras para melhor acomoda-las a seus interesses.
Nesse mundo distópico, o ministério da Verdade cuidava de criar a realidade, controlar a verdade oficial. Palavras ganham sentido inverso do original, ou simplesmente desaparecem por desnecessidade, como “liberdade”. Um lema resume o sentido da “novilingua” orwelliana: “Guerra é paz, escravidão é liberdade, ignorância é força”. Hoje, no Brasil, quando Bolsonaro está muito irritado com sua segurança pessoal, ele promove o chefe do setor.
Orwell escreveu 1984 pensando nos regimes comunistas, mas o autoritarismo de direita tem os mesmos vícios de distorcer os fatos a seu favor. A mais recente demonstração de como é possível torcer o sentido das palavras para tentar mudar a realidade é a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que nunca proferiu o nome da “Polícia Federal” na já famosa reunião ministerial em que foi acusado pelo ex-ministro Sergio Moro de tê-lo ameaçado de demissão.
Depois de idas e vindas, com versões que contradiziam o presidente, até mesmo do ministro Luiz Eduardo Ramos, a transcrição oficial do áudio feita pela Advocacia-Geral da União (AGU) revela que, sim, o presidente se referiu à Polícia Federal. Confrontado com a realidade, o que faz Bolsonaro? Explica na “novilingua”: “Está a palavra PF. Duas letras. (...) Tem a ver com Polícia Federal, mas é a reclamação PF no tocante ao serviço de inteligência”.
Faz lembrar o conto de Machado de Assis “A Sereníssima República” , no qual relata uma disputa entre os candidatos Nebraska e Caneca, onde o vencedor seria sorteado em um saco contendo duas bolas com os nomes dos concorrentes. A bola sorteada tinha o nome de Nebraska, mas sem a letra final “a”. Caneca, o derrotado, impugnou o resultado, e pediu que um filólogo analisasse a situação.
O professor fez malabarismos de pseuda filologia até que transformou o nome “Nebraska” em “Caneca”, revelando o verdadeiro vencedor do sorteio. E ainda esnobou os ouvintes: “ (...) é a coisa mais demonstrável do mundo. Mas não demonstrarei isso. É óbvio. Há consequências lógicas e sintáticas, dedutivas e indutivas”.
Também o ministro Braga Neto, Chefe do Gabinete Civil, utilizou-se da “novilingua” para explicar o inexplicável: “O presidente respeita a ciência, mas ele tem visto radicalismos”. Esse seria o caso de um “duplipensar”, palavra que Orwell criou em 1984 para definir a possibilidade de um indivíduo ter pensamentos contraditórias entre si.
O ministro da Economia Paulo Guedes, que aderiu ao histrionismo bolsonariano, explicou em “novilingua” o direito que ele acha que o presidente Bolsonaro tem de se infectar: “É um direito dele ser infectado, porque ele não está infectando ninguém.”
O vice-presidente General Hamilton Mourão, em recente artigo, criticou a imprensa: "Opiniões distintas, contrárias e favoráveis ao governo, tanto sobre o isolamento como a retomada da economia, enfim, sobre o enfrentamento da crise, devem ter o mesmo espaço nos principais veículos de comunicação." Outros ministros, como Braga Neto e Luiz Eduardo Ramos, vêm batendo na mesma tecla, pedindo noticias boas para contrabalançar as más, e querendo que as 15 mil mortes de brasileiros sejam noticiadas como meros números proporcionais ao tamanho de habitantes dos países, como se transformar vidas humanas em meras estatísticas reduzisse o estrago. Mesmo assim, São Paulo tem mais mortes que a China, e Recife mais mortos que a Argentina.
Na verdade, repetem a famosa situação do ditador Costa e Silva que, ao queixar-se de um dono de jornal de críticas demasiadas, ouviu a explicação: “São criticas construtivas”. E respondeu: “Eu gosto mesmo é de elogios construtivos”.
Não conhecem a máxima: notícia é tudo aquilo que o governo não quer ver publicado. O resto é propaganda.
Política externa bolsonarista - CELSO LAFER
O Estado de S.Paulo - 17/05
Ações da diplomacia de confronto são desvio incompatível com os ditames constitucionais
Em nosso país a competência constitucional para a condução da política externa é da alçada do presidente da República. Na experiência histórica do Brasil a prática confirma esse tradicional preceito constitucional.
Foi pela ação, e por vezes também pela omissão, que em nosso país os presidentes exerceram a função de conduzir a política externa, definindo, à luz do cenário internacional, os caminhos da inserção do Brasil no mundo e no nosso contexto regional. Nessa condução seguiram a estratégia e o temperamento de sua personalidade.
O mesmo se pode dizer da política externa do governo Bolsonaro, que se amolda à estratégia do temperamento do presidente e do seu modo de ser e de atuar, que foi desde sempre o do confronto.
O confronto marcou a sua curta vida de militar da ativa. E caracterizou, com pouca ressonância, a sua longa carreira parlamentar. A lógica do confronto foi também a marca identificadora de sua campanha presidencial de 2018.
Na sequência, vem governando pelo ímpeto do confronto, nutrido por sua vocação para a “ascensão aos extremos”, destituída, porém, da sobriedade recomendada por Clausewitz nessa matéria.
São incontáveis os eventos da manifesta inconformidade do seu temperamento com tudo o que na vida democrática legitimamente cerceia o poder monocrático da sua caneta de chefe de Estado.
O presidente alimenta cotidianamente a sua lógica de confronto pelo intenso uso das redes sociais, abastecidas pelo “gabinete do ódio”. O ódio é um sentimento que, como esclarece Ortega nas Meditações do Quixote, desliga e isola, fabricando a falta de conexão com o pluralismo da realidade nacional e internacional. O ódio veiculado pelo amplo uso das redes sociais instrumentaliza suas mensagens pelas fake news das falsificações mentirosas.
A política externa do governo Bolsonaro é igualmente a expressão e o desdobramento, no plano externo, da sua lógica de confronto. É uma diplomacia de combate ao que identifica, também no plano externo, como “conspirações” e “inimigos” de sua autorreferida visão de mundo. Em função dessa linha de orientação, rejeita de maneira inédita o significativo acervo de realizações da política externa do nosso país. Denega sem hesitação a seriedade do decoro que sempre a assinalou, e que o Conselho de Estado do Império sintetizou nos seguintes termos: “Diplomacia: inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”, traços que granjearam o respeito e a credibilidade internacional do Itamaraty, mesmo em momentos difíceis, interna e externamente.
Os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, estipulados no artigo 4.º da Constituição, consolidaram a vis directiva da tradição da diplomacia brasileira. As ações da política externa bolsonarista, todavia, são um desvio incompatível com a letra e o espírito dos ditames constitucionais.
A Constituição prescreve a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, o que se faz por meio do relacionamento com outros Estados e pela participação em organizações internacionais. É essa a fundamentação jurídica da diplomacia de cooperação, que nos seus matizes é rejeitada, com graves consequências para o País, pela diplomacia de combate e de confronto do governo Bolsonaro.
O bolsonarismo da política externa apregoado, com patético passionalismo desconectado dos dados da realidade internacional, pelo chanceler Ernesto Araújo aniquila nossa credibilidade internacional. Induz a perda de mercados e de investimentos. Antagoniza gratuitamente parceiros relevantes como a China, a França, a Alemanha e a Argentina, indispensáveis para a própria agenda econômica do governo. Isola-nos na nossa região, até no Mercosul, e, por via de consequência, corrói a capacidade brasileira de nela atuar construtivamente para lidar com os desafios do presente.
Alia-se ao agressivo unilateralismo dos EUA de Trump, intensificando o desmoronamento da nossa capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, especialmente no âmbito das instâncias multilaterais, como a ONU, a OMC e, inexplicavelmente, em função das urgências da pandemia de covid-19, com a Organização Mundial da Saúde. Liquida o nosso ativo de liderança na área do desenvolvimento sustentável, construído a partir da Rio-92, em consonância com o disposto na Constituição sobre meio ambiente. Faz tábula rasa do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, que deve ser coerentemente harmonizado com o estipulado no plano interno pela Constituição.
Em síntese, a inepta e desastrada política externa de combate e de confronto do bolsonarismo não permite traduzir necessidades internas em possibilidades externas, que é a tarefa da diplomacia como política pública. É um fardo imobilizador da capacidade do Brasil de encontrar o seu apropriado lugar num mundo tenso e turbulento que tende a se complicar no amanhã do pós-covid-19.
Professor emérito da Faculdade de Direito da USP; foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Ações da diplomacia de confronto são desvio incompatível com os ditames constitucionais
Em nosso país a competência constitucional para a condução da política externa é da alçada do presidente da República. Na experiência histórica do Brasil a prática confirma esse tradicional preceito constitucional.
Foi pela ação, e por vezes também pela omissão, que em nosso país os presidentes exerceram a função de conduzir a política externa, definindo, à luz do cenário internacional, os caminhos da inserção do Brasil no mundo e no nosso contexto regional. Nessa condução seguiram a estratégia e o temperamento de sua personalidade.
O mesmo se pode dizer da política externa do governo Bolsonaro, que se amolda à estratégia do temperamento do presidente e do seu modo de ser e de atuar, que foi desde sempre o do confronto.
O confronto marcou a sua curta vida de militar da ativa. E caracterizou, com pouca ressonância, a sua longa carreira parlamentar. A lógica do confronto foi também a marca identificadora de sua campanha presidencial de 2018.
Na sequência, vem governando pelo ímpeto do confronto, nutrido por sua vocação para a “ascensão aos extremos”, destituída, porém, da sobriedade recomendada por Clausewitz nessa matéria.
São incontáveis os eventos da manifesta inconformidade do seu temperamento com tudo o que na vida democrática legitimamente cerceia o poder monocrático da sua caneta de chefe de Estado.
O presidente alimenta cotidianamente a sua lógica de confronto pelo intenso uso das redes sociais, abastecidas pelo “gabinete do ódio”. O ódio é um sentimento que, como esclarece Ortega nas Meditações do Quixote, desliga e isola, fabricando a falta de conexão com o pluralismo da realidade nacional e internacional. O ódio veiculado pelo amplo uso das redes sociais instrumentaliza suas mensagens pelas fake news das falsificações mentirosas.
A política externa do governo Bolsonaro é igualmente a expressão e o desdobramento, no plano externo, da sua lógica de confronto. É uma diplomacia de combate ao que identifica, também no plano externo, como “conspirações” e “inimigos” de sua autorreferida visão de mundo. Em função dessa linha de orientação, rejeita de maneira inédita o significativo acervo de realizações da política externa do nosso país. Denega sem hesitação a seriedade do decoro que sempre a assinalou, e que o Conselho de Estado do Império sintetizou nos seguintes termos: “Diplomacia: inteligente, sem vaidade; franca, sem indiscrição; enérgica, sem arrogância”, traços que granjearam o respeito e a credibilidade internacional do Itamaraty, mesmo em momentos difíceis, interna e externamente.
Os princípios que regem as relações internacionais do Brasil, estipulados no artigo 4.º da Constituição, consolidaram a vis directiva da tradição da diplomacia brasileira. As ações da política externa bolsonarista, todavia, são um desvio incompatível com a letra e o espírito dos ditames constitucionais.
A Constituição prescreve a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, o que se faz por meio do relacionamento com outros Estados e pela participação em organizações internacionais. É essa a fundamentação jurídica da diplomacia de cooperação, que nos seus matizes é rejeitada, com graves consequências para o País, pela diplomacia de combate e de confronto do governo Bolsonaro.
O bolsonarismo da política externa apregoado, com patético passionalismo desconectado dos dados da realidade internacional, pelo chanceler Ernesto Araújo aniquila nossa credibilidade internacional. Induz a perda de mercados e de investimentos. Antagoniza gratuitamente parceiros relevantes como a China, a França, a Alemanha e a Argentina, indispensáveis para a própria agenda econômica do governo. Isola-nos na nossa região, até no Mercosul, e, por via de consequência, corrói a capacidade brasileira de nela atuar construtivamente para lidar com os desafios do presente.
Alia-se ao agressivo unilateralismo dos EUA de Trump, intensificando o desmoronamento da nossa capacidade de dialogar e estender pontes com diferentes países, especialmente no âmbito das instâncias multilaterais, como a ONU, a OMC e, inexplicavelmente, em função das urgências da pandemia de covid-19, com a Organização Mundial da Saúde. Liquida o nosso ativo de liderança na área do desenvolvimento sustentável, construído a partir da Rio-92, em consonância com o disposto na Constituição sobre meio ambiente. Faz tábula rasa do princípio da prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais, que deve ser coerentemente harmonizado com o estipulado no plano interno pela Constituição.
Em síntese, a inepta e desastrada política externa de combate e de confronto do bolsonarismo não permite traduzir necessidades internas em possibilidades externas, que é a tarefa da diplomacia como política pública. É um fardo imobilizador da capacidade do Brasil de encontrar o seu apropriado lugar num mundo tenso e turbulento que tende a se complicar no amanhã do pós-covid-19.
Professor emérito da Faculdade de Direito da USP; foi ministro das Relações Exteriores (1992 e 2001-2002)
Brasil, duas epidemias e um Bolsonaro - VINICIUS TORRES FREIRE
Folha de S. Paulo - 17/05
Em 6 estados ocorreram 83% das mortes, mas desgoverno pode espalhar a epidemia
A epidemia do coronavírus tem diferenças continentais no Brasil. Seis estados contam 83% das mortes brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Pará. Nesse país da Covid feroz, há 130 mortes para cada milhão de habitantes.
No conjunto dos outros estados, 22 mortes por milhão.
O motivo das diferenças dá o que pensar. O efeito dessa discrepância, também. Embora a ruína econômica seja disseminada, a percepção da doença pode ser diferente.
Tal disparidade pode influenciar a opinião que brasileiros de diferentes estados têm das atitudes de Jair Bolsonaro.
Em algumas pesquisas de opinião, cerca de metade dos entrevistados aprova o desgoverno federal da doença. Mais de 115 milhões de pessoas moram naquele Brasil bem menos devastado pela pandemia, em termos de mortes. No país da Covid feroz, vivem os outros 95 milhões.
A pandemia quase não existe no Centro-Oeste e no Sul, embora não seja difícil promover uma desgraça.
Mas o morticínio não é bem questão regional, noutras partes do país.
A Bahia, por exemplo, tem 19 mortes por milhão de habitantes. Pernambuco, 162 por milhão. O Ceará, 145. No Sudeste, Minas Gerais tem 7 por milhão. O Rio de Janeiro, 141 por milhão. São Paulo, 98. O estado com a maior taxa de morte é o Amazonas, com 321 por milhão.
O fato de alguns estados serem centro de conexões de viagens de negócios e turismo parece ter algum efeito na taxa de morte. Mas por que o Rio seria tão diferente de São Paulo? A Bahia, de Pernambuco?
Diferenças de renda, desigualdade ou indicadores sociais em geral não parecem explicar nada.
O morticínio está concentrado em grandes regiões metropolitanas. A administração da epidemia nessas cidades e, talvez, a cultura de contatos sociais e o tipo de vida urbana podem ser uma explicação
No entanto, “cultura”, sem mais, é um saco onde cabem muitos gatos pardos.
Além de concentrarem o morticínio, cinco daqueles seis estados da Covid feroz têm também as maiores taxas de crescimento da doença na última semana, afora São Paulo, onde há uma desaceleração notável.
No conjunto do Brasil, até fins de abril a taxa de crescimento do número de mortes perdia força, desacelerava. Durante quase duas semanas, essa despiora parou, na média nacional. A explosão da doença em alguns estados do Norte e do Nordeste e a alta velocidade da doença no Rio explicam a estagnação fúnebre.
Enquanto boa parte do mundo desacelera, desde o início de maio o Brasil vai se tornando uma aberração.
Desgovernado ou sob o governo da morte, do golpeamento institucional, da perversidade lunática e da cafajestada facinorosa, há risco de o país piorar. O distanciamento funciona, mas tem sido avacalhado em geral e sabotado por Bolsonaro e colaboracionistas.
Quanto mais avacalhadas as medidas de contenção, mais o morticínio vai durar. Quanto mais durar, maior deverá ser a propensão individual a abandonar o distanciamento, por desespero material ou psicológico. Quanto maior essa bola de neve, mais duradoura a destruição da economia. O desmanche do distanciamento não vai reativar a produção nem o desejo de consumir.
A epidemia pode então transbordar lá onde já ferve baixo. Pode se espalhar também para estados bem menos afetados pelo coronavírus. Mas existe ainda alguma chance de evitar essa aberração brasileira que seria a longa duração da primeira fase da pandemia: chance de achatar a curva, de segurar o vírus.
No entanto,Jair Bolsonaro está solto.
Em 6 estados ocorreram 83% das mortes, mas desgoverno pode espalhar a epidemia
A epidemia do coronavírus tem diferenças continentais no Brasil. Seis estados contam 83% das mortes brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Pará. Nesse país da Covid feroz, há 130 mortes para cada milhão de habitantes.
No conjunto dos outros estados, 22 mortes por milhão.
O motivo das diferenças dá o que pensar. O efeito dessa discrepância, também. Embora a ruína econômica seja disseminada, a percepção da doença pode ser diferente.
Tal disparidade pode influenciar a opinião que brasileiros de diferentes estados têm das atitudes de Jair Bolsonaro.
Em algumas pesquisas de opinião, cerca de metade dos entrevistados aprova o desgoverno federal da doença. Mais de 115 milhões de pessoas moram naquele Brasil bem menos devastado pela pandemia, em termos de mortes. No país da Covid feroz, vivem os outros 95 milhões.
A pandemia quase não existe no Centro-Oeste e no Sul, embora não seja difícil promover uma desgraça.
Mas o morticínio não é bem questão regional, noutras partes do país.
A Bahia, por exemplo, tem 19 mortes por milhão de habitantes. Pernambuco, 162 por milhão. O Ceará, 145. No Sudeste, Minas Gerais tem 7 por milhão. O Rio de Janeiro, 141 por milhão. São Paulo, 98. O estado com a maior taxa de morte é o Amazonas, com 321 por milhão.
O fato de alguns estados serem centro de conexões de viagens de negócios e turismo parece ter algum efeito na taxa de morte. Mas por que o Rio seria tão diferente de São Paulo? A Bahia, de Pernambuco?
Diferenças de renda, desigualdade ou indicadores sociais em geral não parecem explicar nada.
O morticínio está concentrado em grandes regiões metropolitanas. A administração da epidemia nessas cidades e, talvez, a cultura de contatos sociais e o tipo de vida urbana podem ser uma explicação
No entanto, “cultura”, sem mais, é um saco onde cabem muitos gatos pardos.
Além de concentrarem o morticínio, cinco daqueles seis estados da Covid feroz têm também as maiores taxas de crescimento da doença na última semana, afora São Paulo, onde há uma desaceleração notável.
No conjunto do Brasil, até fins de abril a taxa de crescimento do número de mortes perdia força, desacelerava. Durante quase duas semanas, essa despiora parou, na média nacional. A explosão da doença em alguns estados do Norte e do Nordeste e a alta velocidade da doença no Rio explicam a estagnação fúnebre.
Enquanto boa parte do mundo desacelera, desde o início de maio o Brasil vai se tornando uma aberração.
Desgovernado ou sob o governo da morte, do golpeamento institucional, da perversidade lunática e da cafajestada facinorosa, há risco de o país piorar. O distanciamento funciona, mas tem sido avacalhado em geral e sabotado por Bolsonaro e colaboracionistas.
Quanto mais avacalhadas as medidas de contenção, mais o morticínio vai durar. Quanto mais durar, maior deverá ser a propensão individual a abandonar o distanciamento, por desespero material ou psicológico. Quanto maior essa bola de neve, mais duradoura a destruição da economia. O desmanche do distanciamento não vai reativar a produção nem o desejo de consumir.
A epidemia pode então transbordar lá onde já ferve baixo. Pode se espalhar também para estados bem menos afetados pelo coronavírus. Mas existe ainda alguma chance de evitar essa aberração brasileira que seria a longa duração da primeira fase da pandemia: chance de achatar a curva, de segurar o vírus.
No entanto,Jair Bolsonaro está solto.
Safado, ineficiente e burro - HÉLIO SCHWARTSMAN
Folha de S. Paulo - 17/05
Bolsonaro é responsável pela morte de muita gente
Cometo hoje um ato de nepotismo. Dedico esta coluna a um tio, Victor Nussenzweig. Victor, 91, é cientista. Deixou o Brasil nos anos 60, por causa da ditadura. Ele e a mulher, a também pesquisadora Ruth (1928-2018), radicaram-se nos EUA, onde tiveram uma linda carreira científica.
Em 1967, Ruth publicou um trabalho seminal, em que mostrou que era possível induzir em mamíferos imunidade contra o protozoário causador da malária irradiando-o com raios X. A partir daí, Ruth e Victor, cada um no comando de seu laboratório, somaram esforços para desenvolver uma vacina.
Nas décadas seguintes, conseguiram identificar a proteína do Plasmodium envolvida na resposta imune, a CSP, e produzi-la em laboratório.
A CSP está na base da vacina antimalárica GSK RTS,S, que foi aprovada para uso em humanos e, desde o ano passado, vem sendo utilizada num programa-piloto em países africanos. A vacina está longe de ser uma bala de prata. Sua eficácia é de apenas 30% a 50% e exige reforços periódicos. Ainda assim, diante do fardo que a malária representa, matando 580 mil pessoas por ano, ela poderá salvar inúmeras vidas.
Alguns dias atrás chegou-me o recado de que Victor queria dizer algumas palavras sobre Bolsonaro. Pedi que as colocasse no papel.
“Não vejo nenhuma resposta do Bolsonaro frente a essa emergência sanitária. Aqui [nos EUA] vivemos com um presidente safado [Trump], mas que não é burro. Na minha opinião, Bolsonaro é safado, ineficiente e burro! Está sendo responsável pela morte de muita gente! Saí do Brasil na época da ditadura militar. Não chamo militares de militares, eu os chamo de milicos. Os milicos são o oposto dos cientistas.
Querem obediência cega. Os cientistas, ao contrário, duvidam dos dogmas e trabalham para derrubar os dogmas, estabelecer a verdade e ajudar a população.”
Victor dedicou a vida a estudar patógenos e como enfrentá-los. Sabe do que fala.
Bolsonaro é responsável pela morte de muita gente
Cometo hoje um ato de nepotismo. Dedico esta coluna a um tio, Victor Nussenzweig. Victor, 91, é cientista. Deixou o Brasil nos anos 60, por causa da ditadura. Ele e a mulher, a também pesquisadora Ruth (1928-2018), radicaram-se nos EUA, onde tiveram uma linda carreira científica.
Em 1967, Ruth publicou um trabalho seminal, em que mostrou que era possível induzir em mamíferos imunidade contra o protozoário causador da malária irradiando-o com raios X. A partir daí, Ruth e Victor, cada um no comando de seu laboratório, somaram esforços para desenvolver uma vacina.
Nas décadas seguintes, conseguiram identificar a proteína do Plasmodium envolvida na resposta imune, a CSP, e produzi-la em laboratório.
A CSP está na base da vacina antimalárica GSK RTS,S, que foi aprovada para uso em humanos e, desde o ano passado, vem sendo utilizada num programa-piloto em países africanos. A vacina está longe de ser uma bala de prata. Sua eficácia é de apenas 30% a 50% e exige reforços periódicos. Ainda assim, diante do fardo que a malária representa, matando 580 mil pessoas por ano, ela poderá salvar inúmeras vidas.
Alguns dias atrás chegou-me o recado de que Victor queria dizer algumas palavras sobre Bolsonaro. Pedi que as colocasse no papel.
“Não vejo nenhuma resposta do Bolsonaro frente a essa emergência sanitária. Aqui [nos EUA] vivemos com um presidente safado [Trump], mas que não é burro. Na minha opinião, Bolsonaro é safado, ineficiente e burro! Está sendo responsável pela morte de muita gente! Saí do Brasil na época da ditadura militar. Não chamo militares de militares, eu os chamo de milicos. Os milicos são o oposto dos cientistas.
Querem obediência cega. Os cientistas, ao contrário, duvidam dos dogmas e trabalham para derrubar os dogmas, estabelecer a verdade e ajudar a população.”
Victor dedicou a vida a estudar patógenos e como enfrentá-los. Sabe do que fala.
Nada faz sentido - ELIANE CANTANHÊDE
O Estado de S.Paulo - 17/05
Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda
Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF... Ah, bem!
O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F.... com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.
O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.
“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.
Assim, o presidente usa nomes falsos em exames de covid-19, demora meses para entregar os laudos à Justiça, diz que não falou na Polícia Federal, mantém a versão sem sentido da “segurança pessoal”. Dr. Jair, médico renomado, também insiste em desconsiderar estudos científicos do mundo todo para impor o uso da cloroquina em pacientes iniciais, como insiste na sua cruzada contra o isolamento social. E instiga a guerra contra governadores, que “querem quebrar a economia para atingir o meu governo”. Non sense.
Saiu Luiz Henrique Mandetta, entrou Nelson Teich e nada mudou. O presidente exige que o ministro da Saúde, seja quem for, faça o que ele próprio tem na cachola. A Dra. Damares Alves topa o jogo, falando em “milagre da cloroquina”. Mas, se insistir em nomear um general para o Ministério, Bolsonaro vai criar uma saia justa. O estudo mais completo, claro e realístico sobre a importância do isolamento social foi feito pelo... Exército. Um ministro-general vai seguir os estudos científicos ou os achismos do presidente?
A semana, portanto, começa sob duas expectativas. Quem será e o que vai dizer e fazer o novo ministro da Saúde num momento dramático da pandemia? O relator Celso de Mello, do STF, vai quebrar o sigilo integral ou só parcial da reunião do dia 22? Há quem defenda que ele libere geral, em nome da transparência, há quem ache melhor a divulgação em parte, em nome da segurança e da imagem do Brasil.
Curiosos foram os argumentos do procurador geral Augusto Aras, contra a divulgação integral: trata-se de um “arsenal de uso político” e de “instabilidade pública”, “proliferação de querelas” e de “pretextos para investigações genéricas sobre pessoas”. A conclusão é que a reunião foi do balacobaco. Além do presidente falando palavrão, mostrando que é capaz de qualquer coisa para proteger a família – o que consta dos trechos da AGU –, há ministros falando qualquer coisa para agradar ao presidente.
Um verdadeiro vale tudo com provocações gratuitas contra o maior parceiro comercial do Brasil, proposta de botar na cadeia os onze ministros do Supremo, a ideia de prender junto os governadores. Celso de Mello, portanto, vai ter de decidir se os brasileiros têm ou não o direito de saber onde estão metidos e se o mundo precisa saber o que está ocorrendo no Brasil.
Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda
Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF... Ah, bem!
O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F.... com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.
O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.
“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.
Assim, o presidente usa nomes falsos em exames de covid-19, demora meses para entregar os laudos à Justiça, diz que não falou na Polícia Federal, mantém a versão sem sentido da “segurança pessoal”. Dr. Jair, médico renomado, também insiste em desconsiderar estudos científicos do mundo todo para impor o uso da cloroquina em pacientes iniciais, como insiste na sua cruzada contra o isolamento social. E instiga a guerra contra governadores, que “querem quebrar a economia para atingir o meu governo”. Non sense.
Saiu Luiz Henrique Mandetta, entrou Nelson Teich e nada mudou. O presidente exige que o ministro da Saúde, seja quem for, faça o que ele próprio tem na cachola. A Dra. Damares Alves topa o jogo, falando em “milagre da cloroquina”. Mas, se insistir em nomear um general para o Ministério, Bolsonaro vai criar uma saia justa. O estudo mais completo, claro e realístico sobre a importância do isolamento social foi feito pelo... Exército. Um ministro-general vai seguir os estudos científicos ou os achismos do presidente?
A semana, portanto, começa sob duas expectativas. Quem será e o que vai dizer e fazer o novo ministro da Saúde num momento dramático da pandemia? O relator Celso de Mello, do STF, vai quebrar o sigilo integral ou só parcial da reunião do dia 22? Há quem defenda que ele libere geral, em nome da transparência, há quem ache melhor a divulgação em parte, em nome da segurança e da imagem do Brasil.
Curiosos foram os argumentos do procurador geral Augusto Aras, contra a divulgação integral: trata-se de um “arsenal de uso político” e de “instabilidade pública”, “proliferação de querelas” e de “pretextos para investigações genéricas sobre pessoas”. A conclusão é que a reunião foi do balacobaco. Além do presidente falando palavrão, mostrando que é capaz de qualquer coisa para proteger a família – o que consta dos trechos da AGU –, há ministros falando qualquer coisa para agradar ao presidente.
Um verdadeiro vale tudo com provocações gratuitas contra o maior parceiro comercial do Brasil, proposta de botar na cadeia os onze ministros do Supremo, a ideia de prender junto os governadores. Celso de Mello, portanto, vai ter de decidir se os brasileiros têm ou não o direito de saber onde estão metidos e se o mundo precisa saber o que está ocorrendo no Brasil.
Piada no exterior - VERA MAGALHÂES
O Estado de S.Paulo - 17/05
Bolsonaro, isolamento meia boca e falta de dados tornam País pária mundial
Terceiro mundo, se for / Piada no exterior / Mas o Brasil vai ficar rico / Vamos faturar um milhão
Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.
O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.
Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.
A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.
Paulo Guedes pode se esgoelar para falar que fez tudo certo, Tereza Cristina merece elogios por tentar limpar nossa barra com parceiros comerciais ofendidos grosseiramente por seu chefe e seus pares, mas não nos enganemos: dada nossa incapacidade de formular qualquer plano racional para saída programada de um isolamento sabotado desde o dia 1 pelo presidente, pegaremos a cauda do cometa da recuperação econômica global. Essa retomada não será nada simples, nem linear. Os países reemergem de suas quarentenas atingidos de forma diferente e mais fechados.
Quem vai querer investir num país em que o presidente assina uma MP eximindo servidores de responsabilidade por atos tomados durante a pandemia ao mesmo tempo em que tenta forçar um ministro (qualquer um) a assinar decreto tornando protocolo de tratamento um remédio cuja eficácia já foi questionada por estudos no mundo todo? Que está prestes a ser mostrado em áudio e vídeo em todo seu esplendor apoplético e autoritário dizendo que vai intervir na Polícia Federal para proteger sua família e “ponto final”?
Que já demitiu 11 ministros em 500 dias e ameaça, estufando o peito de orgulho, fazer (mais) um pronunciamento em rádio e TV vociferando contra o necessário e até aqui insuficiente isolamento social? Vamos ficar ilhados no Brasil, com dificuldade para obter vistos para viagens de turismo ou negócios, talvez sem sermos convidados até para campeonatos de futebol pelos vizinhos mais pobres, mas mais bem sucedidos no combate ao vírus.
A música da epígrafe tem ainda os versos “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”. Só que enquanto Bolsonaro vilipendia a primeira sob silêncio conivente de seus ministros e dos demais Poderes, esse futuro se torna mais distante. Não sabemos qual será o mundo pós-covid-19. Mas podemos cravar que o Brasil estará no fim da fila para ingressar nele.
Bolsonaro, isolamento meia boca e falta de dados tornam País pária mundial
Terceiro mundo, se for / Piada no exterior / Mas o Brasil vai ficar rico / Vamos faturar um milhão
Renato Russo escreveu os versos de Que País é Esse? em 1987. De lá para cá, voltamos a eleger presidentes, dois dos cinco eleitos sofreram impeachment, ainda integramos o que se chamava de Terceiro Mundo na época dele, e agora se diz eufemisticamente país em desenvolvimento, e vivemos a primeira pandemia de um século que o líder do Legião Urbana não chegou a conhecer ainda na condição de piada no exterior.
O desgoverno Jair Bolsonaro, como o Estado consagrou em sua capa neste sábado, nos faz enfrentar o novo coronavírus de forma destrambelhada. Irresponsabilidade, omissão, sarcasmo, falta de empatia, autoritarismo, fanatismo, desapreço pela ciência e desprezo pela vida compõem o arsenal que o presidente da República lança, como perdigotos tóxicos, sobre uma Nação estupefata todos os dias.
Jogamos fora a vantagem temporal que tínhamos em relação à Ásia, à Europa e aos Estados Unidos no enfrentamento da covid-19 descartando as experiências exitosas que essas regiões tiveram e piorando as desastradas, algo que choca a imprensa internacional, a comunidade médica e científica global e os investidores já assustados com uma recessão planetária sem precedentes. É perceptível em textos de publicações científicas internacionais, em comentários em telejornais de outros países e em análises que agências de risco ou papers acadêmicos a dificuldade até de explicar certas atitudes e declarações de Bolsonaro, dado seu descolamento de qualquer traço de realidade.
A demissão do segundo ministro da Saúde em 29 dias no pico da pandemia foi a cereja desse bolo de vergonha mundial que somos obrigados a passar, como se já não fossem tantos os desafios perturbadores impostos pelo desgoverno e pela pandemia em si.
Paulo Guedes pode se esgoelar para falar que fez tudo certo, Tereza Cristina merece elogios por tentar limpar nossa barra com parceiros comerciais ofendidos grosseiramente por seu chefe e seus pares, mas não nos enganemos: dada nossa incapacidade de formular qualquer plano racional para saída programada de um isolamento sabotado desde o dia 1 pelo presidente, pegaremos a cauda do cometa da recuperação econômica global. Essa retomada não será nada simples, nem linear. Os países reemergem de suas quarentenas atingidos de forma diferente e mais fechados.
Quem vai querer investir num país em que o presidente assina uma MP eximindo servidores de responsabilidade por atos tomados durante a pandemia ao mesmo tempo em que tenta forçar um ministro (qualquer um) a assinar decreto tornando protocolo de tratamento um remédio cuja eficácia já foi questionada por estudos no mundo todo? Que está prestes a ser mostrado em áudio e vídeo em todo seu esplendor apoplético e autoritário dizendo que vai intervir na Polícia Federal para proteger sua família e “ponto final”?
Que já demitiu 11 ministros em 500 dias e ameaça, estufando o peito de orgulho, fazer (mais) um pronunciamento em rádio e TV vociferando contra o necessário e até aqui insuficiente isolamento social? Vamos ficar ilhados no Brasil, com dificuldade para obter vistos para viagens de turismo ou negócios, talvez sem sermos convidados até para campeonatos de futebol pelos vizinhos mais pobres, mas mais bem sucedidos no combate ao vírus.
A música da epígrafe tem ainda os versos “ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da Nação”. Só que enquanto Bolsonaro vilipendia a primeira sob silêncio conivente de seus ministros e dos demais Poderes, esse futuro se torna mais distante. Não sabemos qual será o mundo pós-covid-19. Mas podemos cravar que o Brasil estará no fim da fila para ingressar nele.
A falência do Estado - MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 17/05
Descoordenação e oportunismo empurram o país para o desastre
O país está cansado e doído. Alguns perderam parentes em razão da pandemia. Outros têm alguém próximo contaminado pelo vírus, sendo alguns casos graves e preocupantes.
Todos sabemos de pessoas que sofrem com a falta de renda e de emprego ou que estejam assistindo à destruição do trabalho de uma vida. Está difícil manter a serenidade nestes tempos tão difíceis.
Os governos, federal e locais, tornam-se os maiores advogados involuntários em favor de uma reforma urgente do Estado brasileiro. A sua incompetência em administrar a crise não para de surpreender.
Não sabemos quais os protocolos a serem adotados. Não sabemos que conselhos seguir. A sociedade assiste atônita à ineficiência do poder público, disfuncional e oportunista.
Servidores, com salário garantido e estabilidade no emprego, pedem para não pagar suas dívidas. Esquecem-se de comentar que a crise afeta o país, mas não o seu contracheque.
Tribunais de Justiça concedem novos auxílios para aumentar a remuneração dos juízes. Alguns estados aprovam licença-prêmio indenizável para magistrados, com efeito retroativo para mais de uma década.
O auxílio aos governos locais deveria ter tido como contrapartida a aprovação de reformas da previdência dos servidores para reduzir o descontrole do gasto com pessoal, que inviabiliza as contas públicas.
Alguns acharam que a crise seria curta e que a política pública deveria apenas garantir a travessia. Estavam errados.
Trata-se de desastre. Muitos negócios irão desaparecer; empregos serão perdidos. O Estado deveria cuidar das pessoas, porém se perde ao atender os oportunistas usuais. Medidas de saúde e da economia são tomadas de forma atabalhoada.
Para piorar, parte do Legislativo e do Judiciário sucumbe ao populismo à custa de quem trabalha. Pagamentos são interrompidos por liminares arbitrárias, prejudicando empresas ainda em atividade.
As medidas para o mercado de crédito em discussão no Senado conseguem ser tecnicamente ainda mais desastrosas do que a intervenção no setor elétrico realizada pelo governo Dilma.
Quem mesmo vai investir no Brasil após tanto desatino? Há crescente resistência em emprestar para um país com políticas públicas frequentemente tão incompetentes e erráticas.
Enquanto isso, tenta-se saber a quantidade de disparates gravados em reunião ministerial. Não há dúvida de que as polêmicas do Executivo apenas revelam seu despreparo, mas a imprensa poderia colaborar esclarecendo também os difíceis dilemas que estamos enfrentando e as implicações do que estamos fazendo.
Muitos irão sucumbir em meio à trágica constatação de que haverá mais mortos do que caixões.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
Descoordenação e oportunismo empurram o país para o desastre
O país está cansado e doído. Alguns perderam parentes em razão da pandemia. Outros têm alguém próximo contaminado pelo vírus, sendo alguns casos graves e preocupantes.
Todos sabemos de pessoas que sofrem com a falta de renda e de emprego ou que estejam assistindo à destruição do trabalho de uma vida. Está difícil manter a serenidade nestes tempos tão difíceis.
Os governos, federal e locais, tornam-se os maiores advogados involuntários em favor de uma reforma urgente do Estado brasileiro. A sua incompetência em administrar a crise não para de surpreender.
Não sabemos quais os protocolos a serem adotados. Não sabemos que conselhos seguir. A sociedade assiste atônita à ineficiência do poder público, disfuncional e oportunista.
Servidores, com salário garantido e estabilidade no emprego, pedem para não pagar suas dívidas. Esquecem-se de comentar que a crise afeta o país, mas não o seu contracheque.
Tribunais de Justiça concedem novos auxílios para aumentar a remuneração dos juízes. Alguns estados aprovam licença-prêmio indenizável para magistrados, com efeito retroativo para mais de uma década.
O auxílio aos governos locais deveria ter tido como contrapartida a aprovação de reformas da previdência dos servidores para reduzir o descontrole do gasto com pessoal, que inviabiliza as contas públicas.
Alguns acharam que a crise seria curta e que a política pública deveria apenas garantir a travessia. Estavam errados.
Trata-se de desastre. Muitos negócios irão desaparecer; empregos serão perdidos. O Estado deveria cuidar das pessoas, porém se perde ao atender os oportunistas usuais. Medidas de saúde e da economia são tomadas de forma atabalhoada.
Para piorar, parte do Legislativo e do Judiciário sucumbe ao populismo à custa de quem trabalha. Pagamentos são interrompidos por liminares arbitrárias, prejudicando empresas ainda em atividade.
As medidas para o mercado de crédito em discussão no Senado conseguem ser tecnicamente ainda mais desastrosas do que a intervenção no setor elétrico realizada pelo governo Dilma.
Quem mesmo vai investir no Brasil após tanto desatino? Há crescente resistência em emprestar para um país com políticas públicas frequentemente tão incompetentes e erráticas.
Enquanto isso, tenta-se saber a quantidade de disparates gravados em reunião ministerial. Não há dúvida de que as polêmicas do Executivo apenas revelam seu despreparo, mas a imprensa poderia colaborar esclarecendo também os difíceis dilemas que estamos enfrentando e as implicações do que estamos fazendo.
Muitos irão sucumbir em meio à trágica constatação de que haverá mais mortos do que caixões.
Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.
Lanterna emergente - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 17/05
Má atuação do governo eleva o impacto econômico da pandemia sobre o Brasil
Embora os impactos econômicos da pandemia do novo coronavírus atinjam todos os países, alguns se mostram mais afetados que outros. O Brasil, por suas fragilidades e escolhas erradas, aparece nas piores colocações entre os emergentes.
Neste 2020 cresceu a fuga de capital financeiro —saíram US$ 33,3 bilhões até 8 de maio. Desde o início da crise, houve disparada dos índices que medem o risco de crédito do governo. A alta do dólar ante o real no ano chega a 43%, a mais alta valorização no mundo.
Parte dessas perdas reflete fatores globais. De modo geral, a paralisia da atividade e a incerteza derrubaram os preços de commodities e provocaram uma fuga para a moeda norte-americana, como é usual em momentos de instabilidade.
Tais elementos se mostravam dominantes até meados de março. Desde então, contudo, os problemas domésticos parecem dirigir os preços dos ativos brasileiros. Foi sobretudo em abril e maio que o real perdeu valor de forma mais acentuada que outras moedas, e as taxas de juros de longo prazo no país dispararam.
Fica prejudicado, assim, qualquer benefício que se poderia obter com os cortes da taxa Selic, de 4,5% para 3% ao ano, decididos pelo Banco Central durante a turbulência.
O desconforto de investidores com o Brasil não se limita a mera especulação. Reflete insegurança em relação à condução da crise, comprometida pela conduta tresloucada do presidente Jair Bolsonaro e pela atuação hesitante do ministro Paulo Guedes, da Economia.
Ao minar o distanciamento social e confrontar governadores e outros Poderes, o chefe de Estado expôs o país ao risco de fracasso no combate à pandemia, o que pode levar a maior perda de vidas e uma recessão ainda mais profunda.
No meio tempo, proliferam no Executivo e no Congresso medidas e propostas desconexas, que elevam o custo do auxílio a famílias, empresas, estados e municípios, sem que se vislumbre uma estratégia coerente e articulada.
A dívida pública brasileira, que já era a mais alta entre os principais emergentes antes da pandemia, deverá superar a marca de 90% do Produto Interno Bruto. A combinação entre recessão e déficit recorde exigirá ajustes ainda mais profundos depois.
Não se trata apenas de controle de gastos públicos e recuperação da receita. Cumpre avançar na retomada do crescimento com reforma do Estado e incentivo à produtividade, sem o que o país não conseguirá promover o combate à pobreza e à desigualdade.
Tal agenda dependerá, obviamente, de ampla negociação e entendimento político. Sem lideranças e disposição para tanto, o pessimismo atual não será injustificado.
Má atuação do governo eleva o impacto econômico da pandemia sobre o Brasil
Embora os impactos econômicos da pandemia do novo coronavírus atinjam todos os países, alguns se mostram mais afetados que outros. O Brasil, por suas fragilidades e escolhas erradas, aparece nas piores colocações entre os emergentes.
Neste 2020 cresceu a fuga de capital financeiro —saíram US$ 33,3 bilhões até 8 de maio. Desde o início da crise, houve disparada dos índices que medem o risco de crédito do governo. A alta do dólar ante o real no ano chega a 43%, a mais alta valorização no mundo.
Parte dessas perdas reflete fatores globais. De modo geral, a paralisia da atividade e a incerteza derrubaram os preços de commodities e provocaram uma fuga para a moeda norte-americana, como é usual em momentos de instabilidade.
Tais elementos se mostravam dominantes até meados de março. Desde então, contudo, os problemas domésticos parecem dirigir os preços dos ativos brasileiros. Foi sobretudo em abril e maio que o real perdeu valor de forma mais acentuada que outras moedas, e as taxas de juros de longo prazo no país dispararam.
Fica prejudicado, assim, qualquer benefício que se poderia obter com os cortes da taxa Selic, de 4,5% para 3% ao ano, decididos pelo Banco Central durante a turbulência.
O desconforto de investidores com o Brasil não se limita a mera especulação. Reflete insegurança em relação à condução da crise, comprometida pela conduta tresloucada do presidente Jair Bolsonaro e pela atuação hesitante do ministro Paulo Guedes, da Economia.
Ao minar o distanciamento social e confrontar governadores e outros Poderes, o chefe de Estado expôs o país ao risco de fracasso no combate à pandemia, o que pode levar a maior perda de vidas e uma recessão ainda mais profunda.
No meio tempo, proliferam no Executivo e no Congresso medidas e propostas desconexas, que elevam o custo do auxílio a famílias, empresas, estados e municípios, sem que se vislumbre uma estratégia coerente e articulada.
A dívida pública brasileira, que já era a mais alta entre os principais emergentes antes da pandemia, deverá superar a marca de 90% do Produto Interno Bruto. A combinação entre recessão e déficit recorde exigirá ajustes ainda mais profundos depois.
Não se trata apenas de controle de gastos públicos e recuperação da receita. Cumpre avançar na retomada do crescimento com reforma do Estado e incentivo à produtividade, sem o que o país não conseguirá promover o combate à pobreza e à desigualdade.
Tal agenda dependerá, obviamente, de ampla negociação e entendimento político. Sem lideranças e disposição para tanto, o pessimismo atual não será injustificado.
Pequeno Irmão - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 17/05
Chanceler Araújo rebaixa Itamaraty ao retaliar a imprensa para adular Bolsonaro
As pretensões orwellianas de Ernesto Araújo são inversamente proporcionais a sua estatura como chanceler. Catapultado de carreira diplomática medíocre para a chefia do Itamaraty, ali se esmera a cada dia para provar-se paragão da pequenez e da subserviência.
Torna-se difícil discernir se o ministro ataca a imprensa para dar vazão às frustrações de delírios de grandeza ou se o faz para adular o presidente da República. Certo é que ambos se irmanam no obscurantismo que hoje rebaixa a imagem do país no exterior.
O Pequeno Irmão Araújo suspende agora o envio de notícias de veículos nacionais a representações brasileiras. Amplia-se a canhestra tentativa de privar diplomatas da cobertura inquiridora sobre o governo iniciada em outubro, quando reportagens desta Folha foram excluídas do boletim (“clipping”).
O chancelar busca emular, com palavras lustrosas e atos vis, a paranoia agressiva do chefe —como tudo que tenta, em vão. Bem mais potente que suas intermináveis postagens bisonhas em redes sociais, o megafone presidencial de Jair Bolsonaro se volta contra jornalistas com mais eficácia e dano.
Com regularidade, o mandatário açula a claque na saída do Palácio da Alvorada contra profissionais de imprensa, com qualificativos como “lixo” e “canalhas”. Alguns desmiolados reviraram lixeiras com restos de refeições na sala usada por jornalistas, em busca sabe-se lá de quê, e só produziram provas da própria abjeção.
Alguma surpresa com o fato de o ódio cevado por Bolsonaro escalar para agressões físicas, como as sofridas por dois repórteres-fotográficos em manifestação governista? Um deles foi chamado pelo presidente para uma conversa, apenas para ouvir novos impropérios contra a autonomia jornalística.
Bolsonaro almeja o mesmo que todo governante: anuência, concordância, elogios. A diferença do presidente fraco e inseguro em relação a antecessores está no recurso a expedientes autoritários de intimidação e chantagem velada.
Em reunião virtual com empresários, na quinta-feira (14), voltou a incitá-los a não anunciar em órgãos que o criticam. Bolsonaro quer asfixiar o mensageiro.
As instituições têm sabido frear os arroubos cesaristas do presidente. Até aqui, o silêncio que tenta impor à opinião pública só serviu para encorajar as vozes independentes —e estimular, no porão do Itamaraty, as cabrioladas de Araújo.
Chanceler Araújo rebaixa Itamaraty ao retaliar a imprensa para adular Bolsonaro
As pretensões orwellianas de Ernesto Araújo são inversamente proporcionais a sua estatura como chanceler. Catapultado de carreira diplomática medíocre para a chefia do Itamaraty, ali se esmera a cada dia para provar-se paragão da pequenez e da subserviência.
Torna-se difícil discernir se o ministro ataca a imprensa para dar vazão às frustrações de delírios de grandeza ou se o faz para adular o presidente da República. Certo é que ambos se irmanam no obscurantismo que hoje rebaixa a imagem do país no exterior.
O Pequeno Irmão Araújo suspende agora o envio de notícias de veículos nacionais a representações brasileiras. Amplia-se a canhestra tentativa de privar diplomatas da cobertura inquiridora sobre o governo iniciada em outubro, quando reportagens desta Folha foram excluídas do boletim (“clipping”).
O chancelar busca emular, com palavras lustrosas e atos vis, a paranoia agressiva do chefe —como tudo que tenta, em vão. Bem mais potente que suas intermináveis postagens bisonhas em redes sociais, o megafone presidencial de Jair Bolsonaro se volta contra jornalistas com mais eficácia e dano.
Com regularidade, o mandatário açula a claque na saída do Palácio da Alvorada contra profissionais de imprensa, com qualificativos como “lixo” e “canalhas”. Alguns desmiolados reviraram lixeiras com restos de refeições na sala usada por jornalistas, em busca sabe-se lá de quê, e só produziram provas da própria abjeção.
Alguma surpresa com o fato de o ódio cevado por Bolsonaro escalar para agressões físicas, como as sofridas por dois repórteres-fotográficos em manifestação governista? Um deles foi chamado pelo presidente para uma conversa, apenas para ouvir novos impropérios contra a autonomia jornalística.
Bolsonaro almeja o mesmo que todo governante: anuência, concordância, elogios. A diferença do presidente fraco e inseguro em relação a antecessores está no recurso a expedientes autoritários de intimidação e chantagem velada.
Em reunião virtual com empresários, na quinta-feira (14), voltou a incitá-los a não anunciar em órgãos que o criticam. Bolsonaro quer asfixiar o mensageiro.
As instituições têm sabido frear os arroubos cesaristas do presidente. Até aqui, o silêncio que tenta impor à opinião pública só serviu para encorajar as vozes independentes —e estimular, no porão do Itamaraty, as cabrioladas de Araújo.