domingo, maio 03, 2020

Novo ato golpista de Bolsonaro torna obrigatória explicação de militares - IGOR GIELOW

FOLHA DE SP - 03/05

Cúpula fardada havia se reunido com o presidente na véspera, levando a dúvidas sobre suas intenções


O presidente Jair Bolsonaro fez seu novo ataque ao Legislativo e ao Judiciário exaltando o papel das Forças Armadas, que segundo ele estão “ao lado do povo”.

Não seria novidade, exceto por um detalhe: na véspera, o presidente havia se reunido com os três comandantes de Forças, o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, e o chefe da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.

No cardápio posto, segundo a assessoria de Azevedo, “uma avaliação do emprego das Forças Armadas na Operação de Combate ao Coronavírus, além de avaliação de determinados aspectos da conjuntura atual”.

O demônio mora nos detalhes, no caso os tais determinados aspectos. Segundo a Folha ouviu de interlocutores de pessoas presentes ao encontro, o Supremo Tribunal Federal foi duramente criticado pelos presentes.

O motivo, a decisão provisória de Alexandre de Moraes que inviabilizou a indicação de um amigo da investigada família Bolsonaro, Alexandre Ramagem, para a direção da Polícia Federal.

Isso significa que os generais deram amparo à nova intentona retórica do presidente? Aqui há divergências nos relatos disponíveis.

A versão majoritária apontou a crítica fardada, que de resto já tinha sido feita ao considerar Judiciário e Congresso como forças a cercear o Executivo, mas nega que o presidente tenha sido encorajado a novamente desafiar os Poderes.

Uma leitura alternativa diz que o presidente se sentiu autorizado a ultrapassar o sinal novamente.

No ato de 19 de abril, Dia do Exército, o simbolismo era óbvio, mas velado.

Neste domingo (3), Bolsonaro encheu a boca para colocar as Forças Armadas no mesmo bloco que pedia a cabeça do presidente a Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ataques ao Supremo e, de quebra, espancava jornalistas no Dia Mundial da Liberdade de Imprensa.

Isso abraçando na rampa do Planalto as bandeiras de Israel e dos EUA, além da brasileira, numa cacofonia caótica emulada pelas carreatas da morte vistas em algumas cidades do país.

A terceira leitura, aí feita por políticos, é a especulação acerca do entusiasmo dos militares com aventuras totalitárias.

Isso hoje é improvável. Não se imagina a atual cúpula militar brasileira apoiando fechamento de Poderes, para ficar na caracterização de golpe.

Além disso, não há apoio maciço ao governo na elite econômica, na imprensa e mesmo entre todos os ramos das Forças: Força Aérea e Marinha não têm o mesmo senso de comprometimento com a figura de Bolsonaro que o Exército, fiador de um capitão reformado e renegado.

Pior, os aviadores podem perder o único quinhão a que têm direito no governo, o Ministério da Ciência e Tecnologia, para o PSD, dentro da barganha comandada por Bolsonaro para afastar o fantasma do impeachment.

Ainda assim, a contemporização feita por alguns oficiais ouvidos pela reportagem, de que Bolsonaro se excede sem consequências, fica cada dia mais difícil de ser aceita.

Um general afirmou confiar que a população em geral não vê os militares como radicais do bolsonarismo. Talvez, mas a fronteira está cada vez mais turva: ele mesmo admite que a associação é provável.

Para complicar o enredo, um item altamente explosivo no cenário voltou a circular entre os observadores do panorama militar: a substituição do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol.

Nem tanto por uma troca em si, de resto estranha com o comandante tendo pouco mais de um ano no posto, mas por quem seria o indicado por Bolsonaro: Luiz Eduardo Ramos.

O general, que segue na ativa enquanto exerce a função no Palácio do Planalto, era talvez o mais bolsonarista dos integrantes do Alto Comando do Exército, a elite da elite militar.

Amigo de Bolsonaro quando ambos eram cadetes, dividindo dormitórios, ele sempre foi o número 2 de Azevedo, hoje ministro da Defesa e pivô da ala militar do governo.

Mas sua vinculação sempre foi especial com Bolsonaro. Sua eventual ida para o comando criaria exatamente o oposto do que o general otimista relatou: a ideia de um Exército liderado por uma aliado ideológico do presidente.

A Folha procurou Ramos para inquiri-lo sobre isso, mas ele não respondeu.

A retórica inflamada do presidente também tem a ver com o momento específico de seu governo, acumulando 7.000 mortos pelo novo coronavírus e sentindo a brisa do impeachment no ar.

Espectro esse que ronda o Planalto, para ficar na figura de linguagem marxista tão ao gosto do bolsonarismo raiz.

Como disse um almirante, há incertezas demais para garantir que o presidente não será alvo de um processo de impedimento, apesar de seu um terço de apoio no eleitorado.

O nome da equação se chama Sergio Moro. O depoimento de quase nove horas do ex-ministro da Justiça a ouvintes bastante familiarizados com os métodos do ex-juiz da Lava Jato apavora os bolsonaristas.

Qualquer pessoa que já tenha trocado uma mensagem de WhatsApp com Bolsonaro sabe que vulgaridades e sem-cerimônia são o padrão.

Provas que o incriminem talvez estejam no rol também, a depender de como forem interpretadas as conversas.

Isso, somado aos sortilégios que apurações sobre milícias e fake news insinuam sobre o clã presidencial, além do comportamento na condução da crise do coronavírus, alimentam o discurso de Bolsonaro.

O uso feito por Bolsonaro dos militares, ainda mais depois de estar cercado deles, explicita o real drama para a os fardados: a intrínseca conexão com a política, algo que conseguiram evitar durante boa parte do período pós-redemocratização.

O preço de imagem ainda é insondável, mas apenas o fato de serem questionados acerca de seus desígnios evidencia o tamanho do gênio que permitiram sair da garrafa ao se alinhar a Bolsonaro. Os militares terão de responder sobre o discurso golpista do presidente.


Moro diz à PF que Bolsonaro ameaçou demiti-lo em reunião gravada em vídeo com outros ministros

O GLOBO - 03/05

Caso foi citado pelo ex-ministro como nova prova das interferências do presidente na Polícia Federal; ele depôs por 8 horas em Curitiba no sábado

Aguirre Talento e Bela Megale

03/05/2020 - 19:19 / Atualizado em 03/05/2020 - 19:21



BRASÍLIA - Em seu depoimento prestado neste sábado, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro afirmou aos investigadores que o presidente Jair Bolsonaro ameaçou demiti-lo em uma reunião do conselho de ministros do governo federal caso Moro não concordasse com uma nova substituição do superintendente da Polícia Federal no Rio. Segundo Moro, essa reunião ocorreu em 22 de abril e foi gravada em vídeo pela própria Presidência da República, o que poderia comprovar suas acusações de que Bolsonaro tentou realizar interferências indevidas na PF.

Esse encontro do conselho de ministros ocorreu dois dias antes do pedido de demissão de Sergio Moro. O ex-ministro afirmou, no depoimento prestado à PF e a membros da Procuradoria-Geral da República (PGR), que Bolsonaro deixou claro diversas vezes seu interesse em nomear uma pessoa de sua confiança na Superintendência da PF no Rio, mas sem explicar os motivos. Segundo ele, essa cobrança foi feita diante dos demais ministros do governo nesse encontro do conselho.

Na mesma reunião, Bolsonaro teria manifestado sua insatisfação com a falta de acesso a informações de inteligência da PF. Em seu depoimento, Moro afirmou que o ministro Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) discordou do presidente e disse que esses relatórios não poderiam ser fornecidos. Após a demissão dele, o próprio Bolsonaro havia afirmado que divulgaria o vídeo de sua última reunião com Moro como forma de comprovar que ele estaria falando a verdade, mas o presidente ainda não divulgou esse vídeo.
Mais de 8 horas de depoimento

Moro foi ouvido durante oito horas neste sábado na Superintendência da PF do Paraná, por investigadores da PF e da Procuradoria-Geral da República (PGR) como parte do inquérito aberto pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para apurar as acusações feitas por ele contra Bolsonaro --a investigação apura se o presidente e também se o ex-ministro cometeram crimes no episódio.

O ex-ministro da Justiça também disse à PF que as reclamações do presidente não eram verdadeiras e que ele repassava informações não-sigilosas a Bolsonaro sobre a deflagração de operações da PF, mas apenas depois que as buscas e prisões eram cumpridas.

No dia seguinte a essa reunião do conselho de ministros, Moro participou de um encontro com Bolsonaro no Palácio do Planalto no qual o presidente lhe informou que havia decidido demitir o então diretor-geral Maurício Valeixo. Foi essa reunião que deflagrou a crise resultante no pedido de demissão do então ministro da Justiça no dia 24 de abril.

No depoimento, Moro afirmou à PF que caberia a Bolsonaro explicar as razões por trás das tentativas de interferência na PF e disse não saber os motivos. Ao prestar depoimento, Moro entregou seu celular para a PF extrair cópias das conversas relevantes para a investigação. O ex-ministro, entretanto, não guardava diálogos antigos, por ter receio de ser alvo de novos ataques hacker. Por isso, as conversas entregues por Moro se referiam apenas aos últimos 15 dias, quando ele já acumulava atritos com Bolsonaro e sofria pressão para demitir Valeixo.

Além da conversa com o presidente, a PF também copiou as conversas mantidas por Moro com a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP), que tentou convencê-lo a aceitar a demissão de Valeixo. O material será periciado pela PF.

Um dos motivos da demora no depoimento foi justamente a ação feita para copiar os dados do seu celular, que demorou algumas horas. A PF fez uma análise prévia e considerou que conversas mantidas por Moro com ministros do governo Bolsonaro não tinham informações relevantes para as investigações, porque tratavam apenas de assuntos do governo, sem entrar em interferências na PF.

O depoimento ocorreu sob clima de tensão devido aos protestos que estavam sendo realizados do lado de fora da PF. Era possível ouvir, de dentro da PF, os gritos e xingamentos destinados ao ex-ministro, que era chamado de "traidor" por militantes bolsonaristas. Moro demonstrava estar "visivelmente abalado" em comparação com os tempos de juiz da Lava-Jato, de acordo com integrantes da PF que o conheciam desde essa época e o encontraram neste sábado.

Bolsonaro fala em 'limite', mas já ultrapassou o dele como presidente - LEANDRO COLON

FOLHA DE SP - 03/05

O presidente já passou as fronteiras da ética, da impessoalidade e da responsabilidade sanitária


Em apoio a mais um ato contra as instituições que compõem os Poderes da República, o presidente Jair Bolsonaro afirmou neste domingo (3) na rampa do Planalto: "Chegamos no limite".

O recado específico foi para o STF (Supremo Tribunal Federal), mas, diante dos episódios acumulados, é difícil compreender o significado de "limite" no vocabulário restrito (e limitado) de Bolsonaro. Em seu governo essa fronteira não existe há muito tempo.

O limite da ética foi para o beleléu quando ele decidiu manter no cargo um ministro do Turismo indiciado pela Polícia Federal e denunciado à Justiça pelo esquema de laranjas do PSL.

E sumiu pelo ralo com sua aproximação de políticos do centrão, abrindo o balcão de cargos em troca de proteção no Congresso contra um possível, e cada vez mais provável, movimento de impeachment.

"Se gritar pega centrão, não fica um meu irmão", já dizia o general Augusto Heleno na convenção do PSL em 2018.

Agora Bolsonaro grita pelo centrão e todos que integram essa patota do fisiologismo político de Brasília querem ser seus irmãos.

O limite da impessoalidade quebrou-se no primeiro ano de governo, quando Bolsonaro permitiu que seu filho Carlos montasse o gabinete do ódio no Planalto para perseguir adversários externos e ministros, como Gustavo Bebianno e Carlos dos Santos Cruz, expurgados pela família do presidente.

A coroação da influência familiar veio com a nomeação (derrubada pelo STF) de Alexandre Ramagem, amigo do peito do presidente e do filho Carlos, para a direção-geral da Polícia Federal.

No caso do coronavírus, Bolsonaro atropelou os limites humanitários ao violar recomendações das autoridade sanitárias, promover aglomerações e incitar a população contra as medidas de isolamento social.

Neste domingo, Bolsonaro assistiu de camarote, da rampa do Planalto, seus apoiadores agredirem jornalistas em pleno exercício livre da profissão.

Não fez nada, não repudiou e ainda criticou a TV Globo. Bolsonaro é um presidente sem limites.​
Leandro Colon

Diretor da Sucursal de Brasília, foi correspondente em Londres. Vencedor de dois prêmios Esso.

Moro vai de alavanca a bola de ferro de Bolsonaro - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 03/05
Jair Bolsonaro chegou ao Planalto impulsionado pelas duas maiores forças eleitorais da sucessão de 2018: o lavajatismo e o antipetismo. Principal símbolo desses movimentos, Sergio Moro converteu-se numa alavanca que Bolsonaro não hesitou em utilizar. Agora, autoconvertido em delator do governo a que serviu como ministro da Justiça por um ano e quatro meses, o mesmo Sergio Moro tornou-se uma bola de ferro com potencial para afundar a Presidência de Bolsonaro.

A raiva que levou Bolsonaro a chamar Moro de Judas, pendurando-o num poste virtual para ser malhado nas redes sociais, é compatível com o medo que o presidente sente do seu ex-ministro. Moro reagiu ao ataque de Bolsonaro como a frieza de alguém que imagina estar jogando xadrez com uma ameba: "Há lealdades maiores do que as pessoais", escreveu no Twitter. Foi como se anotasse: "Não sou traidor, fui traído."

Interrogado pela Polícia Federal neste sábado, Moro produziu mais de oito horas de revelações e contextualizações. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho Zero Três do alvo do depoente, vestiu a carapuça no Twitter: "Realmente é preciso muito tempo dando depoimentos a delegados amigos para ver se acham algo contra Bolsonaro. Moro não era ministro, era espião."

Se Moro tivesse trocado a 13ª Vara Federal de Curitiba por um seminário, teria espionado lições de teologia. Se tivesse migrado do epicentro da Lava Jato para um governo sério, não teria colecionado senão ordens republicanas de um presidente honrado.

Se o ex-juiz da Lava Jato decidiu deixar o governo batendo a porta e acusando Bolsonaro de tramar o aparelhamento político da Polícia Federal foi porque o seu ex-chefe forneceu material. Se o depoimento de Moro durou mais de oito horas é porque o material fornecido pelo capitão é farto e eloquente.

Na prática, a pretexto de acusar Bolsonaro, Moro termina por se autoincriminar. Ninguém convive impunemente com um governante desqualificado por 16 meses. O risco da desqualificação pessoal como que qualifica o depoimento de Moro.

Acometido pela síndrome do que está por vir, Bolsonaro reage à moda do PT. Em vez de se defender, acusa. Podendo construir a própria biografia, investe na destruição da imagem do seu acusador.

Intimado pela conjuntura a provar seu compromisso com a moralidade, Bolsonaro articula uma aliança com o anacronismo aético do centrão. Esse tipo de estratégia levou Dilma Rousseff ao impeachment e Lula à cadeia.

O deus errado - LEANDRO KARNAL

O Estado de S.Paulo - 03/05

O deus alheio é falso, sabemos há séculos. Assim como meu país é o melhor do mundo unicamente porque eu nasci nele, minha fé é a correta, a única que segue as escrituras verdadeiras, a que salva etc. Todos conhecem a ladainha incessante que inverte uma premissa religiosa, não se trata mais de um “povo escolhido”, todavia de um “deus escolhido pelo meu narciso”. Ele é o eleito por mim porque é o mais adequado ao meu universo. Ele se adapta ao meu cercadinho e meu comportamento molda a forma do divino.

Se sou conservador, meu deus também o é e eu ainda digo que sou por causa dele. Se abomino sexo, meu deus diz o que eu penso de tal forma que criador vira criatura. Moldamos deus a nossa imagem e semelhança, por isso usei e usarei deus com letra minúscula o tempo todo, porque reconheço aqui a idolatria tradicional de sacralizar um objeto.

Não, minha querida leitora e meu estimado leitor. Não me refiro aos infiéis daqui e dali. Começo o texto pensando em mim. Há quase dez anos, estive pela enésima vez na Índia. Talvez pelo calor ou pelo meu horror a andar descalço, ingressei irritado em um templo dedicado a Shiva. Meu guia era shivaíta, assim como sua família. Era uma tradição religiosa de séculos entre eles. Diante do altar com a divina esposa Parvati, o simpático indiano-hindu foi tomado de forte emoção, similar à que presenciei em Fátima ou Lourdes com católicos. Já disse, talvez o calor, talvez o incômodo eterno que tenho em pisar em pedras descalço, talvez apenas minha ignorância... Na saída, de repente, fiz a ele uma pergunta profundamente infeliz: “Você acha, realmente, que existe um ser chamado Shiva?”.

A indagação está na minha memória como uma das mais idiotas da minha vida. Mais do que isso: foi invasiva e preconceituosa com a crença do meu guia. Eu o estava pagando e isso conferia mais autoritarismo ao meu questionamento. Ele não tinha a liberdade de me mandar pastar ou pedir que a divindade me punisse. Educado e mais sábio do que eu, respondeu que sim e que isso fazia parte de uma tradição antiga. Só então percebi que o calor havia evaporado o pouco bom senso que eu tinha. Passei o resto da viagem me desculpando com nosso orientador local.

Não sou religioso. Não compartilho das crenças da maioria. Porém, continuei ocidental e cristão. Pior, incorporei o pior do etnocentrismo monoteísta e deixei de lado o melhor que seria a compaixão sincera por qualquer ser humano. Jamais perguntei a alguém que estava de joelhos em Fátima (e fui tantas vezes lá) se aquela pessoa realmente acreditava naquilo tudo. Visitei igrejas no mundo todo e nunca me ocorreu indagar a um padre durante a consagração: “Escuta, moço, você acha mesmo que isto é algo além de farinha?”. Por quê? Porque, mesmo não sendo religioso, aquela era minha cultura. Bastou eu ser separado da matriz europeia e meu pequeno monstrinho etnocêntrico e fascista veio à tona. Não há problema com o que estou acostumado, porém, a fé do outro é sempre tratada como folclórica.

O outro, essa profunda categoria antropológica, é um desafio. Mais grave: venho dando aulas sobre alteridade (o estudo do outro) há décadas. Ensinei a centenas de alunos a teoria. Eduquei muitos sobre os riscos de eu me considerar como referência do universo e julgar, com meus valores, culturas distintas. Trabalhei relativismo em autores variados. Critiquei eurocentrismo e dogmas. Os alunos me ouviram, eu não me escutei e fiz aquela pergunta abominável.

Eu estou certo porque é o que acredito, você está errado porque não segue o que eu professo. Você é exótico, estranho, infantil até. Eu sou o iluminado e, como um novo Moisés, o verdadeiro deus, o meu, claro, revelou-me no sagrado monte Sinai as regras das minhas leis. Moisés retirou o calçado para estar na presença divina e ficou abalado com a proximidade do sagrado. Eu, pelo contrário, alego que os outros precisam calçar as sandálias da humildade. Se não pensarem como eu, são arrogantes e cegos. Sou o novo doutor da lei, o fariseu clássico, o que grita no Templo que foi salvo e que é distinto do samaritano impuro. Claro! Passo pelo humano ferido na beira da estrada e sigo cantando louvores. Ressalto: a idiotice da fé cega é tão constrangedora como a arrogância do ateu que humilha alguém porque Shiva é mais estranho do que um crucifixo.

Vi meu amigo Dráuzio Varella emocionado narrando casos de amor e de solidão de pessoas trans na cadeia. Vi outros querendo apedrejar porque “ela pecou e a Lei manda matar”. Volto à parábola de Lucas. Ali estava o samaritano. Dr. Dráuzio é ateu e socorreu o próximo. Eu nada faço de bom e, em meio a uma viagem de luxo, aproveito para perguntar babaquices a uma pessoa que me serve. A dignidade não está no ateísmo e a dignidade não está no modelo de deus seguido pelas pessoas. Seu deus pode pedir que você respeite a sexta, descanse no sábado ou santifique o domingo. Seu deus pode pedir que você pague dízimos ou trízimos, que acenda velas ou cante. Seu deus é seu.

A única verdade, a única redenção possível para os homens e seus muitos deuses, assim como para os ateus, é a capacidade de ver o outro. Se você e seu deus acham que qualquer ser humano é inferior, ou indigno, ou desviado, ou doente moralmente, você e seu deus são babacas absolutos e se merecem. Descobrir o outro é um desafio para ateus, agnósticos e crentes. Creia ou não creia, apenas não seja idiota. Viva o amor, independentemente de quais deuses ocupam o altar da sua vaidade. Boa semana aos samaritanos.

Família à prova - ROSELY SAYÃO

ESTADÃO - 03/05

Repentinamente, sem aviso prévio e sem escolhas, foram todos colocados lado a lado


Mais da metade da população brasileira está em isolamento, o que significa milhões de famílias em casa. Para estas, os desafios são grandes nessa situação. É necessário administrar o estresse, a ansiedade e os temores em relação à pandemia para que essas emoções e sentimentos não atrapalhem a vida cotidiana nem prejudiquem a saúde mental.

Quando há crianças e adolescentes em casa, é preciso controlar a vontade deles - manifestada ora em comportamentos, ora em sentimentos e também em rebeldia - de sair do isolamento e também colaborar com os estudos remotos.

Administrar o abastecimento da casa, o orçamento, afazeres domésticos, home office, dependendo de cada família, são demandas que acontecem diariamente. Mas, talvez, o desafio maior seja o relacionamento familiar. O estilo de vida por nós adotado priorizou o trabalho, o que significou um declínio na convivência familiar: pais dedicados ao trabalho e filhos na escola, muitas vezes em tempo integral, além de atividades extracurriculares, fizeram com que integrantes da família tivessem um período reduzido para estar todos juntos.


Stela com os pais, Marina e Otávio, festejando o aniversário online Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Agora, repentinamente, sem aviso prévio e sem escolha, foram todos colocados lado a lado, frente a frente, nos mesmos cômodos da casa. Dia e noite, dia após dia. Como melhorar o relacionamento familiar? Como colaborar com crianças e adolescentes para que a angústia, a irritação e a frustração deles não conturbem mais a convivência já, a esta altura, um pouco desgastada? E o relacionamento entre adultos, como melhorar?

Com os filhos, é bom lembrar que eles compreendem cognitivamente os perigos da pandemia, mas ainda não conseguem renunciar à vida tal e qual conheceram antes! Por isso, insistirão muito nas suas demandas de “quero ir para a escola”, “quero brincar na casa de fulano”, “todos os meus amigos estão indo em festas”. Perder a paciência por causa da insistência deles não vale a pena.

Mas, se não é possível fazer concessões aos filhos, os pais podem rever algumas das regras estabelecidas que ajudavam a conduzir a vida familiar e a dos filhos antes do isolamento. Quanto menos regras a família estabelecer aos mais novos, mais fácil será bancar as principais. E a principal, neste período, e apenas para os que podem, é o distanciamento social.

Amenizar cobranças e rigor que os pais exigiam dos filhos em relação aos estudos também ajuda bastante a melhorar o relacionamento. Calma, gente! A produtividade nos estudos neste período poderá cair, sem prejuízo para o futuro deles. Por muito tempo, a boa avaliação escolar dos filhos serviu como baliza de avaliação dos pais: bom aluno levava a imaginar bons pais. Isso é bobagem. Antes, durante e após o isolamento, está bem?

E quanto à convivência entre os adultos da casa? Não está fácil, principalmente porque “de perto, ninguém é normal”. E estamos todos, em casa, perto, muito perto. Essa proximidade pode trazer maior intimidade, o que pode ser uma maravilha e também uma desgraça. Somos capazes de ver melhor os defeitos do outro. Podemos, também, ver virtudes que nunca tínhamos visto antes por falta de oportunidade - e de tempo. Então, equilíbrio: não ver apenas as falhas, mas as qualidades também. Simultaneamente, para que a imagem seja mais realista do que idealizada.

E os conflitos? Vão surgir os velhos, já até esquecidos, e alguns novos também. Para administrar bem um conflito, alguém tem de ceder. E fazer concessões mútuas é o que permite a construção interminável de um bom relacionamento para realizar pequenos acordos, buscar alguns consensos - alguns! - e suportar as renúncias que um relacionamento amoroso sempre supõe.

É PSICÓLOGA

Levemente pirados - MARTHA MEDEIROS

ZERO HORA - RS - 03/05

Continuamos dentro de nossas casas, vivendo entre quatro paredes - espaço que costuma ser amplo para alguns afortunados, porém exíguo para a maioria dos brasileiros e suas novas rotinas.

Os que moram só fazem abdominais sobre o tapete da sala, dançam com parceiros invisíveis, almoçam na companhia de um pet e jantam na companhia do William Bonner. Dormem mais tempo do que o habitual ou têm insônias intermináveis. Endireitam quadros que não estão tortos, encharcam as plantas cinco vezes ao dia e às 19h abrem um vinho a fim de tomar um moderado cálice. Pegam o celular para dar uma olhada rápida no Facebook e só o largam quando o pescoço ganhou uma contração e a segunda garrafa de vinho já está vazia, por volta de duas da manhã. Sofrem por não estar ao lado de seus entes queridos, sem imaginar que as coisas não andam nem um pouco melhores com eles.

A convivência em família não tem sido tarefa para amadores. As brigas começam por uma banalidade qualquer, como o ponto de cozimento de um ovo, e desandam para traumas retroativos, como o de ter sido um bebê que nunca foi amamentado no peito. A mãe reclama do filho que ainda não arrumou a cama, e ele revida lembrando-a do dia em que ela esqueceu de buscá-lo no jardim de infância. O marido comenta que a camisa não está bem passada, e a mulher surta: quando ele dá por si, está explicando pela centésima vez que não foi ele que beijou a morena com vestido de lurex na festa de Réveillon de 1983. O adolescente sai do banheiro, depois de 15 minutos embaixo do chuveiro, e depara com um pai raivoso que segura a conta de luz, aos berros, e logo a coloca na boca, mastigando-a como se fosse um crepe.

Não me parece uma boa hora para testar a sanidade mental de nossos parceiros de cela.

Então, quando a atmosfera pesar, não discuta. Arraste a cortina para o lado, abra os vidros e espie o pedaço de mundo que lhe coube. Você há de ter uma janela. Talvez consiga enxergar uma árvore ou duas. Talvez possa se distrair contando quantos pedestres caminham pela calçada usando máscara. Talvez enxergue um naco do céu. Ou um naco do apartamento do vizinho: xeretar, a essa altura, não é crime, eu acho. Janela é a saída - só não leve ao pé da letra. Outro dia, mandei um WhatsApp para uma amiga que está confinada sozinha em um apê de 15 metros quadrados, a milhas de distância. Perguntei se ela tinha uma janela. Respondeu que tinha, mas morava no primeiro piso, de nada adiantaria saltar.

A obrigatoriedade de reclusão mexe com os nervos, mas o jeito é rir um pouco e lembrar que ao menos algo nos une: estamos sendo testemunhas históricas deste desconcertante mundo novo. E, se mantivermos a cabeça no lugar, seremos devolvidos pra rua assim que possível.

Do riso à revolta - RUY CASTRO

Folha de S. Paulo - 03/05

Uma maravilha da literatura de humor se torna o 'Eu Acuso' de Émile Zola


Entre as atividades de Marty Konigsberg, proeminente cidadão do Brooklyn, em Nova York, nos anos 40, estavam vender palpites para lutas "arranjadas" e receptar objetos, digamos, roubados. Ninguém ficou rico por sua causa, porque ele só trabalhava com lutadores de quinta, mas um dos objetos —uma máquina de escrever Underwood, que ele levou por dois dólares e deu a seu garoto— teve um nobre destino. Dela saíram os primeiros textos, frases e roteiros de Woody Allen.

Esta é uma das histórias contadas por Woody em sua autobiografia recém-lançada, "Apropos of Nothing" —a respeito de nada. O título é enganador. Em suas 288 páginas, Woody fala de tudo e se dedica, inclusive, a uma autodepreciação em regra, impensável para as plateias que seus filmes seduziram nos últimos 50 anos.

Woody zomba de sua imagem de "intelectual" —que atribui ao fato de usar óculos— e cita uma longa lista de livros que, até em seu prejuízo, nunca leu. Em jovem, por exemplo, a garota que ele queria namorar insistia em citar um sujeito chamado Stendhal, enquanto ele só queria falar das bochechas de "Cuddles".

"Cuddles" era o apelido de S.Z. Sakall, um amado ator coadjuvante, famoso por sacudir as bochechas (ele fez o chefe dos garçons em "Casablanca"). Esta é só uma das mil referências de Woody a figuras e gírias da cultura americana que o marcaram, a maioria de trânsito quase impossível para qualquer língua. Imagine traduzir "Ulisses", de James Joyce, reescrito por Damon Runyon —eu não encararia.

Para os afins a pelo menos metade das referências, "Apropos of Nothing" é uma obra-prima do humor. Mas Woody teve de dedicar boa parte dele a se defender da infame pecha de tarado, lançada por sua ex-namorada Mia Farrow e por Dylan, sua filha adotiva. O livro se torna então uma versão pessoal e pungente do "Eu Acuso", de Émile Zola, e o riso dá lugar à revolta.

Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

Podemos usar cobaias humanas? - HÉLIO SCHWARTSMAN

Folha de S. Paulo - 03/05

Instituições podem beneficiar-se do risco assumido por indivíduos?


Até onde vai a autonomia das pessoas? Qual o nível de perigo que cada um de nós está autorizado a correr? Instituições podem beneficiar-se do risco assumido por indivíduos?

Ainda não temos uma vacina contra a Covid-19, mas estão em curso várias iniciativas para desenvolvê-la.

Fala-se, não sem uma boa dose de otimismo, em um ano e meio até que uma esteja disponível. O ponto central aqui é que, em tese, seria possível reduzir em vários meses o tempo de testes da vacina se permitirmos que voluntários que a tenham tomado se inoculem de propósito com o vírus para descobrir rapidamente se o imunizante de fato funciona. É ético fazê-lo?

No plano individual, não penso que haja muito espaço para dúvida. Se eu posso tentar escalar o Everest, por que não poderia correr um risco menor participando de um experimento em que me contaminasse propositalmente com o Sars-CoV-2? No primeiro caso, eu atenderia apenas a meu ego alpinístico, no segundo, estaria prestando um serviço à humanidade.

A questão se torna mais complexa quando perguntamos se é aceitável que uma instituição como a ciência, que deve sempre balizar-se por rígidos critérios éticos, participe de uma iniciativa que de algum modo coloque pessoas em perigo.

Eu concordo que, para a ciência, as linhas vermelhas devem ser mais estritas do que para indivíduos. Um experimento que envolva matar diretamente uma pessoa será sempre necessariamente antiético. Mas penso que, se o nível de perigo individual for relativamente baixo e o benefício esperado, alto, a ciência pode aceitar ações altruístas de voluntários, desde que estejam devidamente esclarecidos dos riscos e não se poupem esforços para minimizá-los ainda mais.

Na ética que pauta as investigações científicas, afinal, todas as vidas valem o mesmo e, no atual quadro pandêmico, cada semana de antecipação de uma vacina significa milhares de mortes a menos.

Imprimir dinheiro contra a crise? - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 03/05

A menos que abramos mão do controle inflacionário, não é possível monetizar o déficit

No fim do ano a dívida pública será dez pontos percentuais do PIB maior do que se pensava antes de a pandemia desembarcar por aqui. A elevação será consequência do aumento do déficit público, fruto da redução da arrecadação que advém da queda da economia e da elevação do gasto público, necessária para enfrentar a pandemia.

Várias colegas têm defendido que haja a monetização do déficit público. Isto é, que o Banco Central emita moeda e envie-a diretamente ao Tesouro para o financiamento das políticas públicas recentemente adotadas.

Essa medida somente funcionará se abandonarmos o regime de metas de inflação. E, se o fizermos, ela não será necessária.

O Tesouro Nacional, por meio de seu agente, o BC, tem o monopólio da emissão de moeda no território nacional.

O grande bônus é que sempre que o setor privado precisa de mais moeda o BC pode emitir a custo zero e ganhar dinheiro. Esse poder de compra criado do nada é uma renda do Tesouro, único acionista do BC, chamada de senhoriagem.

Mas tudo na vida tem ônus. Como o BC é o monopolista na criação de moeda (sendo rigoroso de base monetária), ele é responsável por operar a política monetária.

O BC opera a política monetária fixando a taxa de juros vigente no mercado em que as condições de crédito são criadas. Trata-se do mercado do caixa dos grandes bancos. É o mercado em que um banco empresta para outro banco ou que bancos emprestam ao BC, ou vice-versa.

Esse mercado é chamado de mercado de reservas bancárias, ou, como preferem os americanos, mercado de moedas.

Se alguém fixa o preço de algo, esse alguém tem que comprar toda a quantidade que os demais agentes estão dispostos a vender àquele preço. Caso contrário, o preço do bem que foi fixado irá cair. Ou seja, não será fixo.

Assim, sempre que à taxa Selic fixada pelo Copom recursos sobrem no caixa dos bancos —sobrem pois os bancos assim escolheram—, o BC emite dívida cujo juro é dado pela Selic e recompra as reservas sobrantes.

Ou seja, o ônus do BC de ser o monopolista na criação de moeda é que o custo da liquidez do mercado de reservas em excesso ao que os bancos gostariam de ter, à taxa de juros fixada pelo Copom, é do BC. Em última instância, é do Tesouro.

Se o BC imprimir reservas e transferi-las ao Tesouro e este as gastar, elas retornarão aos bancos. Estes, à taxa Selic fixada pelo Copom, decidirão emprestá-las ao BC, que terá que remunerá-las à taxa Selic. Se o BC não comprar esse excesso de liquidez, fará com que a taxa do mercado de reservas bancárias fique abaixo da Selic, estimulando um processo inflacionário.

Ou seja, o BC imprimir moeda e transferi-la ao Tesouro poderia ser um equilíbrio monetário se, a partir do normal funcionamento do regime de metas de inflação, a taxa Selic caísse a zero. Pois nesse caso a taxa de juros fixada pelo Copom para o mercado de reservas bancárias é exatamente a taxa de juros da moeda.

Os bancos estarão indiferentes entre carregar no seu caixa reserva bancária ou dívida.

Mas, se a taxa de juros do mercado de reservas bancárias for zero, o Tesouro conseguirá emitir títulos de curto prazo a juro zero e se financiar sem custo.

O problema não é a falta de dinheiro. Dinheiro se cria. O problema é o custo das reservas bancárias.

Enquanto pela operação do regime de metas de inflação esse custo for positivo, não é possível monetizar o déficit. A menos que abramos mão do controle inflacionário.

Samuel Pessôa
Pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia (FGV) e sócio da consultoria Reliance. É doutor em economia pela USP.

O líder de carreata - BRUNO BOGHOSSIAN

Folha de S. Paulo - 03/05

Campanha delirante de Bolsonaro faz efeito e seguidores mudam de lado pelo fim do isolamento



Dias depois da primeira morte por coronavírus no país, três a cada quatro brasileiros concordavam com medidas de isolamento para reduzir a disseminação da doença. Entre os que aprovavam o desempenho de Jair Bolsonaro na crise, 75% também achavam que o governo deveria proibir as pessoas de saírem às ruas por algum tempo.

Naquela segunda quinzena de março, apoiadores de Bolsonaro enxergavam a pandemia mais ou menos como o restante da população, segundo o Datafolha. Metade deles achava que haveria poucas vítimas, mas a maior parte considerava o vírus um problema muito sério. Então, o presidente decidiu atrapalhar.

As últimas pesquisas mostram que, embora a maioria da população ainda apoie o isolamento, os bolsonaristas passaram a se mover rapidamente em sentido contrário.

Não foi por acaso. Nos últimos 40 dias, Bolsonaro reforçou sua cruzada contra as restrições impostas por governadores e prefeitos. No fim de março, ele fez o pronunciamento delirante na TV em que chamava a doença de resfriadinho. Depois, o governo encomendou uma campanha publicitária para incentivar a volta ao trabalho no meio da pandemia.

Na última semana, o Datafolha perguntou a opinião dos brasileiros sobre o isolamento. No grupo de entrevistados que classificam o desempenho do presidente contra o coronavírus como ótimo ou bom, só 39% afirmaram que é importante manter as pessoas em casa. No restante da população, esse índice foi de 78%.

Metade daqueles que aprovam o trabalho de Bolsonaro na crise acredita que é melhor acabar com o isolamento para estimular a economia e conter o desemprego, mesmo que o vírus se espalhe. Apenas 15% dos demais brasileiros pensam assim.

A influência é visível. Bolsonaristas continuam fazendo carreatas em que reproduzem o discurso do presidente. Na sexta (1º), manifestantes ligaram um alto-falante em frente a um hospital de campanha. Naquele dia, o país ultrapassou a marca de 6.000 mortos pelo coronavírus.

Há crime quando não há ética nem há política - ANTÔNIO CLAUDIO MARIZ DE OLIVEIRA E FÁBIO TOFIC

O Estado de S.Paulo - 03/05

O rancor, a arrogância e a prepotência podem se transformar em fatores criminógenos



O direito penal nunca deixou de ser assunto na vida nacional, mas de uns anos para cá assumiu um protagonismo fora do normal. Restrito antigamente às páginas policiais ou lembrado vez ou outra em algum evento da política, nos últimos anos roubou a cena, de modo que não há dia em que ao menos uma grande manchete do caderno de política não seja sobre crime, acusações, inquéritos, sentenças, etc...

A pandemia de covid-19 parecia que ia pôr um fim ao penal-centrismo, com forte viés punitivo, a que o País vinha assistindo. No entanto, o direito penal no Brasil parece predestinado a ocupar lugar de destaque mesmo em momentos excepcionais como este que vivemos.

Primeiro foi o próprio Executivo federal criando polêmica com a edição de portarias que anunciavam risco de prisão a quem descumprisse regras de isolamento e quarentena, prisões que até chegaram a ser feitas, como noticiado pela mídia.

Foi, porém, o pronunciamento do ex-ministro Sergio Moro, ao anunciar sua saída do governo, o responsável por trazer de volta, e a galope, o direito penal para o centro do debate político nacional.

Moro desfiou um rosário de crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente da República, desde falsidade ideológica até corrupção, prevaricação, passando ainda pelo novato crime de obstrução de Justiça. A fala cifrada do ex-ministro põe suspeitas até sobre sua própria conduta, como no caso de ter admitido que solicitou ao presidente a edição de uma lei que, em caso de atentado, pudesse garantir alguma salvaguarda financeira à sua família.

Ambos, presidente e ex-ministro, parecem se achar protegidos pela aura de cidadãos especiais, merecedores de tratamento diferenciado perante a lei. Afinal, que espécie de lei seria essa que já não exista para socorrer as famílias dos milhares de policiais, bombeiros e outros agentes que lidam com o alto risco em suas funções? Ou, se deficiente a lei vigente, por que uma salvaguarda especial para o ministro, e não algo extensivo a todos? Enquanto o presidente parece acreditar que, enquanto chefe do Executivo, pode usar a Polícia Federal como escritório privado de investigação a serviço dos próprios interesses, o ex-ministro se arroga o direito a um estrambólico seguro para um cargo demissível ad nutum.

Muito embora o direito penal possa parecer a panaceia para todos os males que nos afligem, ele não é capaz de nos tirar da crise em que nos encontramos. A crise é política e só a política é capaz de fornecer os antídotos que nos livrarão dela.

A política, entendida como arte e ciência empregadas para o alcance do bem comum, tem como substrato a ética, que constitui um dos pilares de sustentação da sociedade. Para o enfrentamento de questões cruciais de interesse coletivo, política e ética não podem ficar afastadas, sob pena de se instalar o caos e a ruptura sociais.

No entanto, a política e a ética, neste momento da História brasileira, parecem ter sido postas de lado pelos dois protagonistas citados, e por tantos outros homens públicos. Foram substituídas por condutas que claramente violam os princípios e objetivos que regem a política sã e afrontam a ética no seu sentido mais abrangente.

Observe-se que outros princípios que valorizam e emprestam dignidade à vida em sociedade foram postos de lado, e já há algum tempo, abrindo espaço ao destempero, à desarmonia e à belicosidade. Assim, o respeito à divergência e à convivência com os contrários, que é da essência da democracia, o respeito à verdade, o respeito à liberdade e aos direitos alheios e tantas outras qualidades civilizatórias estão dando lugar à intemperança e à intolerância raivosa.

Esse comportamento vem dando mau exemplo e espalhando um ensinamento que poderá levar, se já não está levando, o homem brasileiro a revelar uma face cruel e abjeta, que é o ódio.

Hanna Arendt disse que o mal banalizado rompe todas as barreiras éticas e morais e vai se incorporando ao nosso cotidiano. É exatamente esse o clima que está sendo implantado no seio da nossa sociedade.

Na verdade, o mal da intolerância está permeando todo relacionamento interpessoal. Não há tolerância com o pensar diferente, com o contrário. De fato, essa característica representa a negação do espírito democrático, que deveria reger toda ação política.

A democracia não se exaure com o exercício do voto. Deve constituir um instrumento de paz social, pois conduz à convivência harmoniosa dos contrários. Infelizmente, o quadro hoje posto provoca preocupantes efeitos colaterais. O principal é a intolerância, que se tem tornado um padrão de comportamento.

O rancor, a arrogância e a prepotência, filhos diletos da intolerância e do ódio, podem se transformar em fatores criminógenos. Aliás, os crimes contidos nas falas acima referidas, do presidente e do ex-ministro, são um espelho de uma convivência marcada por antagonismo, incompreensão e não aceitação do contrário.

Em realidade, o comportamento desabrido daqueles que deveriam dar exemplos edificantes tem causado hábitos de intemperança e desrespeito ao próximo. Maculam-se reputações sem nenhum escrúpulo, com assustadora leviandade, por meio das redes sociais, hoje transformadas em instrumento de difusão de mentiras e de agressões.

Advogados criminais

Fim do Mundo - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 03/05

Brasil no epicentro da pandemia, Moro depondo, Bolsonaro e povo sem entender nada


O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, grande orador e um dos maiores estadistas do século 20, previu numa conferência do InterAction Council, fundação que reúne ex-chefes de Estado e de governo, em Xangai, em 1994, que o fim do mundo não seria por guerras e bombas, mas sim por uma doença desconhecida disseminada pelas migrações massivas. O Homo Sapiens surgiu de uma mutação genética e seria destruído por um vírus.

O relato é do ex-presidente José Sarney, que estava presente, ao lado de figuras lendárias como Henry Kissinger, Robert Mcnamara e o fundador de Cingapura, Lee Kuan Yew. Ao completar 90 anos, Sarney mantém íntegros a memória primorosa e o capricho ao contar histórias, uma característica dos maranhenses.

Quanto ao fim do próprio mundo não se sabe, e espera-se não saber tão cedo, mas a sensação é de fim do mundo no Brasil, que vai se transformando no novo epicentro da covid-19, com a economia e os empregos implodindo e uma crise política absurda. Em meio ao caos, o presidente da República e milhões de pessoas continuam sem entender nada.

As manchetes de sábado reproduziam a realidade. Estado: “Impeachment é a última opção”, segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso; “Ninguém vai querer dar um golpe em cima de mim”, declarava o presidente Jair Bolsonaro; “A incógnita Mourão nos bastidores do poder”, informava a Coluna do Estadão. Globo: “Brasil vira um dos polos globais da covid-19”. UOL: “Bolsonaro ameaça demitir ministro que não ceder cargos ao Centrão”.

O ex-ministro Sérgio Moro detalhava à PF e ao MP suas acusações ao presidente. Local: justamente a Superintendência da PF em Curitiba, onde o ex-presidente Lula ficou preso por 580 dias, condenado por Moro e pelo TRF-4 no caso do triplex do Guarujá. Alvo do depoimento: Bolsonaro, pivô da ação que pede ao STF o impedimento do ex-juiz nos processos de Lula. Moro condenou Lula e pode condenar Bolsonaro. Alvo da esquerda lulista, é agora também da direita bolsonarista.

O destino de Bolsonaro está nas mãos e nas provas que Moro diz ter. O destino do governo depende institucionalmente do STF e do Congresso e, politicamente, dos militares e do Centrão. Tudo embrulhado nas milhares de mortes, a maior recessão da história, um oceano de empresários quebrados e trabalhadores desempregados e, portanto, um cenário social nada tranquilizador.

Alheio à realidade, o povo volta em massa às ruas e à sanha do coronavírus, que ganha a guerra sem esforço e adversários. Há os desesperados que se amontoam para dividir o vírus e a esperança de R$ 600,00. Os que enfrentam o vírus “como homens, não como moleques”. E os perversos, que salvam a própria pele, mas não estão nem aí para a pele de pobres e trabalhadores.

É assim que o Brasil vai se destacando nas manchetes internacionais e até nas entrevistas de Donald Trump como a “bola da vez”, mesmo com a China sob críticas, desconfianças e forte recessão, a Europa juntando os cacos, a África esperando bovinamente a sua vez e os próprios EUA atingindo 70 mil mortos e uma avalanche de desempregados jamais vista.

A imagem do Brasil vem sendo devastada por ataques à OMS, votos na ONU, o presidente contra o isolamento e pró atos golpistas, os textos alucinados do chanceler Ernesto Araújo. E o casal de bolsonaristas, com a bandeira nacional, atacando enfermeiros clamando pacificamente por melhores condições de trabalho e portando cruzes negras pela morte de colegas?

Em todos os países, homenagem e reverência ao pessoal da saúde, que arrisca (e perde) a própria vida para salvar vidas. Não na capital do Brasil. Aqui, até os enfermeiros são “comunistas”, os vilões da história.

O ‘e daí’ como política - VERA MAGALHÂES

ESTADÃO - 03/05

Ao agir como inimputável sem sê-lo, Bolsonaro banaliza as instituições e a vida


A Constituição diz que todos são iguais perante a lei e, assim, devem responder por seus atos, com exceção dos inimputáveis, que ela mesma trata de apontar. Os inimputáveis são considerados assim porque, no momento em que cometem alguma infração, são incapazes de discernir a gravidade de seus atos.

Jair Bolsonaro, desde o início de 2020, age como alguém que pretende alcançar a inimputabilidade. Alheio à forma como coloca em risco a saúde pública, num momento, e afronta as instituições democráticas, no seguinte, apela a uma narrativa em que se esquiva de responsabilidade pelos seus atos, aponta inimigos imaginários a justificar as próprias arbitrariedades e pede ao povo, o mesmo que coloca em risco, uma blindagem para as contenções de suas atitudes previstas na Constituição, e exercidas pelos demais Poderes, pela imprensa, pelo Ministério Público e pela sociedade civil organizada.

É o “e daí”, não por acaso uma das expressões mais repetidas pelo capitão, elevado à condição de política de Estado. Resta saber se esses mesmos agentes sobre os quais recai a missão de conter o presidente vão dar de ombros à pergunta cínica ou vão responder a Bolsonaro que “e daí o senhor não pode agir como está agindo”.

Neste sábado, pela enésima vez desde o início da pandemia do novo coronavírus e depois de o Brasil cruzar a marca de 6.000 mortos pela covid-19, o presidente da República que se quer inimputável promoveu aglomeração de pobres e idosos num entorno desfavorecido de Brasília. Demonstra num só ato sua absoluta ausência de empatia com os mais vulneráveis, sua completa incapacidade para gerir o País numa emergência de saúde e sua covardia política, pois só foi dar o novo rolê da morte porque queria chamar a atenção da imprensa e dos poucos fanáticos que continuam a apoiá-lo e desviá-la do temível depoimento que Sérgio Moro daria em seguida no inquérito que investiga se o presidente tentou aparelhar politicamente a Polícia Federal para blindar apoiadores e filhos.

Ao agir como um inimputável sem sê-lo, o presidente dá uma banana para as instituições e para seus governados. Dobra a aposta na crença de que ninguém fará nada contra ele e mostra que, para ele, a vida é algo banal, que pode ser mercadejada na bacia das almas da tentativa de salvação política.

Afinal, se mais pessoas morrerem, não se poderá jogar “no seu colo” a responsabilidade, pois, afinal, o STF deu aos governadores prerrogativa de determinar as regras de distanciamento social. Ignora – e acredita que a opinião pública fará o mesmo, pois a subestima, medindo-a pela régua da própria mediocridade – que é justamente o boicote que promove diuturnamente ao necessário isolamento que o torna poroso, insuficiente, e agrava o quadro de saúde Brasil afora.

Não adianta arrotar orgulhosamente a própria inimputabilidade, presidente. O Supremo, a imprensa, o Congresso e a sociedade existem e vão cobrar do senhor, que foi eleito democraticamente, embora escarneça até da própria vitória, colocando-a irresponsavelmente e sem provas em dúvida, para governar o Brasil segundo os preceitos constitucionais.

Não adiantará tentar redefinir o princípio da impessoalidade, dizendo que amigo não está enquadrado nele, como fez em mais um pronunciamento sem pé nem cabeça.

Os mortos que se somam em progressão geométrica são a demonstração corpórea, inescapável, de que o “e daí” elevado à condição de política de Estado é, sim, razão para que o presidente seja confrontado com os limites institucionais. Que o Supremo se mantenha firme no caminho – que tem demonstrado que está consciente de ser o seu dever – de mostrar ao pretenso inimputável que ele não o é.

Descendo a rampa - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

ESTADÃO - 03/05

O governo Bolsonaro caminhará para bater no muro por volta de agosto/setembro


Não bastassem os desafios trazidos pela pandemia e a recessão decorrente da parada súbita da vida econômica, o governo viveu desde meados do mês passado uma sucessão de eventos que resultaram num ponto de inflexão da atual gestão que, a meu ver, é irreversível.

No dia 16 de abril, o então ministro da Saúde, Mandetta, foi dispensado do cargo. Seu trabalho de enfrentamento do coronavírus estava sendo muito importante para o País, embora não fosse isento de críticas, como a pouca atenção dada à testagem em larga escala. Em consequência, sua popularidade subiu e começou a fazer sombra ao presidente, que com isso não conseguiu conviver. Aparentemente, o que dá certo não pode ser mantido. Seu sucessor está totalmente perdido.

No dia 22 de abril, o chefe da Casa Civil anunciou um plano de investimentos (Pró-Brasil) destinado a promover a volta do crescimento econômico a partir de obras de infraestrutura. Projetos de investimento público direto e concessões ao setor privado seriam elencados, sem uma articulação entre eles.

O anúncio, primariamente destinado a injetar ânimo na plateia, não encantou ninguém por um robusto conjunto de razões:

- O plano lembra duas tentativas semelhantes que acabaram por resultar em períodos muito ruins: o II PND e a década perdida dos anos 80; e o PAC do PT e a grande recessão de 2014/2016.

- A comparação com o Plano Marshall peca, naturalmente, pela notável ausência do Tesouro americano.

- O plano não menciona como o capital externo, ora em fuga do País, voltaria a fluir em grandes proporções.

- O plano não menciona como seria financiado: com novos impostos? Com emissões? Estourando o teto de gastos? Isso num momento em que as despesas necessárias para enfrentar a pandemia resultarão numa piora substancial de nossa posição fiscal. Mais ainda, passada a emergência, caberá uma correção nas prioridades de gasto, incluindo a saúde. Mais uma razão para que não abracemos um rumo que já se mostrou fracassado mais de uma vez.

- Finalmente, o plano foi desenvolvido e anunciado sem a participação do Ministério da Economia, que, claramente sinalizou sua contrariedade.

Não é, pois, de se estranhar que os mercados tenham reagido mal, com desvalorização cambial e alta nas taxas de juros, pois foi colocado em dúvida o compromisso com a adequada gestão das contas públicas passado o período da emergência.

A recente entrevista conjunta dos ministros da Casa Civil e da Economia não teve o poder de tranquilizar ninguém. Vem aí mais tumulto.

Após a demissão de Moro, fica consolidada uma constatação. Bolsonaro tem três características importantes: limitada capacidade de percepção da realidade, é profundamente autoritário e é bastante descontrolado.

Os eventos acima descritos e as negociações recentes com o chamado Centrão mostram que o presidente apertou o botão emergência e deu uma guinada no seu governo, buscando blindar sua família e sua posição no Congresso.

Se as coisas parassem por aqui já não estaríamos bem. Entretanto, nos próximos meses a situação da pandemia, das pessoas e das empresas ainda irá piorar substancialmente.

Caminhamos rapidamente para ser o segundo país do mundo com maior número diário de óbitos, atrás dos Estados Unidos. A dificuldade de manter as quarentenas deverá empurrar o pico da doença para o final do semestre.

O salto do desemprego deverá ser atingido no terceiro trimestre, quando os esquemas temporários de suporte começam a vencer. Da mesma forma, a pressão financeira sobre as empresas vai se elevar, levando muitas delas a insolvência e a pedidos de recuperação judicial.

Por tudo, acredito que haverá uma convergência negativa por volta de agosto/setembro, pressionando para piorar a situação política. O que ocorrerá a partir daí é incerto, mas não tenho dúvida que o governo Bolsonaro caminhará para bater no muro. A questão é apenas quanto tempo vai levar para isso.

ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS. ESCREVE QUINZENALMENTE

A fila única para a Covid está na mesa - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 03/05

Rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras:

“Dói, mas tem que fazer. Porque senão brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso”.

Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio. Na quarta-feira, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação “da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso.”

Por quê? Porque a rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (ex-diretor de uma Unimed) jamais tocou no assunto. Seu sucessor, Nelson Teich (cuja indicação para a pasta foi cabalada por agentes do baronato) também não. Depois da recomendação do Conselho, quatro guildas da medicina privada saíram do silêncio, condenaram a ideia e apresentaram quatro propostas alternativas. Uma delas, a testagem da população, é risível, e duas são dilatórias (a construção de hospitais de campanha e a publicação de editais para a contratação de leitos e serviços). A quarta vem a ser boa ideia: a revitalização de leitos públicos. Poderia ter sido oferecida em março.

Desde o início da epidemia os barões da medicina privada se mantiveram em virótico silêncio. Eles viviam no mundo encantado da saúde de griffe, contratando médicos renomados como se fossem jogadores de futebol, inaugurando hospitais com hotelarias estreladas e atendendo clientes de planos de saúde bilionários. Veio a Covid, e descobriram-se num país com 40 milhões de invisíveis e 12 milhões de desempregados.

Se o vírus tivesse sido enfrentado com a energia da Nova Zelândia, o silêncio teria sido eficaz. Como isso era impossível, acordaram no Brasil, com 60 mil infectados e mais de seis mil mortos.

A Agência Nacional de Saúde ofereceu aos planos de saúde acesso aos recursos de um fundo se elas aceitassem atender (até julho) clientes inadimplentes. Nem pensar. Dos 780 planos, só nove aderiram.

O silêncio virótico provocou-lhes uma tosse com a recomendação do Conselho Nacional de Saúde. A fila única é um remédio com efeitos laterais tóxicos. Se a burocracia ficar encarregada de organizá-la, arrisca só ficar pronta em 2021. Ademais, é discutível se uma pessoa que pagou caro pelo acesso a um hospital deve ficar atrás de alguém que não pagou. Na outra ponta dessa discussão, fica a frase de Vecina: “Brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar.” Os números da epidemia mostram que o baronato precisa sair da toca.

A Covid jogou o sistema de saúde brasileiro na arapuca daquele navio cujo nome não deve ser pronunciado (com Leonardo DiCaprio estrelando o filme). O transatlântico tinha 2.200 passageiros, mas nos seus botes salva-vidas só cabiam 1.200 pessoas: 34% dos homens da primeira classe salvaram-se; na terceira classe, só 12%.

Sinal dos tempos estranhos
Um dia alguém vai estudar o Brasil de 2020 durante a pandemia.

Enquanto a rede pública de saúde dava sinais de colapso, o presidente da Federação Brasileira de Hospitais, guilda de 4.200 instituições privadas, informava que a ociosidade média dos leitos de UTIs de seus associados estava em 50%.

O diretor do Sírio-Libanês, o hospital das celebridades (Lula, Dilma e companhia), explicava o efeito dessa ociosidade, provocada pela suspensão dos procedimentos eletivos para clientes de planos de saúde dos abonados:

“Todos os nossos hospitais nesse momento que estão com ocupação baixa têm custos fixos que têm que ser pagos. Essas empresas vão ficar numa situação econômica difícil. Já neste mês há instituições com dificuldade de pagar a folha de pagamento. Outros vão aguentar de dois a três meses. Mas se essa situação persistir por muito tempo, vão ter problema de solvência.”

Se esse darwinismo econômico é irredutível, vale o que disse o doutor Paulo Guedes: “É da vida ser abatido, é do mercado. Uma economia de mercado de vez em quando é atingida”. Quem acha que é da vida ser abatido pelo coronavírus deve entender que também é da vida que sua empresa pegue o vírus da insolvência.

Madame Natasha
Natasha adora as entrevistas do ministro Nelson Teich. Suas platitudes permitem que ela tire sonecas vespertinas.

Por acaso ela ainda não tinha adormecido quando o doutor disse o seguinte:

“O que tem que ficar claro é que é um número que vem crescendo”.

Naquele dia haviam morrido 473 pessoas (durante todo o ano em que combateu o exército alemão na Itália, a Força Expedicionária Brasileira perdeu 474 pracinhas).

Como o ministro havia visto sinais de que a epidemia estava contida, deveria ter dito o seguinte:

“Ficou claro para mim que o número vem crescendo.”

Na mesma entrevista, o ministro apontou para o fato de que o aumento das mortes estava restrito a alguns estados, como São Paulo, Rio e Amazonas.

Em agosto de 1945, os militares japoneses aloprados diziam em Tóquio que havia um problema restrito às cidades de Hiroshima e Nagasaki.

Chavismos
A deputada Joice Hasselmann, ex-líder do governo de Jair Bolsonaro no Congresso, disse à repórter Julia Chaib que o Brasil corre o risco de cair “num chavismo de verdade, com sinal trocado”.

Em 2018, durante a campanha eleitoral, o general Hamilton Mourão, que foi adido militar na Venezuela, explicou a essência do poder chavista:

“Existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país.”

Vargas tentou
Quando o ministro Alexandre de Moraes bloqueou a nomeação de um delegado amigo da família Bolsonaro para a direção da Polícia Federal, mostrou que o bom funcionamento das instituições acaba protegendo os presidentes.

Na manhã de 29 de outubro de 1945, Getulio Vargas decidiu nomear seu irmão Benjamin para a Chefatura de Polícia do Rio, um dos cargos mais importantes da República. À noite, estava deposto.

Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e garante:

Essa epidemia é uma gripezinha, o programa Pró-Brasil era apenas um estudo e o amigo inglês de Paulo Guedes está pronto para oferecer 40 milhões de testes para o coronavírus.

Não esquecer - FERNANDO HENRIQUE CARDOSO

ESTADÃO - 03/05

Passada a tormenta, vê-se que o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes


O tema é repetitivo e desafiador: o coronavírus. Procuro me afastar dele dia e noite, mas ele nos envolve. O vírus está por toda parte, principalmente em nossa alma. Meus pais tinham na memória a “gripe espanhola”. Quiseram de novo tachar o coronavírus como “vírus chinês”. Não pegou, e ainda bem. A propagação do vírus pelo mundo faz-me recordar a advertência do Antigo Testamento: “Pulvis est et in pulvis reverteris” - somos pó e a ele voltaremos. Diante da morte, somos todos iguais. O vírus não distingue gênero, idade, riqueza ou o que seja. Mata muitos e se não nos cuidarmos... Às vezes até mesmo nos cuidando.

Será que esta pandemia servirá para nos darmos conta disso? Sei bem que os humanos têm memória, mas também têm a capacidade de esquecer. Passada a crise, poucos se lembrarão dela. Mas suas marcas vão permanecer e delas devemos cuidar.

Na minha geração não se pode dizer: “Nunca vi tanto horror perante os céus”. Os terremotos matam indiscriminadamente. As guerras também. A bomba atômica dizimou centenas de milhares, e por aí vai. Isso não diminui o pavor diante do que está acontecendo e do que poderá acontecer. A situação obriga-nos a mais humildade e a reconhecer que a desigualdade faz os mais pobres pagarem o preço mais alto das tragédias pandêmicas.

O coronavírus chegou ao Brasil “de avião”. Pessoas das classes mais altas (quanto à renda) viajam mais. No começo foram as que se contaminaram. Agora se vê que é enorme a propagação do vírus nas periferias pobres, nos cortiços, nas comunidades urbanas que ontem chamávamos de favelas (desde a revolta de Canudos, quando os soldados regressavam das campanhas e se amontoavam no Morro da Favela, no Rio). O atendimento da saúde “não dá conta”.

É injusto cobrar só do SUS as falhas havidas. Não fosse ele, só os que podem pagar os serviços médicos e hospitalares seriam atendidos. Ele atende de modo universal. Mas é possível cobrar de quem decide o porquê de tanta “falta”: falta equipamento para os atendimentos, faltam luvas adequadas, faltam máquinas para ajudar a respirar, falta não sei o que mais. Contudo pelo menos há um sistema de saúde pública estruturado, mesmo carente. Na bonança é difícil prever as prioridades e haverá argumentos, até mesmo econômicos, para dizer: isso não é prioritário. E não é só no Brasil que se veem dificuldades no atendimento à saúde, basta olhar para Nova York. É preciso prever.

Que pelo menos a crise atual sirva de advertência para o futuro: há que olhar com mais carinho a saúde pública, a começar pela água tratada e pelo sistema de esgotamento sanitário. Reconhecer que alcançamos melhoria na saúde não quer dizer que conseguimos o necessário. Ao sair da atual pandemia, não nos esqueçamos: ela pode voltar. Quando? Ninguém sabe. Preparemo-nos.

E assumamos que, se é verdade que a crise atual de saúde alcança todo o mundo, também é verdade que ela é mais devastadora para os mais pobres. Por enquanto (sem que se saiba até quando) não dispomos de vacinas nem de medicamentos específicos. Só resta o “isolamento social”. O refrão “fiquem em casa” está por toda parte. Mas que casa? Para os que dispõem do aconchego familiar e dos meios necessários, trabalhar em casa é suportável. Mas quando as pessoas moram empilhadas, sem conforto mínimo, que fazer? Vão para a rua e nem sempre guardam a distância recomendável. E os que trabalham em situações que são essenciais para a sociedade continuar a funcionar, nas fábricas, nos hospitais, no transporte ou onde seja, também ficam em casa? Haverá dois pesos e duas medidas?

Não acho que o mote esteja errado. Ao contrário. Mas urge ampliar nosso senso de realidade. Espero que a gratidão seja concreta para alcançar os que, não tendo meios para ficar em casa, vão à luta. Nesta, que usem máscaras, tomem os cuidados necessários e façam o possível para derrotar o vírus. A luta é dos governos, mas também é de cada um de nós.

O que é descabido é a insensibilidade diante do que acontece, sem ver que estamos imersos num mau momento. Precisamos de coesão. Insistir em que se trata de uma “gripezinha”, ou que “eu fui atleta” e nada me acontecerá, é mais do que equivocado. É irresponsável.

Além de recursos financeiros, precisamos de coesão. Na crise viramos “keynesianos”, cremos que é necessário gastar, pois “o governo” tem de salvar as empresas e as pessoas. Mas nada substitui o carinho, o dar a mão aos que mais precisam e sofrem. Não apenas à moda antiga, dos bons samaritanos. Passada a tormenta, vê-se que foi possível ultrapassá-la porque o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes.

Não basta escolher quem é “do contra”. Os governantes precisam saber decidir e entender que nas sociedades contemporâneas as redes de internet pesam na eleição, mas não dá para governar “contra”. Para fazer frente à situação de tantas crises, fazem falta o senso comum e o do universal. Só juntos se constrói uma nação. A escolha foi e, espero, será nossa, de cada um. Que o erro não se repita. Assim teremos aprendido com a crise.

SOCIÓLOGO, FOI PRESIDENTE DA REPÚBLICA

Veneza e o Estado de Direito - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 03/05

Exemplos de governança da cidade inesperada.


Em 1204, Veneza tornou-se senhora de uma vastidão de terras, passando a controlar 3/8 do Império Bizantino, várias ilhas, a costa ocidental da Grécia e outras regiões, resultado de uma guerra lendária.
Enrico Dandolo comandava a armada de Veneza na cruzada ungida pelo papa Inocêncio 3º. Peripécias levaram os invasores a tentar reaver o trono usurpado do herdeiro de Bizâncio. Constantinopla era a cidade mais impressionante da cristandade, e o ataque inicial foi rechaçado.

O velho líder não teve dúvidas e mandou sua embarcação avançar solitariamente em direção à costa. Inacreditavelmente, foi bem-sucedido. A bandeira de Veneza foi fincada em solo. Seus aliados o seguiram.
Após a vitória, Dandolo negociou habilmente os espólios e morreu pouco depois, sendo enterrado na grandiosa Hagia Sofia. Veneza, porém, recusou o império legado. Controlar estrangeiros custava caro e a desviava da sua fonte de riqueza, o comércio. Apenas não aceitava perder o controle da sua rota de navegação.

Em "Venice: A New History", Thomas Madden conta a história da cidade inesperada.

A laguna no norte da Itália possui muitas ilhotas. No fim do Império Romano, com as seguidas invasões bárbaras, moradores da redondeza passaram a ocupá-las para se proteger. Sua sobrevivência dependia da pesca e da extração de sal para comercialização.

As guerras acabaram por induzir a povoação nas terras inóspitas no centro da laguna, que, com muito aterro e pontes, tornou-se Veneza.

A natureza e o domínio da navegação resultaram em uma sociedade peculiar. Sem terras, não havia regime feudal. A cidade dominada por comerciantes era liderada pelo doge, escolhido pela população. Alguns tentaram transformar o cargo em hereditário, mas Veneza em geral descartava os herdeiros.

Em 1192, a cidade elegeu, por vias indiretas, Dandolo como doge. Ele tinha 85 anos e era cego havia duas décadas.

Seu juramento de posse foi, em boa parte, dedicado a prometer o que não iria fazer, como divulgar segredos de Estado ou conduzir os negócios comunais sem a aprovação do conselho do doge. No governo, ordenou a codificação das leis, entre outras reformas.

Quando dignitários vieram negociar a participação na cruzada, explicou que não tinha autoridade para fazer acordos. Seguindo a governança, a proposta foi apresentada ao conselho do doge, que estimou os custos da empreitada. Posteriormente, foi aprovada pelo conselho da corte.

Dandolo iniciou a travessia aos 95 anos e, aos 97, liderou, cego e em pé na proa, o desembarque em Constantinopla.

A Veneza de 1200 parece saber mais do Estado de Direito do que o mandatário em Brasília.

Em “Enrico Dandolo and the Rise of Venice”, Thomas Madden descreve com maiores detalhes a evolução da governança da cidade de Veneza no fim do século 12, como a criação dos conselhos menor e maior, e as crescentes restrições para decisões monocráticas do doge.

​O livro transcreve o surpreendente juramento de posse de Dandolo, que nasceu por volta de 1107, como indica a documentação sobre seu pai e seu tio homônimo, patriarca da igreja de Grado. Em cada evento descrito nesta coluna, utiliza-se sua idade aproximada com base na evidência disponível.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

Tombo global - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/05

Coronavírus derruba economias em escala recorde; emergentes devem sofrer mais


Já não há dúvida de que a pandemia do novo coronavírus provocará a maior retração da atividade econômica mundial desde a Grande Depressão, iniciada em 1929.

A queda da produção e da renda, abrupta e generalizada em todas as regiões, traz desafios inéditos para os governos e riscos sociais ainda não plenamente compreendidos.

Nos Estados Unidos, a queda do Produto Interno Bruto no primeiro trimestre foi de 4,8%, em valores anualizados, ante o trimestre anterior. Trata-se, contudo, apenas do impacto inicial, já que as restrições para conter a disseminação da epidemia passaram a ser adotadas ao longo de março.

Para o período abril-junho espera-se uma contração dramática, de até 30% na mesma base de comparação. Mesmo nos cenários mais positivos, com distensão paulatina do isolamento social e uma retomada na segunda metade do ano, o PIB americano deve terminar 2020 com baixa de 5%.

O mesmo padrão se dá na Europa, com projeções de encolhimento de 5% a 12% na zona do euro. No Brasil, as estimativas rondam os 3% por ora, mas o tombo esperado aumenta a toda semana. Para o mundo, de forma agregada, o Fundo Monetário Internacional prevê retração de 3% neste ano, ante alta de 2,9% antes da crise.

O cálculo pressupõe uma recuperação sem nova interrupção por eventual ressurgimento do contágio. Os cenários alternativos são mais negativos, seja por uma segunda onda de infecção ou por lentidão na saída das quarentenas.

Mesmo assim, não se pode descartar surpresas positivas, caso a epidemia seja controlada. Um fator para isso é a reação dos governos, que tentam minorar a recessão e evitar perdas permanentes de renda e empregos por meio de transferências orçamentárias.

O custo até aqui em geral passa de 5% do PIB e não raro chega ao dobro disso nos países ricos.

Mas, se a pandemia é democrática em sua chegada, atingindo a todos, o mesmo não se dá nas consequências. Há enorme diferença em meios para uma resposta do Estado na intensidade necessária.

Países cujas moedas são aceitas como reserva de valor —caso do dólar e do euro— têm maior facilidade em elevar seu endividamento. Já as nações emergentes enfrentam mais restrições, com riscos de fuga de capitais e interrupção de acesso a financiamento.

O mundo todo sairá desta crise mais endividado e, tudo indica, mais desigual. A crise, por outro lado, aponta com clareza onde estão as carências e, dependendo de boas decisões políticas, poderá abrir espaço para novas prioridades nas políticas governamentais.

Sérias decisões a serem tomadas nesta crise - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 03/05

Os políticos e a sociedade aceitam manter o Brasil da mesma forma como este que o vírus expõe?


A crise excita o espírito populista que existe no Congresso. Se ele é sempre avesso a fazer contas, neste momento a aversão aumenta e se mistura com a louvável mas desinformada intenção de se fazer “justiça social” não importa como, e que vai na contramão da lógica, por vias que estrangulam a única fonte de geração de empregos em uma situação como esta, a empresa privada. São feitas propostas que podem ser bem-intencionadas, como “empréstimo compulsório” e aumento da carga tributária sobre as pessoas jurídicas, mas justo quando as empresas veem seus caixas se esgotarem na queda em parafuso das receitas dragadas pela recessão. Não faz sentido.

O mergulho na recessão, com o fechamento de empresas, aumento de desemprego e toda uma série de malefícios que estrangulam também os cofres públicos, causa uma corrida no setor público em busca de novas receitas — mesmo que a base a ser taxada por aumento de impostos ou novos gravames esteja sendo estreitada pela redução da renda e da receita de pessoas físicas e jurídicas. Com o estrangulamento desta fonte de receitas do Estado, repete-se a piada do cavalo acostumado pelo dono a comer cada vez menos, até que um dia morre. Dentro da tradição nacional, não se fala em corte de gastos para ajudar no reequilíbrio das finanças públicas.

Reflete bem a excitação populista o número de projetos que se acumulam no Congresso há anos para a taxação de “grandes fortunas”, sempre vendida como a solução para todos os déficits fiscais. O mais conhecido dos autores de um desses projetos, o ainda senador tucano Fernando Henrique Cardoso, ele mesmo se convenceu da ineficácia da iniciativa. Assim como aconteceu com países europeus, que tentaram explorar este suposto rico filão e apenas incentivaram a fuga de patrimônios e ficaram com o prejuízo da queda de receita e da geração de empregos. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que em 1990 o bloco tinha 12 dos seus membros, países desenvolvidos, com este imposto; em 2017, apenas quatro: França, Noruega, Espanha e Suíça. Haviam extinto a taxação Alemanha, Áustria, Dinamarca, Holanda, Finlândia, Islândia, Luxemburgo e Suécia. Não compensava. O Nobel de Economia Milton Friedman foi certeiro: “Um dos maiores erros é julgar as políticas e programas por suas intenções, em vez de julgá-los por seus resultados.”

Se os políticos querem defender os eleitores e a sociedade, precisam cobrar um ajuste no setor público à altura desta crise, a maior desde a Grande Depressão de 1929/30. Devem trabalhar contra o fato muito injusto de trabalhadores do setor privado serem forçados pelas circunstâncias a abrir mão de parte do salário, com redução da jornada, para manter empregos e empregadores — uma coisa não existe sem a outra —, enquanto o funcionalismo se mantém como uma das maiores rubricas de gastos da Federação, sem que contribuam para o ajuste de que todos são levados a participar. Os servidores vivem num país à parte, sob a blindagem de fortes corporações no Congresso. E depois políticos denunciarão que a renda se concentrou ainda mais na crise. Precisam ter consciência das causas.

Executadas medidas de emergência, é preciso atacar de reformas estruturais, contornando o varejo de propostas tópicas impulsionadas por ideologia, sem uma visão de sistema. Em vez de mudanças oportunistas em impostos, deve-se realizar a reforma tributária. Também a do Estado. Mudanças como estas farão com que o país saia da crise em outras bases. Uma falha histórica será o enfrentamento da crise sem se fazerem as correções de que o país precisa.

Parece que parte dos políticos ainda não enxergou o Brasil que a paralisação abrupta do sistema produtivo no mundo e no país, devido ao coronavírus, colocou à mostra: a miséria no entorno e dentro de grandes capitais, a falta de saneamento básico —35 milhões de brasileiros não têm água tratada, e quase 100 milhões não dispõem de coleta de esgoto —, as dezenas de milhões sem emprego formal, sem fonte regular de renda, também por falta de instrução. Trata-se de uma população sem acesso a benefício previdenciário sustentável. Não terá qualquer segurança financeira na velhice. Milhões deverão continuar a constituir uma nação de pobres e, no futuro, de idosos miseráveis. Não se pode esquecer que o governo lançou o auxílio de R$ 600 e esperava atender 54 milhões. Poderão ser 70 milhões. Os tais “invisíveis” têm o tamanho de um país. Estão nas favelas, nos sinais fazendo malabarismo, pedindo esmola, trabalhando como “flanelinhas”, vendendo amendoim nos bares etc. Ficaram à vista.

A pergunta é se os políticos e a sociedade querem manter o Brasil depois da crise da mesma forma como está agora. Com renda e riqueza concentradas, sem infraestrutura condizente com um país de 220 milhões de pessoas, do tamanho de um continente e com um PIB entre os dez maiores do mundo — pelo menos era antes da epidemia —, e também um dos mais violentos. Muito pode ser feito agora contra isso.

Um vírus derruba os gigantes - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 03/05

Estimada em US$ 87 trilhões em 2019, a economia global está sendo derrubada por seres microscópicos, num desastre pior do que a crise de 2008-2009

Um gigante de tamanho difícil de imaginar, a economia global, estimada em US$ 87 trilhões no ano passado, está sendo derrubado por seres microscópicos, os coronavírus, num desastre muito pior e mais doloroso que a crise financeira de 2008-2009. A extensão dos danos começa a aparecer nos maiores mercados, o americano, o chinês e o europeu, com os primeiros dados trimestrais de consumo, produção, investimento e emprego. O drama dessas potências afeta o Brasil pela redução do comércio internacional, já enfraquecido em 2019. Na melhor hipótese, as vendas de alimentos, componente mais importante das exportações brasileiras, serão menos prejudicadas que as de outros produtos.

Nos Estados Unidos, maior potência econômica, o Produto Interno Bruto (PIB) encolheu à taxa anual de 4,8% no primeiro trimestre, segundo a primeira estimativa. Fechadas em casa, famílias cortaram os gastos de consumo, empresas diminuíram investimentos e as exportações caíram. Diante da emergência, governo central e governos locais aumentaram suas despesas, mas em proporção insuficiente para equilibrar o conjunto.

Em seis semanas 30,3 milhões de pessoas pediram auxílio-desemprego nos Estados Unidos. Antes da nova crise, a desocupação abrangia cerca de 3,4% da força de trabalho, como efeito de 113 meses consecutivos de criação de empregos. Ainda é difícil determinar a nova taxa de desemprego, porque pessoas desocupadas apenas temporariamente foram autorizadas a buscar o auxílio, mas a piora do quadro é inegável. No quarto trimestre do ano passado o PIB americano cresceu ao ritmo anual de 3,5%, na última etapa de um longo período de prosperidade, iniciado no primeiro mandato do presidente Barack Obama.

A segunda maior economia, a chinesa, sofreu no primeiro trimestre de 2020 a primeira contração em quase 30 anos, desde o início da publicação dos dados trimestrais do PIB, em 1992. Mesmo abalada, a economia da China ainda pode ter um desempenho invejável depois do impacto da covid-19. O Fundo Monetário Internacional (FMI) projeta para a China 1,2% de expansão econômica neste ano, enquanto estima contração de 3% para o produto global e de 6,1% para as economias avançadas. Mas, por enquanto, o balanço inicial da crise mostra grandes estragos.

No primeiro trimestre o PIB chinês foi 6,8% menor que o do período janeiro-março de 2019, segundo a Agência Nacional de Estatísticas. Em relação aos três meses finais do ano passado a queda foi de 9,8%. De acordo com o governo, o desempenho deve ser muito melhor a partir do segundo trimestre, mas economistas apontam muita insegurança quanto à reação do consumo familiar.

Com a reorganização estratégica iniciada há alguns anos, o consumo ganhou importância relativa no papel de motor da economia, tomando parte do espaço tradicionalmente ocupado pelo investimento em capacidade produtiva.

Maior parceira comercial do Brasil, a China é o destino principal das exportações do agronegócio brasileiro. A demanda chinesa tem grande importância para o superávit comercial e para a segurança das contas externas do Brasil. Os Estados Unidos, segundo maior importador de mercadorias brasileiras, têm relevância especial para as vendas de manufaturados. O terceiro maior parceiro individual, a Argentina, já estava em crise em 2019 e assim deve continuar neste ano.

Na zona do euro, também muito relevante para o comércio brasileiro, o PIB do primeiro trimestre foi 3,3% menor que o de um ano antes. Em relação aos três meses finais de 2019 a queda foi de 3,8%, a maior, nesse tipo de comparação, na série iniciada em 1995.

Segundo o FMI, o produto da zona do euro deve diminuir 7,5% neste ano. Para os Estados Unidos está projetada retração de 5,9%. Para o Brasil os cálculos indicam um PIB 5,3% menor que o de 2019. Mas o repique esperado para a economia brasileira, de 2,9% em 2021, é bem menor que o previsto para os países avançados (4,5%) e emergentes (6,6%). Falta resolver, no Brasil, um problema bem anterior à covid-19, o baixo potencial de crescimento.