quinta-feira, abril 23, 2020

Crise com Moro e namoro com centrão erodem base de Bolsonaro - IGOR GIELOW

FOLHA DE SP - 23/04

Presidente tenta evitar risco de impeachment, mas atira contra o próprio coração no processo


No manual informal dos impeachments brasileiros, três condições são centrais para o impedimento de um presidente: falta de apoio no Congresso, uma crise econômica aguda e a perda de apoio popular.

A crise de governabilidade que Jair Bolsonaro agravou com sua condução do combate ao novo coronavírus já embutia os dois primeiros itens da pauta, mas mesmo adversários ferrenhos do presidente sempre notaram que os cerca de 30% de aprovação do eleitorado eram uma arma dissuasória potente.

Com isso, fica difícil compreender a decisão do presidente de provocar a mera ameaça de demissão de Sergio Moro (Justiça e Segurança Pública) em meio a negociações com o centrão, que visam criar um simulacro de apoio congressual e evitar votos para um eventual processo de remoção.

Ambos os movimentos atingem diretamente o dito terço do eleitorado que está com o presidente, faça chuva ou faça pandemia.

Que Bolsonaro queria ver Maurício Valeixo fora, isso não é novidade desde agosto do ano passado, quando removeu um superintendente da PF no Rio que sabia demais acerca de investigações envolvendo o clã presidencial.

Essa independência da PF, aliás, é um dos fatores da rixa entre Bolsonaro e Moro, cujo enredo maior diz respeito a 2022. O ministro é candidatíssimo a ser presidenciável, algo acerca de que o presidente se queixou com dois interlocutores nas últimas semanas.

Para o presidente, Moro só pensa em manter-se acima de degastes, e o bote poderá vir a qualquer momento.

Com a intenção de mexer na PF, Bolsonaro fez Moro repetir o teatro do ano passado e dizer que se Valeixo cair, ele sai. É uma saída cômoda para o ministro, que até aqui não deixou marca no cargo e parece ter se incomodado com o comportamento agressivo e negacionista do chefe ante a crise do novo coronavírus.

O problema é que Moro é uma câmara do coração do bolsonarismo. Extirpá-lo não só ameaça o órgão como cria um concorrente formidável na mesma faixa de batimentos.

Bolsonaro foi eleito por uma combinação de antipetismo e reação contrária ao sistema político alimentada por quatro anos de revelações escabrosas da Operação Lava Jato, que Moro personifica.

Como as pesquisas indicam, mesmo as revelações de condutas abusivas e os erros da ação não tiraram o apelo do ministro junto à população. É o mais popular da Esplanada.

Quando escolheu Moro ministro, após ser eleito, Bolsonaro criou uma armadilha perfeita. Se por um lado legitimou seu discurso moralizador, por outro tornou o ex-juiz numa figura quase indemissível. Assim, se por fim ficar no cargo, não é impossível que seu destino seja a vaga de Celso de Mello no Supremo Tribunal Federal em novembro.

O impacto de uma saída de Moro é potencialmente devastador, em especial se conjugado com a aproximação do Planalto com o centrão. Bolsonaro tem cerca de 30% de apoio do eleitorado, dado que o excedente que o levou a vencer em 2018 já se afastou ao vê-lo exercer o poder.

Desses, talvez metade seja caninamente fiel ao presidente. Esses eleitores são as mesmas pessoas para quem, no ato golpista do domingo (19), Bolsonaro pedia "o povo no poder" contra os "patifes" da "velha política".

Fica difícil aos aliados do presidente explicar o vídeo dele com Arthur Lira (Progressistas-AL), um exemplo acabado da tal velha política, em pleno congraçamento. Lira, afinal, é réu por corrupção no âmbito da mesma Lava Jato que levou Moro ao governo e ajudou Bolsonaro a estar no Planalto.

Isso fora as promessas de cargos para Roberto Jefferson (PTB), Waldemar da Costa Neto (PL) e outros luminares de escândalos políticos passados. Não é só a desmoralização de sua classificação do presidencialismo de coalizão como mero toma-lá-dá-cá: os personagens de suas críticas são os mesmos.

Com mais uma crise com Moro, o cenário fica complexo. A outra metade da base de apoio, menos ideológica e mais ligada ao repúdio legítimo às práticas da classe política, tenderá a seguir o ex-juiz para onde ele for.

Para um aliado de Bolsonaro no Congresso, a crise fora de hora evidencia o desmonte do desenho inicial do governo. Em dois dias, foram alienados seus dois ex-superministros, Moro e Paulo Guedes.

Na quarta (22), o titular da Economia teve de engolir, apenas com algum chiado sobre inexequibilidade, o anúncio de um plano com ares de planejamento militar dos anos 1970 para combater o desemprego com obras públicas.

Ambos, Guedes e Moro, por ora parecem ficar. Estarão tão enfraquecidos como o presidente, mas têm muito menos a perder que ele.

O isolamento do presidente, registrado antes da crise do novo coronavírus, já era flagrante. Governadores de estado articulados em frente, cerco judicial à sua família, Congresso tomando as rédeas da agenda reformista, tudo isso estava em curso.

Pilares desmoronam e Bolsonaro se entrega a estelionato eleitoral - FERNANDO CANZIAN

FOLHA DE SP - 23/04

Liberalismo econômico e combate à corrupção vão sendo abandonados pelo presidente


Como era de se esperar desde que Jair Bolsonaro começou a abrir a boca e a agir em público após a campanha e a facada de 2018, sua administração à frente do Brasil está se esfacelando.

Os dois pilares de seu governo que atraíram a confiança de muitos empresários e eleitores indignados com as inconsistências econômicas e a corrupção nos governos Dilma Rouseff e Lula agora desmoronam, um atrás do outro.

O primeiro a cair foi parte o projeto liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, que sequer participou na quarta (22) do lançamento do PAC de Bolsonaro.

Com o projeto, o presidente reedita algumas das ideias desenvolvimentistas de Dilma e retoma a participação do Estado em obras públicas que nunca terminam.

Segundo o Tribunal de Contas da União, o Brasil tem pelo menos 12 mil obras paradas, ou cerca de 30% de todos os empreendimentos espalhados pelo país. Pelo menos 2,8 mil delas são do Programa de Aceleração do Crescimento de Dilma Rousseff.

Desesperado e pressentindo o tamanho da recessão econômica que se aproxima, Bolsonaro se move para tentar gastar um dinheiro público que não tem e rasga a fantasia do liberalismo com que tentava esconder suas verdadeiras convicções.

Alijado e ausente, não surpreenderá se Paulo Guedes também se movimentar para abandonar de vez o barco de Bolsonaro, destruindo o fiapo de confiança que as classes empresariais ainda depositam nesse governo.

Já a eventual saída de Sergio Moro da Justiça vai escancarar o bloqueio que a família Bolsonaro opera contra investigações perigosas, como a da “rachadinha" do senador Flávio no Rio.

Ela minará também muito da sustentação popular de Bolsonaro, sobretudo entre aqueles brasileiros mais barulhentos que gostam de se vestir em verde e amarelo para sair às ruas condenando o PT e os políticos tradicionais do Brasil.

Mas é exatamente à velha guarda notória em casos ruidosos de Arthur Lira (Progressistas-AL), Roberto Jefferson (PTB-RJ) e Waldemar da Costa Neto (PL-SP), entre outros, que Bolsonaro recorre agora em busca de sustentação —antes que os efeitos da recessão e das mortes pela Covid-19 caiam de uma vez sobre seu governo.

Para quem condenava tudo o que está aí e a velha política, nada mais ultrapassado do que correr amedrontado para o colo do fisiológico centrão a fim de tentar salvar a própria pele.

Bolsonaro agora não passa de um estelionato eleitoral.

Fernando Canzian
Jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.

Bolsonaro tosta Moro e mima prontuários do centrão - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 23/04

Jair Bolsonaro parece decidido a promover uma cirurgia plástica na sua administração. Ele age não para embelezar o governo, mas para torná-lo mais feio. No momento, o presidente realiza dois movimentos inconciliáveis. Num, Bolsonaro acena com a hipótese de entregar cargos e cofres públicos a prontuários do centrão. Noutro, ele tosta o ex-juiz Sergio Moro, que virou ministro da Justiça graças à fama que obteve na Lava Jato mandando para a cadeia corruptos como os que estão aninhados no centrão.

Em conversa com Moro, Bolsonaro voltou a mencionar o seu desejo de arrancar do comando da Polícia Federal o braço direito do ministro, Maurício Valeixo. A conversa ocorreu apenas 48 horas depois de o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, ter determinado a abertura de inquérito para apurar quem organizou e financiou a manifestação contra a democracia estrelada por Bolsonaro no último domingo. O caso será investigado pela PF. E o presidente prefere que o órgão seja dirigido por alguém da sua confiança, não de Moro.

O preferido de Bolsonaro para a chefia da PF chama-se Anderson Gustavo Torres. É delegado federal. Relaciona-se muito bem com o presidente. É amigo de dois de seus filhos, Eduardo e o investigado Flávio. Frequenta o gabinete de um dos ministros mais prestigiados do Planalto, o secretário-geral da Presidência Jorge Oliveira, um major da reserva da PM brasiliense, também amigo da família Bolsonaro.

Na conversa com Bolsonaro, Moro sinalizou que não cogita permanecer no governo se Valeixo for retirado da PF. No momento, os generais que compõem no Planalto a 'turma do deixa-disso' tentam demover Bolsonaro da ideia de demitir Valeixo. Mas a simples reiteração do desejo deixa claro que a caneta de Bolsonaro converteu-se numa espécie de bisturi biruta, capaz de transfigurar o governo.

Quando Bolsonaro se dizia contra o “toma lá, dá cá” - FELIPE MOURA BRASIL


Crusoé/O Antagonista 23/04

Em 19 de novembro de 2017, o então pré-candidato presidencial e deputado federal Jair Bolsonaro disse no programa “Canal Livre”, da Band, que deixaria o governo se a única forma de governar fosse por meio da distribuição de cargos em troca de apoio político – a velha prática conhecida no Brasil como “toma lá, dá cá”.

“Eu duvido que, eu sentado na cadeira presidencial, vai aparecer o ‘Seu’ Renan Calheiros e vai falar: ‘Eu quero o Banco do Nordeste pra mim.’ Eu duvido que isso venha a acontecer: a forma de fazer política como foi feita até o momento. E toda a imprensa pergunta pra mim: como você vai governar sem o ‘toma lá, dá cá’? Eu devolveria a pergunta a vocês: existe outra forma de governar, ou é só essa? Se é só essa, eu tô fora!”, prometeu Bolsonaro.

“Se é para aceitar indicações políticas, a raiz da ineficiência do Estado e da corrupção, aí fica difícil você apresentar uma proposta que possa realmente proporcionar dias melhores para a nossa população”, acrescentou o então deputado, destacando também que “geralmente os grupos políticos loteiam esses cargos para se beneficiar”.

Para Bolsonaro, se o Parlamento continuasse a impor seus nomes, o caos seria o destino do país.

“A mensagem que quero dar para todos no Brasil, inclusive no Parlamento, é a seguinte: se o Brasil estiver bem, nós estaremos bem, e não o contrário. Não o meu grupo político estando bem, o Brasil vai estar bem. Nós estamos partindo para o caos. Não dá para continuar administrando o Brasil dessa forma: o Parlamento indicando, impondo os seus nomes!”, disse o então pré-candidato.

Agora, em abril de 2020, com Bolsonaro sentado na cadeira presidencial, seu governo negocia cargos em órgãos públicos com o Centrão em troca de apoio político do bloco parlamentar, como registrou O Antagonista.

Em vez de ‘Seu’ Renan Calheiros, quem busca para o próprio partido a presidência do Banco do Nordeste é o condenado no mensalão ‘Seu’ Valdemar Costa Neto, do PL, antigo PR.

Bolsonaro “tá fora”?

Plano Marshall? General lança PAC de Bolsonaro. Guedes cheira a queimado - REINALDO AZEVEDO

UOL - 23/04

Guedes cheira a queimado


General Braga Neto: caso Jair Bolsonaro não mude de ideia, ele comandará os esforços de recuperação da economia depois da crise do cornavírus. Será o chefe do PAC bolsanarianoImagem: Foto: Sérgio Lima/Brasil 360

Eis que, de repente, surge no cenário um tal "Plano Marshall" de Jair Bolsonaro para a economia, que ficará sob a coordenação do general Braga Netto, chefe da Casa Civil.

Em que ele consiste? Do que deu para entender até agora, trata-se de uma iniciativa inspirada no "Plano de Aceleração do Crescimento", origem de alguns dissabores para o Brasil, para Dilma Rousseff e para o PT, uma vez que, sob o seu manto, deu-se também o "PAIF", o Plano de Aceleração da Irresponsabilidade Fiscal. Mas eram outros tempos.

A exemplo do PAC petista, também essa proposta vai além do mandato de Jair Bolsonaro e alcançaria 2030. A ex-presidente tem o direito de acusar o plágio.

Informa o Estadão:


A ala militar do Palácio do Planalto impôs à equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, um revés com o lançamento do programa de recuperação econômica pós-covid 19 que prevê aumento dos gastos com investimentos públicos para os próximos anos.

O anúncio oficial foi feito nesta quarta-feira, 22, pelo ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto, sem a presença de nenhum integrante do Ministério da Economia na coletiva de imprensa no Palácio do Planalto e depois do alerta de dois secretários do time de Guedes, ao longo do dia, de que a recuperação terá que vir pela mão do setor privado.

Chamado de pró-Brasil, o programa, que chegou a ser apelidado inicialmente de Plano Marshall brasileiro, prevê um incremento de R$ 300 bilhões - R$ 250 bilhões em concessões e parceria público privada e outros R$ 50 bilhões de investimento públicos. A coordenação será do ministro Braga Netto.

Na reunião de ministros antes do lançamento do plano, Guedes avisou que a recuperação terá que ser feita com investimento privado e que as âncoras fiscais do governo, como o teto de gastos (regra que proíbe que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação), serão mantidas.

Entre os integrantes da equipe econômica, o descontentamento com as bases do programa não é de hoje. O programa está sendo discutido há mais de 30 dias com Braga Netto e ministros que atuam nas áreas finalísticas, sem a participação do Ministério da Economia - até então envolvido com a elaboração das medidas emergências de combate à pandemia.

Braga Netto negou divergências com a equipe de Guedes e afirmou que a aceitação do programa foi unânime em todos os ministérios. A primeira reunião de trabalho será na próxima sexta-feira, quando cada ministro vai levar as suas propostas.
(...)


RETOMO
Adolfo Sachsida, secretário de Política Econômica, avalia, segundo informa o Estadão, "que o verdadeiro 'Plano Marshall' brasileiro de reconstrução nacional será não gastar mais na fase pós-pandemia da covid-19, mas aumentar a velocidade das privatizações, concessões e a facilitação do investimento privado em infraestrutura. Defendeu que o Estado não é bom guia para a recuperação econômica."

Será mesmo assim? Nada contra as concessões — aliás, o tal Pró-Brasil vê a possibilidade de arrecadar R$ 250 bilhões nessa área —, mas será mesmo o pós-Covid-19 um bom momento para as privatizações? Não há o risco de vender patrimônio público na bacia das almas para um setor privado que também não estará nadando em dinheiro? A propósito: quando será esse tal período pós-coronavírus?

Essa é uma das angústias dos militares com o paulo-guedismo. Avaliavam que a resposta da economia já era muito mais lenta do que anteviu a antevia o "Posto Ipiranga". A avaliação é a de que que seu cacife diminuiu na crise porque ele continuaria apegado a um modelo anterior ao desastre provocado pelo vírus.

Convenham: a coisa não começa direito. Um plano com essa importância deveria ter sido anunciado pelo ministro da Economia. Se não foi, é porque ele não está no comando da operação. Ademais, a sua execução requer entendimento com o Congresso — daí que Bolsonaro esteja mandando piscadelas para parte do Centrão. Mas se pretende levar a coisa adiante em guerra com o Congresso?

Há quem queira que Guedes está de acordo com tudo porque: 1) nada tem a oferecer no curto prazo; 2) não saberia como explicar a proposta sem ser submetido a uma espécie de humilhação intelectual.

Uma coisa é certa: por enquanto ao menos, quem quiser falar sobre a economia pós-coronavírus deve procurar o general Braga Netto, não o ministro da Economia.

É assim hoje. Pode mudar amanhã.

PS: Sei lá quem primeiro chamou esse troço, seja lá o que for, de "Plano Marshall". Este foi um programa de ajuda dos EUA às economias europeias combalidas pela Segunda Guerra. O que se quer fazer no Brasil, como se nota, tem mais semelhanças é com o PAC da Dilma.

Choque de preços num mundo saturado de óleo - CELSO MING

ESTADÃO - 23/04

Esses valores inéditos do petróleo acontecem porque o consumo de energia despencou e a atividade econômica quase parou


Na última segunda-feira, pela primeira vez na história, os preços do petróleo dos Estados Unidos, o WTI (West Texas Intermediate), referência no mercado, tiveram brutal cotação negativa. Para entrega em maio, chegou a ser negociado a US$ 37,63 negativos por barril de 159 litros.

Não é bem uma situação em que você vai ao posto de gasolina, manda encher o tanque e, em vez de pagar R$ 200, você recebe do frentista isso aí ou até mais. Os estoques de petróleo e derivados estão tão altos, que aqueles investidores que se comprometeram a comprar petróleo para entrega em maio não tinham onde armazená-lo. Para zerar seus contratos, foram obrigados a pagar aos vendedores para que estes fiquem com aquele óleo.

Essa distorção diz mais do que apenas uma situação esdrúxula que acontece uma vez na história, como o dilúvio universal. Mostra que o mundo está inundado de óleo porque o consumo de energia despencou e porque a atividade econômica quase parou. Ao mesmo tempo, isolado em casa, o consumidor deixou de usar combustível, os aviões deixaram de voar (portanto, deixaram de queimar querosene), os caminhões estão encostados nas garagens e assim por diante.

Embora a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e também produtores fora do cartel tivessem chegado a um acordo na semana anterior para reduzir em cerca de 12% a 15% a produção, continua chegando petróleo às refinarias. Isso acontece apenas em parte porque não é possível fechar as torneiras dos poços no mesmo ritmo em que despencou o consumo. Ao menos momentaneamente, o ajuste passou a ser feito não por remanejamento do volume, mas pelo preço.

Mas há outras considerações a levar em conta. Não é seguro que o consumo seja restabelecido tão logo a pandemia vá embora, porque ela pode voltar e poderá ser necessário tanto voltar a parar a atividade econômica como a confinar as pessoas em suas casas. Ainda é preciso ver o que vai de fato ser diferente na economia pós-crise.

Mesmo que os motores da produção e do transporte voltem a rodar, parece improvável que o consumo de petróleo seja restabelecido aos níveis anteriores aos do início da depressão.

Isso significa que muitos produtores, especialmente os que operam a custos mais altos do que os preços vigentes do petróleo, ficarão por algum tempo alijados do mercado ou, mesmo, acabarão quebrando.

Em compensação, o petróleo e o gás ficaram tão baratos que provavelmente voltarão a ser usados como insumo nas usinas térmicas para produção de energia elétrica. E isso pode adiar projetos de expansão de energia renovável, especialmente as de fontes eólica e solar. Aqui no Brasil, outra vítima será a produção de etanol, que já não consegue competir com a gasolina. A safra de cana-de-açúcar, que está no início no Centro-Sul, terá de enfrentar essa hora ingrata, que uma eventual alta de impostos sobre o etanol (por meio da Cide) não conseguirá compensar.

A derrubada dos preços dos combustíveis terá no Brasil graves impactos na área fiscal. Estados e municípios são altamente dependentes das receitas do ICMS sobre combustíveis, que caíram (na refinaria) mais de 50%. Também será superior a 30% a queda de receitas com royalties e participações especiais cobradas dos produtores de petróleo.

E há os fretes. Os caminhoneiros que paralisaram o País em maio de 2018 para tentar fortes reajustes no frete agora estão amargando baixa acentuada de preços, que tabelamento nenhum conseguirá segurar.

Como tudo em economia, essa nova ordem na área da energia produzirá ganhadores e perdedores. De longe, o maior ganhador deverá ser a China, que poderá retomar sua atividade econômica aproveitando os preços bem mais baixos da energia.

Como já foi examinado nesta Coluna em outras oportunidades, a forte queda dos preços dos combustíveis tende a produzir inflação negativa (por alguns também chamada deflação), porque a baixa não será compensada pela alta de outros itens da cesta de consumo, tanto das famílias como das empresas. É situação que pressiona ainda mais o Banco Central para nova redução dos juros básicos, hipótese que já começa a ser admitida pelo seu presidente, Roberto Campos Neto.

Governo se reorganiza e contra-ataca - VINICIUS TORRES FREIRE

Folha de S. Paulo - 23/04

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o parlamentarismo branco de Rodrigo Maia


O governo parece que tenta governar, sob o comando do ministro-general Braga Netto (Casa Civil). É uma ação coordenada na política, é o controle do Ministério da Saúde, é uma tentativa de articulação administrativa de ministérios e outra de fazer com que a equipe econômica reaja de modo rápido e “proativo”, digamos.

Na frente político-partidária, a contraofensiva ataca governadores e o “parlamentarismo branco” de Rodrigo Maia, o que antes fazia na maior parte por meio de “ruas” e milícias digitais. Trata-se de minar parte da força de Maia, obriga-lo a negociar, influenciar a eleição do próximo comando da Câmara (em 2021) e, no mínimo, criar um bloquinho parlamentar com tamanho suficiente para barrar um processo de impeachment.

Um instrumento desse combate, como se viu, é a oferta de cargos para partidos que formaram o núcleo do mensalão e do petrolão, o que já estimula outras legendas a correrem para o balcão de barganhas.

Outra pressão veio dos ministros militares do Planalto, que se queixaram em discursos públicos de que a cúpula do Legislativo e Judiciário podam o governo. Nos mesmos discursos ou entrevistas, reafirmavam compromissos democráticos _punham panos frios no comício autoritário de Jair Bolsonaro.

Na economia, Braga Netto e seus colegas apresentaram um pré-plano de reconstrução. Por ora, parece modesto, para dizer o menos, embora seja um sinal de que também no Planalto “sob nova administração” considera-se que a reação do Ministério da Economia é insuficiente, “técnica, mas tímida e com uma visão pré-crise da economia”, como disse um ministro militar que prefere não dizer seu nome.

Mais uma vez, anunciou-se que haverá centenas de bilhões de investimentos via concessões para a iniciativa privada, além do conserto da legislação que trava negócios, o que mal andava mesmo antes da epidemia.

Antes da coronacrise, tais dinheiros privados já eram mera hipótese, projetos que viriam a se tornar obras talvez em 2022. Agora, a hipótese parece fantástica, pois não se sabe o que restará da iniciativa privada, das poupanças, da demanda e de quando o ânimo de investir voltará a respirar.

O anúncio de investimentos públicos foi vago e, dado o tamanho da ruína, minúsculo —R$ 30 bilhões extras até 2022, no que foi possível entender. No entanto, parece haver alguma luz sobre o tamanho do desastre que terá de ser enfrentado também na economia, que exigirá revolução de ideias econômicas e capacidade executiva, ora mais escassas que equipamentos para proteção do pessoal que batalha nos hospitais.

A conversa de que, em um eventual e distante pós-corona, volta-se ao caminho das “reformas e do ajuste fiscal” demonstra inconsciência do desastre, uma reação estereotipada e apego a um pensamento econômico que já era velho mesmo no mundo “a.C”, antes do corona. Será necessário pensar o impensável, como diz por aí qualquer Nobel de economia civilizado.

Ressalte-se que a contraofensiva começou com a demissão do ministro da Saúde e com o comício autoritário em que Bolsonaro reforçou o ataque aos governadores, titilou a pulsão de morte de parte do país e lasseou ainda mais a democracia.

No sapato roto, sujo e alargado da democracia brasileira, cabem agora discursos presidenciais para uma aglomeração que pede ditadura. Ou seja, as tropas da contraofensiva avançam protegidas por cortina de fumaça antidemocrática e com o apoio de bombardeio contra “as instituições que estão funcionando”.

Na liga dos insanos - MARIA HERMÌNIA TAVARES

Folha de S. Paulo 23/04

Com Nicarágua, Turcomenistão e Belarus, Brasil forma grupo dos quatro


Na capa da edição de 12 de novembro de 2009, a revista inglesa The Economist trazia a imagem do Cristo Redentor disparando do Corcovado como um foguete, para ilustrar as projeções da crescente importância do Brasil na cena internacional. Pouco depois, o Council of Foreign Relations, renomado centro de estudos americano, afirmava que o Brasil “faz parte da reduzida lista de países destinados a definir o século 21”.

Não sendo uma potência econômica nem militar, o Brasil construiu sua reputação internacional assentado no que os estudiosos chamam “poder suave” —a capacidade de influenciar o comportamento de outras nações pela persuasão e não pelas armas ou pelo dinheiro.

Nas últimas décadas, de fato, o país atuou com firmeza nas organizações multilaterais, formando coalizões para engrossar a voz dos países em desenvolvimento. Criou o fórum IBSA, participou da articulação do grupo dos Brics. Entrou para o G20, o grupo de ministros das finanças e dirigentes de bancos centrais das maiores economias do mundo. Fez-se ainda protagonista de primeira grandeza no debate das medidas destinadas a limitar os efeitos das mudanças climáticas.

Embora pouco lembrada, a diplomacia da saúde foi outra iniciativa relevante no exercício do poder suave. Ancorado na experiência de implantação de um dos maiores sistema de saúde pública do mundo, o SUS, e na política bem-sucedida de tratamento do HIV/Aids, premiada pela Unesco, o país levou adiante uma ação internacional digna de nota no terreno da saúde global.

Em 2001, com José Serra no Ministério da Saúde e em aliança com a Índia e a África do Sul, obteve histórica vitória na disputa com os Estados Unidos sobre quebra da patente de medicamentos de combate à Aids. Em 2003, o país teve papel importante na aprovação do Convenção Quadro sobre Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS). Nossa cooperação técnica internacional se expandiu muito. Acordos com países da América Latina e da África permitiram compartilhar conhecimentos em saúde pública e controle epidemiológico de doenças tropicais.

Tudo isso ficou no passado. O Brasil tem hoje a desonrosa distinção de ser incluído no grupo de quatro países governados por dementes que negam a gravidade da pandemia do coronavírus. Três deles —Nicarágua, Turcomenistão e Belarus— são ditaduras.

Na madrugada de ontem, por sinal, nosso minúsculo chanceler usou o Twitter para falar do “comunavírus” e atacar a OMS, suposta ponta de lança do globalismo, segundo ele, a nova cara do comunismo. Pelo menos sabemos como fomos parar na liga dos insanos.

Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap.

Anatomia do ódio - FERNANDO SCHÜLER

Folha de S. Paulo - 23/04

A tribalização cresceu durante a pandemia


Haters são tipos antigos. Ainda lembro da leitura de Robert Darnton e seu belo “O Diabo na Água Benta”, contando a história dos caluniadores profissionais na França do século 18.

Muitos viviam no exílio, em torno da Grub Street e no submundo literário londrino, fazendo fluir a partir daí uma rede sórdida de libelos e panfletos que está na raiz da moderna imprensa sensacionalista.

No mundo atual tudo se vulgarizou. Pesquisa conduzida pelo Pew Reseach Center mostra que 41% das pessoas já sofreram algum tipo de bullying digital e que a orientação política é, de longe, o maior motivo.

O hater tende a ser um dualista moral. Ele imagina, como tentaram mostrar Jonathan Haidt e Greg Lukianoff em seu “The Coddling of American Mind”, que a vida é uma luta entre pessoas do bem e pessoas do mal, entre a verdade e o erro, e que ele representa o primeiro time. Vem daí, em última instância, seu direito de julgar e ofender.

O hater é, em regra, um covarde. Seu primeiro esconderijo é o anonimato. Isso vem de longe, mas ganhou escala infinita no mundo digital. Seu segundo esconderijo é a irrelevância. Agride porque tem pouco a perder. Ninguém lhe dará muita bola nem lhe cobrará nada. Seu terceiro esconderijo é a tribo. Ele fala e escreve para a turma dos “especialistas na própria opinião”. Vive em uma banheira morna feita de viés de confirmação.

Haters não pertencem a esta ou àquela ideologia. No Brasil de hoje, é uma experiência antropológica interessante visitar grupos de radicais governistas e antigovernistas e ver como o haterismo se comporta.

Em ambos, o sistema está prestes a ruir. A divergência é para que lado. A linguagem é surpreendentemente parecida. Os palavrões variam, mas são sempre abundantes. Há alusões a animais (gado, jumento) e à tediosa terminologia do século 20 (comunistas, neoliberais).

Como previsível, ambos os grupos consideram que o estranho e a barbárie ficam sempre do outro lado. A alusão ao debate politico brasileiro é lateral. O haterismo não depende de conteúdo. É um problema de forma.

Sua expressão mais banal é a falácia ad hominem, atestado mais claro de que alguém não dispõe de argumento nenhum. Curiosamente, ela é o pão de cada dia de nosso debate público. Para ver a enrascada em que nos encontramos. E lembrar de Umberto Eco.

Há uma ampla literatura sobre as raízes do haterismo na psicologia humana. Uma boa referência é o livro de Hugo Mercier e Dan Sperber, “The Enigma of Reason”. Sua tese diz que a mente humana evoluiu para guerrear por ideias, para justificar nossas ações, conduzir a tribo e destruir a tribo do outro.

O kantismo e sua racionalidade universalista, apelo à imparcialidade e à disciplina no “uso público da razão” seriam uma espécie de antinatureza. A razão iluminista pode expressar o que temos de melhor, mas é rara. Aqui no chão rondamos o estado de natureza.

A internet, por fim, piorou tudo. Sua marca é a reação imediata e não reflexiva. No mundo pré-digital, as instituições produziam alguma moderação nas opiniões. Seu tempo era diferente e nos obrigava a filtros e a algum tempo de espera.

Nas mídias sociais de hoje, muito antes de baixar a curva da raiva já tuitamos duas ou três vezes. Tudo em um ambiente de baixa empatia, destituído de pessoas de carne e osso, que olham na nossa cara, transpiram e com a qual podemos nos identificar.

Por fim, uma máquina de não esquecimento. O inferno de Nietzsche, feito da permanente lembrança de velhos ressentimentos. Estranho mundo em que os contextos mudam, mas as imagens e palavras estão lá congeladas no tempo. Cada gesto, cada erro ou acerto, tudo pronto a ser retirado do freezer, ao sabor da raiva da hora.

No início dessa crise, escrevi que a raiva e a tribalização da vida iriam crescer. As pessoas perderiam muito do contato pessoal e o país de cada um, pouco a pouco, se confundiria mais e mais com sua timeline.

Talvez tenha exagerado, mas temo que não.

Fernando Schüler, professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo.

A entrevista de Teich é um desastre matemático, lógico, ético e linguístico - REINALDO AZEVEDO

UOL - 23/04

Nelson Teich. ministro da Saúde: o doutor levaria zero na prova de dissertação do Enem. Ele é incapaz de argumentar em benefício da própria tese — ou teses. Ele tem um monte!


O ministro Nelson Teich, da Saúde, concedeu a sua primeira entrevista coletiva. Sei lá se foi um desastre de público ou de crítica. Não tenho ainda instrumentos para afirmar isso. Foi, com certeza, um desastre de lógica. Fosse uma redação do Enem, levaria pau. Teich tem dois problemas principais: um excesso de teses — e, pois, não tem nenhuma — e argumenta contra si mesmo com impressionante desfaçatez, ligeireza ou burrice. Como, além de médico, é empresário do ramo da saúde, pode ser também esperteza. A ver.

Anunciou que terá um general da ativa como seu secretário executivo: trata-se do comandante da 12ª Região Militar da Amazônia, o general Eduardo Pazuello. Em entrevista à "Veja", o militar anunciou o que seus pares de farda no Palácio vivem negando: que a instituição chamada "Exército" esteja entrando no governo. Nas suas palavras: "Estou indo como instituição, não como o Eduardo Pazuello". Essa questão, em particular, fica para mais tarde. Encerro este parágrafo assim: a entrevista de Teich foi de tal sorte ruim que um general da ativa como o seu segundo talvez seja o menor dos males. Há tempos eu não via um homem público dizer coisas tão desconjuntadas.

Comecemos pela sua afirmação mais, digamos, noticiosa: "O Brasil hoje é um dos países que melhor performa em relação a covid. Se você analisar mortos por milhão de pessoas, o número do Brasil é de 8,17. A Alemanha tem 15. A Itália, 135. Espanha, 255. Reino unido, 90 e EUA, 29". Seus números não são encontráveis em lugar nenhum. Teria de fornecer as fontes.

"Performar" é linguagem de "empreendedor de palestras". O verbo inexiste no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. O idioma de Camões oferece um bom cardápio ao ministro para que ele recorra não exatamente ao idoma do Shakespeare, mas ao cacoete de "coach" de Internet. Já aceitamos "performance", mas "desempenho" e "desempenhar" está na Última Flor do Lácio desde o século 16.

Ocorre que isso é mentira. Um único cemitério de Manaus enterrava uma média de 30 mortos por dia antes do coronavírus. Agora, os sepultamentos passam de 100 todos os dias. O Distrito Federal vinha registrado média de 28 casos por dia. Testagem num grupo de 3.196 pessoas encontrou 46 doentes. Há as UTIs lotadas de boa parte das capitais, tudo a indicar uma subnotificação escandalosa.

Mas esperem: foi o próprio ministro a garantir que os números sobre a doença são precários, desconhecidos. Ele tratou com desdém o estudo do Imperial College, de Londres, afirmando ser só um modelo matemático, mas é incapaz de considerar em sua fala os fatos que estão a evidenciar a subnotificação. A partir de informações obviamente erradas, compõe uma tese que ele mesmo se encarrega de desmoralizar.

Não que eu me surpreenda. Quem emprega diante de mim o verbo "performar", confesso, desperta no escriba a suspeita de que, em seguida, vai tentar vender alguma coisa de que eu notoriamente não preciso. Não é só isso, não.

O doutor também, segundo entendi, quis sugerir que há um excesso preocupação com a Covid-19, razão por que, então, nós todos estaríamos prestando pouca atenção às outras doenças que matam. Observou que pacientes de outros males estariam deixando de ir aos hospitais. Ora, não me diga! Sem, então, que acorram em busca de atendimento, os estabelecimentos beiram o colapso, ou já chegaram lá, em várias partes do país. E se estivessem indo? O desastre seria maior, certo? Ou perdi alguma coisa em raciocínio tão especioso?

Houve outros flertes com o perigo, como quando sugeriu que, se multiplicarmos por 100 o número oficial da Covid-19, ainda assim, haveria mais de 200 milhões de brasileiros não-contaminados. É verdade. Mas o que aconteceria, então, se mais de quatro milhões (se não houvesse subnotificação) procurassem o sistema de saúde, público ou privado, ao mesmo tempo? O isolamento social, que ele não teve coragem de defender e contra o qual, na verdade, falou o empresário da saúde, busca impedir que isso aconteça.

A propósito: ele já tem um plano de saída da quarentena? Não! Ainda não tem porque, diz, faltam os números. Não obstante, ele acha que estamos entre os países que melhor "performam", a despeito das evidências.

Porcentagem pode ser a arte por excelência da burrice. Quando os EUA deixaram o Vietnã, haviam atuado no conflito 2,5 milhões de americanos: só 1,15% da população. Desse total, 58 mil morreram: a ridicularia de 0,027%. Por que dar bola para isso, né, doutor Teich? Ainda é o maior trauma do país mais poderoso da Terra.

Por falar nos EUA, os contaminados conhecidos pelos coronavírus hoje no país são pouco mais de 0,25% da população. Teich sugeriria pensar nos outros 99,75%... Os mortos, então, correspondem a ínfimos 0,0144%...

O país mais rico do mundo entrará em recessão e planejou a maior intervenção do Estado na economia de sua história por causa dessa gente ridícula, né? Se multiplicarmos esse número por 100, para seguir a sugestão de Teich, seria, ainda assim, 1,44%. O glorioso doutor do "performar" não hesitaria em sugerir que se pensasse nos outros 98,56%.

Nem Donald Trump ousou uma conta tão moralmente pornográfica.

Vale a piada. Reclamaram a Deus que, para o Brasil, ele não mandou terremotos, maremotos, furacões... Do tipo irônico, observou o Senhor: "Aguarde para ver a elite que eu vou colocar lá".

Um general da ativa como o seu segundo? E claro que se trata de um exotismo da democracia brasileira. Mas, dadas as enormidades do doutor Teich, talvez seja o menor dos males. Em tese ao menos, o Exército, em regra, é treinado para tentar salvar vidas dos brasileiros.

O doutor quer "performar".

A indústria ilegal de ‘fake news’ por trás dos atos pró-ditadura - EUGÊNIO BUCCI

O Estado de S.Paulo - 23/03

Motor do bolsonarismo, ou essa indústria vem à luz, ou a treva cobrirá o resto


Na terça-feira o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou a abertura de inquérito para investigar as manifestações pró-ditadura militar realizadas no domingo. É preciso investigar.

É preciso investigar o horror. Domingo foi um dia de horror. Usando a Bandeira Nacional como capa de Zorro por cima de trajes que imitam fardas militares de camuflagem, os circunstantes exigiram medidas exótico-totalitárias, como o fechamento do Congresso e do próprio STF. Contra o horror, o pedido de investigação foi protocolado na segunda-feira, dia 20, pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que cumpriu seu dever funcional. O Brasil precisa identificar a indústria que está por trás desse pesadelo que vai virando realidade.

Todos sabemos que o presidente da República é a cereja podre do bolo infecto. Vestindo uma camisa vermelho-chavista, ele compareceu ao ato em Brasília e discursou diante de faixas que pediam “intervenção militar já”. Ao estrelar a matinê lúgubre, o governante antigoverno segue sua tournê como animador de auditórios macabros e de macabros de auditório.

Não obstante, o próprio Bolsonaro não figura como alvo do inquérito. Isso significa que, ao menos por agora, não será oficialmente reconhecido o que já é ululantemente público: que o chefe de Estado patrocina, com seus garganteios perdigotários, a histeria golpista da extrema direita brasileira. Deixemos isso de lado – por enquanto. Não há de ser nada.

O que mais conta, neste momento, não é investigar o óbvio comprometimento presidencial, mas descobrir quem atua, e como, no backstage das vivandeiras machistas. O decisivo, agora, é saber com que dinheiro, por meio de que engrenagens de comunicação e com que logística esse movimento se tornou uma empresa bem administrada. Quem financia esse circo que, enquanto bate palmas para aquele tal que deu de declarar “eu sou, realmente, a Constituição”, trabalha para implodir a Constituição federal? Quem gerencia a estratégia? Onde estão os cérebros por detrás dos descerebrados? Estão fora do Brasil?

Se não quiser virar geleia, a República precisa decifrar o enigma. Para piorar as coisas, pouca gente ajuda. O presidente da República e as milícias, num coro afinadíssimo, sabotam as políticas sanitárias, chantageando o povo pela reabertura de seus comércios, e ninguém faz nada. As oposições entraram em quarentena moral. É inacreditável. A passividade e a desarticulação das oposições estarrecem. É nesse deserto desolador que a iniciativa de Augusto Aras desponta como o único gesto sério contra o golpismo que bate bumbo. Viva Augusto Aras. Fora ele, só o que temos para protestar contra o anacrônico fascismo vintage são as frases balbuciadas do neoestadista Rodrigo Maia e – ah, sim – a decisão tomada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Os três pelo menos agiram. Perceberam que não adianta pedir “paciência histórica” e esperar que as instituições tomem as providências. Ora, as instituições são vertebradas por pessoas e, se essas pessoas não agirem com coragem, não haverá como barrar o arbítrio. As pessoas que vertebram as instituições têm de se mexer e, para isso, precisam do clamor organizado das oposições. Ou é isso, ou os fascistinhas de WhatsApp vão levar a melhor.

Os fascistinhas de WhatsApp só não levarão a melhor se os crimes sobre os quais se apoiam forem desmascarados. É aí que entram as fake news. Se quisermos de fato desvendar a máquina do golpismo, teremos de entender o nexo entre a indústria clandestina das fake news e o bolsonarismo. Não basta seguir o dinheiro. É preciso seguir as fake news.

Em sua decisão, Alexandre de Moraes apontou o rumo. Determinou que se apurem a “existência de organizações e esquemas de financiamento de manifestações contra a democracia e a divulgação em massa de mensagens atentatórias ao regime republicano, bem como as suas formas de gerenciamento, liderança, organização e propagação que visam lesar ou expor a perigo de lesão os direitos fundamentais, a independência dos Poderes instituídos e ao estado democrático de direito, trazendo como consequência o nefasto manto do arbítrio e da ditadura”. Nada mais justo.

Agora, finalmente, as fake news entraram na mira certa. Elas são produto de uma indústria organizada, profissionalizada, tecnologicamente bem equipada, que opera por meio de negócios ilícitos e de relações de trabalho clandestinas. Essa indústria, que é criminosa na forma e no conteúdo – como são, não por acaso, as próprias fake news –, turbina a propaganda de ódio e promove a fúria inconstitucional, antidemocrática e antirrepublicana. Essa indústria politiza o debate sobre medicamentos, bombardeia a credibilidade da imprensa, calunia as instituições, desacredita a ciência, enxovalha a universidade, demoniza a arte e fomenta o fanatismo. Ela convence os malucos – alguns dos quais em altos cargos públicos – de que incêndios na Amazônia não existem e de que o vírus é fabricado em aulas de marxismo cultural. Essa indústria milionária é o motor do bolsonarismo. Ou ela vem à luz, ou a treva cobrirá o resto.

Jornalista, é professor da ECA-USP

Da colisão à coalizão - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 23/04

Presidente quer base com a velha política


Os movimentos do Palácio do Planalto para abrir uma brecha na estrutura de apoio do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com vistas a eleger seu sucessor no início do ano que vem, é uma mudança radical de posição do presidente Bolsonaro que pode ter consequências fundamentais na sucessão presidencial de 2022.
Quem era o antipolítica até domingo, quando anunciou em alto e bem som no fatídico comício com reivindicações antidemocráticas em frente ao QG do Exército que não queria negociação nenhuma e que “o povo está no poder”, agora aparece no noticiário como aliciador do apoio de figuras como Roberto Jefferson e Valdemar da Costa Neto, emblemáticas da “velha política”.
O ministro da Secretaria de Governo Luiz Eduardo Ramos, que faz a coordenação parlamentar do Planalto, nega o caráter de “é dando que se recebe” das negociações, e o ministro-chefe do Gabinete Civil, Braga Neto garante que não é o interlocutor de Rodrigo Maia.
Tudo indica, porém, que foi o próprio presidente Bolsonaro quem desencorajou a tentativa de aproximação com o presidente da Câmara, que considera agora seu principal adversário político. O objetivo de Bolsonaro ao tentar montar uma maioria de apoio dentro do Congresso, coisa a que ele se recusava desde o início do governo, é de impedir qualquer tentativa de pedido de impeachment, e, ao mesmo tempo, organizar uma base de apoio para a reeleição, cooptando parlamentares para seu futuro partido em coalizão com a base do Centrão.
Bolsonaro tenta assim sair da rota de colisão para assumir um presidencialismo de coalizão que repudiava até então. Por isso, nega em público o que faz em privado, pois seus apoiadores nas redes sociais estão mentalmente organizados para repudiar os políticos e não aceitarão, por exemplo, o deputado Arthur Lira como candidato do governo para a presidência da Câmara, pois responde a acusações de corrupção.
O deputado Marco Feliciano, pastor licenciado, é outro potencial candidato desse grupo do centrão que pode abandonar Rodrigo Maia para aderir à coalizão bolsonarista em troca de cargos. O passo arriscado que Bolsonaro vai levá-lo a um caminho que já foi percorrido por muitos presidentes que quiseram interferir na eleição da presidência da Câmara e perderam.
Exemplos recentes há muitos, a começar por Fernando Henrique, que montara na Câmara um rodízio entre PSDB, PFL e PMDB que foi quebrado pelo tucano Aécio Neves, que superou Inocêncio de Oliveira do PFL, que seria o presidente da vez.
Em 2005, em plena crise do mensalão, Severino Cavalcanti, então deputado federal do baixo clero, derrotou o candidato do presidente Lula, Luis Eduardo Greenwald. Em 2014, depois que o PMDB fechou a reeleição da chapa Dilma-Temer, a presidente tentou interferir na eleição da Câmara em favor de Arlindo Chinaglia, do PT, e acabou derrotada pelo peemedebista Eduardo Cunha, que acabou sendo o responsável pela aceitação do pedido de impeachment de Dilma Rousseff.
A disposição aparente de Bolsonaro de entrar nesse jogo de influência pode levar ao acirramento das relações entre o Palácio do Planalto e a Câmara, além de criar condições para eventuais escândalos. O difícil vai ser Bolsonaro ganhar a confiança dos parlamentares, pois eles sabem que as milícias digitais não dão descanso.
O movimento para que tanto Rodrigo Maia quanto Davi Alcolumbre se elejam mais uma vez, o que é vedado pelo regimento interno das duas Casas, perde a força diante da crise que o país vive. Maia já havia dispensado essa proposta, que precisa de uma mudança constitucional para ser feita, mas ainda há muitos parlamentares que queriam garantir sua permanência.
O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, continua empenhado nessa mudança, e também está se aproximando de Bolsonaro. Tanto Arthur Lira quanto Marcos Pereira eram deputados candidatos da base que apóia Rodrigo Maia. Com esse espaço que abriram na dissidência, Maia também ganha mais espaço para consolidar sua base. Provavelmente vai tentar um candidato que una os partidos de centro-direita com os da esquerda, para derrotar Bolsonaro.

Esclarecimento
Os ministros da Defesa, General Fernando Azevedo e Silva, e da Secretaria de Governo, General Luiz Eduardo Ramos, ambos da ativa, enviaram mensagens negando que tenham sido convidados pelo presidente Bolsonaro para comparecerem à manifestação antidemocrática realizada domingo na frente do Quartel-General do Exército em Brasília. Está registrado.

Na confusão, não se vai longe - ZEINA LATIF

O Estado de S. Paulo - 23/04

É inacreditável a discussão da retomada sem consulta do time da Economia

Há muito trabalho a ser feito na economia. Mesmo que não houvesse o isolamento social, o custo econômico da epidemia seria elevado, pelas consequências de uma crise social e pelo contágio do quadro global sobre o crédito, as exportações e o mercado financeiro.

O governo não está inerte, mas há muitas lacunas no conjunto de medidas e desafios a serem enfrentados, durante e após o isolamento social.

Primeiro, há indefinições e ajustes necessários nas medidas econômicas. Por exemplo, a linha de crédito da Caixa às microempresas dá tratamento diferente daquele oferecido a pequenas e médias empresas para honrar a folha, com juros mais baixos. Há também muitas pendências no socorro a setores, como o de energia.

Segundo, é preciso maior coordenação interna do governo. Um exemplo são as dificuldades enfrentadas pelos Ministérios da Saúde e da Agricultura por conta da ausência de resposta contundente do governo aos ataques do ministro da Educação à China. É necessário reconstruir as relações diplomáticas, não só pelas dificuldades na importação de equipamentos de saúde daquele país, mas pelo impacto sobre as exportações e futuros investimentos no Brasil, inclusive nos leilões de infraestrutura.

Terceiro, falta diálogo com Estados e municípios para uma solução rápida e justa para a expressiva queda de arrecadação, sem comprometer a higidez fiscal da União e sem abrir espaço para excessos desses entes. A solução da tensão atual deveria se dar pelo diálogo entre os Poderes Executivos da federação, e não pelo ataque ao Congresso.

O governo também falha ao afastar a proposta de flexibilizar a carga horária e os salários do funcionalismo – contida na PEC emergencial –, em linha com o proposto ao setor privado. Seria um grande passo no socorro a Estados e a municípios, cuja arrecadação está comprometida com o pagamento da folha.

Quarto, falta respeito institucional e liderança do Executivo na relação com os demais Poderes, abrindo espaço para avanço de pautas perigosas. Há centenas de projetos de lei no Congresso, para o período de calamidade pública, que geram distorções e injustiças, com ônus ao erário e ao funcionamento da economia.

Não faltam propostas de proteções indevidas a segmentos do setor produtivo e da sociedade.

O mesmo vale para a suspensão da cobrança de serviços de utilidade pública – energia, água, telecomunicações, gás, internet, pedágio de transporte de carga. Seria um desastre para esses setores que já sofrem as consequências da epidemia e engrossam a fila de pedidos de ajuda da União.

Há propostas que ferem o mercado de crédito e ameaçam jogar por terra os esforços do Banco Central para estimular as concessões. É o caso da suspensão do pagamento de empréstimos bancários de empresas de menor porte, financiamento imobiliário, e cheque especial e cartão de crédito.

Preocupam as propostas de empréstimo compulsório sobre empresas – alíquota de 10% sobre o lucro líquido nos últimos 12 meses de empresas com patrimônio liquido igual ou superior a R$ 1 bilhão – e outras tantas sobre grandes fortunas.

São medidas de apelo populista que gerariam fuga ainda maior de recursos do País e desincentivo à produção. Não se pode confundir a necessidade de promover a justiça tributária com medidas desastrosas, que podem parecer avanços aos olhos da sociedade, mas, na realidade, são contraproducentes.

A grande maioria das propostas na Câmara aguarda o despacho do seu presidente, Rodrigo Maia, que provavelmente não o fará, tendo inclusive rejeitado algumas recentemente. Por exemplo, a Câmara derrubou proposta do Senado que criava o auxílio-emprego com impacto fiscal na casa de R$100 bilhões.

Importante, porém, o trabalho do governo. Sem isso, fica difícil as lideranças no Congresso desarmarem tantas bombas.

A crise é severa e o pós isolamento será muito difícil. A julgar pela atuação atual do governo, os sinais preocupam, incluindo a inacreditável discussão de plano de retomada sem consulta ou liderança do time da Economia.

Consultora e doutora em economia pela USP

A democracia sob ataque - JOSÉ SERRA

ESTADÃO - 23/04

Se tentasse agir fora dos limites da lei, o Poder Executivo seria contido pelas instituições


Quem estava atribuindo a última das crises governamentais ao estilo do presidente da República e ao conflito entre Jair Bolsonaro e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta não perdeu por esperar além de um par de dias. O presidente já está desautorizando o ministro recém-empossado, Nelson Teich, e desafiando o compromisso do novo ministro com uma atitude cautelosa e baseada em fatos comprovados, de revisão da política de isolamento.

Os menos pessimistas esperavam que, afastado o ministro que seria um suposto desafeto, Bolsonaro deixaria a política de combate à pandemia em mãos da autoridade competente, aliás, declaradamente em “alinhamento completo” com ele, e assumiria como prioridade total a gestão da crise sanitária, social e econômica provocada pela pandemia. Mas sua conduta depois da demissão de Mandetta parece ser não mais a de combate à política identificada com seu ex-ministro, mas a de insatisfação com as instituições da República.

No domingo Bolsonaro liderou um comício em praça pública não para protestar contra o isolamento, como vinha fazendo, mas, como disse, a fim de dar sua vida “para mudar o destino do Brasil”. Em seu discurso, em palanque improvisado da caçamba de uma picape, deu um passo a mais em sua verdadeira campanha contra o Congresso, o Supremo, os partidos políticos e mesmo contra a Constituição, não só com palavras, mas também com condutas pouco apropriadas ao papel presidencial no Estado Democrático de Direito.

Em poucas palavras, expressou teses esdrúxulas sobre a democracia, como o conceito equivocado de que “todos estão submissos à vontade do povo”. Nas democracias, o povo não submete nem é submisso à vontade de ninguém. Só se submete à Constituição, que garante a sua liberdade e emana dele próprio, o povo.

O contexto do discurso, as palavras de ordem implícitas que não vêm de hoje - como o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e dos partidos, e a substituição da Constituição pelo famigerado AI-5 - são questões graves. Evidenciam que, para Bolsonaro e seus seguidores, as autoridades legitimamente eleitas devem submeter-se a uma massa rebelada comandada por ele, que se compromete a fazer não tudo o que a Constituição permite, mas “tudo o que for necessário” - linguagem da política associada à da violência.

O povo brasileiro reconquistou sua liberdade em 1985, pelo voto popular, com imensas manifestações políticas - a campanha das Diretas-Já - e uma negociação realista entre praticamente todas as tendências da oposição, que escolheram Tancredo Neves e puseram fim a um longo período de regime autoritário. A Constituição de 1988, cuja legitimidade veio do voto popular, estabelece que a representação do povo, que se expressa nas urnas, e não em carreatas, é prerrogativa compartilhada pelo Legislativo e pelo Executivo. Qualquer medida de força contra o Congresso equivaleria a tentativa de golpe.

Talvez os inspiradores do presidente - não por acaso dotados de escassa experiência de vida pública, com pouco ou nenhum conhecimento da gestão de governo e nenhuma capacidade para avaliar tanto obstáculos reais como a resiliência dos que tratam como adversários - tenham elucubrado uma tática de provocar o Parlamento, com o propósito de induzi-lo a erro e justificar um golpe de força contrário.

Mas o Congresso, cuja experiência mediana de vida pública é considerável, incluindo familiaridade com a gestão de governo, e muitas vezes décadas de habilidades para fazer e receber concessões, não deverá cair nessa arapuca. Ao contrário, poderá exercer os freios e contrapesos que a Constituição lhe outorga para se contrapor a eventuais deslizes do presidente.

Talvez o primarismo das táticas de alguns dos inspiradores da Presidência os conduza ao devaneio de um golpe com apoio militar. Tratar-se-ia de uma perfeita manifestação de alienação do que hoje representam as Forças Armadas brasileiras, institucionalmente comprometidas com o Estado Democrático de Direito e com suas responsabilidades de manutenção da ordem interna e da defesa externa do País. Elas dispõem de uma oficialidade altamente preparada, disciplinada e hierarquizada, que repelirá qualquer tentativa contra a ordem democrática, como - fique bem claro - seus dirigentes têm tornado público inúmeras vezes.

Caso tentasse agir fora dos limites da lei e em desrespeito à Constituição, o Poder Executivo seria contido pelas instituições. Para tanto os cidadãos brasileiros contam com o Supremo Tribunal Federal, um Poder que fala pela Constituição e se há de pautar pela absoluta neutralidade partidária, ideológica e religiosa na imposição da lei.

Uma certa perda de confiança do Parlamento no presidente vem se avolumando desde sua eleição e a ela se soma um começo de desgaste de sua popularidade, uma vez que ele criou expectativas altas sem que as razões do descontentamento popular com os serviços públicos essenciais fossem bem enfrentadas por seu governo. Com popularidade relativamente menor e desconfiança do Parlamento, Bolsonaro terá de mudar, pois a democracia brasileira ele não mudará.

SENADOR (PSDB-SP)

General pede noticiário de Alice no Brasil maravilhoso - JOSIAS DE SOUZA

UOL - 23/04

Ministro palaciano que cuida da coordenação política do governo, o general Luiz Eduardo Ramos vive entre os dois mundos de Alice: o País das Maravilhas e o País do Espelho. Ele só não suporta viver no Brasil do coronavírus, que ultrapassará nesta quinta-feira a marca de 3 mil cadáveres.

O general está abespinhado com a imprensa. Acha que o noticiário traz "uma cobertura maciça dos fatos negativos." Está incomodado com o excesso de cadáveres e esquifes. "No jornal da manhã, é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. No jornal da noite, é caixão e é corpo."

É preciso divulgar notícias positivas, encareceu o general. Coisa digna de Lewis Carroll e do País das Maravilhas criado por ele para sua personagem Alice. Nos telejornais do ministro Ramos, haveria um vácuo no qual a realidade deixaria de existir. Não restaria senão a fantasia.

No universo criativo de Carroll, Alice, depois de visitar o País das Maravilhas, decidiu atravessar o espelho de sua casa. Entrou no País do Espelho, onde enxergou tudo ao contrário do que realmente é. É nesse país que vive o general Ramos.

Atrás do espelho do Planalto, há um presidente que vê a pandemia como "gripezinha", trata isolamento social como uma inutilidade e finge não enxergar o monturo de corpos —"Eu não sou coveiro!", desconversa.

No Brasil maravilhoso idealizado pelo general Ramos, o noticiário refletiria a realidade invertida do país do espelho, onde brilha Bolsonaro. Quem ousasse mostrar o mundo real passaria por impatriótico. Beleza. Agora só falta descobrir uma maneira de esconder os caixões e os corpos.

Bolsonaro e a democracia - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 23/04

A democracia é ameaçada quando um presidente usa a visibilidade e a importância institucional de sua cadeira para fazer carga contra outros Poderes, como faz Bolsonaro

Em meio à repercussão negativa do comparecimento do presidente Jair Bolsonaro a um ato de caráter golpista no fim de semana em Brasília, houve quem tentasse minimizar o gesto, dizendo que nada no comportamento do presidente configurava qualquer ameaça à democracia.

Do mesmo modo, há quem diga e repita que Bolsonaro até agora não fez nada que pudesse ser caracterizado como crime de responsabilidade – passível, portanto, de impeachment. Há até mesmo alguns mais exaltados que desafiam os críticos das atitudes do presidente a apontar um único gesto concreto de Bolsonaro contra o regime democrático.

De fato, a lei que rege o impeachment (Lei 1.079/50) é vaga o bastante para permitir múltiplas interpretações, a depender da disposição política do Congresso de afastar o presidente. Lá está dito, por exemplo, que é crime contra a probidade da administração “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo” (artigo 9.º). Considerando que Bolsonaro já fez um comediante responder por ele numa coletiva de imprensa para humilhar os repórteres, já ofendeu a honra de mulheres jornalistas e já divulgou um vídeo pornográfico pelas redes sociais, entre outras peripécias, o tal artigo parece sob medida para ele.

Mesmo assim, não parece provável, ao menos neste momento, que Bolsonaro venha a sofrer um processo de impeachment por conta de sua conduta. Também, por ora, são escassas as chances de prosperar o argumento de que Bolsonaro cometeu crime em razão de seu clamoroso desdém pela saúde pública, em plena pandemia de covid-19, ao promover aglomerações em seus comícios fora de hora, como denunciam os autores de uma petição enviada ao Supremo Tribunal Federal para obrigar o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a analisar um pedido de impeachment por eles encaminhado. A petição, que arrola vários outros supostos crimes de Bolsonaro, chega a requerer que os poderes presidenciais sejam transmitidos ao vice, Hamilton Mourão, para evitar que “o presidente da República prorrogue a reincidência delitiva de crimes de responsabilidade”.

Em geral, esse tipo de argumento tem sido tratado como exagerado pelos que relativizam a conduta de Bolsonaro. Para estes, a democracia não corre nenhum risco quando o presidente apronta das suas. “O presidente tem o jeito dele”, minimizou, por exemplo, o vice Mourão. Ademais, dizem, Bolsonaro nada fez contra o Congresso, o Judiciário ou a imprensa. “Bolsonaro é um democrata”, concluiu o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Decerto Paulo Guedes, Hamilton Mourão e outros consideram que só há ameaça à democracia quando decretos presidenciais liquidam as liberdades e instauram a ditadura. O problema é que, quando se chega a esse ponto, significa que a democracia acabou faz tempo.

A democracia é uma construção permanente, e há várias maneiras de debilitá-la, muito antes da edição de decretos ditatoriais. A democracia é ameaçada quando um presidente usa a visibilidade e a importância institucional de sua cadeira para fazer carga contra outros Poderes, como faz Bolsonaro; é ameaçada quando militantes virtuais, alguns com assento no Palácio do Planalto, confundem a opinião pública com mentiras as mais diversas para desmoralizar a oposição e o contraditório, imprescindíveis para a saúde democrática; e é ameaçada quando o presidente sistematicamente criminaliza a política, sugerindo que a “vontade do povo” é exclusivamente por ele representada e deve ser atendida sem qualquer discussão.

Nada disso está expresso de modo explícito nos códigos legais brasileiros; logo, em tese, não constituem crime de responsabilidade. Mas tudo isso, quando somado e sistematicamente realizado, envenena aos poucos a atmosfera democrática, tornando aceitáveis até mesmo ideias liberticidas em nome da salvação nacional.

Assim, se e quando o tal crime de responsabilidade for seriamente invocado, será como reação natural à degradação da democracia – que, para o bolsonarismo, deve ser finalmente destruída para impedir que o inimigo continue a se interpor entre o “povo” e seu destino glorioso, anunciado pelo seu líder.

A sofisticação de Bolsonaro - WILLIAM WAACK

ESTADÃO - 23/04

Presidente está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados


Jair Bolsonaro bradou que o “povo está no poder” ao discursar numa manifestação abertamente golpista em frente do QG do Exército, e se empenha em provar o que disse. Está negociando cargos em troca de apoio aos que, no sistema brasileiro, são por definição os representantes do povo: os deputados.

Para seus padrões, é a mais sofisticada jogada política desde que assumiu. Tentar arrebanhar uns 200 deputados da confusa e amorfa massa de parlamentares identificada como “Centrão”. Em busca do que até agora dizia não ser necessário para governar, ou seja, uma base razoavelmente ampla e coordenada na Câmara dos Deputados.

Os motivos para proceder de forma que prometeu jamais empregar – trocar cargos por apoio político – são dos mais diversos, inclusive a vontade pessoal de “punir” quem considera chantagista, conspirador e traidor, o atual presidente da Câmara, de quem Bolsonaro pretende tomar parte efetiva do controle do “Centrão”. Um dos mais relevantes motivos para a ação do presidente, porém, é o reconhecimento tácito de que o poder do chefe do Executivo diminuiu desde que ele assumiu.

Outro motivo é o efetivo cerco que esferas políticas e institucionais impuseram ao presidente via STF. Bolsonaro tem razão em apontar para o outro lado da Praça dos Três Poderes ao se dirigir por redes sociais a apoiadores e dizer que “eles” (ministros do STF) o impedem de fazer o que quer. Reconhece que, sem o Supremo e o Legislativo, nada vai.

A outra operação política sofisticada (para padrões bolsonaristas) encabeçada pelo Planalto lembra fortemente o que se fez nos tempos da tal “velha política”, que, teoricamente, teria deixado de existir. É sacar praticamente a fundo perdido dos cofres públicos, investir em grandes obras e ver no que dá.

A possibilidade surgiu com a tal ajuda de emergência a governadores e prefeitos que o próprio ministro da Economia chamou de “farra fiscal aproveitando-se de uma crise de saúde pública”. As modalidades desse socorro estão em negociação, mas já abriram uma avenida que permitiria ao Executivo utilizar um “orçamento de guerra” praticamente sem limites e sem restrições do tipo Lei de Responsabilidade Fiscal.

Claro, enquanto for tudo “temporário”, isto é, enquanto durar o estado de calamidade. Sabe-se que, no Brasil, “temporário” em questões fiscais é termo elástico – desonerações “temporárias” de folhas de pagamento, por exemplo, já duram uns 10 anos. E a julgar pelo que se ouve falar no Planalto, o “temporário” entraria pelo próximo ano (para provável desespero do secretário do Tesouro) e abriria a janela para execução de um plano de recuperação baseado em investimentos públicos com foco central em infraestrutura.

É um tipo de intervenção estatal que requer centralização e coordenação e a tarefa foi atribuída a um oficial de Estado-Maior, general Braga Netto, ministro da Casa Civil. Talvez uma pitada de oportunismo político (quem não tem?) tenha levado o ministro Paulo Guedes, um dedicado aluno de Milton Friedman, a cooperar estreitamente nessa empreitada e abraçar-se a John Maynard Keynes. Famoso pela frase, entre outras, de que “se mudam os fatos, eu mudo de opinião” (Guedes, tal como os clássicos Friedman e Keynes, gostaria que os políticos o ouvissem mais).

Os fatos que mudaram são de enorme magnitude. A crise do coronavírus tornou imprevisível o tamanho da tragédia de saúde pública e econômica no mundo e no Brasil. Ela escancarou a falta de liderança no topo do Executivo, a profunda disfuncionalidade do sistema de governo brasileiro e agravou a situação de um país já prisioneiro da armadilha da renda média, com produtividade estagnada – e sem ter conseguido levar adiante o essencial das reformas estruturantes.

Sim, não há manuais prontos para lidar com uma crise dessas. Que já é uma lição prática do esqueçam o que eu disse antes.

A manada de Bolsonaro - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 23/04

Não enxergam nada à frente, atropelam tudo o que se interpõe no seu caminho


Um meme circulou nesses dias na internet mostrando animais invadindo cidades vazias em razão do isolamento contra a contaminação do coronavírus. Há quatro imagens. A primeira mostra cervos nas ruas de uma cidade no Japão. Na segunda veem-se cabras circulando num adensamento urbano no País de Gales. A terceira são peixes nas agora cristalinas águas de Veneza. E a quarta mostra brasileiros vestidos de verde e amarelo, pregando a intervenção militar, a volta do AI-5 e o fim da quarentena, e tem como legenda “gado no Brasil”.

Era para ser uma brincadeira? Claro. Mas o fato é que a brincadeira retrata muito bem o tipo de gente que sai às ruas para pedir que se cometam atentados contra a vida e contra a democracia. São pessoas que se aglomeram e seguem na mesma direção num comportamento de manada causado por um agente que eles nem sempre conhecem ou conseguem identificar. No caso dos bolsonaristas, a origem é o “gabinete do ódio” do Palácio do Planalto. Ou alguém tem dúvida sobre quem produz as convocações para essa manada? Inquérito determinado pelo Supremo Tribunal Federal vai responder a essa questão.

As pessoas que carregam cartazes pedindo a intervenção militar, o fechamento do Supremo e do Congresso parecem estar em estado de euforia gerado pelo uso da codeína presente em certos xaropes. Os viciados, quando sob o efeito da droga, são chamados de “bois”, porque ficam muito excitados, respondem rapidamente a estímulos externos e são facilmente manipulados. Como não enxergam nada à frente, atropelam tudo o que se interpõe no seu caminho. Por estarem cegos, acabam sendo violentos.

Veem-se repetidamente agressões a jornalistas ou a qualquer um que pense de maneira diferente da manada. Os gritos que ela produz são insolentes, autoritários, nervosos. O sentimento de euforia de grupo causa uma impressão de impunidade, e a manada sente que adquiriu superpoderes e se comporta como se fosse inalcançável. O mais grave é que, além dos sentidos, o intelecto dessas pessoas também parece sofrer descompensações causadas pelo efeito manada. Mas, ao contrário da emoção, que só é mexida quando a manada está reunida, a razão parece sofrer dano permanente.

Só assim se explica a crença de que o presidente Jair Bolsonaro é o novo que veio para expurgar o Brasil da velha política. Esse é o maior e o pior de todos os enganos da manada. Bolsonaro é político mais velho do cenário político nacional. O que ele ambiciona, e faz com que a manada também ambicione como se fosse original, é a volta a um passado tão distante quanto macabro. A manada é burra, não há outra forma de entender os pedidos de intervenção militar com Bolsonaro no poder. Se concretizado, teríamos um Estado militar/miliciano de consequências nefastas para todos, inclusive para a manada.

Além das permanentes loas ao passado remoto, o presidente também pratica a política corriqueira do passado recente. Ele e seus filhos cometeram enquanto parlamentares as famosas rachadinhas, a maneira mais sórdida de se fazer um dinheiro rápido. Retiravam parte dos salários dos servidores dos seus gabinetes e o embolsavam. E a afirmação de que não iria negociar nada feita na porta do QG diante da manada era uma mentirinha típica do velho político. Bolsonaro está negociando, sim, e com o que há de pior na política nacional.

Seus interlocutores no Congresso e nos partidos são, entre outros, o ex-deputado Valdemar Costa Neto (criminoso condenado tanto no mensalão quanto no petrolão), o senador Ciro Nogueira (investigado pela Lava-Jato), o ex-prefeito e ex-deputado Gilberto Kassab (processado por improbidade administrativa, financiamento ilegal de campanhas e contratação ilegal de empresas), o deputado e ex-ministro Marcos Pereira (denunciado pela Lava-Jato por receber propinas da Odebrecht) e o ex-deputado Roberto Jefferson (criminoso condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro).

A síndrome que acomete a manada que acredita em Bolsonaro poderia ser também chamada de efeito “Maria vai com as outras”. Mas aí, não. Esses homens e mulheres não toleram o gênero feminino.

Brasil precisa estudar alternativas para enfrentar a crise do petróleo - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 23/04

País terá de atrair investimentos privados para ajudar na mitigação dos efeitos da pandemia



O colapso no mercado mundial de petróleo em meio à pandemia do novo coronavírus abala empresas e, também, agrava a situação de governos, cujo caixa será afetado por significativa redução na receita de tributos cobrados sobre a venda dessa matéria-prima e de seus derivados.

Em alguns países a dependência ultrapassa um terço do Produto Interno Bruto, o que indica cenário de grave crise fiscal nos próximos meses. Na América Latina, o choque tende a ser amplificado no México e no Equador, entre outros. O Brasil depende menos, mas não escapa. A Petrobras já decidiu paralisar (no jargão setorial, “hibernar”) 62 das suas plataformas. O corte na produção será equivalente a 23 mil barris de petróleo por dia. Justifica-se: “É para preservar os empregos e a sustentabilidade da empresa nesta que é a pior crise da indústria em cem anos”.

Estudos da Agência Nacional de Petróleo sugerem que óleo e gás respondem por 8% em média do total coletado em tributos no país. Para alguns estados produtores, como o Rio de Janeiro, significa perda de receita acima desse patamar.

Há excesso de produção no mundo, e as áreas disponíveis para estocagem são insuficientes. Um dos reflexos está na alta de preços do frete. A Petrobras, por exemplo, pagava US$ 3 por barril no ano passado para entregas em longo percurso. Na semana passada viu a cotação subir para US$ 11 por barril — um nível de custo superior ao de extração de óleo em alguns campos marítimos.

Há um mês, Arábia Saudita e Rússia aumentaram a produção e derrubaram preços para a faixa de US$ 20 por barril (tipo Brent, mescla do Mar do Norte). A pandemia reduziu ainda mais o consumo global, o que levou a momentâneo colapso dos preços no mercado futuro nos Estados Unidos.

Os EUA têm no óleo tipo West Texas Intermediate (WTI) a referência comercial. Contratos para maio tiveram rendimento negativo (US$ -37,63). Pela primeira vez, produtores pagaram para que o produto fosse levado — ao menos de forma escritural — dos seus livros contábeis.

Para o Brasil, problema maior está na saída da pandemia. É quando vai precisar atrair investimentos privados para ajudar na mitigação dos efeitos da crise econômica provocada pelo vírus. A atual confusão deveria induzir uma reflexão sobre as atuais restrições à exploração (modelos de cessão onerosa, partilha e de concessão). Para atrair capitais, um regime único, o de concessão, talvez seja a melhor alternativa, porque a era dos megacampos rentáveis parece estar se esgotando. Este é um debate necessário e urgente.