terça-feira, março 17, 2020

Um presidente contra o País - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo - 17/03

Bolsonaro colocou em risco a vida de pessoas. A única coisa que lhe interessa é seu projeto de poder, que está acima do Brasil e de todos os brasileiros


O presidente Jair Bolsonaro contrariou recomendações de seu próprio ministro da Saúde e participou no domingo de uma manifestação em Brasília a seu favor e contra o Congresso. Bolsonaro, que teve contato com mais de uma dezena de infectados pelo coronavírus, deveria ter se mantido em isolamento, conforme orientação médica. Ao não fazê-lo, colocou em risco a saúde de um número indeterminado de pessoas e a sua própria – que é, por razões óbvias, uma questão de Estado. O presidente foi tão gritantemente irresponsável que custa a crer que não soubesse o que fazia. E, se sabia, o fez de caso pensado: para ele, a saúde dos brasileiros é irrelevante, bem com os impactos econômicos e sociais tremendos da quarentena a que o País começa a ser submetido para tentar frear o avanço da covid-19. A única coisa que interessa a Jair Bolsonaro é seu projeto de poder, que está acima do Brasil e de todos os brasileiros.

Até agora, o presidente da República não parece ter levado a epidemia a sério. Não se sabe se compactua com alguns de seus seguidores, que, nas manifestações do fim de semana, asseguraram que o coronavírus é uma “mentira” destinada a esvaziar os protestos. Mas o fato é que Bolsonaro, mais de uma vez, considerou que a reação mundial à covid-19 tem sido “histérica” – como se os epidemiologistas de todo o mundo estivessem errados. Pior: nesta segunda-feira, em meio às críticas por seu comportamento inconsequente, Bolsonaro afirmou, com todas as letras e em sua gramática peculiar, que a orientação para que ficasse em isolamento, feita pelos próprios médicos da Presidência, conforme protocolos internacionais para casos como o dele, é nada menos que um “golpe” movido por “interesses que não sejam republicanos”.

Os interessados nesse “golpe”, segundo Bolsonaro, seriam os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. “Está em jogo uma disputa política por parte desses caras”, disse o presidente à Rádio Bandeirantes. Assim, Bolsonaro amplia seu confronto com o Congresso, depois de pessoalmente ter convocado os brasileiros a ir às ruas protestar contra os parlamentares, ignorando ao mesmo tempo o respeito devido ao Poder Legislativo e as restrições a aglomerações por causa da covid-19. Nas fotos que fez com seus simpatizantes durante a manifestação de domingo em Brasília, aparecem vários cartazes que defendem o fechamento do Congresso e a prisão de líderes políticos. É pouco provável que o presidente não os tivesse visto, e é menos provável ainda que não soubesse que estava vinculando sua imagem a um movimento golpista.

Assim, o presidente tenta transformar a pandemia de covid-19 numa arma política, ignorando a aflição de milhões de cidadãos que tiveram sua rotina subitamente rompida e que, ao contrário do presidente, estão cumprindo as orientações das autoridades sanitárias, mesmo diante de pesados prejuízos.

Enquanto Bolsonaro brinca com suas fantasias sediciosas, alguns dos Ministérios que lidam com as áreas mais afetadas pela pandemia mostram serviço. Ao contrário do presidente da República, o Ministério da Saúde tem se desdobrado para fornecer informações de qualidade ao público e a preparar o sistema para receber o fluxo de doentes, que deve se multiplicar nas próximas horas. Já o Ministério da Economia, ainda que tenha demonstrado hesitação num primeiro momento, tomou algumas boas medidas para o enfrentamento dos efeitos imediatos da crise.

Além disso, o Congresso, conforme as palavras de seus líderes, não pretende entrar no jogo de Bolsonaro. “Somos maduros o suficiente para agir com o bom senso que o momento pede”, disse Rodrigo Maia.

Essa maturidade certamente continuará a ser colocada à prova pelo presidente da República, que parece cada vez mais obstinado em criar conflitos – como se estivesse em busca de um pretexto para aquele que talvez seja seu verdadeiro objetivo: destruir as instituições da democracia representativa e colocar em seu lugar o regime de democracia direta, tão caro aos autocratas populistas dos quais Bolsonaro é, por ora, apenas um esforçado aprendiz.

A epidemia do golpismo - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 17/03

Bolsonaro vai — foi —para a briga de rua


O presidente foi ou não infectado pelo novo coronavírus? Ninguém saberá. Há um estímulo oficial à descrença constante. Diz-se que não. Mas quem acredita?

O procedimento bolsonarista já está mapeado: plantar — neste caso, lá fora (numa TV americana) — a notícia (de que Jair Bolsonaro estaria contaminado) que se negará em seguida. O que interessa é desmentir; subsidiar a trombada de versões, a desconfiança generalizada.

Estamos na mais baixa cavidade da depressão política que nos consome desde 2013 — da qual o bolsonarismo é a mais intensa convulsão. A degradação é veloz. Mas o fundo do poço é fundo. O presidente comete sucessivos crimes de responsabilidade. Estica progressivamente — todos os dias — a corda dos arreganhos autoritários. Sem qualquer resposta institucional de corpo, ousa — ousará — cada vez mais. Escrevi, na semana passada, que não tardaria até que tomasse parte numa das manifestações contra os Poderes da República. Aí está.

A ação é coerente se considerarmos a série de imposturas e irresponsabilidades por meio da qual, nos últimos 30 dias, Bolsonaro liderou uma implacável blitz autoritária contra o equilíbrio democrático no Brasil. Não é dinâmica de quem pretenda se submeter aos filtros republicanos por muito tempo. Há um quê de desespero. O prometido crescimento econômico não veio. O presidente sabe que frustrará e perderá apoio. Sua única gramática — tanto mais se acuado— é a da guerra. Ele vai — foi —para a briga de rua. O clima de crise é a temperatura ideal para medidas de exceção.

Onde estão as provas de que a eleição presidencial de 2018 foi fraudada? Não se pode esquecer desse esboço para golpe. Tampouco se pode esquecer da reação covarde do Judiciário.

Faz já mais de semana desde que o presidente atentou, com gravidade sem precedente, contra o sistema eleitoral — auge de um arco dramático totalitário encenado enquanto a linha evolutiva da Covid-19 já se traçava como alarmante realidade mundial. Supremo Tribunal Federal e Congresso Nacional optaram pela omissão. Bolsonaro captou o recado: o próprio convite a que comparecesse a uma manifestação que, ora, alvejaria Congresso e STF.

Nada exprimirá melhor a mentalidade bolsonarista — o projeto autocrático de poder — do que a fala do presidente à nação, na quinta-feira passada. O eixo do pronunciamento jamais foi a gravidade da situação decorrente do avanço da Covid-19, mas uma mensagem sectária, destinada exclusivamente a seu povo, acerca dos últimos atos de rua.

O país desafiado por uma pandemia, mas a preocupação de Bolsonaro era — é — com o fomento aos grupos organizados em que investe como instrumento de força para emparedar as instituições. Para que não haja dúvida: o presidente se valeu de cadeia de rádio e TV para difundir uma falsa desconvocação para os protestos. No domingo, comportando-se como um sociopata, foi prestigiá-los in loco.

É estratégia arriscada — mas que, por isso mesmo, impõe que se reflita sobre seus propósitos. A possibilidade de que tenha ido para o all-in não é remota.

A linguagem reacionária bolsonarista é inconsistente com o trânsito da normalidade — com os parâmetros da estabilidade democrática — e não tem recursos para se sustentar em longo prazo senão sob a aposta no golpismo. Atenção: golpismo. Donde se explicaria o elevado aporte na radicalização chantagista que caracteriza a tentativa de implantar uma cultura plebiscitária entre nós.

O Palácio do Planalto é uma célula difusora de mentiras — uma estrutura inconfiável, incapaz de semear o terreno de previsibilidade necessário a pactos e contratos. O governo não tem palavra. Trai. Dinamita pontes. Confunde. Age como situação e oposição simultaneamente. Só o firme propósito autocrático de fomentar a anomia — numa circunstância propícia à ruptura institucional — justifica que, em meio a tamanha crise, com todos os elementos de uma tempestade perfeita, o centro do governo se coloque, deliberadamente, como centro gerador de desinformação e conflito.

É uma atitude para o choque que cansa, que estressa — e que é avessa a qualquer ambiente de negócios, que fere as mais básicas necessidades de um chão em crise. Quem investirá aqui? Há um horizonte projetado. A economia, mal saída da recessão, regredirá. Os tais mercados — que aderiram ao bolsonarismo sem considerar que reforma liberal é inconsistente com projeto revolucionário — não tardarão a pular fora. Não tardará a pular fora também o trabalhador cujo saco cheio financiou o ressentimento bolsonarista, mas que agora percebe que instabilidade não gera emprego. Um cenário a que Bolsonaro, com menor base social, responderá com ainda maior tribalismo golpista.

As chances de o Brasil singrar celeremente para a ingovernabilidade são grandes. Até o impasse absoluto, entretanto, o novo coronavírus servirá de desculpa para muita incompetência, muito embuste — e alguns crimes.

Presidente confinado - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 17/03

Na crise do vírus, melhor deixar tarefas com capazes, e Bolsonaro com bizarrices



O presidente da República parece rumar a uma espécie de quarentena voluntária. Desde que assumiu o cargo, isolou-se da sabedoria, da liderança, da ciência, do bom senso e da melhor prática política.

A atitude estúpida de ir ao encontro de sua diminuta seita de extremistas neste domingo (15), em Brasília, indica que o país não contará com o chefe de Estado na condução da resposta à maior urgência humanitária em décadas.

Pelo contrário, Jair Bolsonaro ameaça tornar-se obstáculo à extraordinária coordenação de esforços e recursos necessária para mitigar o impacto que o espalhamento da Covid-19 exercerá no sistema de saúde, no bem-estar de dezenas de milhões de brasileiros e na economia, duramente atingida.

O melhor, pois, é deixar o ocupante intelectual e politicamente isolado do Planalto falando e fazendo asneiras sozinho, enquanto os capacitados se incumbem da tarefa monumental.

Os ministros ainda lúcidos, como o da Saúde e o da Economia —cujas declarações à Folha nesta segunda (16) repõem a esperança na racionalidade e no somatório de esforços—, podem articular-se diretamente com os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, bem como com os governadores dos estados, onde fica o terreno dessa batalha.

O presidente não faria mal, nesse contexto, em delegar a uma autoridade nacional o enfrentamento da epidemia e de suas consequências imediatas, a exemplo do que ocorreu durante o racionamento de energia elétrica em 2001.

A despeito do modelo que se adote, o fluxo de informações e decisões necessita ser fluido e ancorado em evidências. Planos de contingência para hipóteses extremas, como o bloqueio de circulação em regiões com vasto contingente populacional, precisam estar delineados em questão de poucos dias.

Com enorme parcela dos trabalhadores na informalidade e elevado contingente de desempregados, milhões de famílias poderão ter queda vertiginosa em seu poder de compra. Será preciso garantir a alimentação desses brasileiros.

Os mais vulneráveis à debacle, seja na saúde, seja na renda, exigem socorro prioritário. A asfixia econômica também requererá ações para que o mergulho passageiro não deflagre uma onda de falências.


Diante da enormidade do desafio, cujo sucesso será avaliado em vidas e empregos poupados, seria desperdício de tempo preocupar-se com as bizarrices de Bolsonaro.

Que permaneça em seu confinamento de fato até que a crise esteja superada. Todos terão a ganhar.