A experiência de sentido na vida brota da relação com as coisas concretas
Fazer a gestão de pessoas por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas é uma boa? Sim, pensa o pequeno líder que veste ternos baratos.
O mundo corporativo é a distopia perfeita. Observando-o, você pode vê-lo com os olhos de Gregor Samsa, famoso personagem que vira um inseto em “A Metamorfose”, escrito por Franz Kafka (1883-1924), que, aliás, saiu em nova e belíssima edição pela editora Antofágica. A fortuna crítica vê nessa história de horror um libelo contra a animalização do ser humano na modernidade e sua obsessão pela produtividade e eficácia. Famosa é a passagem em que, num dos seus primeiros pensamentos, Gregor se angustia por perder o bonde e faltar no emprego. A pergunta é: tendo acabado de virar uma barata (não é dito que seja uma barata, mas é mais legal pensar que seja), você pensaria logo que perdera o emprego?
A resposta é “sim”, principalmente, se você for objeto de um gestor que dirija seu corpo de “colaboradores” (acho fofa essa expressão) por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas.
Mas, o mais radical é pensar que, apesar de jurar que se está animalizando as pessoas em nome do aperfeiçoamento da gestão (portanto, em nome da “causa da modernidade”), esteja-se, na verdade, animalizando as pessoas, apenas, pelo simples gosto de vê-las correndo de uma lado para o outro como baratas. Sempre suspeito, como todo niilista, que o gozo estético vem antes da justificativa ética, racional ou política.
Ricardo Cammarota
Este é o olhar de Gregor, ver no mundo a melancolia das baratas. O “último Gregor” na novela “A Metamorfose”, o melancólico, é o Gregor mais contemporâneo de todos nós.
A filosofia do utilitarista John Stuart Mill (1806-1873), entre outros, já suspeitava que dimensões a ver com o bem-estar impactasse a vida social, moral e política —e, portanto, o trabalho. E lembremos que, sem dúvida, os utilitaristas ingleses eram filósofos radicalmente implicados com a “causa da modernidade”.
Há em John Stuart Mill quatro chaves muito interessantes que podem nos ajudar a entender o processo moral através do qual um “fazedor de humanos-baratas” realize seu objetivo. Vejamos. A ordem de apresentação não implica nenhuma hierarquia de valor entre elas.
A primeira é o terreno da racionalidade ou coerência. Tratar as pessoas com coerência ou racionalidade, fazendo elas sentirem que o ambiente em que respiram é um ambiente em que ser racional vale a pena, evita a produção de baratas. A ideia de reconhecimento dos méritos num local de trabalho passa por aqui. Reconheço o quão utópico é essa ideia de meritocracia. A esquerda não deixa de ter razão quanto aponta para este fato. É muito raro se chegar a identificação do que é, de fato, mérito, ou mesmo chegando a ele, chegar a justa aplicação do reconhecimento pelo mérito. Mas, ainda assim, Mill acerta quando diz que somos seres racionais e, portanto, a pura e simples irracionalidade e incoerência na gestão de pessoas destrói o tecido moral onde elas vivem e trabalham.
A segunda é a liberdade. Sentir-se autônomo em alguma medida e não uma barata perseguida é essencial para a vida ética numa corporação, e não apenas nesta, mas estou pensando especificamente no mundo corporativo hoje. Negar a liberdade de pensamento, ação e resposta, é valorizar a metamorfose de Gregor. Punir quem age livremente causando medo no tecido corporativo é trabalhar pela “causa das baratas”.
A terceira é a imaginação. Seres humanos que têm sua capacidade imaginativa destruída, rapidamente degeneram em baratas. O medo, a instabilidade, a irracionalidade nas decisões por conta da sua impenetrabilidade destrói a capacidade imaginativa das pessoas, negando a elas a percepção de futuro próximo. E pessoas sem essa percepção degeneram em baratas. A experiência de sentido na vida, que é uma experiência que brota da nossa relação concreta com as coisas a nossa volta, depende profundamente da nossa capacidade imaginativa. Tente você ai pensar no seu futuro, sem a possibilidade de imaginá-lo melhor do que hoje é o seu presente. Como se sentirá e qual o impacto que essa sensação negativa terá na sua participação na “causa da modernidade”, isto é, no progresso calculado da vida?
Por último, o afeto moral. Sem afeto, finalmente, nossa barata chega a melancolia. Os idiotas da gestão adoram um mundo do trabalho sem afetos.
Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.