segunda-feira, julho 29, 2019

A melancolia das baratas - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 29/07

A experiência de sentido na vida brota da relação com as coisas concretas


Fazer a gestão de pessoas por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas é uma boa? Sim, pensa o pequeno líder que veste ternos baratos.

O mundo corporativo é a distopia perfeita. Observando-o, você pode vê-lo com os olhos de Gregor Samsa, famoso personagem que vira um inseto em “A Metamorfose”, escrito por Franz Kafka (1883-1924), que, aliás, saiu em nova e belíssima edição pela editora Antofágica. A fortuna crítica vê nessa história de horror um libelo contra a animalização do ser humano na modernidade e sua obsessão pela produtividade e eficácia. Famosa é a passagem em que, num dos seus primeiros pensamentos, Gregor se angustia por perder o bonde e faltar no emprego. A pergunta é: tendo acabado de virar uma barata (não é dito que seja uma barata, mas é mais legal pensar que seja), você pensaria logo que perdera o emprego?

A resposta é “sim”, principalmente, se você for objeto de um gestor que dirija seu corpo de “colaboradores” (acho fofa essa expressão) por meio do medo, da desestabilização do cotidiano de trabalho e da valorização do medíocre e do lambe-botas.

Mas, o mais radical é pensar que, apesar de jurar que se está animalizando as pessoas em nome do aperfeiçoamento da gestão (portanto, em nome da “causa da modernidade”), esteja-se, na verdade, animalizando as pessoas, apenas, pelo simples gosto de vê-las correndo de uma lado para o outro como baratas. Sempre suspeito, como todo niilista, que o gozo estético vem antes da justificativa ética, racional ou política.
Ricardo Cammarota

Este é o olhar de Gregor, ver no mundo a melancolia das baratas. O “último Gregor” na novela “A Metamorfose”, o melancólico, é o Gregor mais contemporâneo de todos nós.

A filosofia do utilitarista John Stuart Mill (1806-1873), entre outros, já suspeitava que dimensões a ver com o bem-estar impactasse a vida social, moral e política —e, portanto, o trabalho. E lembremos que, sem dúvida, os utilitaristas ingleses eram filósofos radicalmente implicados com a “causa da modernidade”.

Há em John Stuart Mill quatro chaves muito interessantes que podem nos ajudar a entender o processo moral através do qual um “fazedor de humanos-baratas” realize seu objetivo. Vejamos. A ordem de apresentação não implica nenhuma hierarquia de valor entre elas.

A primeira é o terreno da racionalidade ou coerência. Tratar as pessoas com coerência ou racionalidade, fazendo elas sentirem que o ambiente em que respiram é um ambiente em que ser racional vale a pena, evita a produção de baratas. A ideia de reconhecimento dos méritos num local de trabalho passa por aqui. Reconheço o quão utópico é essa ideia de meritocracia. A esquerda não deixa de ter razão quanto aponta para este fato. É muito raro se chegar a identificação do que é, de fato, mérito, ou mesmo chegando a ele, chegar a justa aplicação do reconhecimento pelo mérito. Mas, ainda assim, Mill acerta quando diz que somos seres racionais e, portanto, a pura e simples irracionalidade e incoerência na gestão de pessoas destrói o tecido moral onde elas vivem e trabalham.

A segunda é a liberdade. Sentir-se autônomo em alguma medida e não uma barata perseguida é essencial para a vida ética numa corporação, e não apenas nesta, mas estou pensando especificamente no mundo corporativo hoje. Negar a liberdade de pensamento, ação e resposta, é valorizar a metamorfose de Gregor. Punir quem age livremente causando medo no tecido corporativo é trabalhar pela “causa das baratas”.

A terceira é a imaginação. Seres humanos que têm sua capacidade imaginativa destruída, rapidamente degeneram em baratas. O medo, a instabilidade, a irracionalidade nas decisões por conta da sua impenetrabilidade destrói a capacidade imaginativa das pessoas, negando a elas a percepção de futuro próximo. E pessoas sem essa percepção degeneram em baratas. A experiência de sentido na vida, que é uma experiência que brota da nossa relação concreta com as coisas a nossa volta, depende profundamente da nossa capacidade imaginativa. Tente você ai pensar no seu futuro, sem a possibilidade de imaginá-lo melhor do que hoje é o seu presente. Como se sentirá e qual o impacto que essa sensação negativa terá na sua participação na “causa da modernidade”, isto é, no progresso calculado da vida?

Por último, o afeto moral. Sem afeto, finalmente, nossa barata chega a melancolia. Os idiotas da gestão adoram um mundo do trabalho sem afetos.

Luiz Felipe Pondé
Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Celulares viraram casa da mãe joana - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 29/07

É como se os celulares das autoridades tivessem se tornado lugares públicos


Peço perdão pelo título politicamente incorreto.

Mas o fato é que os celulares de muitas autoridades públicas brasileirasviraram uma espécie de casa da mãe joana. Em outras palavras, devido ao descaso absoluto com medidas básicas de segurança, muitas das informações desses aparelhos se tornaram totalmente vulneráveis.

Os fatos divulgados na semana passada sobre a invasão do celular do ministro Sergio Moro e outras autoridades do primeiro escalão podem indicar que o buraco é muito mais profundo.

A técnica empregada pelos "hackers" da cidade de Araraquara na verdade não requer nenhum conhecimento profundo em tecnologia para ser utilizada. Ao contrário, o procedimento é tão rudimentar e simples que há inúmeros vídeos na internet ensinando como fazer a mesma coisa que os golpistas que vazaram os dados da Lava Jato fizeram (boa parte desses vídeos tem menos de um minuto e meio de duração).

Ou seja, não é preciso ser hacker com conhecimentos técnicos para executar a modalidade de vazamento que aparentemente afetou centenas de pessoas públicas no país.

Dado o caráter rudimentar do golpe, é possível conjecturar que potencialmente inúmeros aventureiros —talvez centenas— possam ter resolvido brincar de hacker, experimentando para ver se conseguiriam obter informações de pessoas politicamente expostas.

É como se os celulares dessas autoridades tivessem se tornado lugares públicos, acessíveis a qualquer pessoa com a paciência de assistir a um vídeo de um minuto e meio e que obtenha o número de telefone de alguma autoridade pública (porque, assim que ela for hackeada, dará acesso também à sua lista completa de contatos para o golpista).

Então qual foi a falha? Como sempre, em casos como esse, o problema acontece em múltiplos pontos. O primeiro é o uso do aplicativo Telegram, que já foi apontado por instituições como a Electronic Frontier Foundation como tendo vários pontos vulneráveis.

Outro problema é não ter acionado o segundo fator de autenticação do aplicativo, dando-se por satisfeito em utilizar apenas o número do telefone.

Outra vulnerabilidade está no fato de que as caixas de mensagens de voz dos celulares, em regra, podem ser acessadas automaticamente quando recebem uma ligação do próprio número da linha. Como o caso da semana passada demonstrou, fazer spoofing ("simular") um número de telefone é prática trivial hoje.

Mas um dos pontos cruciais é o fato de que não há política de cibersegurança implementada na administração pública brasileira.

Quem lida com questões de segurança nacional (ou mesmo de interesse público) no primeiro escalão não deveria ter a opção de usar seu telefone comum, cheio de aplicativos comerciais com graus incertos de segurança. É o que acontece nos EUA, onde o presidente (e o primeiro escalão) passa a utilizar aparelhos especiais fornecidos pelas autoridades de segurança institucional, com exceção de Trump, que não topou todas as medidas.

Talvez a visibilidade que esse tema ganhou possa levar ao amadurecimento da cibersegurança na administração pública do país. Esse amadurecimento é tardio. Mas, se a lição da semana passada não foi suficiente, difícil dizer o que será.

READER
Já era: Não prestar atenção em cibersegurança

Já é: Aplicar golpe rudimentar para obter mensagens de aplicativos

Já vem: Continuação das mesmas práticas, já que até agora nada mudou

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Privatização 2.0 - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 29/07

Vendas de estatais como a BR ocorrem em novo modelo; processo deve buscar melhor governança e maior competição


As grandes privatizações dos anos 1990 eram eventos que mobilizavam a política e a Justiça ao longo de dias ou semanas, antes e depois do desfecho dos leilões. Hoje, empresas estatais deixam tal condição em operações bilionárias, porém sem alarde comparável.

Assim se deu com a BR Distribuidora, que até terça-feira (23) pertencia à Petrobras. Esta simplesmente ofertou na Bolsa de Valores 30% das ações que detinha da subsidiária, reduzindo sua participação no capital a 41,25% —o bastante para a perda do controle.

A gigante petroleira arrecadou R$ 8,6 bilhões no negócio quase silencioso. Como comparação, a venda do controle da Vale, uma das maiores e mais controversas desestatizações do país, movimentou R$ 3,3 bilhões em 1997, hoje equivalentes a R$ 12,4 bilhões.

Entretanto houve transação ainda mais vultosa nos tempos recentes. Em abril, a Petrobras se desfez da Transportadora Associada de Gás (TAG) por US$ 8,6 bilhões, ou R$ 32,4 bilhões pela cotação atual.

A despeito do montante envolvido, a repercussão do caso praticamente se limitou às esferas corporativa e jurídica. A partir de contestações de sindicatos, o Supremo Tribunal Federal determinou que a alienação de estatais subsidiárias, não controladas diretamente pelo Tesouro Nacional, prescinde de autorização legislativa.

Não é que se tenham dissipado as resistências políticas e ideológicas à privatização, ainda palpáveis na sociedade brasileira.

A indiferença em relação à TAG provavelmente se deve ao anonimato da companhia. Já a BR, administradora de postos de combustíveis, está entre as mais conhecidas dos brasileiros, mas sua atuação não a distingue claramente das concorrentes privadas.

Aqui e ali se ouviram as costumeiras críticas ao preço supostamente baixo de venda, de escassa fundamentação técnica. Tais diatribes serão mais ruidosas quando e se chegar a hora da privatização de empresas de maior tradição e apelo, como a Eletrobras.

Se é obviamente imprescindível o debate em torno do valor do patrimônio público, cumpre apontar que o papel da desestatização não se resume a fazer caixa.

Esta pode ser a meta da Petrobras ao se desfazer das subsidiárias; para a política econômica, mais importante se mostra a busca por melhor governança das empresas e mais competição no mercado.

Esses objetivos nem sempre foram alcançados a contento nas operações de duas décadas atrás, quando o recurso a fundos de pensão patrocinados por outras estatais e crédito do BNDES preservaram a ingerência do poder político sobre ex-estatais como a Vale.

Quanto à BR, a privatização deve inserir-se em uma estratégia mais ampla de abertura do setor, incluindo o fim do monopólio da Petrobras no refino do óleo para a produção de derivados. Um processo bem conduzido tende a contribuir para o fim de tabus que ainda cercam a privatização no país.

Conta de ‘restos a pagar’ já é quase um orçamento público paralelo - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 29/07

Adiar pagamentos para os exercícios seguintes é forma de burlar limites legais


O Brasil avança no quinto ano seguido em que a soma das despesas públicas, descontados os gastos com o pagamento de juros da dívida estatal, ultrapassa o total de receitas do governo.

Prevê-se para este 2019 gastos de R$ 139 bilhões acima da arrecadação, fechando-se um ciclo de cinco anos consecutivos de contas no vermelho —aquilo que economistas definem como déficit primário.

Esse grave desequilíbrio deve persistir até 2022, de acordo com as projeções contidas na lei orçamentária em análise no Congresso.

Essa é a dimensão da crise fiscal brasileira. Seus reflexos permeiam todo o Orçamento da União. Um deles está na rubrica “Restos a pagar”, que abriga as despesas com compromisso de utilização previsto, mas que não foram pagas até o último dia de cada exercício fiscal, ou seja até 31 de dezembro de cada ano.

O saldo de restos a pagar se tornou tão grande que passou a ser quase um orçamento paralelo: soma R$ 189,5 bilhões, representando um aumento de R$ 34,1 bilhões (22%) em relação ao ano passado.

Tem sido recorrente. Mais da metade do que se tem efetivamente pago como investimento, nos últimos anos, refere-se à liquidação de despesas da conta de restos a pagar.

No ano passado, por exemplo, o Tesouro Nacional pagou parte de despesas inscritas no Orçamento de 2010. Ou seja, liquidou-se uma conta relativa a projetos que haviam sido aprovados em 2010 — oito anos, ou 96 meses, depois. Esse tipo de atitude foi rotineiro nos últimos anos. Num exemplo, em 2016 aprovou-se um aumento salarial para pagamento naquele ano e nos três exercícios seguintes (até este 2019).

Num orçamento engessado como é o da União, onde quase todas as despesas são programadas, ou “carimbadas” por força de lei, essa contínua expansão de débitos pendentes, os restos a pagar, torna inviável qualquer possibilidade de planejamento e administração eficaz.

A distorção provém de uma brecha na Lei de Responsabilidade Fiscal identificada há tempos por gestões federais, estaduais e municipais. Tem sido manejada por diferentes governos como alternativa de emergência ao engessamento orçamentário num ciclo de grave crise fiscal. Seus efeitos, porém, são deletérios.

A saída está na criação de regras para pagamento das despesas dentro de cada exercício fiscal, com reposição da lógica elementar de administração. Uma oportunidade para tanto está na Lei de Finanças Públicas atualmente em debate na Comissão Mista de Orçamento.