domingo, julho 28, 2019

A segunda facada - ASCÂNIO SELEME

O GLOBO - 28/07

Quando você acha que já viu tudo, aparece uma gangue pé de chinelo invadindo celulares de juízes, procuradores, deputados, senadores, ministros de Estado e até do presidente da República, para capturar dados e vendê-los no mercado obscuro da contrainformação


RIO — Que país incrível esse Brasil. Quando você acha que já viu tudo, aparece uma gangue pé de chinelo invadindo celulares de juízes, procuradores, deputados, senadores, ministros de Estado, ministros de tribunais superiores, presidentes da Câmara e do Senado e até do presidente da República, para capturar dados e vendê-los no mercado obscuro da contrainformação. Enquanto nos Estados Unidos operações dessa natureza são objeto de sofisticadíssimos esquemas de espionagem, algumas vezes operados desde Moscou, os quadrilheiros brasileiros operavam em um fundo de quintal em Araraquara.

O resultado dessa invasão, que terminou em lambança e domina o noticiário há mais de um mês, paradoxalmente pode servir a Bolsonaro como uma segunda facada. O efeito do hackeamento sem paralelo nos celulares de autoridades ocorre no pior momento pessoal de Bolsonaro. As bobagens que vinha construindo com palavras e atos, como a ofensa aos nordestinos, a indicação do filho para a embaixada de Washington, a declaração sobre a fome e o ataque à Míriam Leitão, podem acabar lavadas e enxaguadas da memória pelo episódio.

Com a facada de Adélio Bispo, Bolsonaro ganhou a eleição de 2018. Com a “facada” desferida agora pelos hackers de Araraquara, ao presidente foi dada a chance de recuperar parte do prestígio perdido ao longo dos seis primeiros meses de governo, período em que produziu mais barulho e fumaça do que conteúdo de qualidade em que pudessem se agarrar aqueles que votaram nele para impedir a volta do PT ao Planalto. É muito cedo ainda para dizer aonde vai dar a investigação deste caso, mas neste momento Bolsonaro se transforma mais uma vez em vítima.

Segundo o hacker Walter Delgatti Neto, ele foi obtendo os números de celulares à medida que ia invadindo contas do Telegram. Curioso é ter chegado ao jornalista Glenn Greenwald, do site The Intercept, através dos telefones do ex-governador Pezão e da ex-presidente Dilma, aliados do ex-presidente Lula, que deveria ser o maior beneficiário do vazamento. Foi por aí que ele alcançou a ex-deputada Manuela D’Ávila, a quem disse ter procurado para contatar Greenwald. As investigações, que ainda engatinham, vão explicar melhor o depoimento de Delgatti e se ele de fato repassou de graça o pacote de dados do Telegram de Deltan Dallagnol para o site, como declarou à PF.

Parece encomenda política, tem cara de encomenda, uma vez que Delgatti não tem perfil de quem faz ação de natureza política. Ao contrário, ele responde por crimes de estelionato, furto qualificado, apropriação indébita e tráfico de drogas. Mas pode muito bem ter sido uma simples picaretagem de estelionatário. Mesmo assim, os efeitos favoráveis a Bolsonaro já estão plantados. Colateralmente, Moro também ganha, já que o foco passou para os criminosos de colarinho sujo. E perdem Lula e PT.

Nenhuma dúvida de que a ação dos hackers foi um atentado às instituições. Mas tampouco se pode negar que o escândalo acabou sendo um achado para Bolsonaro. Ao lado do benefício político causado pela sua vitimização, a de Moro e a de seu governo, o presidente colhe os louros pela reforma da Previdência, embora não tenha se empenhado por ela, e pela liberação de recursos do FGTS, apesar do limite de R$ 500. Tem ainda a seu favor o melhor resultado na criação de empregos desde 2014 e a recuperação de mais meio bilhão de reais desviados da Petrobras.

Mesmo tendo usado um cocar na quinta-feira, o que em Brasília é tido como um sinal de azar na política, Bolsonaro parece pronto para surfar uma onda de sorte. Resta saber até onde vai a investigação sobre os hackers e se a Polícia Federal vai de fato cumprir seu papel republicanamente. Qualquer erro na condução desse inquérito que resulte em parecer estar a serviço de Bolsonaro ou de Moro, e contra o PT, pode ser uma bomba atômica na reputação presidencial. E, claro, é preciso esperar um pouco para ver se Bolsonaro não vai queimar rapidamente esse capital acumulado com mais algumas das suas.

Uma pergunta
Por que pessoas que operavam no mercado sofisticado de bitcoin guardavam quase R$ 100 mil em dinheiro vivo dentro de um armário? Não existe a menor possibilidade de alguém comprar a moeda digital mandando reais pelos Correios. Carregar malas de dinheiro pra lá e pra cá, transportar dólares escondidos na cueca e guardar cédulas em caixas dentro de casa é mais parecido com coisa da história recente da corrupção nacional.

Cara de zap
Alguém acha que Jair Bolsonaro tem cara de Telegram? Parece mais com o WhatsApp. Imagina se um presidente americanista como ele vai usar “essa coisa dos russos”.

Cuidado, benzinho
Pelo que viu e apurou Bela Megale, repórter e blogueira do GLOBO, Sergio Moro está bebendo demais. No restaurante em que gosta de jantar, o Avenida Paulista de Brasília, ele toma sempre uma garrafa de vinho tinto e “arremata” com dois chopinhos. Ministro, beba com moderação . Ou vão acabar dizendo que vossa excelência anda tenso demais. Razão para isso não lhe falta.

Afogando mágoas
Como se explica essa perseguição implacável do presidente Bolsonaro aos generais de dentro e de fora de seu governo? Talvez seja rescaldo da sua passagem pela caserna, da qual foi expelido com apenas 15 anos de serviço. Estaria descontando as mágoas acumuladas? Um presidente não precisa mostrar que tem autoridade e poder. Basta exercê-los.

Destruindo fontes
Bolsonaro está determinado a explodir todas as pontes que possam permitir um recuo estratégico em caso de extrema necessidade. Parece que na sua breve passagem pelo Exército ele não teve tempo de assistir às aulas de tática.

Faltou apuração
Durante a cerimônia no Palácio do Planalto na terça passada, um ajudante de ordens se aproximou do presidente Bolsonaro enquanto o ministro Paulo Guedes discursava. Cochichou alguma coisa no ouvido do presidente, que abriu a boca e arregalou os olhos com ar abismado . Em seguida pegou o celular que o ajudante trazia na mão e falou com alguém por uns 30 segundos. Terminada a ligação, devolveu o celular para o ajudante de ordens, que se retirou. Bolsonaro ficou uns dez segundos refletindo, com olhar ausente. Em seguida falou alguma coisa baixinho para o vice-presidente, Hamilton Mourão, que fez cara de espanto. O que foi? Pode ter sido o momento em que soube que fora hackeado? Pode, mas não dá para garantir. A TV mostrou a imagem. E ficou nisso, ninguém reportou o susto que deixou lívido o presidente.

Filosofia
Na reunião em que se anunciou a nova fórmula de saque do FGTS, o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, disse que ninguém melhor que o cidadão sabe onde aplicar o seu dinheiro . Acrescentou que essa era a nova filosofia do governo. Se é assim, então porque não liberou tudo de uma vez? Solene, o secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, explicou que ninguém ali estava fazendo mágica. Entendido. Não era filosofia nem mágica. O presidente da Caixa tomou a palavra para dizer que a turma do banco (ele inclusive) vai fazer um mutirão, trabalhando sábados e domingos, para liberar esta dinheirama toda. Ufa.

Presidente rompedor
Perigo! Perigo! Perigo! O ministro Paulo Guedes disse que é preciso descarimbar recursos, tirar dinheiro colocado em “chiqueirinhos” para realocá-lo onde as instituições públicas e os estados entenderem ser melhor. Segundo Guedes, apenas um “presidente rompedor”, que ele reputa ser Bolsonaro, seria capaz de fazer isso. Mas não depende apenas do presidente, é preciso o aval do Congresso. Dinheiro carimbado é dinheiro que o Congresso determinou que seja gasto exclusivamente em uma atividade , para protegê-la exatamente de vontades políticas, muitas vezes casuísticas. Os recursos da educação e da saúde, por exemplo, são carimbados. Imagine se bastasse apenas a vontade do presidente para retirar dinheiro da educação. Pobre educação.

Caso a caso
Há evidentemente alguns carimbos muito mal aplicados na economia nacional, que foram criados como forma de garantir dinheiro público para causas nem sempre necessárias ou republicanas. O “presidente rompedor” terá de mostrar força e articulação no Congresso para eliminar estes penduricalhos mamadores . Vai ter que negociar caso a caso e enfrentar lobbies poderosos.

Férias de Weintraub
O ministro da Educação saiu de férias. Segundo nota divulgada por sua assessoria, ele tem esse direito, embora esteja no cargo há menos de quatro meses. Ele é professor federal e tem férias vencidas. Muito bem ministro, bom descanso. Provavelmente sua excelência foi curtir um calorzinho na Europa . O problema não é o direito do ministro, mas o seu dever. Com tanta coisa para fazer, Abraham Weintraub deveria estar com gana de trabalhar. Mas, não.

Decepção no Uruguai
Uma mulher voltou do Uruguai, na sexta, absolutamente desapontada. Foi a uma loja especializada comprar um baseado legal para fumarcom o marido. Pediram a ela documento de identidade local. Ela não tinha porque é fluminense de Niterói. Disseram então que se tivesse um amigo uruguaio ele poderia comprar o produto. Ela levou um amigo, mas ele não estava cadastrado na loja. Ficaram todos de cara. Segundo a brasileira desiludida, a liberação da maconha no Uruguai “foi uma enganação do nosso Mujica”. Rsrs.

A degeneração ética de um herói - MAURO DE AZEVEDO MENEZES

FOLHA DE SP - 28/07
Toda autoridade deve observar a autocontenção

O exercício de funções públicas pressupõe a observância permanente de requisitos de honestidade. Essa premissa emerge da incidência do princípio constitucional da moralidade na administração pública (artigo 37, caput) e implica, entre outras obrigações, a rejeição de expedientes de abuso de poder e obtenção de vantagem pessoal.

A noção de integridade, essencial sob o paradigma da ética pública, costuma ser posta à prova justamente nas situações em que os agentes públicos são levados a encarar e esclarecer as suas condutas perante a sociedade.

Isso significa que o autêntico e definitivo juízo sobre a decência e a probidade das pessoas públicas não se concretiza quando elas, investidas em competências judicantes, investigatórias ou de controle, apontam desvios praticados por outros personagens da vida pública. É diante da prestação de contas de seus próprios atos que emerge a coerência das atitudes ou se escancara a desfaçatez dessas autoridades.

Prudência e moderação no exercício do poder são virtudes necessárias sobretudo quando exista alguma hipótese de envolvimento do interesse pessoal da autoridade em questão.

Resulta, portanto, em vilipêndio aos predicados da ética pública a atuação de ministro de Estado que desencadeie e interfira em processo investigativo sobre o qual tenha interesse direto, revelando a terceiros, em seu favor, parte do conteúdo de apuração sob sigilo.

A lei 12.813/2013 repele tal conflito entre interesse público e privado, que possa comprometer a predominância dos objetivos de Estado e influenciar, de maneira imprópria, o desempenho da função pública respectiva (artigo 3º). E determina que o ocupante do cargo previna ou impeça o conflito de interesses, sobretudo resguardando informação privilegiada, obtida em razão das atividades exercidas (artigos 4º e 5º, inciso I).

Em tais casos, a prática de atos de gestão em benefício próprio constitui séria transgressão (artigo 5º, inciso V) e pode configurar até mesmo improbidade administrativa (artigo 12), evocando a aplicação da lei 8.429/1992, por atentar contra os princípios da administração pública, ao violar o dever de imparcialidade (artigo 11, caput) e revelar fato que tem ciência em razão de suas atribuições e deva permanecer em segredo (artigo 11, inciso III).

Convém ainda assinalar que, de acordo com o princípio republicano, traduzido no dever constitucional de impessoalidade do administrador (artigo 37, caput), é imperioso o distanciamento entre o desempenho de funções públicas e o patrocínio de interesses pessoais da autoridade, especialmente ante suposições de irregularidades cometidas em função pública pretérita.

Por essa razão, o Código de Conduta da Alta Administração Federal, em seu artigo 10, prescreve que ministros de Estado e altas autoridades públicas federais respeitem eventuais impedimentos de participação em atividades ou decisões que possam vir a beneficiá-los.

Toda autoridade sob escrutínio público deve observar a autocontenção. Quem, alçado ao poder, considere-se ungido em missão redentora e, destituído de sobriedade e equilíbrio, ceda ao êxtase da glorificação, decerto cometerá abusos em sequência, revelando sua verdadeira face. Afinal, como escreveu Jorge Luis Borges, os espelhos têm algo de monstruoso.

Mauro de Azevedo Menezes
Advogado, ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República (2016-2018)

Nada disso - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 28/07

Reforma da Previdência mostrou que falta muito para que partidos participem das discussões com isonomia


Meu amigo e coautor, Samuel Pessôa, criticou a reação dos partidos de esquerda ao apoio de alguns de seus deputados à reforma da Previdência.

Samuel, corretamente, apontou a tática de guerrilha desses partidos que, quando estão na oposição, denunciam qualquer proposta do governo como subserviente a interesses indevidos.

Nos anos FHC, o PT e seus braços auxiliares foram contra o Plano Real, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a criação do Fundef. Durante o governo Temer, esses mesmos grupos foram insensíveis à grave crise herdada e tentaram impedir qualquer medida de ajuste.

Samuel, no entanto, erra ao afirmar que as mudanças na reforma da Previdência proposta pelo governo, como no BPC e na aposentadoria rural, decorreram de negociações com os partidos de esquerda.

Nada disso. As modificações foram obra de 13 partidos de centro, representando 291 deputados, que apresentaram um documento em março afirmando que apenas apoiariam a reforma caso aqueles pontos fossem revistos. Assim foi feito.

Houve negociação com grupos da oposição, mas os partidos de esquerda, como o PT, o PSOL, o PSB e o PDT, não aceitaram conversar e optaram pela velha tática de distorcer os fatos e rejeitar integralmente a proposta de reforma.

Foi de pouca serventia apontar o desequilíbrio das contas públicas e a imensa injustiça da nossa Previdência, que beneficia os grupos de maior renda. Como usual, os líderes dos partidos de esquerda estavam mais preocupados em desqualificar o outro lado do que discutir com cuidado propostas para enfrentar a alta taxa de crescimento do gasto com previdência que asfixia o setor público.

Para agravar, nossas regras atuais privilegiam a elite dos trabalhadores, seja do setor privado, seja do setor público. Assim, seria de se esperar que os partidos de esquerda estivessem genuinamente interessados em reduzir os benefícios para o andar de cima de modo a preservar os direitos do andar de baixo.

Em vez disso, os partidos de esquerda se ausentaram das discussões. É de tirar o fôlego que a sua liderança na Câmara se diga responsável pelas modificações realizadas no relatório do deputado Samuel Moreira.

A imprensa registra os poucos intelectuais vinculados ao PT, como Nelson Barbosa, e os deputados de esquerda que colocaram o país acima das disputas mesquinhas e defenderam a reforma da Previdência, ainda que com ajustes.

No mais, restam políticos que se autoproclamam defensores dos mais pobres, mas que fincaram trincheiras para proteger os privilégios das corporações do setor público.

A turma do palanque fica a gravar selfies enquanto a política trabalha.

Marcos Lisboa
Presidente do Insper, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda (2003-2005) e doutor em economia.

A questão do conteúdo dos grampos persiste - ELIO GASPARI

O GLOBO/FOLHA DE SP - 28/07

Os procuradores blindaram-se na recusa a comentar o que apareceu. Muitos deles, como Sergio Moro, dizem que já apagaram os arquivos. Se o serviço da PF foi de primeira, essa blindagem é de quinta


RIO — A Polícia Federal fez um serviço de primeira localizando e prendendo a quadrilha que invadiu os celulares de centenas de autoridades, inclusive do presidente da República, do ministro Sergio Moro e de procuradores da Lava-Jato. Um deles tinha antecedentes criminais e confessou ter sido o remetente dos grampos para o site The Intercept Brasil. Como isso foi feito e se era gratuito, como ele diz, só a investigação poderá esclarecer. Resta saber se Glenn Greenwald e Manuela D’Ávila conheciam a extensão do crime de sua fonte. Essa é uma perna da questão.

A outra perna está no conteúdo das mensagens já divulgadas e ela continua no mesmo lugar. Os procuradores blindaram-se na recusa a comentar o que apareceu nos grampos. Muitos deles, como Sergio Moro, dizem que já apagaram os arquivos. Se o serviço da PF foi de primeira, essa blindagem é de quinta. A ideia de Moro de destruir as mensagens era primitiva e cheirou mal.

Na forma, o crime cometido pelo invasores dos celulares foi peculiar.Eles atacaram dados de centenas de pessoas e seus antecedentes afastam a ideia de que houvesse interesse público na operação. A questão do conteúdo é outra.

Não passa pela cabeça de ninguém querer apagar da memória dos americanos as revelações contidas nos famosos “Papéis do Pentágono” que expuseram documentos relacionados com a Guerra do Vietnã. Eles foram furtados por um consultor do Departamento de Defesa. Indo-se mais longe, também, não passa pela cabeça dos americanos passar a esponja em cima dos documentos furtados por oito ativistas católicos que invadiram um escritório do FBI na Pensilvânia numa noite de março de 1971. Eles levaram perto de mil documentos. No meio estavam as provas de que o FBI espionava militantes pacifistas, artistas e negros, difamava pessoas e manipulava jornalistas.

Cópias de documentos foram mandados para o “New York Times”, o “Los Angeles Times” e o “Washington Post”. O governo tentou impedir a publicação e divulgou uma nota advertindo que eles comprometiam a segurança nacional. Ben Bradlee, o editor do “Washington Post”, e Katharine Graham, sua proprietária, decidiram publicar parte do material. Aberta a comporta, o conteúdo dos documentos mudou para melhor a história do FBI.

O FBI pôs 200 agentes atrás dos ladrões e a investigação somou 33 mil páginas, para nada. O mistério só foi desvendado 40 anos depois, quando a repórter Betty Medsger, que recebeu a papelada em 1971, identificou e entrevistou sete dos oito invasores. Dois deles viviam longe da política e um tornara-se sincero admirador de Ronald Reagan.

Armstrong pisou na lua e errou de hospital
Neil Armstrong levou oito dias para ir à Lua e voltar. Anos depois, fez uma cirurgia do coração e 19 dias depois estava morto. No voo, deu tudo certo. No hospital, as coisas deram errado, mas a verdade ficou escondida por sete anos, até que o “New York Times” a revelou. O chanceler Ernesto Araújo acha que os diplomatas não devem ler esse jornal, mas para o bem de sua saúde seria bom que o fizesse.

Em 2012, aos 82 anos, Armstrong estava com um desconforto gástrico, foi ao hospital Merciful Faith, de sua cidade, e fez um teste de esforço. Mandaram-no para uma angiografia e acabou com quatro pontes no coração. Algo como cinco dias depois puseram-lhe um marca-passo temporário e, passadas algumas horas, uma enfermeira tirou-lhe os fios. Teve um sangramento e 27 minutos depois levaram-no para o centro de cateterismo. Melhorou, mas voltou a sangrar, com queda de pressão e falha dos rins. Em 20 minutos estava no centro cirúrgico. Daí em diante não se sabe o que aconteceu, mas ele ficou 97 minutos com perda de oxigênio no cérebro. Estava entubado há uns cinco dias quando retiraram o aparelho. Armstrong não conseguia respirar e voltaram a entubá-lo. Dez dias depois estava morto.

Desde 2014 o hospital sabia que médicos independentes haviam estudado o prontuário e observaram que ele poderia ser operado mais tarde, os fios do marca-passo não deveriam ter sido retirados por uma enfermeira sem supervisão e, acima de de tudo, deveria ter ido logo para o centro cirúrgico e não para o centro de cateterismo. Finalmente, não deveriam tê-lo extubado tão cedo. Existem testes rotineiros capazes de medir a resistência de um paciente à extubação. O homem que simbolizou o avanço da tecnologia, morreu por causa de barbeiragens. A pior, foi a sua ida para o centro de cateterismo.

Havia mais: durante dois anos o hospital se fez de bobo, até que a mulher de um dos filhos de Armstrong, advogada, foi-lhe na jugular. Ou pagavam sete milhões de dólares ou seriam denunciados. Pagaram seis milhões, com uma cláusula de segredo que durou cinco anos.

Nisso tudo, houve um cavalheiro, o professor James Hansen, autor da biografia autorizada de Armstrong (“O Primeiro Homem”), publicada nos Estados Unidos em 2005. Nesse tipo de livro o autor aceita omitir fatos a pedido do biografado ou de sua família. Ele sabia de tudo, mas limitou-se a escrever uma frase críptica:

“Fora do pequeno círculo de sua família, dos amigos e da equipe médica que cuidou dele, talvez nunca se venha a saber exatamente o que aconteceu com Neil no hospital ao longo das duas semanas que culminaram com sua morte.”

Na semana passada Hansen saudou a revelação do “Times”, para que o que aconteceu a Armstrong não volte a acontecer.

Eremildo, o idiota
Como nunca trabalhou, Eremildo é um dos 13 milhões de desempregados. Ele vai a Brasília propor a criação da figura do inativo expatriado.

Por cretino, ele acredita que se um procurador da força-tarefa da Operação Zelotes pode viver nos Estados Unidos e se o subprefeito da Barra da Tijuca podia ficar no cargo enquanto administrava sua padaria em Miami, ele poderia ter a ajuda do governo como desempregado em Las Vegas.

Velha política
Desde que votou a favor da reforma da Previdência, a jovem deputada Tabata Amaral virou vidraça.

Uma pedra acertou-a, pois soube-se que recursos de sua campanha foram destinados à remuneração de serviços prestados por seu namorado.

A conta foi de R$ 23 mil e ele efetivamente trabalhou. Não é muito dinheiro e o rapaz era qualificado. Quando o fato foi revelado, a assessoria de Tabata deu explicações burocráticas e ela encastelou-se na surrada recusa a comentar o assunto. Quatro dias depois, explicou-se, com argumentos razoáveis.

Não há coisa mais pretensiosa da velha política do que o “sem comentários”. Tomara que ela tenha aprendido.

Conselho precioso
Quando estava aberta a janela para repatriação de depósitos que estavam no exterior, um magano procurou um advogado para se aconselhar.

— Quanto o senhor tem no Brasil?

— Dez milhões de reais, disse o magano.

— E na Suíça?

— Cem milhões de dólares.

— Então embarque para a Suíça e fique por lá.

Ele embarcou. Foi o conselho mais curto e valioso saído de uma banca de advocacia.

Teu futuro espelha essa grandeza - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 28/07

Salta aos olhos que cedo ou tarde teremos de levar a sério o tema da reforma política


É do saudoso Luiz Gonzaga, cantador e sanfoneiro nordestino, uma das mais deliciosas sacadas da música popular brasileira: o baião Dezessete e setecentos. Para você que não se lembra, aqui vai o refrão: “Eu lhe dei vinte mil-réis/ pra pagar dois e trezentos/ vancê tem que me vortá/ ...Dezesseis e setecentos! Dezessete e setecentos! Dezesseis e setecentos!...”.

Aguardo ansiosamente o dia em que o IBGE nos dirá quantas de nossas crianças de 10 anos de idade sofrem para dominar a velha e boa tabuada, mas adianto que essa é uma minúscula fração do que precisamos levar em conta para compreender as misérias que ora nos afligem como povo. E, principalmente, para começarmos a entender a situação com que nos vamos deparar dentro de dez ou vinte anos, se não conseguirmos escapar do que se tem chamado “armadilha da renda média”. Recorro a essa expressão para designar os países que chegaram até com certa facilidade aos dez ou doze mil dólares de renda anual per capita, mas não conseguem dar o salto para a casa dos vinte mil dólares.

Meu grande temor é que o modesto êxito que venhamos a lograr nos próximos meses, graças sobretudo ao ajuste fiscal, nos leve a uma acomodação descabida. Se não nos mantivermos atentos e fortes, as lagostas corporativistas incrustadas no casco daquela grande embarcação ancorada no Planalto Central nos manterão no estado atual, ou seja, prisioneiros da mencionada armadilha.

Tudo me leva a crer que o nosso grande mal como povo é o que os gregos denominavam akrasia. Acrático é o indivíduo ou o povo que se mostra incapaz de fazer o que sabe ser possível e necessário. Há mais de um século, o mais claro sintoma de nossa akrasia tem sido o ufanismo, atualmente exemplificado pela infindável repetição de que “somos a décima maior economia do mundo”, ou de que “podemos alimentar o mundo inteiro e ainda ficaremos com uma bela sobra”.

A variante mais grave da referida incapacidade é, porém, nossa tendência a supor que a “armadilha da renda média” é um estado estacionário, com o qual podemos conviver indefinidamente. Crescendo 3% ao ano – felicidade que decididamente não está à vista – levaremos uma geração inteira para dobrar a pífia renda de que hoje dispomos, algo entre onze e doze mil dólares anuais. A parcela da sociedade que aufere tal renda não é uma “classe média”, é uma camada muito acima dela. A verdade é que o Brasil não tem uma classe média digna do nome, e não tem por três razões muito simples. Uma classe média se faz com empregos estáveis, com perspectivas de carreira, propriedades pequenas e médias e educação de qualidade. Abaixo dela, como ninguém ignora, temos um oceano de miseráveis.

Essa situação nada tem de estacionária. Sem uma vigorosa retomada do crescimento econômico, com substancial aumento dos investimentos e da produtividade e um rápido preenchimento do espaço reservado a uma futura classe média, teremos, isso sim, uma enorme elevação do nível dos conflitos e da violência de modo geral.

O difícil futuro a que me refiro não é um cenário para almas frágeis. Certos aspectos dele já se estão configurando e são suficientes para nos tirar o sono.

Considere-se, por exemplo, a questão do saneamento. Sabemos que só metade dos domicílios, se tanto, está ligada à rede pública de esgotos. Em outros aspectos, mesmo não sendo um profissional da área, atrevo-me a inquirir se não estamos no limiar de uma dramática regressão. As cercanias das grandes cidades, e mesmo certos bairros dentro delas, estão infestados de pernilongos Culex e mosquitos Aedes aegypti e registram aumentos importantes na população de escorpiões e – pasmem – até na de barbeiros!

Enganam-se redondamente as camadas de renda situadas muito acima da “armadilha da renda média” que se sentem invulneráveis a uma acelerada deterioração nas condições gerais de vida. Se o transatlântico for a pique, a primeira classe irá junto.

Tenho plena ciência de que não estamos na beira de um precipício. Fiz menção acima a avanços recentes, como na reforma da Previdência, e ao papel, justiça seja feita, que neles desempenhou a Câmara dos Deputados. E por mais difícil que seja defender tal tese neste momento, é também certo que temos um regime democrático razoavelmente organizado. Retornando, porém, à armadilha da renda média, salta aos olhos que cedo ou tarde teremos de levar a sério o tema da reforma política. Ele tem estado em debate há mais de trinta anos e os resultados, convenhamos, são modestos.

Nosso sistema político é pateticamente deficitário no que se refere à capacidade de agregar interesses e direcioná-los para objetivos relevantes, de mais longo prazo. Desse ponto de vista, a organização partidária deveria ser o alfa e o ômega. Mas que protagonismo tiveram os partidos políticos na reforma da Previdência? Nenhum. No momento atual, os protagonistas cruciais do processo político não são os partidos, mas os grupos corporativistas, especialistas em desagregar os interesses em jogo até adequá-los a suas respectivas capacidades de pressão.

É essa a estrutura que nos proporcionará o empuxo decisivo para a superação da armadilha, vale dizer, para o crescimento sustentável e para níveis aceitáveis de bem-estar social?

O problema de fundo, como se vê, não se reduz aos nossos resquícios de juvenil ufanismo, nem ao caráter acrático de nosso povo, nem ao cambaleante latim do presidente da República. Cedo ou tarde teremos de encarar a reforma do sistema político e oxalá não o façamos pelos estéreis sendeiros que trilhamos desde meados dos anos 80, e sim com uma participação mais efetiva do setor privado.

SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS

Competição macabra: quem é mais vítima, quem é mais criminoso nessa crise dos hackers. - ELIANE CANTANHÊDE

Competição macabra

ESTADÃO - 28/07
Há uma competição macabra: quem é mais vítima, quem é mais criminoso nessa crise dos hackers.


Ao trocar a condição de juiz pela de ministro da Justiça de Bolsonaro, Sérgio Moro transformou a própria vida num inferno e agora combina, perigosamente, as condições de vítima, suspeito e chefe das investigações sobre o ataque aos celulares de autoridades dos três Poderes da República. A competição é macabra: quem é mais vítima, quem é mais criminoso.

Moro, PF, MP e governistas descarregam as baterias em Glenn Greenwald, que divulga os diálogos no site The Intercept Brasil, mas miram mesmo é nos responsáveis políticos e estão se aproximando do PT, principalmente com a revelação de que Manuela D’ Ávila (PCdoB), vice de Fernando Haddad (PT) em 2018, foi a intermediária entre hackers e Greenwald.

Já o PT, o PDT, boa parte do Congresso e até ministros do Supremo aumentam a pressão sobre Moro, seja pelo “Lula livre”, por serem eles próprios alvos da Lava Jato ou simplesmente por terem uma visão mais rígida da Justiça, contrária aos métodos da operação.

Eles, que já condenam os diálogos vazados entre Moro e Deltan Dallagnol, ganharam munição pesada com três erros formais do ministro: demonstrar que teve acesso a informações sigilosas da Polícia Federal, ao avisar os atingidos; anunciar que o material hackeado seria destruído, o que seria em seu próprio benefício; endurecer o processo de expulsão de estrangeiros justamente no meio da tempestade envolvendo o americano Greenwald.

Há justificativas para esses erros. Afinal, é hipocrisia do PT e do PDT considerar “espantoso” Moro ter acesso a dados de investigação da PF, vinculada à Justiça. O ex-ministro José Eduardo Cardozo, do PT, não tinha? Além disso, Moro diz que não viu a lista nem os diálogos hackeados, só soube das principais autoridades atingidas e cumpriu seu dever de avisá-las, a começar do presidente da República.

Ao falar em destruição das conversas, a sensação que passou foi de que ele está louco para incinerar seus próprios diálogos, quando era juiz e ícone da Lava Jato. Como a PF tratou de corrigir, só a Justiça pode destruir material que possa servir de prova em processos. Em favor de Moro, pode ter sido só um escorregão, uma fala impensada.

Quanto ao processo contra estrangeiros, a primeira reação foi fortemente negativa, no pressuposto de que visaria a deportação de Greenwald, o, digamos, algoz do ministro. Mas, como Moro diz, e comprova com os termos da decisão, ela não tem nada a ver com o americano, que, segundo ele, “nem é investigado”. Os alvos, alega, são os suspeitos de terrorismo e de tráfico de drogas. Mas podia ficar para depois, ministro. Evitaria mais lenha na fogueira.

O fato é que o Brasil não está dividido só entre direita e esquerda, mas entre os que querem crucificar Moro e os que tentam trucidar Greenwald e chegar ao PT. Quem não pretende nem uma coisa nem outra, só quer a verdade, deve ver, ouvir, ler e refletir sobre tudo com muita atenção. Por trás de cada grupo, há interesses e intenções muitas vezes políticas, outras tantas ainda mais complexas.

Como fato, a oposição a Moro está a mil por hora. No Congresso, alvos da Lava Jato ou amigos de Lula armam a convocação do ministro para depor e há quem fale até em CPI. No Supremo, os “garantistas” avessos aos métodos do juiz Moro e agora críticos às ações do ministro Moro têm um instrumento à mão: o pedido de suspeição dele em processos contra Lula. Agosto vem aí fervendo.

O Planalto, que mantinha prudente distância até ontem, quando Bolsonaro previu “cana” para Greenwald, defende enquadrar os hackers na Lei de Segurança Nacional, ou seja, tratá-los como terroristas e espiões que ameaçam a República. Eles, porém, são peixes miúdos nessa guerra.

Agosto, mês das bruxas na política, vem aí com o País, Moro e Greenwald na fogueira

Relação pessoal - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 28/07


Nos últimos dias tivemos várias demonstrações do governo brasileiro de que não mede esforços para ter o apoio dos Estados Unidos. Desde o caso dos navios iranianos, que a Petrobras não queria abastecer com receio de sanções americanas, até a nomeação esdrúxula do filho de Bolsonaro para a embaixada dos Estados Unidos. A questão não é legal, é moral, é ética, de imagem do país.

Se havia alguma dúvida de que o presidente aposta na aproximação pessoal com Trump, através de seu filho Eduardo, o próprio Bolsonaro revelou candidamente o que está por trás da nomeação: pretende que empresas americanas venham explorar minérios nas reservas indígenas.

Surpreendente para quem vive desconfiando de que a intenção das ONGs é roubar nossas riquezas, ou transformar a Amazônia em território internacional.
De qualquer modo, a história mostra que não existe essa “relação pessoal” na política externa dos países. A Academia Brasileira de Letras (ABL) encerrou na quinta-feira um ciclo de palestras sobre o legado do Barão do Rio Branco para a política externa brasileira, e é interessante entender como regredimos ao tempo de Rio Branco, quando o mundo era outro e o país necessitava mais do que nunca se tornar um aliado confiável dos Estados Unidos, que começava a tomar a dianteira como potência hegemônica.

O embaixador Gelson Fonseca fez um balanço da nossa política externa a partir dos parâmetros estabelecidos por Rio Branco. Àquela altura, os EUA queriam “organizar” as Américas, e uma das maneiras era estabelecer meios de resolver os problemas entre os países e seu bom comportamento financeiro, criando um órgão com sede em Washington que bem pode ser a origem do Fundo Monetário Internacional.

Na Conferência de Haia, o tabuleiro é o das potências européias, que partem da ideia de que algumas Nações, por razões de poder, devem ter mais influência no processo decisório do que outras. Os EUA tinham a garantia de que entrariam neste mundo, sem problemas, ressaltou Gelson Fonseca. Nós tínhamos a ilusão de que podíamos entrar. Os dois momentos difíceis foram quando se discutiu a composição do Tribunal de Presas e a do Tribunal Arbitral.

As propostas endossadas pelos EUA eram um tanto humilhantes para nós e, a despeito de que nenhum dos dois tribunais foi para a frente, fomos obrigados a sair do jogo.

A mesma coisa aconteceu em 1945, como consequência da Segunda Guerra Mundial, quando da criação da Organização das Nações Unidas (ONU). O diplomata Eugênio Garcia escreveu um trabalho sobre como o Brasil quase fez parte do Conselho de Segurança da ONU, meta que tentamos alcançar até hoje, sem perspectivas de vitória.

O Presidente Franklin Roosevelt acalentava a ideia de implantar um sistema chamado por ele de “tutela dos poderosos”, a cargo dos Quatro Policiais: Estados Unidos, Grã-Bretanha, União Soviética e China, aos quais depois se somou a França, para formarem o Conselho de Segurança da ONU.

Mesmo ausente de Dumbarton Oaks, o Brasil, devido ao apoio de Roosevelt, foi o único país a ser cogitado naquela Conferência como possível detentor de uma sexta cadeira permanente no Conselho.

A Conferência de Yalta aconteceu quando a conjuntura já havia em parte mudado, inclusive, no processo de negociação, com a morte de Roosevelt. Ficara para trás a importância estratégica que o Brasil teve na luta contra o Eixo (bases aéreas no Nordeste) ou na contenção da Argentina “antiamericana”.

Quando Truman assume, não era mais imperativo cultivar a amizade de Vargas ou tolerar abusos de seu regime personalista. Quando mais o governo brasileiro ansiava pelo reconhecimento de sua lealdade, colhendo os frutos da relação especial que pensava manter, os EUA já não privilegiavam o Brasil como antes.

O embaixador Marcos Azambuja, outro palestrante no ciclo da ABL, ressaltou que o atual Governo adota uma conduta que nos afasta, de forma radical, do espírito mesmo das posições que expressamos ao longo de nossa história. Para Azambuja, não parecemos estar mais, como costumávamos, no âmago do grupo dos formadores do consenso internacional sobre as grandes questões da atualidade: meio ambiente, desarmamento, direitos humanos, problemática do Oriente Médio e várias outras.

O cordão dos puxa-saco - VERA MAGALHÃES

ESTADÃO - 28/07

Acólitos aplaudem patrimonialismo, nepotismo e ataques à ciência e à liberdade de imprensa


Minha avó paterna era uma carioca do samba. Adorava entoar marchinhas, com seu vozeirão rouco, a cada vez que um fato lhe chamava a atenção. Nas últimas semanas, me vem à mente dona Alduína cantando uma das suas favoritas, braços erguidos como se estivesse no bloco: “Lá vem/ O cordão dos puxa-saco/ Dando viva aos seus maiorais/ Quem está na frente é passado para trás/ E o cordão dos puxa-saco / Cada vez aumenta mais”.

O puxa-saquismo do Brasil de 2019, que ela não viveu para ver, aceita condescender com patrimonialismo e nepotismo explícitos, ataques à ciência, manifestações de preconceitos variados, desrespeito diário à liberdade de imprensa e tentativas de suprimir atribuições de órgãos, agências e até outros Poderes. Em resumo: exercícios de um crescente autoritarismo para ver se cola. E com muita gente tem colado. Na base da passação de pano, se aperta uma casa no cinto do que passa a ser considerado “o novo normal”.

Jair Bolsonaro só pode avançar de nariz empinado e com a arrogância dos que acham que não devem satisfações a ninguém porque se cercou de acólitos que só lhe dizem amém. Os seis primeiros meses de governo tiveram como uma de suas marcas o banimento de todo aquele que ousou questionar atos, comportamentos e decisões do presidente.

Foram para a Sibéria bolsonarista nomes como Gustavo Bebianno e Carlos Alberto Santos Cruz, no primeiro escalão, e outros menos conhecidos em estamentos inferiores do governo, sempre despachados com direito a esculhambação e destruição de reputações.

A maioria de quem sobrou entendeu que, ou se enquadra, ou dança. A exceção em termos de licença para divergir e tocar seu barco com liberdade, até aqui, tem sido Paulo Guedes, o “PG” na forma carinhosa pela qual é tratado por Bolsonaro. Mesmo quando interveio na seara do titular da Economia, como no caso em que tentou a todo custo arrancar vantagens para os policiais na reforma da Previdência, o presidente o fez com cerimônia e cuidado para não desautorizá-lo.

Por quê? Porque o futuro político do bolsonarismo depende de a economia dar certo. E porque Guedes não precisa do cargo de ministro para ter um futuro. E isso lhe dá liberdade para dizer “não” a Bolsonaro quando acha que deve, hoje em dia um privilégio quase exclusivo no primeiro escalão.

Pegue-se o exemplo de nomes como o general Augusto Heleno e mesmo o ministro Sérgio Moro. O primeiro assumiu com a fama de que seria o conselheiro de Bolsonaro. Exerceu essa missão com desvelo no início, ao dissuadir o presidente de ideias como a transferência da embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém e de flertar com a ideia de uma aventura militar na Venezuela. Mas se acanhou diante dos ataques das milícias bolsonaristas aos militares, que ceifou seu amigo Santos Cruz e direcionou suas bazucas contra ele próprio e o porta-voz Rêgo Barros.

Já Moro, tragado para a crise da Vaza Jato, penhorou na loja bolsonarista boa parte do capital político e social que construiu como juiz. Se quando aceitou o ministério havia uma análise de que era indemissível e Bolsonaro dependia mais dele que o contrário, hoje a cada dia o ministro depende mais do presidente e ata seu futuro ao do chefe.

Se formos descer a nomes menos brilhantes, as manifestações de puxa-saquismo são bem mais explícitas e constrangedoras. Aqueles que emprestam suas biografias a justificar até as decisões mais estapafúrdias do chefe deveriam prestar atenção à segunda parte da marchinha da minha avó: “Vossa Excelência / Vossa Eminência/ Quanta referência nos cordões eleitorais / Mas se o ‘doutor’ cai do galho e vai pro chão/ A turma logo evolui de opinião/ E o cordão dos puxa-saco cada vez aumenta mais”.