terça-feira, julho 23, 2019

O trem da história - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 23/07

Para Chantal Mouffe, só o populismo de esquerda pode derrotar o de direita

De vez em quando, alguns leitores interessados em política me pedem conselhos bibliográficos. Eu dou. Eles reclamam. Sobretudo quando recomendo autores de esquerda que esteja a ler no momento (Agamben, David Graeber, o excelente Paulo Arantes etc.).

Nunca entendi o descaso. É mais proveitoso ler autores com os quais discordamos (grosso modo) do que gente que se limita a pregar aos convertidos.

Um dos melhores exemplos é Chantal Mouffe, a filósofa belga que tem pensado como ninguém os dilemas que a esquerda contemporânea enfrenta.

Na década de 1980, e perante a "ofensiva neoliberal" de Thatcher e Reagan, Mouffe criticava a (sua) esquerda pela visão essencialista de só considerar os trabalhadores como sujeitos oprimidos da história. Para a autora, existem vários tipo de dominação que merecem uma resposta progressista.

Sem o saber, Mouffe influenciou aquela parte da esquerda que encontrou na luta das minorias --sexuais, culturais, étnicas etc.-- uma nova bandeira pós-marxista.

O problema, porém, é que Mouffe nunca defendeu que as classes trabalhadoras deveriam ser substituídas pelas minorias. Na estratégia de Mouffe, uma nova "hegemonia progressista" seria plural, feita de várias vozes, e não de uma tribalização selecionada.

Eis o programa que Mouffe relembra no seu mais recente ensaio, que obviamente recomendo: "Por um Populismo de Esquerda" (edição portuguesa pela Gradiva).

O título é um achado. "Populismo" é palavra maldita para muitos progressistas, compreensivelmente assustados pelos populistas de direita que tomaram conta do palco.

Não para Mouffe. Mais: ela defende explicitamente que a única forma de derrotar o populismo de direita passa por uma alternativa populista de esquerda.

O momento histórico que vivemos assim o determina. Durante 30 anos, o que Mouffe entende por "hegemonia neoliberal" teve rédea solta. De tal forma que os tradicionais partidos socialistas se converteram à ortodoxia dos mercados, aceitando a sua trilogia sagrada --desregulação, privatização, austeridade. Bill Clinton ou Tony Blair, os papas da "terceira via", foram os rostos dessa rendição.

Mas a crise financeira de 2008 abriu uma brecha na narrativa de sucesso neoliberal. A direita populista entendeu isso, conquistando o voto dos deserdados da globalização. A esquerda, obcecada com as minilutas das miniminorias, perdeu o trem da história.

É preciso recuperá-lo. Primeiro, replicando a dicotomia do populismo de direita: é mesmo "nós" contra "eles" --ou, melhor dizendo, o "povo" contra a "oligarquia" neoliberal. E que povo é esse?

Para Mouffe, é a reunião de todas as forças democráticas --trabalhadores, imigrantes, minorias etc.-- que não se reveem no modelo neoliberal e na pós-democracia reinante.

Entendo o diagnóstico da autora. Parcialmente, concordo com ele. A globalização, como qualquer processo histórico revolucionário, provocou rupturas tecnológicas que atingiram duramente o "proletariado".

Além disso, a pós-democracia, entendida como redução da soberania nacional e desvalorização dos parlamentos, é uma evidência na Europa. A União Europeia pode ter vários méritos, mas há uma sombra antidemocrática no funcionamento político da Europa que tem alimentado a abstenção e a revolta entre os eleitores. É preciso lembrar o brexit?

Acontece que a proposta de Mouffe tem várias contradições. A primeira delas é mais ou menos óbvia. Como conciliar na sua noção de "povo" interesses tão díspares?

Uma parte dos trabalhadores que hoje votam em Donald Trump ou Marine Le Pen o fazem, precisamente, contra as minorias que Mouffe pretende aglutinar. É um voto contra a imigração irrestrita, entendida também como ameaça econômica global.

Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre esse assunto? Abram as fronteiras e tudo será perfeito?

Mas não só. Na narrativa de Mouffe, há duas datas que a autora ignora: o 11 de Setembro e a crise dos refugiados de 2015. Podemos dizer que a primeira data, pela reação militar que despertou a Ocidente, está diretamente relacionada com a segunda.

O populismo de direita é filho dessas duas datas e do sentimento de insegurança coletiva correspondente.

Que tem o populismo de esquerda a dizer sobre isso? O terrorismo é mera "islamofobia"?

Como sempre, Chantal Mouffe toca em temas essenciais, como o abandono do "proletariado" pela nova esquerda ou o momento pós-democrático na Europa.

Mas desconfio que ainda não é dessa vez que o populismo de direita tem um rival à altura.

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Uma reforma tributária com sabor de revolução - PEDRO MENDES

GAZETA DO POVO - PR - 23/07

Reforma tributária encampada pela Câmara dos Deputados é a melhor proposta já feita para simplificar as tributações no Brasil.


Após a aprovação da reforma previdenciária em primeiro turno, voltei minhas atenções para estudar a tributária. Conclusão: a reforma formulada por Bernard Appy, e apresentada por Baleia Rossi (MDB-SP), é espetacular. De tão boa, fico até com medo de exagerar nos elogios, no otimismo com o que pode vir. Por isso, acho que a melhor forma de explicar tamanha esperança é passo a passo, explicando meu raciocínio desde a sua base.

Esta reforma será fundamental para resolver o maior problema da economia brasileira no momento. Não me refiro a um problema simples, comum de ser comentado no jornal. Logo, esta será uma das colunas mais longas que já escrevi. Mas é necessário. Escrevo sobre um problema que precisa ser comunicado com profundidade ao leitor da Gazeta do Povo, bem como a todo não-economista que se interessa pelo futuro do país.

Embora a reforma da Previdência tenha sido importante para garantir que o Estado não quebre, a reforma tributária em discussão é crucial para reverter o baixo crescimento que domina a economia brasileira desde os anos 80.

Em suma, essa reforma tributária tem sabor de revolução, no bom sentido da palavra. Se aprovada, o Brasil nunca mais será o mesmo. Acredite se quiser, leitor: nosso país pode passar a ter uma economia de mercado onde os empreendedores tomam decisão olhando para o... mercado. Não é o que acontece hoje – e, por isso, escrevo palavras tão pesadas por aqui.

O problema: por que o Brasil cresce pouco
Um problema tem consumido a cabeça de grandes estudiosos do mundo todo: a armadilha da renda média. É um mistério difícil, mas extremamente interessante. E o Brasil, nosso Brasil, é o exemplo clássico de país que caiu nessa armadilha.

Em geral, quanto mais miserável é uma nação, mais fácil é o seu crescimento econômico num momento inicial. Por isso, espera-se que – ao longo das décadas – a renda dos países mais pobres se aproxime da de países mais ricos. Esse fenômeno é visível e realmente ocorre em quase todo o mundo. A armadilha da renda média se refere aos poucos países que, no meio da transição entre pobres e ricos, pararam.

Em 1900, segundo a Angus Maddison Database, o PIB per capita do Brasil equivalia a 16,9% do PIB per capita americano. Em 1935, essa proporção subiu para 21,7%. Depois de outros 35 anos, em 1970, chegamos a 25,1%.

Em 1980, chegamos ao ápice: nosso PIB per capita era cerca de 36% o dos Estados Unidos. Até aí, nossa economia crescia mais rápido que a americana, exatamente como esperado.

De repente, esse processo parou. Em 2015, regredimos a apenas 30% do PIB per capita americano, quase o mesmo nível dos anos 1970. Nosso PIB per capita deveria estar se aproximando do deles, mas está se afastando.

A convergência entre países ricos e pobres ainda é a regra no resto do mundo. Nosso caso é exceção. Uma exceção misteriosa, que atiça especialistas pelo mundo, a ponto de terem criado um termo só pra falar do assunto.

A armadilha da renda média é um dos temas mais importantes para o debate público brasileiro. Você não costuma ler sobre o assunto nos jornais (só na minha coluna da Gazeta, hehe), mas certamente sente o impacto deste fenômeno no seu bolso.

Nos últimos anos, muita gente se aprofundou no estudo da armadilha brasileira. Tais descobertas, ao invés de esclarecer, tornaram o caso ainda mais intrigante.

O diagnóstico: por que é difícil sair da armadilha
Diversos estudos tentaram entender por que isto acontece. O economista Eduardo Fernandez-Arias, em artigo publicado em 2012, chegou num resultado contra-intuitivo e interessante.

O PIB per capita do Brasil depende, fundamentalmente, de três fatores: capital físico (prédios, máquinas, etc), capital humano (número de trabalhadores e sua qualificação) e, por fim, da produtividade, que pode ser vista como nossa capacidade de transformar os recursos disponíveis (o capital físico e humano) em produtos.

Fernandez-Arias descobriu que o estoque de capital físico, no Brasil, tem crescido mais rápido que o dos Estados Unidos. Da mesma forma, a quantidade de pessoas trabalhando e a escolaridade dos trabalhadores também está crescendo mais rápido.

Nas últimas décadas, o Brasil acumulou mais capital físico que os Estados Unidos, assistiu a um crescimento maior na quantidade e escolaridade dos trabalhadores e, mesmo com tudo jogando a favor, nosso PIB per capita cresceu menos que o americano.

Nenhum fator observável explica a divergência entre o PIB per capita brasileiro e dos EUA. Esse é o tão comentado desafio de produtividade do país. Ele é difícil justamente porque sua explicação é subjetiva.

Como isso pode ocorrer
A resposta não é trivial, mas um diagnóstico vem atraindo cada vez mais economistas. Eu conheci o estudo de Fernandez-Arias durante uma palestra de João Manoel Pinho de Mello, então professor do Insper e estudioso do assunto. Pouco depois, João Manoel se tornou secretário de reformas microeconômicas do governo Temer. Hoje, ele é diretor do Banco Central, responsável por reformas no setor bancário. Isto já diz muito sobre a resposta do mistério.

No início do processo de desenvolvimento de um país, o crescimento é mais fácil porque existem ‘frutos baixos’ à disposição. É possível transferir a população do campo para a cidade, por exemplo. Ou da agricultura para a indústria. O Brasil fez isso tudo até os anos 1980.

Com o tempo, esses frutos baixos vão desaparecendo. E então o crescimento depende, cada vez mais, das instituições, dos incentivos dados aos empreendedores.

Esse momento explicaria a armadilha da renda média. Alguns países, como o Brasil, se mostraram incapazes de fornecer condições institucionais para que o PIB possa crescer aceleradamente.

Aí entram as tais reformas microeconômicas, que viraram prioridade a partir do governo Temer. Graças ao trabalho de economistas como João Manoel. Esse tipo de medida ganhou peso justamente por causa de resultados como o de Fernandez-Arias.

Hoje, muita gente boa acredita que pequenos incentivos tornam a economia brasileira completamente disfuncional, hostil à produtividade. Por aqui, a ineficiência na alocação dos recursos é estimulada, como mostram exemplos abaixo. E nenhuma destas instituições contraproducentes é tão ruim quanto o nosso sistema de impostos.

Os impostos nos incentivam a ser menos produtivos
Segundo o Banco Mundial, o Brasil é o país onde o cidadão mais perde tempo tentando entender como pagar os impostos. São milhares de horas por ano, com o nosso país muito a frente do segundo colocado.

Este fenômeno, por si só, ajuda a entender por que não basta adicionar trabalhadores à produção: se esses trabalhadores ficarem dedicados a navegar na burocracia tributária, nada muda.

Esse exemplo é um clichê, que eu até já citei noutras colunas. Há outros. Um dos mais escandalosos, na minha opinião, está na construção civil. Construir um prédio do modo tradicional, no canteiro de obras do início ao fim, usualmente exige o pagamento de ISS e PIS/Cofins, que totalizam menos de 10% de impostos sobre o valor final.

No Brasil, porém, setores diferentes pagam impostos diferentes. Para construir estruturas pré-moldadas, que tem contribuído para o avanço de produtividade do setor no mundo todo, é necessário pagar mais de 20% de impostos. Afinal, a indústria de pré-moldados é tributada de modo mais pesado que o serviço de pedreiro. Como resultado, o sistema incentiva o empresário a usar um método de produção mais antigo.

O sistema tributário brasileiro está cheio de casos do tipo. A improdutividade, frequentemente, é incentivada. Esses defeitos institucionais podem explicar perfeitamente porque o Brasil produz cada vez menos que os Estados Unidos, mesmo tendo cada vez mais recursos à disposição.

Existem diversos incentivos microeconômicos neste sentido que estão em vigor no Brasil. Daí a relevância das reformas microeconômicas. E, sem sombra de dúvidas, a tributária é a mais importante de todas as reformas deste tipo. Disparada.

Por que a reforma tributária em discussão tem sabor de revolução
A reforma tributária que tramita na Câmara foi formulada por Bernard Appy, um economista muito bem acostumado a discussões como as que coloquei aqui. Appy pensou o seu projeto tendo a armadilha da renda média como pano de fundo. Sem entender isto, é impossível avaliar a sua proposta com a profundidade que ela merece.

Afinal, o projeto de reforma em discussão acaba com todas (sem exagero, leitor: todas) as distorções tributárias que incidem sobre o setor produtivo.

Com a substituição de cinco impostos por um, todos os setores da economia serão tributados da mesma forma. Como consequência, toda construção pagará a mesma alíquota, não importa se ela foi executada no canteiro de obras ou numa indústria de pré-moldados.

Essa igualdade de tratamento permite que o empreendedor tome suas decisões pensando no consumidor, no preço, nas condições de mercado que efetivamente importam.

Hoje, muitas decisões empresariais são tomadas a partir da legislação tributária. Esse tipo de fenômeno explica bem por que, a despeito de receber recursos, o Brasil não consegue aumentar o produto.

O aumento da produtividade depende de decisões empreendedoras, que cortam custo e melhoram a qualidade de serviço, criando mais valor econômico com menos insumos. Esse processo não é possível quando o empresário está mais preocupado com seu regime de tributação do que com o cliente.

De modo geral, toda atividade produtiva pagará o mesmo imposto, não importa como esteja organizada. Assim, em poucos anos, as empresas brasileiras poderão retirar inteiramente os aspectos tributários do seu processo de tomada de decisão. E isto é revolucionário.

Mais do que isso, a reforma tem outra característica: por incidir apenas sobre o consumo, cobrando o imposto na localidade de destino, a reforma desonera inteiramente os investimentos e exportações, além de diminuir bastante a carga tributária da indústria.

Hoje, a indústria paga mais impostos que o setor de serviços, além dos investimentos e exportações serem tributados, como acontece na maioria dos países. Tudo isso muda com a aprovação da reforma.

Muitos leitores perguntam por que o texto em discussão afeta apenas a tributação do consumo e produção, sem afetar o Imposto de Renda. O motivo é simples: é aí, no ICMS, IPI e afins, que residem as maiores distorções que estagnam a produtividade nacional. É possível que o Brasil tenha uma economia rica, pujante e moderna como a de países ricos. Antes disso, precisamos eliminar incentivos à improdutividade e às decisões que não geram valor econômico para a sociedade.

E pode comemorar, leitor: se esta reforma for aprovada, como promete Rodrigo Maia, é porque o Brasil tem jeito. Nos resta aguardar, torcer, escrever e pressionar os deputados.

Há vida além das curtidas - CORA RÓNAI

O GLOBO - 23/07

Quando uma imagem faz sucesso, ela tende a ser repetida ao infinito. A criatividade acaba sendo a vítima mais visível do sistema


É possível viver numa rede social sem curtidas? É isso que os usuários mais jovens do Instagram estão começando a descobrir desde a semana passada, quando a empresa varreu os likes das telas dos smartphones. Quem posta ainda vê quantas curtidas recebeu, mas já não vê quantas receberam os demais. Afinal, o parâmetro é bom para saber se o seu público prefere fotos de gatos ou peixes, mas pode gerar muita angústia em quem vê nas redes um permanente concurso de popularidade, ou seja - praticamente todos que lá estamos.

A medida, anunciada pelo Instagram como um teste, e aplicada com cautela num número reduzido de países, causou comoção, e rendeu até um tuíte do 03, no seu português peculiar, como sempre se achando alvo de perseguição:

"Confere que o Instagram não mostra mais o número de curtidas numa postagem? Empresa privada, ok. Se isso for real saiba que o intuito é barrar o crescimento dos que pensam de forma independente, ou seja, aqueles que estão rompendo o sistema. Quem raciocina sabe o q isso significa."

Na verdade, quem raciocina sabe que, há tempos, o número de curtidas no Instagram passou a ser mais importante do que o conteúdo postado. Qualquer clique bobo de subcelebridade rende mais curtidas em alguns minutos do que todo o trabalho de um usuário esforçado, porém desconhecido, durante anos. É difícil lidar com isso.

Os que estão na internet há mais tempo sabem que nem sempre a vida online foi pautada por likes . No Fotolog, primeira rede social para compartilhamento de fotos, criada em 2002, não existiam curtidas - e, ainda assim (ou talvez por isso mesmo), nunca houve experiência mais divertida para quem de fato gostava de produzir e de ver imagens. O Fotolog tinha uma interface limpa, não tinha anúncios, permitia a postagem de uma foto por dia e limitava o número de comentários. Quem achasse pouco podia virar assinante ("Gold Camera"): com isso, o limite passava para seis fotos diárias, e o espaço para comentários permitia 200 em vez de 20.

Estava mais do que bom, e assim poderia ter continuado para sempre, mas a rede foi vítima do próprio sucesso, e não conseguiu superar nem as dificuldades técnicas que vieram com a explosão do número de usuários, nem o desgosto da turma mais antiga diante das hordas de adolescentes que não postavam nada além de selfies.

Isso foi na época da internet a vapor, bem no momento em que as fotos digitais deixaram de ser feitas em câmeras e passaram a vir de smartphones.

Outros tempos.

Pessoalmente, aprovo a mudança no Instagram. A cultura dos likes, polarizadora em redes de opinião - onde quanto mais radical o pensamento, mais popular - é homogeneizante em redes de forte apelo visual: quando uma imagem faz sucesso, ela tende a ser repetida ao infinito. A criatividade acaba sendo a vítima mais visível do sistema, acima até de egos feridos e frustração geral.

É claro que influenciadores brasileiros já estão dando o seu jeitinho: eles têm fotografado as próprias páginas, e postado para os seus seguidores. Mas aí, além do número de curtidas, o ridículo também fica visível.

O futuro das Federais - SIMON SCHWARTZMAN

O Globo - 23/07

O ideal seria que as universidades deixassem de ser repartições públicas e adquirissem um status legal próprio




O programa Future-se, anunciado pelo MEC para fortalecer a autonomia administrativa e financeira das universidades federais, procura responder a um anseio antigo de dar às instituições maior autonomia e flexibilidade de captação e gestão de recursos orçamentários e de seus bens patrimoniais. Para entender e avaliar o programa, é necessário considerar três aspectos principais: o institucional, o educacional propriamente dito e o financeiro.

O ideal seria que as universidades deixassem de ser repartições públicas e adquirissem um status legal próprio, combinando a flexibilidade da legislação privada com mecanismos que garantam suas funções públicas. O modelo disponível é o das organizações sociais, já adotado pelo Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e outras instituições. Ao invés de tentar isso diretamente, o MEC está propondo uma via indireta, que é fazer com que as universidades estabeleçam convênios com organizações sociais existentes ou a serem criadas, que assumiriam parte ou a totalidade de suas funções de gestão, governança e empreendedorismo. Embora a ênfase seja em atividades de pesquisa, é possível dar uma interpretação mais ampla, já que as OS teriam funções gerais de gestão patrimonial e dos planos de ensino, pesquisa e extensão das universidades.

O modelo proposto lembra a Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares, que hoje administra a maioria dos hospitais universitários federais. A dúvida é quem comandaria estas organizações, e qual seria seu relacionamento com as reitorias, órgãos departamentais e coordenações de curso. A proposta não deixa claro se cada universidade teria sua própria OS ou não, mas prevê a criação de um Comitê Gestor para todo o conjunto, que, em última análise, substituiria o próprio Ministério da Educação nas funções de avaliação e controle do sistema.

Apesar da possível abrangência, o programa está destinado, claramente, a uma parte relativamente pequena das universidades, que são as atividades de pesquisa e inovação. Existem hoje cerca de 120 instituições federais de ensino e pesquisa, que atendem cerca de 1,3 milhão de estudantes de graduação e 170 mil de pós-graduação, e mais cerca de 350 mil em cursos de nível médio, sobretudo nos institutos federais.

A Capes lista cerca de 3.500 cursos de pós-graduação nas federais, dos quais somente 140 são considerados de nível 7, de padrão internacional, 90% dos quais concentrados em dez instituições. Estas, em princípio, teriam condições de se beneficiar do novo programa, se internacionalizar e atrair recursos competitivos públicos e privados. Os demais cursos de pós-graduação são, preponderantemente, de aperfeiçoamento profissional, nos quais a pesquisa tem importância secundária. Mesmo nas melhores instituições, o grosso da atividade é de ensino. Não fica claro se as universidades que aderissem ao programa deveriam manter duas estruturas separadas, uma de pesquisa e inovação e outra do ensino regular, e qual seria a política do Ministério da Educação para os cursos de graduação de todo o conjunto.

O ministério prevê que o programa poderia captar cerca de R$ 100 bilhões, o que parece demasiado otimista, tanto em relação à capacidade das universidades de atrair investimentos quanto à disposição do governo de criar incentivos fiscais e disponibilizar recursos próprios. Hoje, o sistema federal custa cerca de R$ 60 bilhões anuais, dos quais 90% em salários e aposentadorias. Então, os novos recursos seriam “dinheiro novo”, o que seria bem-vindo, havendo a preocupação, no entanto, que isso leve a uma redução ainda maior do financiamento regular de custeio e investimentos. Além disso, fica em aberto a questão de se as universidades estaduais e privadas teriam acesso a estes fundos.

O passado incomoda Bolsonaro - JOSÉ CASADO

O GLOBO - 23/07

Presidente tenta reescrever a própria história


Oficiais do Comando de Operações Especiais atravessaram a última semana tentando decifrar o significado de palavras ditas por Jair Bolsonaro durante uma celebração dessa unidade do Exército: “Feliz é o país que tem umas Forças Armadas e forças auxiliares comprometidas com a democracia, mesmo com sacrifício da própria vida ou com a destruição da própria reputação.” Como não explicou, oficiais não entenderam esse suicídio institucional.

A dúvida tem origem na ocasião do discurso, o 17º aniversário do Comando de Operações Especiais, criado em 27 de junho de 2002. Até então, existia um destacamento, cuja ação mais relevante ocorrera no Araguaia nos anos 70: o massacre de um grupo terrorista do PCdoB. Se era a isso que se referia, ele se tornou o primeiro presidente a reconhecer essa carnificina como devastadora para a imagem do Exército na ditadura.

Numa perspectiva benigna, pode-se tomar a retórica pelo que parece ser, a performance ilusionista de um personagem político cevado na banalização da violência e na louvação a ícones dos porões da ditadura — antítese do profissionalismo militar.

Convicto da caricatura política que criou e legitimou nas urnas, Bolsonaro parece ter esquecido quem é na vida real: “Deixei o Exército em 1988”, recordou no discurso, “e estou muito feliz com tudo aquilo que aconteceu, mesmo com algo um tanto quanto esquisito lá atrás.”

Esquisito, anormal, foi o comportamento do capitão Bolsonaro 32 anos atrás, ao se envolver num plano para explodir bombas em quartéis, como registram os arquivos do Exército e do Superior Tribunal Militar. O objetivo seria causar pânico para justificar um aumento de salário da tropa.

O Exército o prendeu e processou e até o impediu de receber o diploma de um curso, entregue em casa. Detalhes estarão disponíveis na próxima semana em livro do repórter Luiz Maklouf. O tribunal o considerou “não culpado” por formalidades.

Um dos juízes do STM, José Luiz Clerot, ponderou: “Nem cem punições a um oficial não chegam aos pés de uma só das violações éticas desse capitão Bolsonaro.”

O presidente tenta reescrever a própria história.

Benefícios em escala no novo mercado do gás - JOÃO CARLOS MELLO

Valor Econômico - 23/07

Parte das dívidas que os Estados detêm poderão ser renegociadas, tendo como contrapartida investimentos em obras

O "choque de energia barata" prometido pelo governo tem dominado boa parte das discussões sobre o Novo Mercado de Gás, cujas diretrizes acabam de ser divulgadas pelo Conselho Nacional de Política Energética (CNPE). O projeto atende às principais demandas do setor de energia e evidencia que existe uma rota - e vontade política para alcançá-la. Entre os pontos de maior destaque figuram a desverticalização do setor, uma harmonização tributária entre as esferas federal e estaduais e a promoção do livre acesso ao insumo e às vias de transporte e distribuição.

Há ainda muito a ser feito para a implantação do projeto, mas é consenso que o acesso ao gás natural a preços acessíveis terá impactos importantes na retomada do crescimento econômico, destravando investimentos e trazendo competitividade à indústria nacional. O Ministério de Minas e Energia estima que a instalação de infraestrutura para atender à demanda desse novo mercado movimentará R$ 34 bilhões até 2032. Os grandes consumidores entre eles, setores industriais pujantes, como o ceramista, o químico e setor de vidros - aguardam a possibilidade de adquirir o insumo diretamente do polo produtor, negociando preços e prazos em contratos de longo prazo. Mas eles não são os únicos que podem ganhar com a proposta de abertura do mercado.

Para o governo federal, as vantagens são evidentes: destravar a economia, estimular investimentos e, claro, dar um destino nobre ao gás natural proveniente da exploração do pré-sal. O Brasil produz cerca de 100 milhões de m3 de gás por dia. Quando tiver início a exploração da Bacia de Sergipe-Alagoas, estima-se um acréscimo de quase um terço nesse volume. Em 2018, o consumo médio no país foi de 64 milhões de m3 diário, segundo a Associação Brasileira das Empresas Distribuidoras de Gás Canalizado (Abegás), mas tem potencial de crescer caso haja redução no preço. Hoje, a indústria brasileira paga em média US$ 13 pelo metro cúbico. Na Europa, a média é próxima a US$ 7, nos Estados Unidos, chega a US$ 3. Em muitos casos, o gás natural substitui a queima de outros combustíveis fósseis com maior impacto ambiental, como carvão ou óleo diesel.

Os Estados, responsáveis pelos serviços de distribuição, exercem papel fundamental para a viabilidade de um mercado livre. As diretrizes preveem estímulos importantes para que os governos locais negociem suas participações em empresas de gás e promovam a criação da figura do consumidor livre. Muitos governos estaduais, no entanto, ainda hesitam em aderir à proposta. A dúvida pode se dissolver à medida que as lideranças políticas percebam os diversos benefícios que o mercado de gás pode gerar: parte das dívidas que os Estados detêm com a União poderão ser renegociadas, tendo como contrapartida investimentos em obras de gasodutos, terminais de gás natural liquefeito (GNL) e unidades de processamento de gás natural (UPGNs) capazes de dinamizar a economia, atrair empresas, gerar divisas e abrir vagas de emprego nas respectivas unidades federativas. Na prática, troca-se uma dívida pela possibilidade de estímulo à economia local.

Também para a Petrobras, esta é uma oportunidade de obter divisas e recuperar sua saúde financeira. A companhia vem reduzindo os índices de alavancagem, moderando as taxas de endividamento e se desfazendo de ativos que não fazem parte de seu principal negócio: a exploração e produção de petróleo e gás. Em 2015, a estatal acumulava US$ 126,3 bilhões em dívidas; ao final de 2018, já havia conseguido reduzir o montante para US$ 84,4 bilhões. A alavancagem atual é de 2,34 vezes, mas o governo já anunciou a meta de 1,5 vez, para evitar a exposição da empresa às flutuações do preço das commodities.

Hoje a Petrobras detém o controle de praticamente toda a malha de transportes e também possui participações em 19 das 27 empresas estaduais de distribuição de gás natural. O plano de desinvestimento da companhia nesse segmento já teve início com a venda da TAG (Transportadora Associada de Gás) e da NTS (Nova Transportadora Sudeste); a resolução do CNPE avança nesse sentido e prevê a alienação total das ações que a Petrobras detém, direta ou indiretamente, nas empresas de transporte e distribuição.

Com maior oferta e um mercado competitivo, a redução dos preços do insumo será consequência lógica. Mesmo que o índice de 40% de queda nos preços aventado pelo governo não seja atingido, podemos esperar um impacto bem relevante, para baixo, no custo do gás. E, com a integração dos mercados de gás natural e energia elétrica, a tal "energia barata" poderá finalmente atingir os consumidores residenciais de forma indireta. As usinas termelétricas serão protagonistas desse processo.

Diversos fatores climáticos e de infraestrutura têm exigido o despacho de usinas térmicas a óleo, que apresentam alto custo financeiro - o que gera impacto em todo o Sistema Interligado Nacional e também no bolso dos cidadãos brasileiros. A substituição dessas usinas por térmicas a gás natural resultará em economia e ainda em ganhos de eficiência energética.

A região Nordeste, nesse caso, merece atenção especial: servida historicamente pelas usinas hidrelétricas da bacia do rio São Francisco, ela vem enfrentando situação bastante adversa nos últimos anos. Estudos da Thymos Energia evidenciam que a implantação de uma térmica a gás natural nesse subsistema poderá
evitar um custo de R$ 8,5 bilhões por ano entre 2024 e 2030, além de garantir segurança energética ao sistema e compensar a intermitência das fontes renováveis, abundantes no local. Cerca de 80% dos parques eólicos brasileiros estão no Nordeste, e o potencial para expansão da geração de energia solar fotovoltaica na região também é grande.

Os próximos passos do Novo Mercado de Gás devem ser dados em até sessenta dias - prazo estabelecido pelo governo para a definição da governança e das informações necessárias ao monitoramento do projeto. Estimativas do governo federal dão conta de que uma redução de 10% no preço do gás provocaria um crescimento de 2,1% no PIB industrial. Somando-se a isso os benefícios em escala que o Novo Mercado do Gás pode gerar, a expectativa é de que o projeto avance com celeridade e se torne a nova realidade do setor.

A inércia do erro - LUIZ CARLOS AZEDO

Correio Braziliense - 23/07

Há casos famosos de líderes que preferiram matar o mensageiro a reconhecer os próprios erros. Em 335 a.C., o imperador persa Dario III, em guerra com Alexandre Magno, da Macedônia, ao ser alertado sobre os possíveis erros de sua estratégia pelo mercenário grego Charidemus, resolveu estrangulá-lo num ataque de fúria. Acabou derrotado. Também é famoso o caso do almirante inglês Clowdisley Shovell, que havia derrotado os franceses no Mediterrâneo e naufragou a sudoeste da Inglaterra, em meio a um nevoeiro, porque não quis reconhecer que seus cálculos de navegação estavam errados, perdendo cinco navios e dois mil homens. Preferiu enforcar o subalterno.

É mais ou menos o que está fazendo o presidente Jair Bolsonaro com o diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Magnus Osório Galvão, a quem acusou de estar “a serviço de alguma ONG” por divulgar dados que mostram o grande aumento do desmatamento na Amazônia. Funcionário de carreira, com uma longa folha de serviços prestados, o pesquisador rebateu as acusações e reafirmou a veracidade dos dados sobre desmatamento divulgados pelo Inpe, cuja política de transparência permite o acesso completo aos dados e adota metodologia reconhecida internacionalmente.

De acordo com números divulgados pelo Inpe no início deste mês, o desmatamento na Amazônia Legal brasileira atingiu 920,4 km² em junho, um aumento de 88% em comparação com o mesmo período do ano passado. Áreas da Amazônia que deveriam ter “desmatamento zero” perderam território equivalente a seis cidades de São Paulo em três décadas. Fora das áreas protegidas, a Amazônia perdeu 39,8 milhões de hectares em 30 anos, o que representa 19% sobre toda a floresta natural não demarcada que existia em 1985, uma perda equivalente a 262 vezes a área do município de São Paulo. Nas áreas protegidas, a perda acumulada foi de 0,5%. É óbvio que a nova política para o meio ambiente já é um fracasso.

Houve protestos de instituições como a Academia Brasileira de Ciência e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). “Críticas sem fundamento a uma instituição científica, que atua há cerca de 60 anos e com amplo reconhecimento no país e no exterior, são ofensivas, inaceitáveis e lesivas ao conhecimento científico”, diz a nota da SBPC. Segundo a entidade, dados podem ser questionados em bases científicas e não por motivações políticas e ideológicas.

Bolsonaro argumenta que, antes de divulgar dados sobre desmatamento no Brasil, o diretor do Inpe deveria, no mínimo, procurar o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, ao qual está subordinado, para informar antecipadamente o conteúdo que seria divulgado. Afirmou que está acostumado com “hierarquia e disciplina” e questionou a divulgação de dados sem seu prévio conhecimento. Segundo Bolsonaro, pode haver algum equívoco na divulgação das informações ambientais sem um crivo prévio do governo, sob o risco de “um enorme estrago para o Brasil”.

Conselhos
Políticas públicas e indicadores sobre a realidade brasileira, porém, devem ter transparência e serem acessíveis ao público, pois são elementos fundamentais para análises e pesquisas. O problema é outro. O presidente da República toma decisões na base do “achismo”, desconsiderando indicadores científicos, sem levar em conta que a inércia do erro num país de dimensões continentais como o Brasil, que tem uma escala muito grande, pode ser muito desastrosa.

É o que está acontecendo com o desmatamento, em razão do estímulo ao avanço do agronegócio em áreas de proteção ambiental e das medidas adotadas contra a política de fiscalização do Ibama. Os números divulgados pelo Inpe mostram o tamanho do estrago que o governo agora quer varrer para debaixo do tapete.

Na verdade, no Palácio do Planalto, enquanto sobram decisões intempestivas, falta planejamento. O mesmo fenômeno pode vir a ocorrer no trânsito, por exemplo, com as mudanças propostas em relação às multas — não vamos nem considerar as cadeirinhas de bebê e os cintos de segurança. O endurecimento das regras não ocorreu por acaso, mas em razão do impacto dos acidentes de trânsito nos indicadores de mortes violentas e nos custos do sistema de saúde pública.

O desmantelamento dos conselhos que subsidiavam as políticas públicas, a pretexto de dar mais agilidade às decisões do governo, tem o objetivo de eliminar o contraditório na tomada de decisões. Entretanto, tende a aumentar a margem de erro e gerar contenciosos desnecessários com a sociedade, o que pode ter efeito exatamente ao contrário do objetivo de alcançar mais eficiência.

Nossas instituições e sua circunstância - FERNÃO LARA MESQUITA

O Estado de S.Paulo - 23/07

A boa regra depois que o crime passou a usar a imprensa seria o ‘full disclosure’ nas redações


No primeiro debate entre os 20 concorrentes à indicação para candidato a presidente pelo Partido Democrata, nos EUA, o principal “argumento de venda” foi apresentar-se como quem conseguiu o maior numero de contribuições abaixo de US$ 200 e recusou mais doações milionárias. Está aí um exemplo de como a boa regra induz o bom comportamento. Naquele país, a única que existe para financiamento de campanhas é que os concorrentes estão obrigados a declarar cada contribuição recebida no prazo de cinco dias. Cabe ao eleitor avaliar se elas o comprometem ou não. Aqui, onde preferimos que o Estado fiscalize tudo, inclusive a si mesmo, a perspectiva mais palpável é que na próxima eleição nos seja arrancado mais que o dobro do que nos foi arrancado na última, que cada partido receba seu quinhão segundo o desempenho na eleição anterior, e não pelo que tiver feito de bom ou de ruim com o mandato recebido, e que jamais saibamos quem, dentro deles, ficou com quanto desse dinheiro.

As instituições, como as pessoas, são elas e sua circunstância. Não é à toa que a expressão que define a ordem institucional democrática é checks and balances, “freios e contrapesos”. Cada instituição só produz o efeito desejado quando referida a todas as outras. Tomadas isoladamente ou encaixadas num contexto pervertido, elas quase sempre produzem o efeito inverso do que se propõem.

No Estado Democrático de Direito “todo o poder emana do povo” e toda lei só se torna lei mediante o seu consentimento explícito. O primeiro direito que condiciona todos os outros é, portanto, o de o eleitor livrar-se na hora do representante que só age em prol de si mesmo. E para que isso seja possível é preciso, primeiro, que o sistema eleitoral permita saber exatamente quem é o representante de quem e que os representados, e não os representantes, tenham a prerrogativa exclusiva de acionar os instrumentos de força criados para constrangê-los a lhes serem fiéis. Inverter essa hierarquia é inverter toda a cadeia das lealdades. Nada é “consertável” no Brasil antes que consertemos isso.

São as circunstâncias reais, e não a teoria, que põem o corte de um lado ou do outro da lâmina de cada instituição. Afirmar como “óbvio” na ordem institucional brasileira, onde o Estado tem todas as prerrogativas e o cidadão nenhuma, o que é óbvio na ordem institucional americana, onde se dá exatamente o contrário, é manter o País no beco sem saída dos falsos silogismos em que andamos perdendo sangue, suor e lágrimas há 519 anos.

Assumir que a decisão monocrática do sr. Toffoli é desinteressada, nada tem que ver com Flávio Bolsonaro, nem tira da porta da cadeia e põe na da rua todos os criminosos com e sem mandato mais perigosos da República é tão falso quanto negar que o sigilo bancário (até dos agentes do Estado) é um direito que deve ser protegido em princípio... se todas as outras instituições estiverem estruturadas para manter o Estado nas mãos dos cidadãos, e não o contrário.

Se, por exemplo, os promotores públicos, aqui como lá, fossem eleitos pelo povo, e não nomeados pelos políticos que têm por função fiscalizar e contra cujos poderes têm obrigação de nos defender; se os juízes passassem por eleições periódicas de confirmação; se tivéssemos os direitos à retomada de mandatos e ao referendo do que vem dos Legislativos, é provável que não nos ocorresse considerar uma lei específica de abuso de autoridade. Mas sem a ancoragem de tudo à palavra final do eleitor e com todo cargo ou emprego público sacramentado como um “direito adquirido” inalienável, é certo que até a lei de abuso que vier será usada seletivamente, como todas as outras, na defesa de privilégios, contra qualquer tentativa de eliminá-los.

O trabalho jornalístico que não parte desta que é a nossa realidade, esta, sim, pra lá de óbvia, já começa falso. A justificativa do instituto do sigilo da fonte, por exemplo, é sacrificar a transparência da informação em nome do valor mais alto do aperfeiçoamento da democracia, a primeira e inegociável razão de existir da imprensa democrática. Mas publicar como se fosse produto de jornalismo investigativo os grampos e dossiês que as partes que disputam o poder livres de qualquer compromisso exigível pelos eleitores atiram umas contra as outras e manter anônima a fonte, quando não é um ato de cumplicidade, é um convite para o aparelhamento do jornalismo.

A virtude sempre precisou de incentivos. A boa regra para estes tempos em que o crime se especializou em usar em vez de fugir da imprensa e da lei seria a do full disclosure, ou “transparência absoluta”, nas redações. O jornalista que exige que servidores em atividade, como Deltan Dallagnol, sejam obrigados a relatar as palestras que fazem, indicando quem pagou por elas e quanto, além das atividades conflituosas de suas esposas e seus parentes próximos, não terá nenhuma dificuldade de entender a importância do full disclosure, não só das peças de “jornalismo de acesso” onde saber de onde vêm os tiros contribui muito mais para o aperfeiçoamento da democracia que o apedrejamento do alvo visado, mas até de contemplar a criação de uma versão doméstica da lei antinepotismo.

Não há conflito obrigatório no fato de jornalistas com cônjuges, companheiros ou parentes em linha reta, colateral ou por afinidade até o terceiro grau assalariados ou detentores de privilégios concedidos pelo Estado participarem da cobertura da guerra do Brasil plebeu contra a privilegiatura. Mas a obrigação de declará-lo sob o hiperlink de cada assinatura certamente os incentivaria a ser mais equilibrados no direcionamento das suas investigações, além de ter um efeito fulminante contra a instrumentalização anônima da arma da imprensa.

Os destinos do jornalismo e da democracia sempre estiveram amarrados. O choque de transparência, para além de distingui-lo definitivamente da luta pelo poder e da guerra suja da internet, teria para a qualidade do jornalismo e da democracia brasileiros um efeito restaurador.

O antiestadista - HELIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 23/07

Jair Bolsonaro não tem noção da estatura do cargo que ocupa


Costuma-se reservar a palavra “estadista” para designar líderes que se destacam dos demais políticos por enxergarem mais longe, serem capazes de elevar-se acima das divisões sectárias e fazer avançar agendas decisivas, que produzirão impactos positivos por décadas.

Jair Bolsonaro é o exato oposto disso. Ele não tem noção da estatura do cargo que ocupa, dedicando-se a questiúnculas que não deveriam chegar nem perto do gabinete presidencial, como o conteúdo de filmes que contam com financiamento público ou o número de pontos necessário para cassar a habilitação de motoristas. Pior, busca interferir nesses assuntos de forma personalista, com desprezo pelas instituições e contra consensos técnicos.

Bolsonaro também não desperdiça oportunidades de aprofundar as divisões políticas que tanto mal têm causado ao país. Ele abusa de pautas que não passam de nitroglicerina ideológica, investe contra governadores nordestinos e ataca, de forma pusilânime, desafetos e até profissionais que não corroborem suas singulares visões de mundo.

Não dá nem para afirmar que o presidente é sincero em suas convicções. Quando julga que há uma oportunidade para faturar, não hesita em renegar o discurso da véspera, como se viu no caso do acordo do Mercosul com a UE, duas entidades supranacionais, que foram demonizadas durante a campanha. Não estou reclamando. Seria pior se ele sempre levasse suas fantasias até o fim.

Mesmo quando seu governo tem êxitos a celebrar (e existem alguns), eles não raro foram objeto de sabotagem do próprio Bolsonaro, como vimos na reforma da Previdência —o que faz duvidar de sua inteligência.

Se não houver um desastre econômico, seguiremos nesse ritmo por mais três anos e meio. Podemos nos consolar com o fato de que colunistas brasileiros não enfrentamos o problema da falta de temas de política nacional que atormenta nossos homólogos suíços e noruegueses.

Hélio Schwartsman
Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…"

Palavras no ventilador - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 23/07


A última semana foi especialmente crítica para o presidente Bolsonaro, que falou muito, geralmente em situações improvisadas, o que dificulta seu desempenho, que já não é dos melhores na oratória. Mas, mesmo quando conversou com jornalistas estrangeiros num café da manhã, se descuidou com as palavras. Deu vazão a sentimentos que o perseguem, como conspirações.

Antigamente, os paranóicos procuravam comunistas embaixo da cama. Hoje, procuram conspiradores debaixo da mesa presidencial.

Não sei quem inventou essa parábola do anão debaixo da mesa, responsável por revelar todas as decisões tomadas no gabinete presidencial do Palácio do Planalto. Ela circulava com um tom irônico, que Bolsonaro também usou, mas não revelava nenhuma conspiração.

Esse espírito defensivo está sempre presente nas declarações do presidente e de seus filhos, especialmente o vereador Carlos. Fora do plano de conspiração, Bolsonaro tem obrigação de pesar o que está falando, pois sabe que tudo será publicado.

Perdeu a noção da repercussão que a palavra do presidente provoca. Além das declarações infelizes, erradas, Bolsonaro está numa discussão difícil, sobre a indicação do filho para a embaixada do Brasil nos EUA. Defendeu o filho de maneira equivocada, confundindo o país com a família.

E o que vazou de seu comentário a respeito dos nordestinos não é bom. Mesmo que se referir aos nordestinos como “paraíbas” seja uma característica da linguagem informal, há um claro tom pejorativo.

O presidente Bolsonaro, naquela sua linguagem popular que pode dar votos, mas não respeita a “liturgia do cargo”, disse, por exemplo, que não pode ser apanhado “de calça curta” com a divulgação de dados tão importantes quanto os do desmatamento da Amazônia pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Quis dizer que deveria ter sido avisado antes da divulgação, não para impedi-la, alega, mas para discutir os dados. Tudo bem, se não fosse a resposta destemperada do presidente à pergunta de um correspondente estrangeiro.

O aumento de 88% do desmatamento obviamente seria pergunta de qualquer entrevista que o presidente desse depois da divulgação de um dado tão negativo para o meio-ambiente.

Bolsonaro deveria ter reunido seus ministros ligados ao tema – Meio-Ambiente, Agricultura, Ciência, Tecnologia e Inovação – e o diretor do INPE para discutir o assunto, que ele mesmo admite ser de extrema importância, o que já é um avanço.

Se persistisse a desconfiança de que os dados estão errados, o presidente teria toda razão ao criticá-los, mas seria melhor colocar os ministros para defender a tese. O presidente do INPE, Ricardo Galvão, tem mandato de 4 anos que começou em 2016, e não pode ser afastado.

Mas pode ser forçado a pedir demissão por uma constante campanha de descrédito, como Bolsonaro vem fazendo, a exemplo de governos anteriores que receberam agências com dirigentes indemissíveis com mandatos. No caso do INPE é mais grave, porque desmoraliza um dos órgãos brasileiros mais respeitados interna e externamente.

Se Bolsonaro acha, com razão, que é uma propaganda negativa para o país anunciar tal grau de desmatamento, deveria se preocupar não com o mensageiro, mas atacar as causas da tragédia ecológica, e anunciar medidas para contê-la. A teoria da conspiração, no entanto, não deixa que o presidente e seus assessores mais xiitas tenham atitudes sensatas.

Um presidente da República que sugere a jornalistas estrangeiros que seu mais importante órgão de pesquisas está a serviço de uma ONG, aumentando os índices de desmatamento propositalmente, é de uma irresponsabilidade tão grande que até mesmo Bolsonaro, que fala o que lhe passa na cabeça sem filtros, admitiu que “exagerou”.

Mas o estrago estava feito.

Paraíbas e melancias - ELIANE CANTANHÊDE

O Estado de S.Paulo - 23/07


Bolsonaro contra institutos, governadores, conselhos, fundações e mais um general



Nas democracias, líderes políticos e governantes devem ter relações institucionais e ampliar contatos, interlocutores e aliados. O presidente Jair Bolsonaro faz justamente o oposto: ele parece determinado a confrontar e irritar todo mundo que não pensa exatamente igual a ele. Uns são “paraíba”, outros são “melancia”, e só ele sabe o que é bom para o País. Isso não soma, só divide e acirra os ânimos.

Depois de usar um termo pejorativo contra nordestinos e dizer que “não é para dar nada” ao governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), Bolsonaro não se contentou com a reação em bloco dos governadores da região – a mais oposicionista do País – e foi cutucar Rui Costa, da Bahia. O que seria uma festa de inauguração de aeroporto, hoje, em Vitória da Conquista, virou motivo de guerra.

Na versão do governador, que é do PT, Bolsonaro “excluiu o povo” e transformou a festa numa “reunião político-partidária” com os seus apoiadores, com uma claque organizada. De 300 convites, só 70 teriam sido para o governo local. Rui Costa decidiu não ir e gravou um vídeo de desagravo.

Bolsonaro também partiu para cima do general da reserva Luiz Rocha Paiva, que considerou “antipatrióticas e incoerentes” suas manifestações sobre os nordestinos. Segundo o presidente, na tréplica, o general não passa de um “melancia”. Sabem o que é isso? É um militar com a farda verde por fora e alma vermelha por dentro. Ou seja, um militar de esquerda. Ou o general se irritou ou deve ter dado muita gargalhada. E não só ele...

O diretor do Inpe, Ricardo Galvão, é outro que entrou na mira e não abaixou a cabeça. Depois de desqualificado publicamente por Bolsonaro, como se estivesse “a serviço de ONGs”, ele avisou ao Estado que não vai se demitir e classificou a atitude do presidente de “pusilânime e covarde”. E o que será que a Ancine e a turma ativa e organizada do cinema andarão aprontando para se defender dos ataques palacianos?

As investidas do presidente, porém, não param por aí e agora não são mais só de tempos em tempos, mas de horas em horas. Ontem, ele voltou as baterias novamente para os conselhos, tão essenciais para a troca de experiência, o debate, o contraditório e, principalmente, a definição de políticas públicas. E atingiu um em cheio: o de políticas sobre drogas, o Conad.

O Supremo já decidiu em junho, por unanimidade, mas provisoriamente, que o presidente não pode extinguir por decreto conselhos que foram criados por lei, ou seja, com aval do Congresso. Mas Bolsonaro manteve exatamente o mesmo discurso de antes, avisando que vai enxugar os conselhos e extinguir “a maioria” deles. É até possível que haja excesso de conselhos, mas o corte de Bolsonaro tem motivação particular: é um corte ideológico.

Detalhe: ele é o presidente que mais governa via decretos, só atrás (ainda) de Collor. Decretos entram em vigor imediatamente, dispensando aval de Câmara e Senado. Têm, pois, menos força do que projetos de lei. E são mais autoritários.

Após submeter o ministro Sérgio Moro ao constrangimento de desconvidar a pesquisadora Ilona Szabó para o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Bolsonaro acaba de excluir do Conad os especialistas que lidam com drogas no cotidiano: jurista, médico, psicólogo, assistente social, enfermeiro, educador e cientista. Um espanto!

É assim que, depois do Inpe, Ancine, IBGE, FioCruz, Ibama, ICMBio, Funai e universidades, Bolsonaro atrai contra si chuvas e trovoadas da OAB, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (a emblemática SBPC) e dos conselhos de Medicina, Psicologia, Serviço Social, Enfermagem e Educação. Já imaginou se o saque do FGTS for só de R$ 500, conforme antecipou o Estado?

Renovação sim, mas sem atalhos - JOÃO AMOEDO

O Estado de S.Paulo - 23/07

Os eleitos dissidentes com origem em movimentos de renovação cumpriram importante dever cívico ao se envolver com a política e contribuíram com o País ao votar pela reforma da Previdência, mas erraram ao fazer a escolha partidária. Erraram ainda mais os que usaram recursos públicos para financiar suas campanhas.

No final de 2010, quando junto com um pequeno grupo de pessoas resolvemos construir um partido político, não imaginávamos o trabalho e a burocracia envolvidos. Tínhamos, contudo, algumas convicções: os 27 partidos existentes naquele momento não nos representavam. Queríamos deixar um País melhor para as futuras gerações, precisávamos promover a renovação de nomes e práticas na política e sabíamos que isso só seria possível com visão de longo de prazo e por intermédio de uma instituição partidária.

É com esta experiência que gostaria de tecer alguns comentários sobre a discussão atual envolvendo movimentos, partidos e mandatários dissidentes.

Os partidos, como instituições, têm não só o direito, mas a obrigação de definir seus procedimentos, as suas práticas e seus valores.

O que precisamos cobrar das agremiações partidárias é coerência e transparência. Portanto, um dever fundamental de quem deseja se eleger, principalmente para renovar a política, é conhecer as normas, as práticas e os posicionamentos da legenda pela qual irá se candidatar.

Os atalhos têm custo. Os mandatários, hoje dissidentes e que tiveram origem em movimentos de renovação, cumpriram um importante dever cívico ao se envolverem com a política e contribuíram para a melhoria do País ao votarem pela reforma da Previdência, mas erraram ao fazerem a escolha partidária. Erraram ainda mais aqueles que utilizaram recursos públicos destes partidos para financiar as suas campanhas.

A formação de grupos organizados pela sociedade civil é muito bem-vinda e demonstra como estamos evoluindo rapidamente na nossa participação como cidadãos. Entretanto, os movimentos em nome da transparência e da coerência precisam deixar claro quais são seus objetivos.

Se, além de trazer gente nova para o setor público, treinar e dar suporte para eventuais candidatos, também pretendem participar da atuação política com uma “bancada” no Congresso, defendendo pautas próprias, precisam se transformar em um partido.

O caminho correto para a atuação política, quando não encontramos uma instituição partidária que nos represente, é constituir uma nova. Façam como o movimento que deu origem ao NOVO: montem um partido, tenham uma ideologia clara com princípios e valores, não utilizem dinheiro público, deem transparência às suas fontes de recursos, realizem processo seletivo para a escolha dos seus mandatários, não misturem a gestão partidária com a gestão pública, exijam ficha limpa de todos os filiados, não tenham comissões provisórias e implementem ainda todas as outras mudanças que criticam nos partidos tradicionais.

Não é fácil, não é simples e não é rápido, mas é assim que teremos uma renovação de fato. Precisamos valorizar as instituições. Elas são fundamentais em um Estado de Direito e não existe mudança sustentável sem as mesmas. O caminho da mudança implica em assumirmos o protagonismo e em demandarmos liberdade, e não mais interferência estatal. A montagem de um partido, apesar da burocracia, está aberta a todos. É possível, o NOVO provou isso.

Toffoli é Toffoli, e o certo é o certo - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 23/07

Delação premiada se tornou a fé do denuncismo nacional


Sou antigo crítico daquilo em que se transformou o instituto da delação premiada: não um mecanismo por meio do qual colher informações capazes de levar às provas, mas um coletor de dedos na cara tratados como prova per se . O verbo de um criminoso confesso — sujeito enrascado em busca de se safar, que acusa (e, tudo logo vazado, condena) outrem não raro nem sequer investigado — de súbito convertido em alicerce de um processo criminal.

Descrevo a depravação que dá poderes à caça: sob a sanha jacobinista que verteu o combate à corrupção na panaceia que salvará o Brasil (neste ínterim, jogando a atividade política na lama, canonizando heróis e elegendo mitos), nunca os corruptos — esses homens de palavra — foram tão valorizados. Ou não estarão, associados ao Estado, lavando os próprios delitos enquanto dirigem as forças-tarefas contra inimigos e ex-aliados?

Desde que a delação premiada se tornou a fé do denuncismo nacional, uma questão — que deveria ser o freio de prudência para a moderação no uso do mecanismo — jamais se impôs: o que é um criminoso assumido, virtualmente sentenciado, ante a chance de ter seu futuro atrás das grades aliviado, senão um que entrega o que quiserem ouvir?

Um excesso, em nome de boa causa, engaja outro. E nós vamos nos quedando reféns da intimidação, muito bem explorada, segundo a qual quem protesta contra extrapolações da Lava-Jato é a favor da corrupção. Há também o espírito do tempo... Não são poucas as gentes de bem que concordam com a tese de que, frente a novos desafios, só mesmo soluções novas — assim como se estivéssemos tratando do ambiente disruptivo das startups, e não da segurança jurídica do país.

Chego ao ponto. Porque não há um só dia em que o lavajatismo — talvez o mais influente fenômeno revolucionário (não é elogio) da história brasileira — não reúna a assessoria de que dispõe para gritar que a luta anticorrupção está em risco; e isto enquanto um país paralisado, em depressão política, consente com o vale-tudo virtuoso que, para prender bandidos, dilapida a ordem legal, planta a suspeição generalizada e esgarça o tecido social.

Por exemplo: não está prevista — não sob o estado de direito — a ocorrência de investigação sem autorização judicial. No entanto, não faltam indícios de que órgãos de controle têm sido usados como ferramentas policiais, manipulados como extensão do Ministério Público para apurações informais desdobradas abaixo do radar judiciário, do que derivam quebras ilegais de sigilo e seu produto midiático apaixonante: os vazamentos seletivos à imprensa.

Pode o MP, agente estatal acusador, ter acesso a informações particulares detalhadas — inclusive de cidadãos não formalmente investigados — sem aval da Justiça? Perverter algo como o Coaf em instrumento investigativo que se move à margem das garantias individuais é se acercar do estado policial.

Neste exato instante, já acorrem aos porta-vozes os mais bem amplificados procuradores da República: o crítico estaria desinformado sobre como funcionam os órgãos de controle. O que dizer? Que esses especialistas — os que se movem em defesa do próprio poder — são os mesmos que degradaram o instituto da delação premiada, que não têm restrições ao desempenho de um juiz que, contra a letra da lei, sugere condições à negociação de um acordo de colaboração que lhe caberia (ou não) homologar e que nem sequer veem impropriedade em um magistrado tomar lado, às escâncaras, num processo que comanda.

Pergunto: qual é o problema de o MP, ao receber os relatórios, por exemplo, do Coaf, e diante de algo suspeito (identificado a partir de dados globais), pedir a um juiz a quebra de sigilo (por meio da qual ter acesso às operações pormenorizadas)?

Como não há resposta senão uma que confirmará que os procedimentos estavam, digamos, pouco iluminados, a saída será sempre atacar aquele que acendeu a luz. Sei de quem se trata.

Dias Toffoli é Dias Toffoli é Dias Toffoli é Dias Toffoli — a ênfase aqui a serviço do alerta. Da mesma maneira que, quando do inquérito — aquele, autoritário, sem objeto de investigação definido — que resultaria na censura à revista “Crusoé”, o ministro agiu em causa própria, para intimidar a imprensa, é possível que tenha atuado do mesmo jeito agora, para se proteger e aos seus, ao determinar que órgãos de controle não podem compartilhar informações sigilosas sem autorização judicial. É mui possível. Isso, porém, não mina o fundamento corretíssimo da decisão.

De modo que: tendo a motivação oculta que tiver, da primeira vez o presidente do Supremo errou gravemente, escrevendo uma das mais tristes páginas da história do STF; tanto quanto, desta, acertou, protegendo, na prática, o indivíduo — circunstancialmente, também Flávio Bolsonaro — da sanha punitivista que sequestrou o país.

Simples assim. Next.

Um pacote de concessões ambicioso e muito necessário - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

Gazeta do Povo - PR - 23/07

Enquanto o governo continua preparando a lista de empresas estatais que pretende privatizar, uma outra área chave para o desenvolvimento do país, a das concessões de infraestrutura, já tem definições. O ministro da pasta, Tarcísio Gomes de Freitas, definiu a iniciativa como “o maior programa de concessões do mundo”: no total, 41 aeroportos, 11 terminais portuários, 16,5 mil quilômetros de rodovias e 2,4 mil quilômetros de novas ferrovias serão leiloados até o fim de 2022, com um investimento total previsto de R$ 208 bilhões durante a duração das concessões – normalmente, de 30 anos.

As rodovias devem responder por mais da metade deste valor, R$ 140 bilhões; um dado relevante, já que no Brasil a deterioração das estradas é diretamente proporcional à participação deste modal na infraestrutura nacional. Anualmente, estudos da Confederação Nacional do Transporte fornecem dados valiosos sobre o estado crítico das rodovias por onde circula grande parte da produção industrial e agrícola nacional de nossas rodovias. A CNT já mediu, por exemplo, o grau de letalidade de acidentes de acordo com a qualidade não apenas da pavimentação, mas também da sinalização e da geometria das pistas. Outra informação levantada pelos relatórios anuais da entidade demonstra o acerto do governo ao acelerar as concessões de estradas: os trechos administrados por concessionárias têm avaliação muito melhor que aqueles sob gestão estatal.


No setor aeroportuário, o governo parece ter encontrado um bom modelo de concessões

Nesta área, só podemos esperar que, depois de décadas de experiência de vários estados e da União com concessões rodoviárias bem-sucedidas ou frustradas, os editais sejam elaborados de forma a garantir concessões equilibradas, que proporcionem ao concessionário o retorno justo e necessário enquanto não espoliam motoristas e caminhoneiros. Não podemos repetir, por exemplo, o caso do Anel de Integração paranaense, que conseguiu combinar tarifas altíssimas e execução incompleta de obras de melhoria. Se estradas esburacadas oneram o setor produtivo e minando nossa competitividade, concessões feitas de forma equivocada têm o mesmo efeito.

É no setor aeroportuário que o governo parece ter encontrado um bom modelo de concessões, elaborando lotes de terminais que combinam aeroportos importantes e de alto potencial rentável com outros menores, mais destinados à aviação regional, e garantindo que os vencedores nos leilões tenham de investir em todos eles, sem priorizar as “joias da coroa” enquanto deixam os demais aeroportos às moscas. Este sistema, desenhado ainda na gestão de Michel Temer e acertadamente mantido por Jair Bolsonaro, foi testado com enorme sucesso em março deste ano, atraindo o interesse de gigantes internacionais, dispostos a pagar muito pelas outorgas. Além disso, o governo ainda estuda a venda da parte da Infraero em aeroportos importantes, como Guarulhos, Galeão, Confins e Brasília, todos leiloados durante o governo Dilma Rousseff.

A concessão dos aeroportos à iniciativa privada é apenas um passo para desenvolver o enorme (e mal aproveitado) potencial do transporte aéreo no Brasil. A liberação para empresas de capital 100% estrangeiro e uma regulamentação amigável à vinda de companhias low cost aumentarão a competição no setor, conseguindo finalmente cumprir a promessa de passagens mais baixas, equivocadamente feita pelo governo federal quando do imbróglio da cobrança pela bagagem despachada.

A intenção governamental de promover um programa de concessões tão ambicioso exigirá, também, outras reformas. No passado, o dinheiro do BNDES exerceu papel importante, quando não essencial, como viabilizador ou garantidor das concessões – aliás, a lentidão nos desembolsos durante a recessão foi um dos motivos alegados por consórcios interessados em devolver algumas concessões em 2017 e 2018. Bolsonaro e o novo presidente da instituição, Gustavo Montezano, querem que o banco de fomento mantenha o foco no financiamento às concessões e privatizações, mas emprestando menos – fala-se na manutenção do patamar atual, de R$ 70 bilhões por ano. Isso significa que os interessados em administrar aeroportos, estradas, ferrovias ou portos terão de olhar também para o setor privado na hora de buscar recursos, e o ambiente regulatório precisa facilitar essa possibilidade, tornando os investidores menos dependentes dos humores estatais.

No Brasil de hoje, não há motivo para que o Estado continue administrando uma infraestrutura de transporte que a iniciativa privada pode gerenciar de maneira mais eficaz, como demonstram vários aeroportos já licitados, ou as rodovias paulistas, sempre citadas entre as melhores do país. O plano de concessões do governo estimula o protagonismo privado na economia e, se bem realizado, reverterá em benefícios para todos os que usam as malhas rodoviária, ferroviária, portuária e aérea, bem como os que consomem, vendem e exportam os produtos que por elas circulam.

Crédito externo, um avanço - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S. Paulo - 23/07

Com a imagem do País em recuperação, empresas brasileiras têm captado dinheiro externo aos menores custos desde 2014.

Com a imagem do País em recuperação, empresas brasileiras têm captado dinheiro externo aos menores custos contabilizados desde 2014, quando o Brasil afundava na recessão e numa das maiores crises fiscais de sua história. Vários fatores têm contribuído para essa melhora e o avanço da reforma da Previdência é um dos mais importantes, segundo executivos e analistas de grandes bancos internacionais e do mercado financeiro. A reforma começa, portanto, a produzir resultados positivos bem antes de sua aprovação final: até agora o projeto só passou pelo primeiro turno de votação na Câmara dos Deputados. Uma espiada nos bons efeitos já confirmados poderia ser um estímulo a uma tramitação rápida e sem grandes obstáculos a partir do começo de agosto. Fatores externos também têm ajudado, com destaque para a freada nos juros americanos e as promessas de políticas ainda muito frouxas na Europa e no Japão.

Diante da perspectiva de menor crescimento econômico, bancos centrais do mundo rico decidiram prolongar os juros estimulantes. Isso torna mais fácil competir com a remuneração oferecida pelos papéis do Tesouro americano e outros títulos de grande prestígio no mercado global. Há um evidente benefício para os emissores – empresas e governos – do mundo emergente. Nesse quadro o Brasil tem sido especialmente favorecido.

Empresas brasileiras conseguiram, na semana passada, captar recursos no mercado internacional pagando em média 246 pontos-base (pontos de porcentagem) acima da remuneração oferecida pelo Tesouro dos Estados Unidos. Foi a menor taxa da série iniciada em 2010 e muito próxima da mínima registrada em janeiro de 2018, de 247 pontos. Também na semana passada, o custo médio para as empresas de mercados emergentes ficou em 257 pontos-base, acima, portanto, daquele encontrado pelas brasileiras.

A melhora também tem sido observada na evolução de um dos principais indicadores do risco país, o Credit Default Swap (CDS), uma espécie de seguro contra calote. O CDS de cinco anos foi negociado na sexta-feira passada a 128 pontos, uma taxa desconhecida desde setembro de 2014. Há um ano a taxa ainda estava acima de 300 pontos. Outras economias latino-americanas têm avaliações melhores que a brasileira. O CDS do Chile, por exemplo, está em 36 pontos. O da Colômbia, em 84. O da Argentina, com crise interna e externa, tem superado 900 pontos.

Detalhe importante – e muito promissor – é a melhora do crédito brasileiro ocorrer quando o País ainda aparece em posição muito ruim nas classificações das agências internacionais de risco. O Brasil perdeu o chamado nível de investimento, o chamado selo de bom pagador, em 2015, no governo da presidente Dilma Rousseff, quando se evidenciava de forma indisfarçável a devastação das contas públicas. A classificação do País seria novamente rebaixada pelas principais agências antes do afastamento da presidente petista.

No mercado, a recuperação efetiva do crédito, independente da classificação das agências, começou na gestão do presidente Michel Temer, com o firme combate à inflação pelo Banco Central e os primeiros esforços de arrumação das contas públicas (por meio da criação do teto de gastos, por exemplo). Mas a melhora da economia parou. Uma das causas foi o agravamento da insegurança política e econômica a partir do meio do ano passado.

O avanço da reforma da Previdência e as promessas de outras mudanças de grande alcance, como a tributária, estimulam novas apostas no Brasil. Essas apostas estão obviamente condicionadas a um forte compromisso com a reorganização da administração pública e a revitalização da economia brasileira. O acesso ao financiamento internacional poderá facilitar a implantação de uma nova fase de prosperidade. Mas isso dependerá de uma política pensada e executada de forma firme e clara, sem perda de rumo e sem surtos de irracionalidade. O presidente Jair Bolsonaro ajudará muito, se frear seus arroubos e der mais atenção aos objetivos e limites de uma administração republicana e impessoal.

Disparidade salarial - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 23/07

Gasto com funcionalismo deve ser reduzido gradualmente e sem perda de qualidade

Com salários elevados desde os estágios iniciais das carreiras, estabilidade no emprego e privilégios previdenciários, dificilmente o setor público brasileiro poderia dar maiores incentivos à baixa produtividade de seu quadro de pessoal.

Não surpreende, pois, que o país, longe de apresentar resultados animadores em áreas cruciais como educação, saúde e segurança, assuma custos extraordinariamente altos com seu funcionalismo.

Conforme noticiou esta Folha, o pagamento de servidores ativos nas três esferas de governo, em tendência de expansão, consumiu 13,6% do Produto Interno Bruto no ano passado. Pouquíssimos países do mundo destinam fatia tão ampla de seus recursos a essa finalidade.

Entre as maiores economias do mundo, apenas a África do Sul, com 14,2% do PIB contabilizados em 2016, arca com gastos relativamente maiores. Entre emergentes se costuma desembolsar a metade dessa cifra ou menos.

A despesa nacional com o funcionalismo se aproxima, como se nota, à da Previdência —que inclui, aliás, os benefícios de funcionários públicos inativos e seus pensionistas. Não se pode imaginar um programa de ajuste orçamentário sem contemplar essas duas frentes.

Os gastos com aposentados se expandem em ritmo mais explosivo, o que justifica serem alvo de reforma mais imediata. Racionalizar o dispêndio com pessoal é tarefa ainda mais complexa, que envolve medidas de curto e longo prazos —e uma árdua batalha contra corporações influentes.

Seria menos complicado se as distorções salariais estivessem concentradas, como pode parecer, em algumas poucas categorias com vencimentos próximos do teto de R$ 39,2 mil mensais ou, graças a benefícios diversos, acima dele.

Os dados mostram, no entanto, que os salários médios dos servidores superam os dos demais trabalhadores, com folga, em todos os níveis de qualificação (fundamental, médio e superior).

É necessária, portanto, uma ampla revisão das políticas de remuneração, em âmbito federal, estadual e municipal. Uma providência básica, que já tarda, é reduzir os valores pagos aos recém-contratados, hoje não distantes o suficiente daqueles do topo da carreira.

Tanto quanto possível, devem-se buscar parâmetros na iniciativa privada para vencimentos e reajustes, consideradas funções e qualificações similares.

Cumpre rever o exagerado alcance da estabilidade no emprego, não para promover demissões em massa, uma vez que a quantidade de servidores do país não chega a ser excessiva, mas para facilitar eventuais substituições de profissionais ou correções localizadas.

A redução do custo relativo do funcionalismo deve se dar de modo gradual, à medida que os quadros de pessoal se renovem na União, nos estados e nos municípios. Mais importante, tudo indica que é possível fazê-lo sem comprometer a busca por melhor qualidade dos serviços públicos essenciais.

Política de pessoal do funcionalismo exige uma reforma - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 23/07

São necessárias regras racionais para que tudo deixe de ser definido por lobbies de grupos de pressão


O adiamento de reformas necessárias para adaptar o país a mudanças que ocorrem em vários campos — no demográfico, na tecnologia e em outras tantas áreas — cobra um preço.

O exemplo atual é o da Previdência, tema por óbvio sensível, e que foi sendo deixado de lado por conveniências políticas, até chegar ao ponto em que aposentadorias e pensões consomem cerca da metade dos gastos públicos primários, uma conta que não para de subir.

E assim, o governo Bolsonaro está sob pressão para aprovar no Congresso uma reforma que precisa ser robusta, para afastar as expectativas crescentes de insolvência do Estado. Disso depende a capacidade de a economia voltar a se movimentar e começar a absorver os 13 milhões de desempregados.

O atual governo tem o desafio de recuperar o tempo perdido. Outro assunto é a reforma administrativa , sempre falada, mas sem que haja avanços substanciais. E quando existe algum avanço, logo à frente vem um recuo. Aconteceu na passagem da gestão Fernando Henrique para Lula e o PT. O então ministro Luiz Carlos Bresser Pereira formulou propostas para que o funcionalismo passasse, por exemplo, a ser gerenciado por princípios usuais na iniciativa privada — prêmio por mérito e avaliação de desempenho. Em vão, porque a chegada ao poder do lulopetismo, com apoio de corporações sindicais — e as do funcionalismo são as mais fortes — fez tudo voltar à estaca zero.

Agora, ensaiam-se mais uma vez mudanças como aquelas, dentro do Ministério da Economia. Espera-se que desta vez sem retrocessos. Uma das várias frentes deste trabalho é haver um plano de cargos e salários que não onere ainda mais o sobrecarregado contribuinte e, tão importante quanto, torne a máquina burocrática minimamente eficiente, para prestar serviços aceitáveis a quem lhes paga os salários, a população.

Uma constatação é que se torna impossível alguma racionalidade com a existência de 309 carreiras, geralmente com salários iniciais muito superiores aos praticados no mercado de trabalho privado. Dentro do próprio funcionalismo, há enormes disparidades.

Levantamento feito pelo GLOBO a partir de dados do Ministério da Economia mostra que o gasto da União com as carreiras da elite dos servidores representa duas vezes e meia a despesa com os demais servidores. Apenas cinco carreiras no Executivo respondem por uma despesa de R$ 421 mil anuais por pessoa, enquanto com o restante do funcionalismo o gasto médio é de R$ 167 mil.

Deve ser um indício de que mesmo no universo dos servidores há lobbies mais influentes que outros. Seja como for, é crucial ordenar as normas que regem 1,2 milhão de pessoas, incluindo os inativos. Inaceitável que tudo continue a ser definido neste universo ao sabor de grupos de pressão.