segunda-feira, junho 24, 2019

Identidade vs. indeterminação na rede - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 24/06

Quem acha que a internet já provocou mudanças demais ainda não viu nada


Uma das questões mais difíceis para a internet hoje é o tema da identidade. Dá para dizer que há uma verdadeira corrida para ver quem vai ser capaz de certificar a identidade de usuários digitalmente, com validade na rede e fora dela.

A razão para isso é que a arquitetura da internet não foi feita para identificar pessoas. A rede é capaz de identificar máquinas que se conectam a ela. Mas não tem como autenticar as pessoas que estão usando essas máquinas.

Isso aumenta a atenção sobre o anúncio, na semana passada, do lançamento do projeto Libra por parte do Facebook.

Um dos componentes do projeto é justamente a criação de um mecanismo de identificação dos usuários. O que faz sentido.

Quando se faz uma transferência financeira pela internet, é importante saber que quem de fato está do outro lado para receber os recursos.

Para além do Libra, há diversas iniciativas trabalhando com a construção de modelos de certificação de identidade online.

Um exemplo é a Fundação Sovereign, que criou um modelo baseado em blockchain capaz de certificar identidades de forma aberta, dinâmica e independente de documentos estatais.

O modelo empregado é o que se chama de “identidade autossoberana”, em referência ao seu caráter descentralizado.

Nesse modelo, os atributos de uma pessoa (como diplomas, fluência em línguas, nacionalidade, idade e outros) são confirmados de forma aberta por qualquer indivíduo, sem a necessidade de uma autoridade central.

Dá até para dizer que está começando a surgir uma dicotomia global entre serviços da internet em que os usuários são identificados e os que os usuários são indeterminados.

Na primeira categoria estão aqueles que aplicam algum grau de certificação de identidade. Na segunda estão aqueles que se satisfazem com uma autodeclaração do usuário, ou procedimentos mais simples como um endereço de email, ou, quando muito, um número de telefone.

Hoje, cada vez mais serviços caminham para implementar formas de identificação. Na Ásia, os serviços mais novos de livestreaming na China, na Coreia do Sul e no Japão exigem identificação mais elevada do usuário.

Para assistir a conteúdos, a identificação continua sendo simples. No entanto, para transmitir pela plataforma, várias regras se aplicam. É preciso vincular a conta a um número de telefone e até a uma identidade governamental. É preciso usar a plataforma por ao menos uma hora diária por sete dias. É preciso ter ao menos sete seguidores reais.

E, na dúvida, a plataforma pode pedir que uma outra pessoa “real”, já certificada, avalize o novo usuário, afirmando que ele é real (e se responsabilizando por essa afirmação).

Essas medidas dificultam, por exemplo, o uso de robôs e contas automatizadas. Mais do que isso, na medida em que a internet vai se transformando cada vez mais em uma rede em que trafegam transações financeiras e outras funções críticas, passa a ser importante reforçar a camada de autenticação dos usuários.

As repercussões dessa mudança não são triviais. Produzem impacto sobre governo, comércio, a própria ordem internacional e o potencial de desencadeamento de novas forças disruptivas.

Quem acha que a internet já provocou mudanças demais ainda não viu nada.

READER

Já era Dormir desconectado
Já é Medir a qualidade do sono com aparelhos vestíveis
Já vem Publicar a qualidade do sono e competir mundialmente por quem dorme melhor

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Moro arriscou e agora paga preço - VINICIUS MOTA

FOLHA DE SP - 24/06

Opção por esticar o direito até o limite embutia custos


Não dá para acusar Sergio Moro de incoerência, conhecida agora parte de sua conduta informal na Lava Jato. Perseguiu o programa anticorrupção que tinha delineado em 2004, num texto acadêmico tratando da Mãos Limpas, na Itália.

É preciso esticar ao limite os instrumentos do direito e alimentar o apoio da opinião pública —no que vazamentos tempestivos à imprensa ajudam— para ter chance contra o monstro da corrupção, argumentava o jovem juiz federal. Escrito e feito.

Num dos trechos dos diálogos obtidos pelo site The Intercept, Moro dá um sabão num delegado da Polícia Federal, por tornar públicos documentos que justificariam tirar de Curitiba parte da Lava Jato. A bronca é repassada pelos procuradores, que articulam proteção ao juiz.

Num outro momento, Moro cobra do Ministério Público um contra-ataque midiático ao “showzinho” da defesa do ex-presidente Lula diante do magistrado. Opa! Falta, seu juiz.

Esse é o perigo de correr na faixa estreita que divide a pista da caixa de brita. Moro e os procuradores federais de Curitiba assumiram o risco quando implantaram um modo vanguardista e heterodoxo de operar.

Colheram louros, mas agora vêm os espinhos que estavam no preço. O sistema de Justiça não pode fazer vista grossa a revelações que sugerem ação parcial de um magistrado.

Os exemplos de juízes e procuradores que perderam o juízo ao longo da notável reação das instituições de controle brasileiras à corrupção grossa não se restringem a esse caso.

Inventaram o impeachment sem perda de direitos políticos, impediram o presidente de nomear ministros, meteram-se no Congresso, censuraram a imprensa, prenderam por motivos débeis, montaram esquemas paralelos de apoio a delatores e derraparam para o debate político.

Extravagâncias de autoridades fazem mal à democracia. O bom governo é comedido, silencioso, deferente aos seus limites e eficaz. A fervura dos rompedores e dos desbocados é típica de outros regimes.

Os ancestrais da Lava-Jato - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 24/06

Vale a pena discutir a tese de Luiz Werneck Vianna, que compara operação ao tenentismo nos anos 20


Por ter sempre defendido a Operação Lava-Jato, sofri algumas críticas por não tê-la condenado agora, com o material divulgado pelo Intercept.

Na verdade, escrevi dois artigos sobre o tema. Provavelmente, não os acham adequados aos tempos de julgamento rápido e linchamento em série que a atmosfera da rede propicia. Há algumas razões para isso. Uma de ordem pessoal: o trabalho — às vezes imerso na Mata Atlântica e em outros biomas — não me permite olhar o telefone de cinco em cinco minutos.

Há também uma razão de ordem prática: o próprio Glenn Greenwald, o jornalista que apresenta as denúncias, anunciou que tem um grande material sobre o tema e que vai divulgá-lo até o fim. Possivelmente, dada a dimensão, talvez compartilhe a análise com outras empresas de comunicação.

Portanto, Greenwald anuncia um jogo longo. Estamos apenas na primeira parada técnica. No final da partida, voltamos a conversar.

No momento, não me importo que me julguem rapidamente, pois esse é o espírito do tempo. Nem que me culpem por apoiar a Lava-Jato. De um modo geral, as pessoas que o fazem são as mesmas que culpo por omitirem os erros da esquerda, sobretudo a colossal roubalheira que tomou conta do país nos últimos anos. Portanto, jogo jogado.

No entanto, vale a pena discutir, por exemplo, a tese do cientista político Luiz Werneck Vianna, que compara o papel da Lava-Jato ao do tenentismo nos anos 20. Na época em que ele lançou essa ideia, por coincidência, eu estava lendo o livro de Pedro Doria sobre o tenentismo. Concorde-se ou não com as teses de Werneck, ele lança um tema que merece ser discutido e estudado porque nos remete a alcance histórico mais longo que a sucessão diária no Twitter.

Werneck tem uma visão crítica da Lava-Jato. Considera que o objetivo dos procuradores é mais corporativo e que se esforçam para concentrar poder e, possivelmente, benefícios.

Mas se examinamos o momento mais tenso do tenentismo, a Revolta dos 18 do Forte, veremos que também eles costumam ser classificados de corporativistas. Em tese, estariam reagindo às criticas oficiais que maculavam a honra dos militares.

O tenentismo repercute por toda a década de 20 em espasmos distintos, inclusive a Coluna Prestes. Muitos dos integrantes do movimento são nome de rua em várias cidades do país.

O tenentismo lutava contra um poder concentrado na oligarquia de Minas e São Paulo, a chamada aliança café com leite. A Lava-Jato já encontra tantos anos depois um sistema mais bem distribuído nacionalmente e atinge quase todos os partidos.

Quando a candidatura de Nilo Peçanha enfrenta a oligarquia, existe uma tentativa de conquista da opinião da classe média para as teses do que se chamava Reação Republicana.

Aqui de novo uma grande diferença. A inspiração da Lava-Jato foi a Operação Mãos Limpas, na Itália. Nela estava contida também a necessidade de convencer a opinião pública.

Os meios de hoje são mais potentes, e a própria opinião pública, mais articulada e desenvolvida. Os tenentes estavam dispostos à ação armada, ainda que em condições dramaticamente desfavoráveis.

A Lava-Jato optou pelo caminho legal. O que realizava na prática era passível de confirmação ou veto pelas instâncias superiores. Havia nela o mesmo fervor dos tenentes que esperavam com ação consertar o Brasil.

Dentro do quadro jurídico, ela sobreviveu até agora. Os julgamentos de seus atos foram públicos.

No momento, sofre um ataque especial. Dificilmente um movimento histórico dessa dimensão não se desgasta com a divulgação de conversas íntimas que se acham protegidas da divulgação.

Lendo o livro sobre o gênio político de Abraham Lincoln, a sensação é de que, se algumas conversas fossem vazadas como hoje, também seriam incômodas. Para abolir a escravatura, foi preciso um toma lá dá com parlamentares, ainda que em número pequeno.

Isso não justifica nada. Apenas reforça a tese de que um julgamento depende de dados, de um contexto e, sobretudo, de verificação de sua autenticidade.

Por que tanta pressa, se garantem que é devastador o material contra a Lava-Jato?