terça-feira, junho 04, 2019

Namoradas imaginárias - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 04/06

Se eu escrevesse uma autobiografia, quais seriam as minhas conquistas falsas?

Namorar Natalie Portman não é para qualquer um. Mas Moby, o famoso músico, não é qualquer um. Escreveu uma autobiografia ("Then it Fell Apart") na qual relata um romance (breve) com Portman. Ele, um homem de 33, namorando uma garota de 20 —o amor não tem idade, certo?

Pena que Natalie Portman tenha negado tudo. Em entrevista, ela se lembra de Moby, sim, quando se encontraram pela primeira vez: um homem mais velho "being creepy with me". Ouch!

Desiludido com a amnésia da sua namorada imaginária, Moby não se conformou. E publicou uma foto de ambos: ele, sem camiseta, abraçando uma Natalie Portman com um sorriso amarelado. Na cabeça de Moby, a foto é a prova que faltava.

Mentir é feio, Moby. Mentir sobre namoradas imaginárias é ainda mais feio, rapaz. Mas, quando lia as desventuras amorosas de Moby, não consegui me controlar: se eu fosse um mentiroso profissional e escrevesse a autobiografia, quais seriam as minhas conquistas falsas?

Nasci em 1976. Cheguei à idade adulta em 1994. Natalie Portman, ainda menor (nasceu em 1981), estaria excluída por razões morais e legais (exatamente por essa ordem, meritíssimo juiz).

A segunda Natalie que eu amo, de sobrenome Wood, também não seria opção (morreu no ano em que Natalie Portman nasceu). Quem restaria?

Aqui vão três páginas dessa falsa autobiografia que um dia, às portas da morte, tenciono publicar.

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"Roma no verão é a imagem mais aproximada do inferno. Mas, em 1994, com a juventude a latejar nas veias e algum dinheiro no bolso, cheguei à cidade e procurei um hotel decente junto ao largo Alberto Beltramelli, onde ficava a casa da minha professora de italiano.

No primeiro dia, fui um turista obediente e sem imaginação: visitei o Fórum, deambulei pelo Coliseu e jantei em Trastevere, onde creio ter sido roubado pelo restaurante. No dia seguinte, depois de uma noite quase em branco (o calor, o ruído, o cheiro intenso de gorgonzola —ou seria urina de cachorro?), cheguei ao meu verdadeiro destino.

A professora recebeu-me no cimo das escadas, sorriu e apresentou-se: "Monica", disse ela, estendendo a mão. "Monica Bellucci." As palavras, que eu julgava uma especialidade minha, desertaram-me. Preferi escutar: Monica era então uma jovem atriz, sem trabalho certo, que ensinava italiano a estrangeiros na casa de uma tia. Eu era o seu primeiro aluno e, nos dois meses que passamos juntos, o seu primeiro grande amor..."

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"Quando a Carnegie Deli ainda existia em Manhattan, era possível comer um sanduíche de pastrami que rivalizava em altura com os arranha-céus da cidade. Era cliente regular: chegava por volta da meia-noite e os empregados tratavam do resto.

Foi numa dessas vezes que conheci a Mimi: o pastrami tinha esgotado e ela, desolada e faminta, preparava-se para deixar o boteco de mãos vazias. Levantei-me e disse: "Posso partilhar o meu sanduíche, senhorita. Isso aqui dava para alimentar África inteira!". Mimi ficou chocada com tamanha insensibilidade, mas a minha beleza exótica, mediterrânica, quase insolente (palavras dela), fê-la aceitar.

Foi o início de uma amizade intensa, que rapidamente se converteu em algo mais. Mas eu sabia que a nossa paixão seria breve: eu não pertencia ao mundo de Mimi. Isso tornou-se dolorosamente evidente quando o New York Post publicou uma foto de paparazzo com a legenda assassina: "The Beauty and the Beast" (a Bela e a Fera). Sim, eu não era ninguém ao lado de Michelle Pfeiffer..."

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"Agora, nas vésperas de fazer 80 anos, ainda tenho gratas surpresas. Ontem, ao início da tarde, o mordomo anunciou a senhora Christine de Rastignac. A minha memória já não é o que era e aquele nome, Rastignac, só me trazia à lembrança um personagem de romance francês, que lera nos verdes anos.

Finalmente, a misteriosa senhora Rastignac entrou no quarto e uma lágrima festiva viajou pelo meu rosto. "Rastignac?!", perguntei, olhando incrédulo para a minha Christine. Era verdade. Tinha se casado recentemente --aos 88 anos!-- com um famoso produtor de champanhe de Bar-sur-Aube de nome Alphonse de Rastignac. Para o provar, até trouxera três garrafas, que bebemos sem demora, enquanto recordávamos o Rio de Janeiro da virada do século: eu, um jornalista em início de carreira; ela, uma atriz que conhecia o seu primeiro sucesso na Globo; mas ambos jovens e pateticamente apaixonados.

No fim, quando nos despedimos, segurei nas suas mãos --aquelas mãos de uma alvura rara, preciosa-- e disse-lhe: "Para mim, serás sempre a Christine Fernandes". Creio que se emocionou com as minhas palavras, embora o álcool tenha dado uma ajuda..."

João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa

Empreendedores do atraso: quem lucra com os problemas do Brasil - PEDRO MENEZES

GAZETA DO POVO - PR - 04/06


Qual a causa e a natureza da riqueza das nações? Essa pergunta deu título ao famoso livro de Adam Smith, tido como marco de nascimento da economia. Séculos depois de Smith, o americano Douglass Cecil North começou a elaborar a resposta mais aceita pelos economistas hoje em dia: instituições importam. Não por acaso, North foi premiado com o Nobel em 1993. Seu trabalho é muito útil para entender os problemas presentes do Brasil.

Instituições são mecanismos que criamos para reduzir a incerteza ao nosso redor. Elas podem ser informais, como os velhos códigos de honra que constrangiam trapaças entre famílias próximas numa pequena vila. Mesmo nos sistemas econômicos mais simplórios, até mesmo em comunidades indígenas sem um Estado moderno, existem instituições informais. Costumes quase universais, como o aperto de mãos na hora de fechar negócios, também são instituições.

Quanto mais complexa é a divisão do trabalho numa sociedade, mais complexas serão as instituições necessárias para diminuir a incerteza na atividade econômica. Seria impossível regular o fornecimento de energia elétrica no município de São Paulo apenas através de apertos de mão. Não por acaso, o nascimento do capitalismo caminhou junto com a consolidação do moderno Estado-nação. As instituições formais que criamos nos últimos séculos – nossas leis, Constituição, sistema jurídico, etc – surgiram para lidar com uma economia cada vez mais complexa.

Para fornecer previsibilidade à atividade econômica, as instituições alteram os “preços relativos”. Uma lei penal contra fraudes deve encarecer a mentira e baratear a honestidade no cumprimento de acordos. Uma desburocratização da economia diminui o custo para obtenção de papeladas, barateando todos os usos alternativos para as horas de trabalho que não serão mais gastas em filas de repartições.

Boas instituições são aquelas em que o preço do trabalho honesto é menor que o da trapaça. Quando a produção de riqueza é mais vantajosa que a extração do que foi produzido por terceiros, a sociedade como um todo tende a ficar rica. Esse é o segredo do sucesso: incentivar a criação de riqueza, o trabalho duro e honesto, enquanto a trapaça é severamente punida.

Eis o conceito de instituições segundo Douglass North. É um resumo, claro. Se soou ruim, pode colocar a culpa no colunista, porque North é muito bom. O mais interessante nas suas ideias ainda está por vir. Falo dos insights de North sobre a mudança institucional. Afinal, é isto o que importa para um país como o Brasil, interessado em reformar suas instituições para entrar no clube dos ricos.

Se instituições boas levam à riqueza e sabemos o que são boas instituições, por que há países pobres? Parece tão fácil chegar lá... O que vemos, na verdade, é o contrário: os países de renda média têm grande dificuldade para melhorar suas instituições e, por isso, não conseguem entrar no clube dos desenvolvidos. Douglass North (não disse que o cara é bom?) também deu uma boa explicação para o assunto.

Assim como todos os países têm instituições, todos os países têm empreendedores. E esses empreendedores trabalham com os preços relativos praticados numa economia. Se as instituições forem ruins e favorecerem o roubo, muitos empreendedores vão roubar. Se é mais vantajoso buscar uma negociata com um político do que investir no processo produtivo, Joesleys e Odebrechts surgirão.

Os empreendedores brasileiros são guiados por preços relativos definidos pelas instituições brasileiras. Mudar as instituições é, também, mudar os preços relativos que norteiam a atividade econômica. Reformar o Estado é exigir uma mudança de comportamento dos empreendedores atuais – e nem sempre eles estão satisfeitos com essa mudança.

A reação natural dos empreendedores, num primeiro momento, é tentar impedir mudanças institucionais que os prejudiquem. Concurseiros, elite servidora, corruptos e homicidas variam muito no grau de moralidade das suas ações, mas são iguais enquanto empreendedores do atraso. São pessoas que lucram com defeitos institucionais, com a distorção dos preços relativos promovida pelo Estado brasileiro. Toda melhoria institucional está sujeita ao combate dos empreendedores do atraso.

Mais do que isso: os moldes finais de uma melhoria institucional são sempre determinados pelos empreendedores do atraso. Veja o caso da reforma trabalhista, por exemplo. Com vários dispositivos desincentivando a judicialização das relações de emprego, a reforma tirou poder da Justiça do Trabalho. Em resposta, os juízes trabalhistas prometeram reverter diversos trechos aprovados através da jurisprudência, mantendo os estímulos pró-litígio anteriores à reforma.

Não importa quais reformas sejam encaminhadas, os empreendedores do atraso tentarão evitar a aprovação delas. E se forem aprovadas, eles voltarão seu foco a impedir que sejam efetivadas.

No Brasil, toda melhoria institucional prejudica aqueles que empreendem com base nos perniciosos preços relativos brasileiros. Parte importante da elite brasileira depende da extração da riqueza alheia. Essa parcela sai perdendo sempre que alguém tenta encarecer a extração para favorecer a produção, como recomendava North. Em meio a avalanches no noticiário, pode soar estranho um texto mais frio, distante do nosso dia-a-dia, onde descrevo as ideias de um grande economista do século passado. Mas, convenhamos, esse é o tipo de debate que realmente importa. É crescente o consenso sobre a necessidade de reformar as instituições brasileiras. Sem uma boa estratégia para lidar com os empreendedores do atraso, dificilmente chegaremos lá."

Cinturão e Rota liga China e Brasil - LI YANG

O GLOBO - 04/06

No final de 2017, o investimento chinês na América Latina somou US$ 387 bilhões

A Iniciativa Cinturão e Rota, proposta pelo presidente Xi Jinping em 2013, consiste em um arrojado projeto de cooperação internacional, que encontra no símbolo histórico da antiga Rota da Seda a sua inspiração. Tal iniciativa baseia-se na coordenação de políticas, na ampliação dos meios de comunicação, no livre fluxo de comércio, na integração financeira e no entendimento entre os povos. Além disso, adere aos princípios de consulta extensiva, contribuição conjunta e benefício compartilhado. A proposta é alcançar altos padrões de crescimento, beneficiando a sociedade com metas sustentáveis, visando ao bem-estar e ao desenvolvimento comuns.

Recentemente, realizou-se em Pequim o 2º Fórum do Cinturão e Rota para Cooperação Internacional, que reuniu 40 chefes de Estado e de governo, e diversas organizações internacionais. Os resultados foram frutíferos. As partes chegaram a um consenso amplo sobre a construção conjunta e de alta qualidade do Cinturão e Rota. Na ocasião, foram assinados mais de cem acordos multilaterais e bilaterais no valor de mais de US$ 64 bilhões.

O Cinturão e Rota está enraizado na história da humanidade e aberto ao mundo. Nos últimos seis anos, as zonas econômicas dos países participantes têm avançado consideravelmente, a rede de interconexão tem se desenvolvido, o comércio e o investimento cresceram substancialmente a partir dos projetos implementados. A África Oriental, por exemplo, teve a sua primeira via expressa; as Maldivas, a primeira ponte de travessia marítima; e a Bielorrússia, a sua própria indústria de automóveis. No Sudeste Asiático, estão em construção as ferrovias de alta velocidade, e os trens China-Europa tornaram-se o maior elo de cooperação na Região Euroasiática, transformando-se num poderoso ímpeto para a recuperação da economia mundial.

A América Latina não é exceção. Como extensão natural do Cinturão e Rota, ela se tornou o segundo maior destino de investimentos externos da China, precedida apenas pela Ásia. Em 2018, o volume de negócios bilaterais entre a China e os países latino-americanos atingiu US$ 307,4 bilhões. No final de 2017, o investimento chinês na América Latina somou US$ 387 bilhões.

A China está construindo linhas de transmissão conectando o Brasil de norte a sul, concluiu o Projeto Belo Monte I — transmissão de ultra-alta tensão — três meses antes do planejado, e já está em andamento o projeto Belo Monte II. Na Argentina, a China participou da transformação da ferrovia Belgrano de cargas, revitalizando uma ferrovia centenária. No Equador, a China construiu a usina hidrelétrica de Sinclair, com uma capacidade instalada total de 1.500 MW, para atender à demanda de eletricidade de um terço da população do país. Para os países latino-americanos, os investimentos chineses promoveram a melhoria da intercomunicação regional e do seu vínculo com o mundo inteiro, beneficiando, assim, todos os povos.

O Brasil é um grande país emergente, com influência global. Sob a iniciativa Cinturão e Rota, a cooperação sino-brasileira é muito promissora. Em primeiro lugar, o Brasil terá grandes oportunidades de financiamento, que se tornarão uma força motriz para a sua economia. Segundo, expandirá o mercado para as empresas brasileiras, aumentando sua capacidade de produção e gerando empregos. Terceiro, a rede de infraestrutura será aprimorada, havendo uma melhoria na interconexão e interoperabilidade. Quarto, ajudará a China e o Brasil a aproveitarem as oportunidades da Quarta Revolução Industrial, beneficiando as duas nações. E, por fim, irá promover a cooperação e o intercâmbio cultural, melhorando o conhecimento e a amizade entre os nossos povos.

É impossível separar pessoas com objetivos e ideais comuns; nem mesmo montanhas e mares os separam. Embora existam uma longa distância e condições nacionais diferentes entre a China e o Brasil, as suas vantagens são complementares e óbvias. O ano de 2019 celebrará o 45º aniversário do estabelecimento das relações diplomáticas sino-brasileiras, e o Brasil será sempre bem-vindo a aproveitar as oportunidades e extrair ao máximo as suas vantagens únicas, possibilitando a prosperidade para o país através da nossa união na Iniciativa Cinturão e Rota.

Li Yang é cônsul-geral da China no Rio

O capital cívico da confiança - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 04/06

O país vive uma fase de descrença muito perigosa


Na literatura acadêmica, há uma linha de pesquisa que trata do chamado “capital cívico”. É o conjunto de características que fazem com que uma sociedade tenha na confiança um dos pilares do seu desenvolvimento. Usa-se muito, nesses estudos, o caso da Itália, onde as relações entre pessoas, grupos e instituições no Sul subdesenvolvido do país diferem muito das que se verificam no Norte, um espaço muito mais evoluído.

Quem visita o Japão ou a Escandinávia dificilmente deixa de concluir que são lugares que pertencem a uma espécie de “estágio superior” da civilização. Nessas sociedades, não apenas as pessoas confiam muito mais umas nas outras, como também há confiança no governo, de forma análoga à que existe numa família, no pressuposto de que esta se guia pela procura do bem comum.

No caso de um país, pense o leitor como agiria se fosse empresário num lugar como a Venezuela de hoje. É óbvio que, na enorme maioria dos casos, a única estratégia sensata nesse caso é, pura e simplesmente, sobreviver. Assumir o risco de recorrer a um banco, tomar um crédito e investir, nesse ambiente de cataclismo, é uma insensatez. A comparação com a situação de um país desenvolvido, onde há confiança e um bom ambiente de negócios, não poderia ser mais contrastante.

O leitor deve estar se perguntando: “O que isso tem a ver com a gente?”. O ponto que quero destacar é que, no Brasil, vivemos há anos uma situação penosa em termos da confiabilidade em nossos homens públicos. É preciso, porém, que o país aprenda a diferenciar melhor o joio do trigo, porque certas generalizações podem estar contribuindo para minar as bases da democracia, ajudando a criar um ambiente no qual o cidadão comum entende que tudo conspira para prejudicá-lo.

Vou citar dois exemplos desse espírito preocupante que está sendo criado. O primeiro é a pregação, amplamente difundida no ambiente eleitoral de 2018, contra o “peso de Brasília” na vida do cidadão comum, através da cobrança de impostos. Ocorre que entre 2010 e 2018 a relação entre as despesas previdenciárias mais Loas e a receita líquida do governo federal passou de 49% para 63%, o que significa que sobram cada vez menos recursos para atender aos serviços que a população requer. E isso não guarda qualquer relação com aumento dos privilégios do funcionalismo, “excesso de Brasília” ou coisas do gênero — e sim com regras que permitem aposentadorias precoces de muita gente, desde aqueles que se aposentam no meio rural até quem o faz aos 51 anos por tempo de contribuição na cidade.

O outro é a manchete de um grande jornal: “Herança por três décadas: indenização da conta de luz pode ser paga por 30 anos”. Quem lê a manchete fica com a impressão de que há uma conta extra cobrada para “meter a mão” no bolso do brasileiro para beneficiar uma distribuidora, quando era exatamente o contrário: era uma diluição de uma conta, a ser originalmente quitada em alguns anos, por um período de três décadas.

O país vive uma fase de descrença muito perigosa. Resgatar a confiança é chave. É importante olhar para a História. Quando se observam os dados da Argentina, fica difícil entender como é que ela saiu dos bons números da década de 60 para a tragédia dos anos 70. Em parte, isso foi porque o clima do dia a dia na gestão de Arturo Illia, que fez um governo correto, fez com que equivocadamente ele fosse retratado como algo caótico, o que compôs o pano de fundo para o golpe militar de Onganía em 1966. Aqui no Brasil, parte da opinião pública — ou publicada — tratou durante oito anos o período FHC —definitivamente, um ponto fora da curva em nossa História — como o de um governo corrupto. Retrospectivamente, o tratamento foi uma completa aberração. É preciso revalorizar a política. É uma reflexão que cabe a todos fazermos. Todos têm legitimidade para isso. A eleição foi há oito meses. Dialogar, praticar concessões, procurar consensos — em outras palavras, fazer política — é acumular capital cívico. É disso que se trata.

Com caso Neymar, tribunal da internet se institucionaliza - RONALDO LEMOS

FOLHA DE SP - 04/06

A miséria da situação é não só do jogador e da suposta vítima, mas de todos nós



A acusação de estupro que recai sobre o atacante Neymar e o estigma sobre a suposta vítima mostram como a internet se aprofunda cada vez mais como um gigantesco coliseu. Nele são atirados os destinos pessoais e profissionais de qualquer pessoa –anônima ou famosa– para que sofram julgamento e sirvam de espetáculo. Tudo até que sejam substituídos pelos próximos a serem atirados ao coliseu, que certamente virão e logo.

O que chama a atenção no caso Neymar é que ele traz sinais claros de que há uma “institucionalização” do tribunal da internet. É como se a internet já tivesse se normalizado como lugar de julgamento. Começa a surgir até um "processo" a ser seguido pelas “partes”.

A suposta vítima faz sua acusação, que é repercutida na rede. O acusado elabora e publica sua defesa também na internet. O julgamento é então imediato. Realizado por uma multidão de observadores que se divertem, ao mesmo tempo em que proferem sua sentença irrecorrível.

No tribunal da internet, não existe apelação nem julgamento em segunda instância. Ele funciona da mesma forma que a multidão sedenta por fazer justiça com as próprias mãos no filme clássico “M, o Vampiro de Dusseldorf”, de 1931.

Enquanto tudo isso acontece em velocidade imediata, as instituições legais que deveriam efetivamente investigar e julgar a questão atuam em completo descompasso com relação ao espetáculo que se desenrola.

Até agora, o caso Neymar foi noticiado com a seguinte sequência de fatos. Há a acusação de estupro, que repercute globalmente. Na sequência, há uma defesa inusitada do jogador. Em vez de seguir o playbook mais comum em casos similares, em que o acusado solta uma nota impessoal por meio de assessoria de imprensa, defendendo-se das acusações, Neymar decidiu seguir por outro caminho.

Utilizando o alcance global de suas mídias sociais, divulgou um vídeo em que aparece ele próprio se defendendo. Ao final, divulga as “provas”. Elas são protocoladas não em uma instituição legal, mas no próprio no tribunal da internet. Trata-se de mensagens privadas e fotos íntimas (editadas) enviadas a ele pela suposta vítima.

Do ponto de vista legal, a conduta é tipificada como crime pelo artigo 218-C do Código Penal, que atribui pena de 1 a 5 anos para “publicar ou divulgar, por qualquer meio fotografia ou outro registro que contenha cena de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima”.

O jogador ter postado as fotos desfocadas ou editadas eliminaria a conduta criminosa? Ou ainda, o fato de as fotos terem sido postadas como mecanismo de defesa afastaria o crime? A única resposta até agora é que o destinatário do vídeo de defesa não foi o poder judiciário ou uma autoridade de investigação. Mas, sim, o próprio tribunal da internet.

Essa situação coloca a todos nós em um dilema. As instituições legais criadas ao longo do século 20 foram bem-sucedidas em superar a turba enfurecida retratada no filme “M”, por meio da institucionalização, por exemplo, do devido processo legal, do direito de defesa, da limitação da pena e do duplo grau de jurisdição.

Essas mesmas instituições hoje não dão conta das turbas digitais. Os julgamentos são imediatos. Não há defesa. A pena é implacável e ilimitada temporalmente. No caso Neymar, tanto o jogador quanto a suposta vítima estão provando do coliseu. A miséria dessa situação é não só deles, mas de todos nós.

Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Sem os estados não haverá ajuste - MÍRIAM LEITÃO

O GLOBO - 04/06

Uma reforma da Previdência sem os governos regionais não salvará o país do naufrágio porque estados e municípios estão em situação fiscal crítica


A questão de ter os estados e municípios na reforma tem a seguinte complexidade: na conta da redução dos gastos — R$ 1,2 trilhão — isso não está incluído, mas se eles não entrarem o Brasil terá feito uma mudança para salvar a União, enquanto o resto do país naufraga. Há uma outra complicação. Alguns governadores falam com o governo que querem que a reforma seja estendida aos estados, mas publicamente criticam a proposta. Os deputados então se retraem porque não querem pagar sozinhos o custo de apoiar uma medida impopular.

O relator da proposta, deputado Samuel Moreira, já disse mais de uma vez que a reforma tem que ser para todos os entes da federação, mas ele precisa ouvir os outros deputados, tentar convencê-los. Pode fazer um relatório apenas com suas convicções, mas se não conseguir convencer os parlamentares não vai adiantar. Deputados de vários estados começaram a propor que a reforma tirasse a aplicação automática nos estados e municípios, dado que alguns governadores não queriam brigar publicamente por ela. Ela só valeria após uma lei ordinária aprovada em cada Assembleia Legislativa ou Câmara de Vereadores. Basta ter a maioria dos votos dos presentes depois de garantido o quorum. Mas de qualquer maneira isso iria atrasar e abrir nova frente de pressão.

O assunto foi então levado à área econômica para estudos, o que não significa que será incluído no relatório. De qualquer maneira, a informação de que isso estava sendo analisado produziu o efeito de fazer com que governadores a favor da inclusão automática dos estados se mobilizassem. Prefeitos das cidades com maiores desequilíbrios estão também procurando o governo para tratar do assunto.

Na área econômica o que se diz é que aquele valor de R$ 1,2 trilhão não seria alterado, mas toda a lógica de um ajuste fiscal no custo das aposentadorias e pensões seria atingida. Como disse o secretário Mansueto Almeida na entrevista que me concedeu na semana passada, dois terços das aposentadorias dos estados foram concedidos para pessoas com uma média de 49 anos de idade. Ele acha, como repetiu ontem na “CBN”, que se permanecer assim será impossível haver ajuste fiscal no Brasil. De qualquer maneira, no Congresso o que se diz é que o ministro Paulo Guedes teria dado sinal de que pode ceder neste ponto. Se for isso será um desastre.

O que mais pesa nos estados são as aposentadorias especiais de professores e policiais. O levantamento da Consultoria Legislativa mostra que, nas 277 emendas, houve mais propostas para aumentar o tratamento diferenciado de determinadas categorias, incluindo-as nas já existentes, do que para mudar os pontos polêmicos que atingem os mais pobres. Foram 38 propostas para estender aposentadoria especial, 17 para preservar a dos professores. As emendas vão no sentido oposto ao desejado pela reforma. A questão do BPC, que tanto debate causou, recebeu nove emendas. Ontem na votação da MP do combate à fraude, houve acordo com o governo para dar mais tempo para a alteração na aposentadoria rural.

O déficit da Previdência dos estados se aproximou dos R$ 90 bilhões em 2018. Em 2014, pelos dados do economista Raul Velloso revelados pelo GLOBO, o rombo era de R$ 47,4 bi. O problema os sufoca. São eles os responsáveis por serviços básicos como segurança, saúde e educação. Outro levantamento de Velloso revelou que em dez anos a despesa com a Previdência dos estados com servidores inativos dobrou. O ritmo é mais forte do que o registrado pela União, que viu o gasto com os aposentados do serviço público acelerar 46%.

A reforma tem que valer para a União e governos regionais. Isso é claro para quem acompanha a deterioração das contas públicas. É difícil o trabalho de dar sustentabilidade a um sistema de pensões e aposentadorias que ficou desequilibrado demais antes do tempo. Por isso esse tema é tão difícil. As pressões vêm de todos os lados, claro, mas esta é a hora do diálogo para o convencimento. A democracia exige a construção de alianças, como disse ontem, neste jornal, o deputado Rodrigo Maia. Se a equipe econômica aceitar a retirada dos estados só porque não está na conta do que será poupado, estará cometendo um erro enorme.

Os proprietários da miséria nacional - FERNÃO LARA MESQUITA


O Estado de S.Paulo - 04/06


Onde a propriedade privada é garantida, a obra de cada cidadão é ‘capital vivo’

A crise é generalizada porque é uma crise dos fundamentos. O País perdeu a capacidade de identificar as referências básicas em relação às quais se posicionar. Uma das mais básicas dessas referências básicas é o direito de propriedade. A brasileira, como toda sociedade deseducada, tem apenas a si mesma como referência. Age como se o mundo tivesse começado com ela. E, como o Brasil começou com apenas 13 proprietários, a defesa da propriedade privada nunca foi popular por aqui.

Os 13 proprietários do Brasil eram, porém, apenas os prepostos do proprietário único de Portugal e seu império ultramarino. Nas monarquias absolutistas “soberania” e “propriedade” (ou patrimônio) eram dois nomes da mesma coisa ou, melhor, da mesma pessoa. Tudo pertencia ao rei. O governante despótico não tinha de ir a uma assembleia de representantes do povo para pedir dinheiro. A sociedade inteira é que tinha de ir a ele para suplicar que lhe deixasse as migalhas do pão que ela amassava.

A única exceção foi o rei inglês. Não é por questão de gosto que na Inglaterra os castelos são de pedra e madeira e os franceses, espanhóis, russos ou portugueses são de ouro. Numa luta que vai fazer mil anos desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês foi mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de sua majestade por recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de cada indivíduo da plebe sobre o resultado do seu trabalho contra o poder do rei e seus “nobres” de tomá-lo para si, até que, a partir de 1680, o Parlamento ganhasse a supremacia de que desfruta até hoje.

A propriedade e a liberdade individuais emergiram, portanto, de uma luta travada entre um corpo de representantes do povo, que só tinha de seu a sua capacidade de trabalho, e um déspota. Onde o rei ou seu equivalente foram compelidos a depender do Parlamento ou seu equivalente como fonte de alimentação da sua renda, a propriedade individual foi ganhando proteção cada vez mas sólida e a liberdade floresceu. Onde aconteceu o contrário o resultado foi o inverso.

A propriedade dos meios de produção onde esse tipo de processo histórico ocorreu não é um privilégio, ao contrário, é uma responsabilidade que atrela o seu titular ao processo de produção. Os proprietários sem proteção de “reis” são compelidos pelo mercado a voltar a sua propriedade para a melhor satisfação dos consumidores, e os que forem lentos ou ineptos nesse processo serão penalizados por prejuízos e, se não aprenderem a lição, pela perda dessa propriedade.

“Mas é precisamente dessa escravidão que é preciso libertar o homem”, dirá um francês ou um aluno dos franceses da USP dos tempos em que ela existia como universidade. A alternativa é a privilegiatura, esse nosso feudalismo remasterizado, lembrará este escriba. Não há terceira via...

Hernando de Soto, no seu livro clássico O mistério do Capital: por que o capitalismo triunfou no Ocidente e falhou nos outros lugares, deixou a teoria de lado e foi a campo fazer medições do valor da obra visível dos contingentes mais pobres das populações do Cairo, Lima, Manila, Cidade do México e Port-au-Prince (Haiti). Os resultados foram surpreendentes. No Haiti o valor dos imóveis rurais e urbanos ocupados por essa população e as construções neles existentes montaram a US$ 5,2 bilhões em valores de 1995, quatro vezes mais que os bens de todas as empresas operando legalmente no país, nove vezes o valor de todas as propriedades do governo e 158 vezes o valor de todos os investimentos estrangeiros diretos feitos no Haiti em toda a sua história. No Peru, os US$ 74 bilhões medidos equivaliam a cinco vezes o valor de todas as empresas com ações na bolsa de Lima, 11 vezes o de todas as empresas privatizáveis do governo peruano, 14 vezes mais que todo o investimento estrangeiro feito no país ao longo de toda a sua história. Cairo, Cidade do México e Manila deram resultados ainda mais astronômicos. O livro registra uma menção ao Brasil, cuja indústria imobiliária passava por uma forte crise naquele momento, mas as vendas de cimento batiam recordes todos os meses. O “favelão nacional”, hoje de dimensão continental, estava em plena construção...

A conclusão é que não são a disponibilidade de recursos naturais, o espírito empreendedor ou a quantidade de trabalho investido que explicam a diferença da riqueza das nações, mas sim o grau de proteção da propriedade privada de que cada uma desfruta. Onde ela é garantida, a obra de cada cidadão, rico ou pobre, menor ou maior, é “capital vivo” que serve, como no caso da residência de cada cidadão nos EUA, como garantia dos seus próximos investimentos, que, por sua vez, garantirão os desenvolvimentos seguintes. Com o tempo, desenvolvese uma padronização de linguagem e regulamentação e todos os bens ganham uma segunda dimensão “de representação” que pode ser transacionada sem as limitações de “portabilidade” do bem físico, enquanto nos países onde essas residências são favelas erguidas em terrenos que ninguém sabe de quem são ou serão a mesma quantidade de esforço investido transforma-se apenas em “capital morto”, cuja propriedade não está garantida nem mesmo para quem a construiu pessoalmente, e, portanto, não se desdobra em fruto nenhum.

A massa miserável precisa, portanto, da garantia da propriedade para apropriar-se do resultado do seu esforço e sair da miséria. A questão é identificar a ferramenta política capaz de transferir o poder das mãos de quem aparelha a força do Estado para apropriar-se do resultado do trabalho alheio para as de quem precisa da proteção do Estado contra esse tipo ancestral de rapinagem. E, como o nosso Poder Judiciário demonstra todos os dias com “autos de fé” contra os hereges do “sistema” ou simplesmente pela força dos seus holerites, manda no Estado quem tem o poder de contratar e, principalmente, de “demitir” políticos e funcionários públicos.

De Harvard, berço do conhecimento e da ambição, saio querendo mudar o mundo - NIZAN GUANAES

FOLHA DE SP - 04/06

Posso dizer que fui para lá com 61 anos e voltei com 35; estudar rejuvenesce a gente


Tive a felicidade de estar em Harvard durante cerimônias de formatura deste ano. Foi uma das coisas mais emocionantes que já vi na minha vida. Lindo, lindo, lindo.

O belo gramado de Harvard estava repleto de inteligência, de sonhos e da grande ambição de mudar o mundo.

Todos os formandos vestidos na tradicional beca de Harvard portavam um globo terrestre feito de plástico para lembrá-los de que a universidade os preparou para serem líderes e transformarem o planeta.

Foi o que enfatizou a chanceler alemã, Angela Merkel, que, num discurso épico, aplaudido de pé, conclamou os estudantes a serem líderes do século 21 e a não terem medo do futuro.

“Eu sei por experiência própria que as coisas não precisam permanecer como estão. Essa experiência, queridos formandos, é o primeiro pensamento que quero compartilhar com vocês: tudo o que parece escrito na pedra ou imutável pode de fato mudar”, disse a líder alemã.

Eu estava em Harvard fazendo o curso de OPM da Harvard Business School. O OPM (Owner/President Management), como já expliquei aqui, é o sumo dos programas de MBA de Harvard. São três semanas anuais, ao longo de três anos, estudando cases empresariais incríveis ensinados pelos melhores mestres do mundo.

Posso dizer que fui para lá com 61 anos e voltei com 35. Estudar rejuvenesce a gente. E eu sempre tive coração de estudante.

O curso é ministrado por professores que, além de sumidades globais no que ensinam, são comunicadores que poderiam estar apresentando programas em qualquer televisão do mundo. É a Harvard Show Business School. Profunda no conteúdo e leve na forma.

Linda Applegate, Ramon Casadesus-Masanell e Boris Groysberg são professores conhecidos no mundo inteiro, consultores pagos a preço de ouro e ouvidos por empresas globais. A cada aula, é visível o prazer que eles têm de ensinar e é visível nos rostos de cada um na sala de aula o imenso prazer de aprender.

São 160 pessoas de todas as partes do mundo, a maioria jovens de 35 anos como eu, pessoas que estão começando a vida como eu, cheios de sonhos como eu, seguindo Linda, Boris e Ramon, professores que, com uma energia inacreditável, dão a nós meninos instrumentos para compreendermos um futuro de inteligência artificial que nos exigirá uma inteligência não artificial.

Eu me formei em administração e comecei a trabalhar para valer no início da década de 1980. Tudo o que aprendi na escola e na minha profissão mudou e muito desde então. Só estou aqui hoje porque segui aprendendo e mudando.

O futuro é complexo demais para ser entendido sem estudar. Tem um amigo meu que tem uma frase extraordinária sobre esses nossos tempos atuais: se você está entendo o que está acontecendo, você não deve estar prestando atenção.

Na sua aula de encerramento, Linda Applegate nos conclamou a voltarmos às nossas empresas e mudarmos o mundo. E é isso o que pessoas de vinte e poucos anos como Tabata Amaral (que já estudou em Harvard) e eu temos que fazer: questionarmos o status quo, desafiarmos o senso comum e criarmos o que não havia antes.

Para quem estuda, a vida é uma startup. E é por isso que de Harvard saíram e sairão tantas startups para transformar as nossas vidas.

Harvard não ensina nem trabalha com modéstia. E desse berço do conhecimento e da ambição saio querendo mudar o mundo. Como nos ensinaram Linda, Boris e Ramon.

Nizan Guanaes
Empreendedor, fundador do Grupo ABC

Jogo de empurra - MERVAL PEREIRA

O GLOBO - 04/06

Governadores e bancadas estaduais querem reforma imposta pelo governo federal. Teriam álibi de terem sido obrigados


O verdadeiro jogo de empurra entre a Câmara Federal e as Assembleias Legislativas para a implantação da reforma da Previdência revela a baixa política em plena vigência. Todos falam em aprovar a melhor reforma possível, mas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, está claramente sendo empurrado para uma disputa de espaço político com o Executivo que, no momento e a médio prazo não será superada, pois o estilo de Bolsonaro é de enfrentamento, e não de acordos.

Maia nega que esteja disputando espaço. Diz que apenas está atrás da agenda perdida. "Previdência reduz o crescimento da dívida. Sem uma agenda não vamos tirar o Brasil do buraco”.

O Congresso está sendo pressionado pelas ruas e não gosta disso; se sente obrigado a aprovar alguns projetos com medo da reação popular, o que não agrada a seus líderes.

Acredito que o Congresso aprovará uma boa reforma da Previdência, pois entendeu que o momento é grave e não é hora de negociações políticas banais em torno de um projeto que é para o país, e não para o governo Bolsonaro.

Mas, com a disputa de espaços políticos regionais, há reações à extensão compulsória da reforma aos Estados e municípios. Os atuais deputados estaduais e vereadores são potenciais candidatos a deputado federal, e por isso os atuais deputados federais querem que os estaduais sejam obrigados a fazer suas reformas regionais para assumirem a responsabilidade da aprovação de medidas impopulares.

Já os governadores e as bancadas estaduais querem que a reforma seja imposta pelo Governo Federal. Assim terão o álibi de terem sido obrigados. Terão também os eventuais benefícios da reforma, sem o desgaste que ela certamente acarretará.

A proposta do governo abarca servidores estaduais e municipais, e obriga os governos regionais a criarem contribuição extraordinária para acabar com os déficits dos seus sistemas previdenciários.

A PEC da reforma autoriza, porém, que estados e municípios decidam suas fórmulas de contribuição no período de seis meses depois de promulgada. Um ponto da reforma é semelhante à do ex-presidente Michel Temer: enquanto não forem aprovados os sistemas estaduais e municipais, eles estarão enquadrados na mesma alíquota da União.

Essa alíquota, de 14%, só poderá ser reduzida pelos estados e municípios não deficitários nos seus sistemas previdenciários. A proposta de Temer dava o mesmo prazo de seis meses para governadores e prefeitos aprovarem reformas nas suas assembléias e, caso isso não acontecesse, automaticamente valeriam as regras de aposentadoria dos servidores da União.

Embora essa decisão não implique em prejuízo para a meta de economizar R$ 1,2 trilhão, se ela não for igual para todos os entes da Federação o esforço para equilibrar as contas públicas perderá boa parte de sua força.

O déficit desses entes é de R$ 96 bilhões, o que em 10 anos corresponde à economia total da reforma da Previdência nesse período.

Se a questão dos Estados e municípios não for resolvida, essa pendência quase certamente resultará na necessidade de o governo federal auxiliá-los mais cedo ou mais tarde.

Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI), órgão de assessoramento do Senado, com a aprovação da reforma, déficits previdenciários do Pará, do Distrito Federal e do Mato Grosso seriam zerados em 10 anos. O mesmo estudo mostra que a redução do déficit continuaria insatisfatória em cinco estados: Minas Gerais, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina.

Para a IFI, a aprovação da reforma da Previdência vai estabilizar o gasto previdenciário em um prazo de dez anos. As despesas do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) representam 8,6% do Produto Interno Bruto (PIB), e estão crescendo. Com a aprovação da reforma do jeito que foi enviada pelo Governo, subiriam para 8,9% até 2029.

O IFI diz que sem mudanças no sistema, a relação RGPS-PIB poderia chegar a 10,6% num prazo de dez anos. A fragilidade das contas das previdências estaduais, com tendência de alta se nada for feito, indica, para o IFI, que a reforma apresentada pelo governo “é possivelmente o único modo de equilibrar ou ao menos reduzir os desequilíbrios nos estados, em prazo razoável de tempo”.


O verdadeiro ônus político - EDITORIAL O ESTADÃO


O Estado de S. Paulo - 04/06


Ele recairá sobre aqueles que dificultarem a reforma da Previdência, condição indispensável para evitar o iminente colapso das contas públicas em todos os níveis.


Uma parte do Congresso resiste a incluir Estados e municípios na reforma da Previdência. Esses parlamentares, segundo reportagem do Estado, estão temerosos em arcar com o “ônus político” da reforma, que, em sua opinião, deveria recair sobre governadores e prefeitos. Nesse cálculo parecem estar principalmente as eleições municipais do ano que vem, as primeiras em que provavelmente o impacto político da reforma se fará sentir.

É certo que políticos vivem de votos, e que aborrecer eleitores com temas impopulares às vésperas de eleições é receita quase certa para a derrota. Considerando-se que muitos dos atuais parlamentares dependem também do bom desempenho de aliados nas disputas regionais para alimentar suas bases, nada mais natural que a corrida eleitoral de 2020 seja elemento importante nas estratégias de deputados e senadores.

Assim, não surpreende que haja reticências no Congresso Nacional a patrocinar um aperto previdenciário nos Estados e municípios, que afetaria a influente categoria dos funcionários públicos. É a esse ônus que alguns parlamentares estão se referindo – e que eles preferem que seja assumido pelos Executivos locais, que teriam de lutar pela aprovação da reforma da Previdência nas respectivas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Se isso vier a acontecer, a reforma pode sofrer considerável atraso nos entes subnacionais, cujas contas, em vários casos, estão em estado crítico.

Ora, a esta altura está claro que o verdadeiro ônus político recairá sobre aqueles que dificultarem uma reforma que é condição indispensável para evitar o iminente colapso das contas públicas em todos os níveis. Se no caso da União a questão previdenciária assumiu contornos dramáticos, no caso dos Estados e municípios a situação é ainda pior, com potencial inclusive para prejudicar seriamente a prestação de serviços – como já vem acontecendo em algumas unidades da Federação.

Se nada for feito a respeito, o déficit previdenciário nos Estados, que hoje se aproxima de R$ 100 bilhões, deverá quadruplicar até 2060, já descontada a inflação, conforme estudo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado. O mesmo estudo informa que o passivo previdenciário atual e futuro dos governos estaduais, o chamado déficit atuarial, chegava a R$ 5,2 trilhões em 2017. Como comparação, o relatório da IFI lembra que o saldo total da dívida dos Estados, incluindo o passivo junto à União, aos bancos e aos credores externos, era de R$ 776,3 bilhões naquele ano.

Além dos valores absolutos, o que chama a atenção é o ritmo do crescimento do déficit previdenciário estadual. O rombo passou de R$ 51,37 bilhões em 2006 para R$ 77,39 bilhões em 2015 – um aumento de 50,7%. Houve deterioração em quase todos os Estados.

Os dados mostram que o número de servidores inativos cresceu 37,9% de 2006 e 2015, enquanto o total de ativos recuou 3,4%. Além disso, o valor dos benefícios pagos aos servidores estaduais aposentados cresceu 32,7%, em termos reais. Enquanto isso, conforme a IFI, verifica-se uma constante queda no número de contribuintes em relação ao número de beneficiários, o que impõe desafios ainda maiores à manutenção do sistema previdenciário. O estudo indica que, nesse ritmo, seria necessário cobrar uma alíquota de mais de 50% de servidores ativos e inativos para equilibrar o sistema até 2050.

Os responsáveis pelo relatório da IFI lembram o óbvio: que o adiamento da reforma da Previdência nos Estados obrigará os governadores a pedirem novo socorro à União, pois a despesa previdenciária em pouco tempo consumirá a maior parte das receitas. Então, os governadores deveriam empenhar-se pela inclusão dos Estados na reforma, assim como o governo federal. Alguns governadores começaram a se movimentar, mas a equipe econômica do governo tem evitado assumir protagonismo nesse caso.

Todos parecem estar fazendo seus cálculos políticos. Na coluna de ganhos, estão alguns votos de servidores públicos agradecidos por ficarem de fora da reforma da Previdência; na coluna de perdas, estão os demais brasileiros, condenados a viver num País com as contas permanentemente em frangalhos.


Omissão estadual - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 04/06

Governadores deveriam defender a reforma da Previdência com afinco muito maior


Uma combinação de cálculo político mesquinho, oportunismo e covardia ameaça tirar os estados e municípios da proposta de reforma da Previdência em tramitação na Câmara dos Deputados.

O cálculo é de parlamentares que, aliados ao governo federal, não querem arcar com o ônus de contrariar as corporações de servidores estaduais e municipais. Assim, defendem votar um texto que atinja somente a clientela do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e os servidores da União.

Some-se a isso o oportunismo de quem, mesmo ciente do flagelo das contas previdenciárias, faz oposição demagógica à reforma na expectativa de que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) e outras siglas assumam o desgaste da tarefa.

Nesse aspecto destacam-se governadores de oposição, a maioria da região Nordeste, que em público se dedicam a enfatizar apenas discordâncias em relação ao texto, em vez de buscar a negociação.

Por fim, há a covardia da maioria dos governadores favoráveis à mudança nas regras de aposentadoria, cuja atuação política em favor da proposta tem sido pífia.

Ainda que os Executivos estaduais exerçam influência modesta nas bancadas do Congresso, resta um trabalho essencial de convencimento da opinião pública, ao qual os mandatários deveriam se dedicar com afinco muito maior.

Está em jogo, afinal, a solvência —em alguns casos, imediata— de suas administrações.

Os dados mais atualizados do Tesouro Nacional apontam que os déficits previdenciários dos estados e do Distrito Federal somaram R$ 94 bilhões em 2017, com alta de 11% acima da inflação ante 2016.

No Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul, o rombo consome mais de 20% da receita, segundo a Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado. A depender do critério, em Minas Gerais também.

Não por acaso, são os estados cuja situação orçamentária se mostra mais dramática, a comprometer a prestação de serviços públicos.

O déficit de São Paulo, o maior em termos absolutos, encontra-se entre 10% e 15% da arrecadação. Santa Catarina e Rio Grande do Norte estão na faixa de 15% a 20%. Em todos os entes federativos, incluindo os municipais, a tendência é de piora se nada for feito.

Decerto que cada um pode fazer suas próprias reformas, e diversos já cuidaram de elevar a contribuição previdenciária dos servidores.

Entretanto esse caminho se mostra longo e incerto, dado o poder de pressão local das corporações. A Câmara deveria buscar meios de manter estados e prefeituras atrelados às normas em debate.