segunda-feira, abril 15, 2019

Agamenon: “Game of Trouxas"

O Antagonista - 15/04

Eu não estou entendo mais nada. Até aí, tudo bem, porque eu nunca entendi mesmo. Por isso mesmo, não vou falar do presidente Bolsossauro, do filósofo Eu Não Lavo Meu Carvalho, nem do ex-BBB (Big Babaca Brasil) Jean Wyllis.

Prefiro me preparar desde hoje para a estreia da última temporada de Game of Thrones, que, aliás, conta com a presença de um dos meus 17 seguidores e meio, o anão Tyrion, o único indivíduo verticalmente prejudicado bonito do mundo, o que prova que todo mundo pode chegar lá, como no caso do meu prezado nanico, mas, na verdade, um banquinho sempre ajuda.

Por que essa série se transformou num sucesso mundial? Ora, porque ela é sobre o poder. O Poder com e sem PH. Além do mais, tem muitos assassinatos, sexo e outras safadezas, que deixam nossos políticos e milicianos morrendo de inveja.

Além do mais, ela conta com a presença de dragões, um deles interpretado pela Jandira Feghali em pessoa. Por isso que a deputada do PCdoB andava desaparecida depois das eleições. Jandira estava participando das gravações do Game of Thrones, mas agora, no feriado de São Jorge, ela vai estar de volta.

A série tem origem nos livros de George Martin, que, depois de produzir os Beatles, teve tempo suficiente para escrever vários calhamaços sobre um mundo criado em sua imaginação. Só que baseados em fatos reais que nunca aconteceram.

A história é sobre a luta sanguenta pelo poder no fictício continente de Westeros, uma espécie de Europa sem Brexit, onde várias dinastias regionais brigam encarnecidamente pelo Poder. Com e sem PH. Se você acha que isso tem a ver com a situação atual do Brasil, esquece. Tem tudo a ver.

Agamenon Mendes Pedreira é cronista crônico.

Jesus gostava das mulheres - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 15/04

Ele andava com elas, circulava em festas, visitava amigas e defendeu adúltera

Nos anos 1940, em meio às disputas entre Israel e Jordânia pelo deserto da Judeia e da cidade santa de Jerusalém (Israel venceu a disputa na guerra de 1967), alguns beduínos acharam uns rolos que mais tarde ficaram conhecidos como os Manuscritos do Mar Morto.

A comunidade que os escreveu se referia a si mesma como "yahad" (em hebraico), que em português seria, possivelmente, traduzida por "comunidade" mesmo ou "grupo que vive junto", algo semelhante.

O local onde foram encontrados, as cavernas de Qumran, é hoje visitável no deserto da Judeia, em Israel. Durante muito tempo, o termo "essênios" foi usado para se referir a este grupo de ascetas do período do segundo templo, que chegou à época de Jesus. Entretanto, o termo perdeu força quando a tradução desses manuscritos não trazia a palavra "essênio" em lugar nenhum. Como dissemos acima, o termo que eles usavam para si mesmos era "yahad".

Outra expressão para se referir a esses ascetas é "qumranitas", por causa de onde viviam, mas tampouco o termo era usado por eles para se referirem a si mesmos. Esse tipo de procedimento (buscar o modo como um grupo se refere a si) é comum entre especialistas para aceitar um "nome" para um determinado grupo extinto.

Um livro publicado pela Companhia das Letras em 2009 é uma pequena pérola para quem se interessa pelo tema: "Os Manuscritos do Mar Morto", de autoria do grande crítico literário Edmund Wilson, pouco conhecido como pesquisador em arqueologia religiosa.

A obra foi escrita por ele em "camadas" que vão de 1955 a 1967, cobrindo vários instantes dessa descoberta e seu estudo, assim como as várias reviravoltas pelas quais a região passou entre judeus, jordanianos e palestinos.

O fato de Wilson estar distante de qualquer denominação religiosa faz desse pequeno livro uma peça de grande interesse para quem busca entender esses manuscritos, sua história e sua teologia escatológica --eles eram bem obcecados pelo fim dos tempos, posto que eram apocalípticos.

Assim que foram descobertos e datados, esses manuscritos despertaram enorme interesse entre os cristãos, na esperança de que jogassem alguma luz sobre o Jesus histórico.

Os manuscritos iluminam a época e o contexto em que viveu Jesus, com certeza, mas iluminam Jesus apenas por "contraste", isto é, Jesus nunca foi um essênio ou qumranita -- lançaram luz, sim, sobre a Bíblia hebraica.

A teologia dos escritos do Mar Morto, assim como sua visão de sociedade, está muito distante da vida que Jesus viveu e do que ele pregou.

O texto, sim, fala de um certo João, que teria vivido com eles e depois teria sido morto em Jerusalém. É possível que este João tenha sido o famoso primo de Jesus, o Batista, que o teria batizado nas águas do rio Jordão, que não está longe dali.

Pelo que sabemos da vida desse João, seu estilo de vida e de vestimenta, e pelo seu discurso agressivamente apocalíptico e messiânico, é possível que ele tenha sido um membro dessa comunidade que vivia em cavernas no deserto, longe da sociedade humana.

Essa comunidade de ascetas (coisa rara na história do judaísmo) esperava o fim do mundo a qualquer instante e dividia o mundo entre os seres da luz e os seres da escuridão (lembrando um pouco o cristianismo persa pessimista conhecido como maniqueísmo, que surgirá depois deles).

Para esses ascetas, os seres da escuridão eram a casta do templo, corrupta e traidora da lei, e os seres da luz eram eles, os ascetas das cavernas. Esperavam por um mestre da luz que muito se assemelha a um messias, coisa comum na época.

O viés apocalíptico de espera pela chegada do reino de Deus, sem dúvida parece o temperamento apocalíptico cristão posterior. Mas, seu mestre da luz parece muito mais com um Barrabás místico violento, do que com Jesus e sua doçura social.

Descobertas recentes apontam para o fato de que alguns deles poderiam ter famílias que viviam proximamente, mas não na comunidade deles. Mulheres, segundo esses ascetas, eram radicalmente excluídas e consideradas impuras, sendo mesmo proibidas de circular por perto ou mesmo em Jerusalém quando menstruadas.

E aqui vemos uma diferença, aparentemente insignificante, mas muito importante. Jesus andava com mulheres e circulava em festas. Visitava amigas como Marta e Maria e defendeu diretamente uma adúltera. Maria Madalena, sua discípula, seguramente foi alguém que vivia no círculo íntimo de Jesus. Logo, ao contrário dos ascetas de Qumran, Jesus gostava das mulheres.

Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de “Dez Mandamentos” e “Marketing Existencial”. É doutor em filosofia pela USP.

Pressão fiscal - CIDA DAMASCO

O Estado de S.Paulo - 15/04

Receita sem arranque, gasto sem freio e governo sem foco


Quem se lembra daquela promessa de campanha de zerar o déficit primário das contas públicas em apenas um ano? Talvez não sejam tantos, até porque nem no auge do entusiasmo com o “vamos mudar tudo isso que está aí” essa promessa foi levada a sério. Pois bem. O governo deve enviar nesta semana ao Congresso a Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2020 com uma projeção de rombo fiscal acima da meta anterior, de R$ 110 bilhões, embora abaixo da fixada para este ano, de R$ 139 bilhões. Nenhum aumento espetacular, mas uma mostra do engessamento das contas públicas do País e, por tabela, das amarras para a atuação do governo.

Assim como a promessa de zerar o déficit primário estava amparada em previsões superotimistas, a projeção atual pode até estar carregada de um certo pessimismo. Tudo indica, porém, que dessa vez se trata de um cenário realista. E a equipe econômica está recorrendo a ele para dar um recado. Sem a reforma da Previdência, sem a privatização da Eletrobrás, sem isso e sem aquilo, o déficit público será ampliado – e não reduzido, como estava nos planos.

Pelo que se viu em muitos desses 100 dias de governo, contudo, a advertência não serve só aos parlamentares, mas também ao próprio presidente, que age de forma errática e atropela as diretrizes da equipe econômica. O exemplo mais gritante é o da desastrosa “intervenção” de Bolsonaro na política de preços da Petrobrás – com reflexos imediatos nos mercados e, quem sabe, nas intenções de investimentos no País.

O comportamento das receitas e das despesas neste começo de ano confirma que o quadro fiscal está travado. No primeiro bimestre, o Governo Central – que junta as contas do Tesouro, do Banco Central e da Previdência – teve um superávit de R$ 11,7 bilhões, pouco acima do registrado no mesmo período do ano passado. Mas as despesas somaram R$ 210,9 bilhões e quase 70% correspondem a gastos previdenciários e com pessoal, praticamente incomprimíveis. As receitas, por sua vez, ficaram em R$ 275,4 bilhões, com um acréscimo real de 1,2% sobre o ano passado. E não se espera grande reforço daí para a frente, tendo em vista o pífio desempenho da atividade econômica.

Os leilões de concessão e privatização até que estão rendendo bem e prometem reforçar o caixa dos recursos extraordinários, mas o estoque de ativos de infraestrutura postos à venda ainda é resultado dos programas herdados do governo Temer. A grande expectativa, agora, concentra-se no leilão de petróleo excedente da cessão onerosa e na privatização da Eletrobrás. Avaliado em R$ 100 bilhões, o leilão do petróleo está marcado para o fim do ano – e, portanto, o respiro nas finanças da União, Estados e municípios só deve vir mais adiante. Quanto à venda da Eletrobrás, para sair do papel ainda terá de vencer a resistência das bancadas regionais no Congresso.

A equipe econômica tratou de tomar algumas providências para impedir que a situação fuja do controle. A emergencial é o bloqueio de R$ 29,7 bilhões, decretado no final de março. Evidente que não se espera nada parecido com um “shutdown”, a ponto de provocar um colapso da administração pública. Mas é bom ficar atento para o risco de problemas em áreas específicas, a exemplo da suspensão da emissão de passaportes em meados de 2017.

Uma reestruturação das finanças públicas só será possível com reformas, a começar pela Previdência, repetem todos no governo, como uma espécie de mantra. Mas, apesar de toda a retórica, o próprio governo não põe foco no essencial. Rejeitou a ideia de aproveitar a proposta de Temer para a Previdência, que já estava no Congresso, andou em círculos até formatar o seu próprio texto – mais do que ambicioso – e, na hora em que mais precisava do apoio do Congresso, provocou um conflito com os próprios aliados. Para completar, está prestes a pôr na rua uma reforma tributária, atravessando a reforma da Previdência.

Com todos esses desvios, carecem de credibilidade, aos olhos e ouvidos da população, as ameaças seguidas da turma da Economia de que, se nada for feito, um calote nas aposentadorias pode estar à espreita, logo ali adiante. Enquanto o Executivo vacila nas suas prioridades e se envolve em embates desnecessários, os lobbies que povoam o Congresso aproveitam para tirar “casquinhas” do Orçamento: perdão a dívidas dos produtores rurais, desbloqueio de emendas parlamentares, aprovação de orçamento impositivo. Vai mal o tal do ajuste. E com a colaboração do Planalto.

Conceitos de política - DENIS LERRER ROSENFIELD

O Estado de S.Paulo - 15/04


Militares no governo Bolsonaro estão sendo exemplo de moderação e ponderação



O ambiente político não anda conturbado tão somente por razões acidentais ou de inexperiência dos atores políticos, mas tem uma causa mais profunda, consistente no modo de compreensão da política. O atual governo age segundo um conceito de política baseado na oposição amigo/inimigo, em que o outro é visto como alguém que deve ser desqualificado e aniquilado. Outro conceito de política residiria na consideração do outro enquanto adversário, suscetível de ser convencido, e não suprimido. Denominemos o primeiro conceito de política de totalitário e o segundo, de democrático.

Totalitário porque foi elaborado por um teórico do nazismo, Carl Schmitt. Segundo essa acepção, a esfera da política seria uma espécie de arena de luta até a morte entre amigos e inimigos. Os amigos são os que compartilham a mesma concepção, enquanto os inimigos são os que dela divergem. A crítica, nesse sentido, não é aceita, pois significaria uma espécie de rompimento da concepção vigente ou que está sendo imposta. Instituições que exigem a composição e a negociação, como Parlamentos, são, portanto, tidas por impróprias, decadentes ou corrompidas.

Transplanta-se, assim, para esfera da política a lógica militar da guerra. Nesta, exércitos se enfrentam buscando a derrota do outro, impondo-se o poder da força. Tal acepção vale também em casos de guerra civil, quando, na ausência de composição interna, as forças contendoras entram em conflito aberto, recorrendo às armas. A política fica a reboque de sua acepção militar.

O conceito democrático de política, por sua vez, foge do conceito de guerra ao inimigo, pautando-se pelo reconhecimento do outro como detentor de igualdade política. Não está em seu escopo o aniquilamento do outro, uma vez que sua forma de atuação reside na instituição parlamentar, na separação de Poderes e na liberdade de opinião e expressão. Eis por que a democracia representativa preza as instituições que são espaços de negociação, de convencimento e, mesmo, de judicialização das divergências.

A política bolsonarista, em seu período eleitoral, regeu-se por essa acepção excludente da política, usando e abusando da retórica do inimigo a ser desqualificado, cuja forma mais significativa foi o emprego da oposição “nova/velha política”. A “nova” seria a dos virtuosos, dos não corruptos, dos bons, que se oporiam a todos e a tudo que está aí. Os políticos e os partidos foram, então, tidos por algo a ser desprezado e posto de lado. Nesse sentido, as redes sociais foram um instrumento particularmente adequado, pois dados a sua economia de palavras e o seu modo de expressão, prestam-se, particularmente, ao enfrentamento e ao ataque. Elas funcionariam segundo a oposição amigo/inimigo.

Observe-se que a política petista empregou idêntico conceito de política. Lula utilizava a mesma oposição amigo/inimigo sob a forma das oposições excludentes, entre “conservadores e progressistas”, “direita e esquerda”, “nós e eles”. Atente-se para o conceito de política que ganha essas diferentes formas narrativas, que foram o sustentáculo dos governos petistas. Lula tinha incomensurável desprezo pelo Congresso, pelos partidos e pelos parlamentares. Ora eram picaretas, ora companheiros de negociatas.

No governo, pautado por instituições democráticas, o presidente Bolsonaro seguiu predominantemente a utilizar o mesmo conceito de política que lhe tinha sido tão benéfico na campanha eleitoral. Seu grupo próximo, constituído de civis, continuou empregando as redes sociais da mesma maneira, terminando por produzir conflitos incessantes com políticos e partidos. Evidentemente, estes não se reconhecem nessa forma de fazer política, uma vez que são considerados representantes da “velha política”, como se fossem, por isto mesmo, desqualificados e corruptos. O resultado é palpável: o governo não consegue negociar e, portanto, não avança em suas pautas reformistas na esfera legislativa.

Ora, a negociação faz parte da atividade parlamentar e executiva, é uma forma específica de fazer política, no Brasil e alhures. Não há nada de ilícito em que um parlamentar negocie recursos para a sua base eleitoral, sob a forma de creches, postos de saúde e escolas. O problema está no desvio desses recursos para o bolso do parlamentar, questão que pode ser equacionada com uma fiscalização eficiente.

Acontece, todavia, que a narrativa bolsonarista identifica a negociação com algo a ser descartado. Tal política enquadra-se, sobretudo, em sua pauta conservadora, baseada em fundamentos religiosos. Ela se torna propícia para a oposição entre amigos e inimigos, sob a forma dogmática dos bons e dos maus, dos virtuosos e dos pecadores.

Do mesmo modo, o teórico dos bolsonaristas, Olavo de Carvalho, conforme a sua teoria mundial conspiratória, está sempre procurando inimigos para serem desqualificados, na medida em que essa concepção vive da reiteração de tal oposição. O desprezo pela pauta liberal no campo moral e econômico é sua consequência natural. Volta-se para o velho nacionalismo, contra a ideia liberal de globalização, como se a pauta conservadora devesse ter o primado sobre a reformista. Daí surgem as posições antiestablishment, como se a narrativa governamental devesse ser a de uma mobilização constante da sociedade, em que os amigos e os inimigos, os bons e os maus estariam perpetuamente se enfrentando.

Os militares no governo Bolsonaro estão sendo um exemplo de moderação e ponderação. São abertos à negociação e à composição, mostram-se firmes partidários das instituições democráticas. Note-se que, por formação, estariam mais propensos a adotar a política como forma de oposição entre amigos e inimigos, uma vez que essa é a forma da guerra para a qual foram e são treinados. Ou seja, é um grupo de civis que segue a lógica da guerra, enquanto os militares seguem a lógica civil da democracia.

*Professor de filosofia na UFRGS.

Três ideias erradas - LUÍS EDUARDO ASSIS

O Estado de S.Paulo - 15/04

Bolsonaro deveria saber que sem reforma a crise política é inevitável. Ruim para ele, pior para nós. 


Em que pese a singular inépcia do governo em promover as articulações políticas necessárias para a aprovação da reforma da Previdência, o debate avança. A destreza nas negociações com o Congresso lembra a habilidade de um açougueiro que, aturdido, pensa ser um neurocirurgião, mas as discussões são cada vez mais esclarecedoras. Há, ainda, longo caminho a percorrer. Pesquisa recente do Instituto Datafolha mostra que 51% da população ainda é contrária à reforma proposta. Mesmo entre os eleitores de Bolsonaro, 36% ainda são contrários à mudança.

Na controvérsia, há três equívocos na argumentação favorável à reforma. O primeiro erro é vender a ideia de que a reforma é necessária para liberar recursos para áreas prioritárias, como saúde e educação. Tolice. A principal função da reforma é impedir que a dívida pública continue crescendo a uma taxa superior ao aumento do PIB. Nos últimos três anos, a despesa com benefícios previdenciários pagos pelo Tesouro cresceu 15,5% em termos reais, ante uma queda acumulada do PIB de 1,1%. Essa é uma das principais razões pelas quais a relação dívida/PIB passou de 70% em 2016 para 77,2% no ano passado, o que representa um aumento de R$ 893 bilhões, o equivalente a quase 30 anos do orçamento do Bolsa Família. A economia derivada da aprovação da reforma servirá apenas para evitar que a dívida cresça exponencialmente. Não sobrará dinheiro. Pode-se argumentar que, depois da reforma, a economia poderá crescer de forma mais rápida, o que aumenta a arrecadação e permite gastar mais em outras áreas, mas esta já é outra história.

Um segundo engano é pensar que, se a reforma não for aprovada, faltará dinheiro para pagar os aposentados, com o que o governo terá de emitir moeda, provocando a volta da inflação. Ora, ora, já não há dinheiro, não é de hoje. Há muitos anos o pagamento de benefícios do INSS supera a contribuição previdenciária. Se os aposentados continuam a receber, é porque o governo federal, ao contrário do que acontece nos Estados, pode emitir dívida e pagar suas obrigações. E nem assim a inflação escapou do controle. A analogia hidráulica, ao gosto dos monetaristas, é pobre e tem pouco poder explicativo.

Por fim, especula-se que a não aprovação da reforma nos lançará instantaneamente no caos e, similarmente, que o Nirvana está logo ali, dobrando a esquina, se a reforma passar. Também não é por aí. A reforma já não foi aprovada no governo Temer e estamos aqui, aparentemente vivos. Não aprovar a reforma significa que a relação dívida/PIB vai continuar subindo. Mas ninguém sabe qual é o limite de tolerância dos investidores e a partir de qual momento a economia real vai se esgarçar. Da mesma forma, é ingenuidade imaginar que haverá uma pletora de novos investimentos que aguardam ansiosos nas planilhas a aprovação da reforma. O certo apenas é que a aprovação da reforma é uma condição necessária, mas não suficiente, para a retomada do crescimento, Bolsonaro deveria saber que sem reforma da Previdência a crise política é inevitável. Ruim para ele, pior para nós sem o que nenhum ajuste fiscal será duradouro.

A aprovação da reforma não é a remissão de nossos pecados. É apenas o primeiro passo de uma longa caminhada para corrigir distorções de um sistema que é injusto – porque generoso com os mais ricos – e ultrapassado, já que ignora nossas condições demográficas. O Brasil envelheceu sem antes ter ficado rico. Melhor focar o debate nos verdadeiros problemas, ainda que a tentação seja a de explorar ideias mais intuitivas. Passada a fanfarra dos cem dias de governo, nenhuma música ficará nos nossos ouvidos. Mas o desafio da Previdência está lá, nos esperando para o ajuste de contas. 

Mais oportunidades perdidas? - SERGIO LAMUCCI

Valor Econômico - 15/04

Inabilidade política é maior ameaça à economia mais forte

O cenário que se desenha para a economia global neste ano tem riscos, mas a combinação de desaceleração moderada do crescimento e condições financeiras ainda favoráveis nos mercados internacionais é razoável para o Brasil. Com a perda de fôlego da atividade mundial, os bancos centrais dos países avançados deixaram para trás os planos de normalização mais rápida da política monetária, pelo menos por ora. O Federal Reserve (Fed, o BC americano) indicou que os juros não subirão mais em 2019.

Num quadro de crescimento mundial um pouco mais fraco, mas não desastroso, e ampla liquidez nos mercados, o Brasil poderia se destacar. Na virada do ano, a expectativa dominante era de que o crescimento se aceleraria consideravelmente de 2018 para 2019. Havia quem projetasse uma expansão na casa de 3% a 3,5%, apostando numa aprovação rápida da reforma da Previdência, o que reduziria as incertezas quanto à sustentabilidade das contas públicas. Com isso, empresas e famílias passariam a investir e consumir mais, impulsionando a atividade.

Otimista, o ministro da Economia, Paulo Guedes, considera que o cenário externo atual "cria um ambiente muito favorável ao Brasil". Em breve entrevista a jornalistas brasileiros no sábado, em Washington, Guedes disse que os estrangeiros olham o país "com enorme interesse", uma vez que a "economia deles desacelerou e a nossa vai começar a andar", destacando oportunidades de investimento nas áreas de petróleo e gás, saneamento e infraestrutura.

O problema é que as perspectivas para a economia brasileira em 2019 se nublaram desde o começo do ano. Com isso, o país pode perder oportunidades importantes. Em pouco mais de cem dias, o governo do presidente Jair Bolsonaro criou diversas crises desnecessárias, deixou clara a falta de uma articulação política eficiente - essencial para aprovar a reforma da Previdência - e colocou em xeque as credenciais liberais da nova administração, com a decisão de cancelar na semana passada o reajuste do óleo diesel pela Petrobras.

Na quinta-feira, em Washington, Guedes participou de um evento promovido pelo J.P. Morgan. Dois gestores presentes ao encontro disseram que o discurso do ministro foi muito bem recebido pelos investidores. Guedes falou com entusiasmo sobre a nova orientação da política econômica brasileira, que seguiria os princípios de uma economia de mercado, sem intervencionismo, ressaltando a disposição do governo de promover um ambicioso programa de privatizações e de tocar uma ampla agenda de reformas, como a da Previdência. Na noite do mesmo dia, Bolsonaro mandou cancelar o aumento do óleo diesel, minando os esforços de Guedes para convencer os estrangeiros sobre a orientação liberal da economia.

De modo geral, os investidores externos mostram-se mais céticos que os domésticos quanto às perspectivas do Brasil sob o governo Bolsonaro. Em janeiro e fevereiro, os fluxos de capitais voltaram aos países emergentes, com a mudança de atitude dos BCs dos países desenvolvidos. O Brasil, porém, "não recebeu a parte devida" desses fluxos, como disse em Washington o próprio presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, avaliando que isso ocorreu "um pouco por causa dessa incerteza em relação à aprovação de reformas".

As dúvidas quanto à reforma da Previdência têm travado também o investimento em ativos fixos na economia brasileira, dificultando a aceleração da recuperação cíclica. A recessão terminou no quarto trimestre de 2016, mas desde então o PIB não avança a um ritmo razoável. Depois da contração de 3,5% em 2015 e de 3,3% em 2016, cresceu apenas 1,1% em 2017 e outro 1,1% em 2018. Para este ano, algumas projeções já têm sido revisadas para a casa de 1,5% ou menos - o Itaú Unibanco, por exemplo, reduziu a sua estimativa de 2% para 1,3%.

É um desempenho muito ruim. O crescimento potencial (aquele que não gera pressões inflacionárias) do país é baixo - algo na casa de 2% ou um pouco mais -, mas o ponto é que, mesmo depois de uma recessão cavalar, a atividade não consegue ganhar fôlego, a despeito da enorme capacidade ociosa na economia. Embora haja espaço para o PIB crescer acima do potencial por vários trimestres sem pressionar a inflação, dada a grande ociosidade, o país não tem sido capaz nem de acelerar a retomada cíclica.

Alguns analistas consideram que os juros estão mais altos do que deveriam, segurando a retomada. Reduzir a Selic antes da aprovação de uma reforma razoável da Previdência, contudo, pode ser pouco eficiente, já que as dúvidas quanto à sustentabilidade fiscal continuariam a existir, impedindo a queda dos juros de mercado.

Nesse cenário, o Brasil fica para trás na corrida com outros emergentes. De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI), o PIB per capita brasileiro cresceu 0,3% em 2017 e 0,4% em 2018, com base no critério da paridade do poder de compra (PPP, na sigla em inglês), que facilita a comparação entre os países, ao eliminar as diferenças de custo de vida entre eles.

Para este ano, o FMI estima uma expansão de 1,3% do PIB per capita brasileiro. O número parece otimista demais, uma vez que a previsão do Fundo para o crescimento do Brasil em 2019 é de 2,1%, estimativa mais elevada do que a de vários bancos e consultorias do país, como o 1,3% do Itaú Unibanco. Mas, ainda que se confirme o aumento de 1,3% do PIB per capita brasileiro, ele ficará bem abaixo dos 3% esperados pelo FMI para a média dos emergentes. Para a China e para a Índia, a expectativa é de uma alta de 5,9% e, para a Rússia, de 1,7%.

A aprovação de uma boa reforma da Previdência neste ano pode mudar esse quadro, elevando novamente as expectativas de crescimento, especialmente para 2020. Isso requer, porém, uma melhora expressiva na coordenação política do governo Bolsonaro com o Congresso. Também é preciso ver como Guedes atuará para resolver o imbróglio do cancelamento do reajuste do diesel, que manchou a imagem de um Bolsonaro convertido às ideias liberais. Se esses problemas não forem solucionados, o crescimento tenderá a continuar medíocre.

Para completar, o quadro pode piorar se os riscos no cenário global apontados pelo FMI se concretizarem, como o recrudescimento das tensões comerciais entre EUA e China, uma decepção com o desempenho econômico da zona do euro ou da China ou algum problema associado ao Brexit (a saída do Reino Unido da União Europeia). Hoje, contudo, a maior ameaça a uma economia mais forte no Brasil é a inabilidade política do governo Bolsonaro.

Por que reformar a Previdência - PAULO TAFNER

O GLOBO - 15/04


A Previdência brasileira é repleta de regras equivocadas, que produzem excessivo gasto e, sobretudo, injustiça. Para os mais pobres, menos instruídos e com menores remunerações, as regras são mais duras do que as que atingem trabalhadores mais qualificados e mais bem remunerados. Estes se aposentam em média oito a dez anos antes dos trabalhadores de renda baixa. Servidores públicos ganham em média oito vezes mais do que quem se aposenta pelo INSS, mas há casos que chegam a ser 40 vezes maiores.

Nossa Previdência não é apenas injusta. Ele é cara, muito cara. Consome mais de 14% do PIB, mas somos um país jovem. Comparados com uma centena de países, estamos bem fora do padrão: gastamos mais do que o dobro do que deveríamos gastar para nosso padrão de envelhecimento.

E por que gastamos assim? Por conta de nossas regras. Do total de tributos arrecadados pela União — que não é pouco — mais de 50% vão para a Previdência. E mais: esse gasto aumenta R$ 50 bilhões por ano. O gasto exagerado e crescente tem consequências: reduz o montante disponível para outras políticas públicas e para investimentos. Além disso, obriga o governo a se endividar, com impactos negativos sobre os juros e o potencial de crescimento.

Esse quadro tende a piorar por conta da demografia. Estamos envelhecendo rapidamente. Isso é positivo, mas exige que façamos ajustes. Assim tem sido feito em todas as partes do mundo. Dezenas de países fizeram reformas para se ajustarem aos novos tempos. A expectativa de sobrevida de quem chega aos 65 anos já excede 17 anos em todos os estados do Brasil. Quem chega aos 65 vive além dos 82. E este processo não se encerrou. Serão mais e mais brasileiros recebendo aposentadorias. Por outro lado, em 20 anos a população em idade de trabalho começará a diminuir. Serão muito mais idosos com menos trabalhadores para sustentar o sistema.

Por tudo isso, a reforma da Previdência é necessária. Ela visa a corrigir distorções e acabar com privilégios, reduzir desigualdade e equacionar o gasto. Temos que fazê-la para evitar um colapso fiscal.

E o que é afinal — em linhas gerais — a reforma da Previdência? Busca, em primeiro lugar, uma convergência entre regras aplicáveis aos servidores públicos e trabalhadores privados, reduzindo uma indesejável e injustificável diferença de tratamento, hoje muito mais favorável aos primeiros.

Busca também definir uma idade mínima para se aposentar mais compatível com nosso envelhecimento. O princípio básico é simples: se estamos vivendo mais, devemos trabalhar um pouco mais. Essa é a razão básica para a fixação — com um período de transição de idade mínima: 65 anos para homens e 62 para mulheres. Ao fixar uma idade mínima, a reforma também corrige uma séria distorção: a classe média e os ricos se aposentam cedo e os pobres se aposentam tarde. Com a reforma, todos se aposentarão com a mesma idade. Há exceções? Há. Aplicam-se a professores, policiais e membros das Forças Armadas. Estes terão idade mais reduzida para aposentadoria.

Também visando a dar maior equidade ao sistema, a reforma propõe a fixação de alíquotas progressivas. O princípio, mais uma vez, é simples: quem ganha mais paga mais; quem ganha menos paga menos.

A reforma traz também mudanças em dois benefícios polêmicos: aposentadoria rural e Benefício Assistencial de Prestação Continuada (o BPC-LOAS). No primeiro, eleva-se a idade de homens e mulheres para 60 anos e passa-se a exigir, daqui para frente, uma contribuição básica. No segundo, propõe-se que o benefício possa ser recebido a partir de 60 anos com valor de R$ 400 e somente aos 70 anos com 1 salário mínimo (SM). Antecipa-se em cinco anos o recebimento de um valor menor, e adia-se pelo mesmo prazo o recebimento de 1 SM.

Há ainda muitos outros detalhes na proposta, como a possibilidade de se criar um sistema de capitalização — em que o trabalhador poupa para si e não para pagar os benefícios correntes —e a possibilidade de retirar da Constituição aspectos operacionais da Previdência. Também aqui haverá muita polêmica, mas, se seguirmos o que mundo está fazendo, passaremos a ter desconstitucionalização e alguma capitalização.

Com a palavra, o Congresso Nacional.

O governo e as redes sociais - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 15/04

A cada três dias o presidente publica no Twitter alguma crítica, ironia ou questionamento ao trabalho dos veículos de comunicação

A militância bolsonarista nas redes sociais, que hostiliza o que chama de “velha política” – uma miscelânea de fisiologismo, compadrio e corrupção –, antagoniza quem poderia apoiar o governo. Sem ser contida pelo seu líder, que, ao contrário, a atiça, mesclando palavras de ordem à comunicação oficial do governo, essa militância prejudica os esforços de entendimento feitos para obter apoio no Congresso.

É o que revela uma pesquisa da Diretoria de Análises de Políticas Públicas da FGV do Rio de Janeiro. Segundo o seu coordenador, Marco Aurélio Ruediger, pela primeira vez desde setembro percebeu-se nas redes uma fissura do campo da centro-direita. “Qualquer negociação é vista como algo nocivo, quando deveria ser o contrário”, disse Ruediger. “Quando as matilhas nas redes atacam determinados personagens que são chave nos processos políticos, isso bloqueia a possibilidade de sucesso da própria pauta que o governo propõe.”

O entrevero entre o presidente da República e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, em fins de março, foi paradigmático. Irritado com comentários depreciativos de Carlos Bolsonaro nas redes sociais, Maia ameaçou deixar a articulação da reforma, acusando o governo de “terceirizar” suas responsabilidades. Após dias de turbulência, Bolsonaro fez um gesto conciliatório, convidando presidentes de diversos partidos para uma reunião. Ato contínuo, o mesmo Carlos – o coordenador das redes sociais do pai – tuitou: “Se o presidente Bolsonaro não tivesse a população a seu lado este assunto jamais seria tratado como está sendo. É nítido que a pressão popular faz a ‘situação’ agir assim. Por isso o sistema corrupto insiste tanto em desgastá-lo e transformá-lo em mais um boneco de ventríloquo”.

As redes bolsonaristas estão saturadas desse tipo de insinuações e sarcasmos indiscriminados contra as elites políticas que tentam sufocar o clamor popular encarnado em Bolsonaro e seus puros: a “nova política”. O resultado, como mostra a pesquisa, é que os parlamentares de centro, já desarticulados em relação à reforma, estão ainda menos engajados – não sem uma omissão culposa sua – em debatê-la nas redes sociais.

Cabe ao governo deixar clara a distinção entre o que é oficial e o que é manifestação dos eleitores. Bolsonaro já disse que não tem como conter os seguidores mais exaltados, o que é falso: ninguém pode obrigá-los a nada, mas ele tem meios de repreendê-los, como faz fartamente com os que o contrariam. Não é possível, por exemplo, usar um canal oficial de comunicação para divulgar um panegírico do golpe de 64, ou então a conta oficial do presidente para atacar adversários e a imprensa. Isso é o que faria a militância, não o governo.

Apesar da autossabotagem, o apoio à reforma entre os 513 deputados tem crescido, e hoje 190 se declaram a favor, ante 113 contra. Mas há trabalho à frente, já que a aprovação depende de 308 votos – além de 49 senadores, caso o projeto chegue ao Senado. Tampouco o governo tem o apoio necessário da população. Segundo pesquisa do Datafolha, 51% dos brasileiros são contra o projeto. Entre os funcionários públicos, que têm uma das maiores bancadas na Câmara, 63% são contra. Só 17% dos brasileiros se dizem bem informados sobre a reforma, e justamente entre os mal informados, 62% a rejeitam.

Bolsonaro mostrou a potência política das mídias digitais na sua própria eleição, e uma pesquisa divulgada pela agência BCW aponta que ele é o chefe de Estado mais influente nas redes. Contudo, um levantamento da revista Época revelou que entre outubro de 2017 e 6 de março deste ano, de 3 mil tuítes seus, somente 9 mencionaram a Previdência. O Estado mostrou que nos dois primeiros meses de governo, de 515 tuítes, 95 cumprimentavam amigos e aliados, 51 eram ideológicos, 31 criticaram a imprensa, 30 responderam a críticas e apenas 5, ou seja 1%, mencionavam a reforma da Previdência. A cada três dias o presidente publica no Twitter alguma crítica, ironia ou questionamento ao trabalho dos veículos de comunicação.

Bolsonaro não só não usa seu arsenal comunicativo para frear intimidações de sua militância aos possíveis aliados ou para esclarecer a população, como desmoraliza quem pode fazê-lo: a imprensa. Se a reforma falasse, decerto diria: “Com amigos assim, quem precisa de inimigos?”.

100 dias de Bolsonaro: uma outra leitura - LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Valor Econômico - 15/04
O conflito entre o novo e o velho está vivo e precisa ser resolvido dentro do sistema democrático que temos



A imprensa foi quase unânime na leitura que fez dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro usando, principalmente, as informações de uma exaustiva pesquisa de opinião pública realizada pela Datafolha. Este instituto adotou uma metodologia, já conhecida por nós, de comparar as informações obtidas na pesquisa de agora com as realizadas com presidentes anteriores ao atingir o centésimo dia de seus mandatos.

Em recente tweet ponderei que no caso do presidente Bolsonaro este tipo de comparação não me parece a mais adequada pelas condições de contorno de sua eleição em 2018 quando comparadas com as anteriores, E o que chamo de "condições de contorno diferentes" que tornariam tais comparações menos adequadas? Poderia citar inicialmente o fato de que Bolsonaro foi - até sua eleição - um político de pouca expressão e cuja experiência restringia-se a mandatos parlamentares no grupo chamado de baixo clero e sem nenhuma vivência de mandato mesmo no executivo municipal, ou estadual. Teria, portanto, mais dificuldades para chegar aos seus primeiros 100 dias de governo.

Se me restringisse a esta característica própria do novo presidente seria questionado quanto à experiência executiva de FHC e Lula antes de serem eleitos. Mas, replicaria eu, que estes dois ex-presidentes, apesar de sua falta de vivência no executivo, pertenciam a partidos com um longo e exitoso protagonismo na cena política brasileira. Por isto sempre estiveram participando de reflexões e mesmo decisões sobre temas nacionais e que fazem parte da agenda de um presidente eleito no Brasil. Características estas que não fazem parte do curriculum vitae de Bolsonaro.

Bolsonaro, mesmo em seu longo período no Congresso como membro do baixo clero, nunca esteve envolvido nas discussões das questões mais relevantes da agenda Brasil. Por outro lado, o partido pelo qual ele ganhou as eleições não tem história nem protagonismo pretérito na vida política brasileira e foi escolhido pelo então candidato justamente por isto. Ele não queria estar vinculado de nenhuma forma à velha política.

Mesmo ampliando com estes argumentos o campo da minha defesa contra a aplicação da metodologia Datafolha na avaliação dos primeiros 100 dias do governo Bolsonaro certamente não ganharia a aprovação da maioria dos leitores do Valor. Por isto lanço mão de um terceiro argumento: os resultados das eleições gerais realizadas no ano passado refletem um período de colapso do sistema político que prevaleceu, por mais de 30 anos, no Brasil. E uso a palavra colapso nos termos mais radicais como sendo: Estado daquilo que está desmoronando, do que está em crise ou prestes a acabar; ruína.

Mas sabemos, pela história de outros países, que o colapso de um sistema político só é inteiramente percebido pela sociedade depois de uma longa e penosa decadência. No caso da chamada Nova República, o início deste processo foi a combinação do desastre econômico criado pelos governos Lula -segundo mandato- e Dilma e a descoberta pela Lava-Jato das entranhas da corrupção que se estabeleceu na sociedade. Os testemunhos de acusados, mas principalmente dos delatores, acompanhados ao vivo e em cores na mídia, revelaram de forma crua a ação de empresários sem escrúpulos e um sistema de financiamento político que ultrapassou os limites tolerados em regimes democráticos.

Em uma sociedade massacrada pela mais longeva e intensa recessão de nossa história, com índices de desemprego e subemprego também nunca vistos, criou-se o clima necessário para que o regime político associado a esta situação entrasse em colapso com as denúncias de corrupção. E não poderíamos esperar outra reação dos brasileiros se não o comportamento que tiveram nas eleições com uma grande abstenção e a busca de alguém que não representasse o sistema político anterior.

Mas esta situação arrastou para a marginalidade política a quase totalidade dos partidos e lideranças do antigo regime. Todos pertenceriam ao que o candidato Bolsonaro passou a denunciar como sendo a Velha Política e que se contrapunha, sem maiores esclarecimentos, ao que seria a sua Nova Política. Apenas políticos e partidos anteriormente à margem do sistema existente - com exceção do PT que manteve praticamente intacta sua base histórica de apoio - passaram a ser vistos como merecedores de confiança do eleitor. Neste cenário é que o presidente Bolsonaro foi eleito, menos por suas qualidades e projetos e mais pelos defeitos apontados em outros candidatos, por pouco mais de um terço dos votos e com uma rejeição de quase 40% do eleitorado.

Este movimento dos eleitores trouxe ao poder em Brasília um presidente - e uma equipe de governo - sem a experiência passada para administrar um sistema político em transição e com um discurso radical contra os políticos catalogados como velhos. Mas nestes primeiros cem dias de seu governo ele está percebendo que o parlamento ainda tem uma proporção majoritária de políticos e partidos velhos e que governar sem um acordo com eles é praticamente impossível no Brasil.

Esta para mim é a grande marca desta primeira avaliação do governo: o conflito entre o novo e o velho ainda está vivo e o presidente terá que administrar um período de transição para que este conflito seja resolvido dentro do sistema democrático que temos em nosso país.

Disputa por sucessão de Dodge é um retrato do país - LEANDRO COLON

Folha de S. Paulo  - 15/04

É ingenuidade pensar que todos estão só bem intencionados em conduzir a Procuradoria-Geral


A sucessão de Raquel Dodge no comando da Procuradoria-Geral da República bate à porta de Brasília. Nos bastidores, a guerra está conflagrada entre procuradores.

Em entrevista à Folha no sábado (13), o subprocurador-geral Augusto Aras lançou-se candidato avulso, fora da briga pela polêmica lista tríplice da associação da categoria (ANPR). O seu discurso é um aperitivo do que vem por aí até setembro, quando acaba o mandato de Dodge.

Aras ataca o modelo de eleição interna em que os procuradores votam nos candidatos declarados e uma lista com os três mais votados é enviada ao presidente da República.

Na opinião dele, a prática de realizar um escrutínio entre os membros do Ministério Público Federal leva a um cenário de politização, com doses de clientelismo e fisiologismo, que geralmente contaminam os Poderes Legislativo e Executivo.

Ele ainda colocou sob suspeita o sistema de votação eletrônica da ANPR. A direção da entidade reagiu às declarações e defendeu o método.

O presidente Jair Bolsonaro afirmou algumas vezes que não tem compromisso com a escolha da ANPR. Nada o obriga a segui-la. A tendência, aliás, é que ele realmente indique um nome de fora da relação oficial.

Não foi à toa que Aras emitiu sinais ao presidente. Suas chances são mínimas de integrar a lista tríplice. O mesmo vale para Raquel Dodge. Desgastada na categoria, sobretudo na ala ligada ao antecessor e desafeto, Rodrigo Janot, a chefe da PGR se movimenta no Judiciário e busca apoio de militares para ser reconduzida.

Os “janotistas” jogam pesado para ter um nome com força na eleição da ANPR. Um cotado é Vladimir Aras, primo de Augusto. O Ministério Público Militar, por sua vez, faz lobby para emplacar o sucessor de Dodge.

É ingenuidade pensar que todos estão apenas bem intencionados em conduzir uma instituição tão importante. Há uma briga por cargos, gratificações, prestígio, vaidade e muito poder. Infelizmente, o Ministério Público Federal talvez seja hoje o retrato mais fiel do que virou o país.

"Gentili e o passado que não passou" - GUILHERME FIUZA

GAZETA DO POVO - PR - 13/04
"Danilo Gentili foi condenado a seis meses de prisão em ação movida por Maria do Rosário. Danilo é um humorista e Rosário é uma representante legal do bando que assaltou o Brasil por uma década e meia. Já a juíza que deu a sentença é uma pessoa criativa.

Trata-se de uma decisão sem paralelo. Mandar um reconhecido comediante para a cadeia por suposta injúria contra uma deputada não tem precedente no país. Analistas estão requebrando para sustentar o amparo legal do ato, mas aqui não haverá coreografia: o pedido de prisão para Danilo Gentili é uma aberração, uma excrescência, um ato de intimidação e censura.

O Brasil está brincando com fogo. A resistência democrática contra o fascismo imaginário, que resolveu passar a vida encenando a volta aos anos de chumbo, sumiu. Nenhum pio sobre o ataque do “aparelho de estado” (como eles adoram dizer gravemente) à liberdade de expressão. Ninguém sabe, ninguém viu. É mesmo muita saudade de 1964.

Por falar em liberdade, e a solidariedade artística? Vamos perguntar de novo, que não ouviram: cadê a solidariedade-dade-dade artística-tica-tica? Você notou pelo eco que ninguém respondeu. Ou melhor: lá no fundo do vale, detrás de uns arbustos frondosos, uns colegas do humorista soltaram bilhetinhos dúbios e repletos de cuidado para não contrariarem suas claques politicamente corretas – doutrina que Gentili detona. Condenado por falta de hipocrisia.

Aliás, a nova geração de comediantes se orgulha abertamente de fazer um humor politicamente correto, tipo função social da piada. Tudo bem, tem gente que se esbalda na lua de mel sem tirar a roupa.

Os libertários de cativeiro não querem chatear a Maria do Rosário, afinal ela é Lula, e Lula é pai – no altar dessa casta demagógica que, por incrível que pareça, ainda dá as cartas no pedaço. Emprego, prestígio, voto, carinho… O mercado é generoso com quem reza a cartilha do progressista reacionário. Lula Livre, Gentili se vire.

Quando essa mesma deputada espalhou uma foto do ator Sandro Rocha, de Tropa de Elite, apontando-o como assassino de Marielle, os democratas de auditório deveriam estar de férias. Se a grave afronta parte de algum personagem do presépio politicamente correto, com a proteção e o ornamento de todo o enredo das vítimas profissionais, a leviandade está liberada e eles somem. Como diria o general do AI-5: às favas com os escrúpulos de consciência.

E ainda dizem que a praga do petismo ficou para trás. Ficou mesmo? E esse establishment cultural-midiático montando uma narrativa atrás da outra para atravancar as reformas? E essa militância enrustida no judiciário, no Ministério Público, enfim, no “aparelho de estado” para azedar tudo que não seja PT e seus genéricos? E os afilhados da quadrilha bilionária nos tribunais superiores?

Desde o impeachment o país tenta avançar com a reforma da Previdência, mas tem sempre no caminho uns paus-mandados tipo Janot e Joesley para montar arapucas e embaçar a cena. Preste atenção, prezado bom entendedor: no circo atual, nenhum governo que não seja uma reencarnação do populismo petista vai prestar. Até Ciro Gomes, o mitômano do Leblon com vista para o sertão, eles tentam emplacar. Vale tudo, menos deixar o Brasil se reconstruir.

E assim estamos: Danilo Gentili com prisão decretada, José Dirceu solto, milionário e conspirando à vontade, Dilma Rousseff fazendo turnês mundiais sobre a roubalheira do bem (nem condenação em primeira instância a Mrs. Pasadena tem) e os institutos de pesquisa que davam chance zero para a eleição de Bolsonaro soltando paisagens tétricas sobre seu governo. O problema deles não é com Bolsonaro, nem com Temer, nem com o fascismo, nem com a ditadura de 64 – o que eles querem é o Clube do Lula. E dane-se o Lula, o que importa é o clube.

O atentado contra a liberdade de um humorista de fora do clube traz a sentença inequívoca: a sombra petista é coisa do passado, mas o passado não passou."

Memórias do dilúvio no Rio - FERNANDO GABEIRA

O GLOBO - 15/04

Um milhão de dólares para Crivella fechar a boca

Acordei às 7h em Cabaceiras, no sertão da Paraíba. Sol brilhando como sempre. É a cidade com o menor índice de chuvas no Brasil. Malas feitas, começaria minha longa viagem de volta para o Rio.

Antes do café, fui ver os pássaros. Eram os mesmos de sempre. De novo, apenas um papa-sebo, também chamado de sabiá-do-campo. Minha imagem final: a umburana, uma árvore com casca brilhante e sulcos vermelho-escuro.

Fim de semana intenso, subindo e descendo morro. Visitei o Lajedo do Pai Mateus, um esplêndido conjunto de pedras. Descoberto pelos turistas escandinavos, ajudou a salvar Cabaceiras.

Nos momentos de conexão, ainda tive de responder a jornalistas se nossa campanha tinha oferecido um milhão de dólares para Crivella, em 2008. Nunca vi um milhão de dólares e, assim como Armínio Fraga, jamais compraria votos. Considero a versão um desrespeito aos evangélicos: jamais votariam em mim contra sua consciência.

Cabaceiras foi descoberta pelos cineastas. A cidade, de apenas cinco mil habitantes, foi cenário de duas séries e 33 filmes. Ela se intitula a Roliúde Nordestina. Prefiro chamá-la de cidade luz. Ao contrário de sua homônima francesa, é uma cidade luz natural.

Passei várias horas entre as pedras da região. Quando voltei do trabalho, estava exausto, como sempre, e maravilhado com a luz. Antes de dormir, ainda pensei na história do Crivella. Lembrei-me de Bertrand Russel, quando correu um boato de que namorava uma linda jovem. Ele disse: “Não vou contestar logo de cara, só para saborear um pouco essa hipótese”.

Meu último pensamento antes de cair no sono foi este: se tivesse um milhão de dólares, o que faria com ele. Creio que daria para Crivella não votar em mim, e assim seguir minha trajetória de vida como ela é hoje: longe do universo político visceralmente corrompido do Rio.

De novo na estrada para Campina Grande. Chegamos com o restaurante ainda fechado. Havia um banco na porta, usei-o para passar as últimas imagens para o computador e as salvei num HD externo. É sempre bom ter duas versões, num país em que tudo acontece.

Conexão no aeroporto do Recife. Achei o aeroporto meio sombrio, depois de tantos dias de luz intensa. No celular, já havia algumas mensagens da Defesa Civil: teríamos chuva no Rio. Mesmo assim, é bom voltar. Nos últimos tempos, não digo como Tom Jobim: “minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro.” No máximo, a alma cantarola, discretamente.

Ainda no ar, era possível ver a GloboNews e o estrago que a chuva fazia no Rio. Assim que o avião aterrissou, liguei para Neila, e ela estava presa num carro, com os dois netos. Tentava vir de Copa para Ipanema havia duas horas. Não havia táxis. Dividimos o equipamento; nossa equipe é de apenas dois. Fiquei com as câmeras, e Mauricio foi tentar um táxi no embarque.

Depois de uma hora, lembrei-me do Uber e, surpreendemente, estava no ar. Um homem mais velho nos disse: evitem o túnel, usem o aterro. O motorista ficou agradecido e disse: “Obrigado, pai.”

A cidade parecia arrasada. Os carros se deslocavam com dificuldade e em marcha constante para que o motor não morresse. Tentei orientar o motorista pelo instinto. Achei algumas ruas escuras e traiçoeiras . Na entrada do túnel, caiu uma arvore. Meia hora, e a árvore foi movida por um guindaste. Em Ipanema, de novo engarrafados. A Rua Vinicius de Moraes estava cheia de carros buscando a Lagoa inundada.

Pedi ao motorista para dar uma ré, usamos a Joana Angélica para ganhar minha rua. Mas o bloqueio continuava. Os carros na Vinicius fechavam a passagem. Disse para ele: estou a 400 metros de casa, ainda chove e terei de carregar duas malas de câmeras, a mochila com o computador e a mala de roupa. Bem que gostaria de saltar aqui para você se safar, mas não dá.

Desci do carro na chuva e fui até a Vinicius controlar o trânsito. Toureei alguns carros. Outros não davam nem bola. Finalmente, consegui abrir a rua.

Cheguei em casa depois da meia-noite. Todos bem, felizmente. Estava aceso. Vi um homem com a camisa do Vasco agarrado na cerca do Jardim Botânico. Ia para a Rocinha, parecia calmo. A repórter enfatizava a dificuldade de sua jornada, ele parecia ver tudo com normalidade. Gente forte.

Esperava dormir tranquilo, mas acabei ficando excitado demais com o longo dia. Antes de dormir, sabem quem apareceu na TV? Crivella.

A Ciclovia Tim Maia é segura, desde que não haja desabamentos — disse. Um milhão de dólares para Crivella fechar a boca. Estou gastando minha fortuna com ele, pensei antes de adormecer.