domingo, outubro 27, 2019

Atuações do Flamengo são uma nova oportunidade para o futebol brasileiro - TOSTÃO

FOLHA DE SP - 27/10

Equipe carioca é uma associação de excelentes jogadores com um treinador competente


Durante a carreira, vários jogadores evoluem bastante, por adquirirem novas qualidades técnicas, diminuírem as deficiências, passarem a atuar em equipes de mais talento e conjunto e porque mudam de posições e funções.

Bruno Henrique, quando atuava no Santos, passava toda a partida correndo, encostado à lateral esquerda. Eu achava um desperdício. Hoje, ele se movimenta por todo o ataque, além de atuar em uma melhor equipe. Gabigol, no Santos, já era o melhor finalizador do Brasil. No Flamengo, finaliza ainda mais e faz mais gols. Gérson era um razoável ou bom meia pelos lados e é agora um excelente meio-campista.

​Éverton Ribeiro continua tão bom e com as mesmas características que tinha quando jogava no Cruzeiro.

Sterling, atacante do Manchester City e da seleção inglesa, era apenas um rápido driblador, que errava demais na conclusão das jogadas. O mesmo ocorre com Vinícius Júnior, desde que começou a jogar no Flamengo.

Sterling, ajudado por Guardiola, evoluiu bastante e é hoje um dos grandes atacantes do futebol mundial, pois mostra muita técnica e lucidez nas decisões, além de fazer muitos gols. Já Vinícius Júnior, no Real Madrid, continua igual. Isso me preocupa.

Rodrygo, que foi titular no Real, no meio da semana, pela Liga dos Campeões, foi convocado, no lugar de Vinícius Júnior. Rodrygo não tem a força física, a velocidade e os dribles de Vinícius Júnior, mas tem um repertório mais amplo.

Os treinadores brasileiros precisam também evoluir, aprender com o explosivo Jorge Jesus.

O técnico implodiu chavões, lugares-comuns e vícios que infestam nosso futebol. O Flamengo não tem dois volantes em linha, estáticos no próprio campo, zagueiros colados à grande área, um clássico meia de ligação, confinado entre o meio-campo e a defesa adversária, pontas que só atuam encostados à lateral nem um típico centroavante, parado entre os zagueiros, esperando sobrar uma bola para finalizar.

Jorge Jesus, diferentemente dos técnicos brasileiros, só poupa titulares que tenham algum problema físico. Quando o time faz um gol na frente, procura o segundo, em vez de recuar para contra-atacar, como é o habitual no país.

O ótimo time do Flamengo é uma associação de excelentes jogadores com um treinador competente. Forma e conteúdo são inseparáveis. Mas não exagerem. Os adversários facilitam a superioridade do time carioca. Contra o River Plate, as dificuldades serão muito maiores.

Luxemburgo, que faz um bom trabalho no Vasco, insiste, com sua prepotência, que no futebol atual apenas mudou a terminologia e que tudo o que se faz hoje, no Brasil e em todo o mundo, ele já fazia no século passado.

Para reconstruir o futebol brasileiro é necessária também a reestruturação financeira dos clubes, como ocorreu no Flamengo, na administração anterior, do presidente Eduardo Bandeira de Mello.

O futebol não pode ser conduzido por incompetentes e levianos.

Reconstruir não é voltar ao passado nem à essência do futebol, como gostam de dizer. O mundo mudou, e o futebol não é diferente.

As coisas boas do passado precisam ser relembradas, homenageadas, e servir de inspiração para o presente, não para serem copiadas.

Após o 7 a 1, o Brasil teve uma chance de reconstrução, dentro e fora de campo, e não aproveitou.

As atuações do Flamengo, simbolizadas nos 5 a 0 sobre o Grêmio, são uma segunda chance para os times brasileiros. Pode ser a última.

Tostão
Cronista esportivo, participou como jogador das Copas de 1966 e 1970. É formado em medicina.

sexta-feira, outubro 11, 2019

Flamengo de Jesus recupera o prazer de desfrutar o futebol no Brasil - RODRIGO MATTOS

UOL - 11/10/2019 

Ao se assistir ao Flamengo no estádio, é perceptível que não há nada de aleatório no time. Os movimentos e posicionamentos fazem sentido, as jogadas são executadas como se ensaiadas fossem, os jogadores sabem todos o que têm de fazer e são hoje melhores do que eram há dois, três meses. O futebol é intenso, empolgante, vertiginoso. É o efeito do técnico Jorge Jesus.

Essa é a explicação pragmática que se atém ao que faz uma equipe de futebol funcionar (ou não). Há outra análise pertinente a partir daí que é: o que esta equipe representa na história recente do futebol brasileiro e se deixará um legado.

Conversei sobre isso com o colega PVC, uma das nossas melhores cabeças para o assunto, em um Maracanã em êxtase. Ele me lembrou o Santos de Neymar como um time tão móvel no ataque quanto esse do Flamengo. Eu lembrei do Cruzeiro de 2013/2014 como um time tão dominante no Brasileiro, e também uma máquina ofensiva.

Bem, esse Flamengo é melhor do que aquele Cruzeiro, por ter jogadores mais dotados tecnicamente e por jogar com ousadia quase o tempo inteiro. E aquele Santos tinha um craque que o Flamengo não tem em Neymar, mas não tinha o nível igual em todas as outras posições, nem a exuberância na movimentação ofensiva.

Difícil colocar marcas de tempo, anos, década. Mas a verdade é que não víamos um time que nos desse prazer como esse Flamengo há um longo período.

E por que? Não nos faltam, nem faltavam, talentos. Mas estamos estagnados, incapazes de repetir o futebol belo de um passado distante porque já não cabia em um esporte que se modernizou e igualmente incapazes de reproduzir a nova beleza que se criou lá fora. Estamos como artistas decadentes olhando um concerto de um novo talento da calçada.

E então um português veio nos mostrar -e antes um argentino no Santos com um elenco inferior, diga-se – que podemos voltar a sentir prazer no futebol. Que futebol não é saber sofrer é saber desfrutar.

Veja o jogo diante do Galo. Havia ali uma linha de cinco defensores atrás, outra de mais quatro à frente e um atacante. Em dado momento, o Atlético-MG meteu 11 na área. Justo se assim lhe apetece.

O Flamengo trabalhava a bola, nenhum chuveirinho daqueles de qualquer jeito. O passe da ponta era para o canto da área, a triangulação pela lateral, até achar o espaço preciso, como quem desenha ângulos com jogadores nos lugares de esquadros e compassos.

Esse mecanismo era em favor desse talento individual que tanto produzimos e vendemos para fora. Vitinho acha um drible e um chute, um garoto de 17 anos mata o jogo, e Arão ganha todas as bolas com a facilidade de quem joga com crianças porque está sempre no lugar certo.

Ao final, Jesus observou que seu trabalho só criará raízes no futebol brasileiro se for vencedor. É fato, aqui só se acredita na vitória. Mas já não se pode negar que o português nos trouxe de volta algo que havíamos perdido, esse prazer de ver uma graça no futebol, algo que nos enche os olhos para além do pragmatismo de vencer.