quarta-feira, setembro 19, 2018

Governar é tão ou mais difícil que se eleger - MAÍLSON DA NÓBREGA

Governar é tão ou mais difícil que se eleger - MAÍLSON DA NÓBREGA

FOLHA DE SP - 19/09

Desafio é negociar sem sucumbir ao baixo clero


No Brasil, não basta ganhar as eleições presidenciais. O vencedor precisa formar e coordenar uma coalizão. Seu partido elegerá no máximo 70/75 deputados, mas necessitará de no mínimo 308 votos para aprovar emendas constitucionais. A proporção é semelhante no Senado.

A renovação do Congresso será muito pequena. O padrão mental e os costumes de sempre continuarão a ditar a forma como serão feitas as negociações. Grande parte manterá a dependência do voto de corporações e de interesses paroquiais.

Construir a maioria não será suficiente, pois ela se forma em cada votação relevante. O presidente precisa ter, além de liderança e legitimidade, habilidades para articular o apoio a seus projetos essenciais, caso a caso.

No presidencialismo de coalizão, que implica o compartilhamento do poder, o chefe do governo assume o papel de coordenador do jogo político. Compartilhar é distribuir postos ministeriais.

O presidente tem uma cota pessoal, que compreende pelo menos a Fazenda, o Planejamento e a Casa Civil. Os demais ministros são indicados pelos partidos da coalizão. É assim em países onde o vencedor não tem a maioria no Parlamento.

Formar o ministério é obra de engenharia política. É preciso demonstrar perícia e arte para contemplar aliados, regiões do país, mulheres e representantes de segmentos econômicos e sociais.

A promessa de um presidenciável de anunciar o ministério antes de se eleger revela sério desconhecimento do processo. Tampouco faz sentido recusar escolhas por indicações políticas. Ou governar com os melhores. Nem sempre é possível escolher.

Nomear um superministro da Economia pela fusão de ministérios, sem extinguir suas funções, não faz sentido. A ideia de que esse ministro terá carta branca desconhece que é o presidente quem governa e que as decisões básicas são do Congresso. Enfeixar tanto poder nas mãos de uma única pessoa vai criar conflitos e ineficiências.

Há três recursos de poder para exercer a coordenação. Primeiro, nomeações para os cargos de ministro e para posições do segundo escalão. Segundo, liberação de emendas parlamentares. Terceiro, habilidade pessoal. Impossível fugir dessa realidade.

O terceiro é o mais relevante. Pressupõe alta inteligência emocional, equilíbrio, paciência, capacidade de articulação, entender a relação com o Congresso, um bom auxiliar da coordenação política e a arte de lidar com os parlamentares.

É preciso identificar formadores de opinião, quem é mais confiável e os que merecem atenção e prestígio. Há que saber quem convidar para viagens e para recepções palacianas. Um quê de encanto é crucial. Tudo isso requer experiência. Não se faz um líder político eficaz da noite para o dia.

Negociar com base em princípios só será possível (e olhe lá) quando tivermos partidos programáticos, não hoje.

A forma atual de negociar constitui uma das regras do jogo, mas pode ser fatal o uso da corrupção para aliciar apoios.

É necessário saber transmitir mensagens e obter apoio da opinião pública para o programa de reformas, pois isso reforça a capacidade de articulação política. Presidentes impopulares perdem o poder de agenda.

Por último, o baixo clero sabe que a democracia funciona no plenário, isto é, a vontade da maioria prevalece. O baixo clero é maioria e pode vetar reformas. O desafio é negociar sem sucumbir à vontade desse grupo, que costuma andar de braços com o corporativismo e a irresponsabilidade fiscal.

Em resumo, como disse Tom Jobim (1927-1994), "o Brasil não é para principiantes".

Maílson da Nóbrega

Ex-ministro da Fazenda (1988-1990, governo Sarney) e sócio da Tendências Consultoria

Era uma vez... - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

Era uma vez... - ALEXANDRE SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 19/09

É preciso agir contra grupos de interesse que não aceitam perder 'meias-entradas'


Em entrevista recente ao Pravda, perdão Valor Econômico, Armínio Fraga argumenta que a situação econômica atual é ainda pior do que a enfrentada há 16 anos, durante a eleição de 2002.

Concordo plenamente, porém, noto que, se isto for mesmo verdade, há o que explicar do ponto de vista dos preços no mercado financeiro.

É fato que o dólar anda na casa de R$ 4,15-4,20, pouco acima do observado lá atrás, mas, ajustando o valor à diferença entre a inflação brasileira e a americana, o dólar na média de outubro de 2002 seria equivalente a algo perto de R$ 6,50, bem mais caro do que agora.

Da mesma forma, o risco país (o tanto a mais de juros que o Brasil precisa pagar comparado aos EUA) anda alto, na casa de 3,0-3,5% ao ano; em 2002, todavia, chegava a impensáveis 24% ao ano.

Por fim, também ajustada à inflação, a Bolsa hoje vale praticamente três vezes mais do que no pior momento daquela crise.

Em suma, pela ótica fria dos preços de mercado a coisa não parece tão feia quanto Armínio e eu (entre tantos) acreditamos.

Houve, é bom dizer, melhora em algumas fragilidades importantes.

Quase metade de tudo o que governo devia à época (algo como R$ 1,3 trilhão de R$ 3 trilhões a preços de hoje) era denominada em moeda estrangeira, principalmente dólares.

Assim, qualquer balançada no dólar, não muito diferente da que observamos recentemente, tinha efeitos negativos que realimentavam o problema: com o dólar mais caro a dívida crescia, o que aumentava a percepção acerca da nossa incapacidade para manter os pagamentos em dia, levando à fuga adicional de capitais e nova pressão sobre o dólar.

Hoje, em contraste, o governo tem mais dólares do que deve, ou seja, ganha quando o dólar sobe, quebrando o círculo vicioso anterior.

Algo parecido se passa com o setor privado: graças aos investimentos externos, o encarecimento do dólar não gera receio de que a dívida externa das empresas brasileiras em seu conjunto se torne impagável (ao contrário do que ocorre com, por exemplo, a Turquia).

Como os mecanismos de realimentação da crise via dólar e dívida não mais estão presentes, o dólar não explode, nem o risco país, e o balanço mais saudável das empresas transparece em um mercado acionário mais forte do que o daquela época.

Apesar disso, as contas públicas pioraram muito.

Em 2002 o setor público apresentava superávit primário ao redor de R$ 130 bilhões (a preços de hoje); prevê-se agora déficit de R$ 159 bilhões neste ano e R$ 139 bilhões no próximo.

O gasto federal, corrigido pela inflação, era então pouco superior a R$ 600 bilhões; hoje supera R$ 1,3 trilhão, dos quais o governo controla efetivamente menos do que 10%.

Já a dívida pública (usando a definição existente em 2002) equivalia a 65% do PIB (Produto Interno Bruto) e vinha em trajetória decrescente; hoje ultrapassa 85% do PIB e cresce desde o fim de 2013.

Naquele momento, portanto, bastou que o novo governo mantivesse a política econômica do anterior para que as coisas se acalmassem.

Hoje, porém, a tarefa é bem mais difícil: não se trata de manter o que existe, mas reformá-lo profundamente contra a ação de grupos de interesse que não aceitam serem privados de suas meias-entradas.

O mundo político, contudo, não se mostrou à altura da tarefa. Se persistirmos no erro, é até possível que os preços no mercado financeiro não voltem aos patamares de 2002, mas não tenham dúvidas de que teremos muita saudade dos preços de 2018.

Alexandre Schwartsman

Consultor, ex-diretor do Banco Central (2003-2006). É doutor pela Universidade da Califórnia em Berkeley.