segunda-feira, junho 04, 2018

Da greve ao terrorismo social - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 04/06

A política odeia o vácuo: ou há representação ou a violência preenche esse vácuo


Se há uma patologia endêmica no Brasil é a imaturidade política. Talvez seja no mundo inteiro ou tenha sido sempre assim, mas hoje essa hipótese mais generalizada não me interessa. Assistimos, nos últimos dias, ao surgimento do caos no país. Evidente que o governo é ruim e a classe política, quase na totalidade, um lixo. Mas isso tampouco me interessa hoje.

Talvez uma das características mais difíceis do amadurecimento seja o fato dele exigir uma certa “paciência do conceito”. Esta paciência significa a capacidade de resistir ao desespero diante da lentidão da construção versus a rapidez da destruição. Tudo demora a ser construído (às vezes 2.000 anos ou mais), enquanto a destruição atinge a velocidade da luz em segundos. Assim é no amor, na vida em família, no trabalho, na economia, em sociedade, na política.

Ter raiva do governo e dos políticos brasileiros é um clássico e não há dúvida que a lida do governo com os bens derivados do petróleo tem sido da pior espécie. Deviam vender a Petrobras e pronto. O governo Temer foi de uma irresponsabilidade nesse tema dos caminhoneiros que merecia receber o troféu Canalha do Ano. Todos que pensam minimamente sabem que chegamos à beira de uma ruptura institucional. E aí chegamos ao ponto que me parece importante hoje.

Gostaria de analisar três frases ditas por vários tipos de pessoas nesses dias, em reuniões de amigos, no trabalho, nas redes, na mídia em geral. Antes de tudo, esclareçamos algo.

Em política, quando fazemos uma crítica sem oferecer uma solução, estamos no âmbito da “metafísica delirante”. Não adianta dizer “vamos acabar com esses ladrões do país” sem dizer como.

E a política odeia o vácuo: ou você oferece representatividade institucionalizada ou a violência preenche esse vácuo. A política é o campo da violência. Quando se brinca com a ruptura institucional, brinca-se com a violência livre.

Todo regime político é um sistema que busca conter essa violência (seja para o bem ou para o mal, tanto a contenção quanto a violência). No meu entender, aqueles que tentam dar uma conotação política “revolucionária” positiva ao movimento dos caminhoneiros flertam com o vácuo político e, portanto, com a violência. Da greve fomos ao terrorismo social.

Portanto, a pergunta que nós brasileiros devemos fazer é: quanto estamos dispostos a pagar pela violência que movimentos como o dos caminhoneiros e similares podem trazer para o nosso cotidiano? Porque política é violência sempre, depende apenas das formas em que se materializa. Acho que muita gente aqui quer brincar de Oriente Médio ou Venezuela. Ou África.

Mas, vamos a mais duas dessas frases que, ao meu ver, demonstram uma certa imaturidade política que beira o retardo mental. Os idiotas da política tomaram conta do Brasil nesses dias.

“Vamos devolver o Brasil ao povo brasileiro”. Quem vai devolver? O que é exatamente “o Brasil” que esse sujeito quer devolver? E o povo brasileiro é o quê? O imaturo deve pensar nele, no seu tio e no seu cachorro, mas, quem é esse “povo brasileiro”? A pátria de chuteiras? Como esse “povo” vai governar “esse Brasil”? Uma frase como essa carrega toda a imaturidade travestida de consciência política que se pode imaginar em poucas palavras.

Mas, o que pode ser lido nessa frase que signifique algo para além da imaturidade crua? Há nela a expectativa de que um milagre aconteça e o “Brasil seja devolvido ao povo brasileiro”. Esse milagre se chama intervenção militar, o que significa um episódio de gestão da violência de forma que a violência fique mais ameaçadora e explícita. De novo, imaturidade. E aqui nada vai contra a importância ou a dignidade das Forças Armadas no país.

Outra pérola: “Quero que falte comida na sua casa pra você se juntar a nós e derrubarmos os três Poderes”. O que essa frase quer dizer por “falte comida na sua casa”? Por acaso quem diz uma pérola dessa tem ideia do que é uma ordem social dissolvida no cotidiano? Sei, inteligentinhos dirão que há fome no país. Mas, esses mesmos inteligentinhos enchem os restaurantes gourmets com seus menus saudáveis.

Quando as pessoas passam fome e passam à violência, o cotidiano se desmancha em todos os níveis. Da ida à escola ao supermercado, da dissolução dos mecanismos de contenção da violência à instauração de mecanismos mais violentos ainda de contenção dessa mesma violência.

E “derrubar os três Poderes”? Vamos colocar um tanque de guerra no lugar?

Luiz Felipe Pondé

Pernambucano, é escritor, filósofo e ensaísta. Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap.

‘Fake news’ versus qualidade - CARLOS ALBERTO DI FRANCO

ESTADÃO - 04/06

É preciso contar boas histórias. Com transparência e sem filtros ideológicos

Proliferam notícias falsas nas redes sociais. São compartilhadas acriticamente com a compulsão de um clique. Fazem muito estrago. Confundem. Enganam. A mentira, por óbvio, precisa ser debelada. O antídoto não é o Estado. É a poderosa força persuasiva do conteúdo qualificado. O valor da informação e o futuro do jornalismo estão intimamente relacionados. É preciso apostar na qualidade da informação.

As rápidas e crescentes mudanças no setor da comunicação puseram em xeque os antigos modelos de negócios. A dificuldade de encontrar um caminho seguro para a monetização dos conteúdos multimídia e as novas rotinas criadas a partir das plataformas digitais produzem um complexo cenário de incertezas.

É preciso pensar, refletir duramente sobre a mudança de paradigmas, uma vez que a criatividade e a capacidade de inovação – rápida e de baixo custo – serão fundamentais para a sobrevivência das organizações tradicionais e para o sucesso financeiro das nativas digitais.

Mas é preciso, previamente, fazer uma autocrítica corajosa a respeito do modo como nós, jornalistas e formadores de opinião, vemos o mundo e da maneira como dialogamos com ele.

Antes da era digital, em quase todas as famílias existia um álbum de fotos. Lembram-se disso? Lá estavam as nossas lembranças, os nossos registros afetivos, a nossa saudade. Muitas vezes abríamos o álbum e a imaginação voava. Era bem legal.

Agora fotografamos tudo e arquivamos compulsivamente. Nosso antigo álbum foi substituído pelas galerias de fotos de nossos dispositivos móveis. Temos overdose de fotos, mas falta o mais importante: a memória afetiva, a curtição daqueles momentos. Fica para depois. E continuamos fotografando e arquivando. Pensamos, equivocadamente, que o registro do momento reforça a sua lembrança, mas não é assim. Milhares de fotos são incapazes de superar a vivência de um instante. É importante guardar imagens. Mas é muito mais importante viver cada momento com intensidade. As relações afetivas estão sucumbindo à coletiva solidão digital.

Algo análogo, muito parecido mesmo, se dá com o consumo da informação. Navegamos freneticamente no espaço virtual. Uma enxurrada de estímulos dispersa a inteligência. Ficamos reféns da superficialidade. Perdemos contexto e sensibilidade crítica. A fragmentação dos conteúdos pode transmitir certa sensação de liberdade. Não dependemos, aparentemente, de ninguém. Somos os editores do nosso diário personalizado. Será? Não creio, sinceramente. Penso que há uma crescente nostalgia de conteúdos editados com rigor, critério e qualidade técnica e ética. Há uma demanda reprimida de reportagem. É preciso reinventar o jornalismo e recuperar, num contexto muito mais transparente e interativo, as competências e a magia do jornalismo de sempre.

Jornalismo sem alma e sem rigor. É o diagnóstico de uma perigosa doença que contamina redações, afasta consumidores e escancara as portas para os traficantes da mentira. O leitor não sente o pulsar da vida. As reportagens não têm cheiro do asfalto.

É preciso contar boas histórias. Com transparência e sem filtros ideológicos. O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador constrói a história. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimentos, próprios de opções ideológicas invencíveis, transformam um princípio irretocável num jogo de aparência.

A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se apoia na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: repercussão seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.

Sucumbe-se, frequentemente, ao politicamente correto. Certas matérias, algemadas por chavões inconsistentes que há muito deveriam ter sido banidos das redações, mostram o flagrante descompasso entre essas interpretações e a força eloquente dos números e dos fatos. Resultado: a credibilidade, verdadeiro capital de um veículo, se esvai pelo ralo dos preconceitos.

Politização da informação, distanciamento da realidade e falta de reportagem. Eis o tripé que tisnou a credibilidade dos veículos. A informação não pode ser processada num laboratório sem vida. Falta olhar nos olhos das pessoas, captar suas demandas legítimas. Gostemos ou não delas. A velha e boa reportagem não pode ser substituída por torcida.

A crise do jornalismo – e a proliferação de fake news – está intimamente relacionada com a pobreza e o vazio das nossas pautas, com a perda de qualidade do conteúdo, com o perigoso abandono da nossa vocação pública e com a equivocada transformação de jornais em produto mais próprio para consumo privado. É preciso recuperar o entusiasmo do “velho ofício”. É urgente investir fortemente na formação e qualificação dos profissionais. O jornalismo não é máquina, embora a tecnologia ofereça um suporte importantíssimo. O valor dele se chama informação de alta qualidade, talento, critério, ética.

O jornalismo precisa recuperar a vibração da vida, o cara a cara, o coração e a alma. O consumidor precisa sentir que o jornal é um parceiro relevante na sua aventura cotidiana. Fake news também se combate com qualidade.

*JORNALISTA.

Peleguismo além das fronteiras - ROGÉRIO MARINHO

FOLHA DE SP - 04/06

Recorrer à OIT contra nova lei trabalhista é invenção

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) surgiu para que os países discutissem formas de melhorar as condições de trabalho e reduzir as desigualdades. Com as Convenções, que tratam dos temas específicos do mundo laboral, criou-se um sistema pelo qual se analisa o cumprimento das normas pelos países membros. A cada ciclo de revisão, decidido de acordo com regras internas, os países apresentam considerações de como está o cumprimento de determinada Convenção.

Anualmente, nas conferências internacionais, a Comissão de Normas trata de casos considerados graves pelos peritos da organização e pelas entidades internacionais de trabalhadores e de empregadores.

Neste ano, forças políticas internas utilizaram-se da estrutura da OIT para promover sua agenda político-partidária de forma ilegal e imoral. Centrais sindicais, articuladas com a presidente da organização de trabalhadores, que busca viabilizar sua reeleição, levaram o Brasil para a Comissão de Normas sob a alegação de que as novas regras da modernização das leis trabalhistas para a negociação coletiva não estão de acordo com o estabelecido pela OIT. Tudo não passou de invenção para criar um fato político.

As regras inseridas na lei brasileira sob negociação coletiva estão completamente alinhadas ao que determina a OIT. A Convenção 98 diz que os países devem tomar providências para que a negociação seja feita livremente entre trabalhadores e empregadores —exatamente o que foi feito pela nova legislação.

Os denunciantes insistem na tese, que não consta de nenhuma convenção da OIT, de que a negociação só pode aumentar os direitos previstos, como se a nova lei permitisse uma retirada de direitos sem a necessidade de contrapartidas —o que é, obviamente, falso.

O que se questionou na OIT em nenhum momento foi objeto perante as cortes brasileiras. Das mais de 20 ações que tramitam no STF, nenhuma versa sobre negociação coletiva. Na realidade, três quartos delas tratam da volta do imposto sindical. É fácil demonstrar que o interesse é político, vez que a OIT condena a existência de contribuições obrigatórias de trabalhadores para sindicatos. Esse ponto não foi levado pelas centrais ao organismo.

Outro aspecto grave é que o Brasil apresentou informações sobre o cumprimento da Convenção 98 em 2016 e, de acordo com as regras da própria OIT, só deverá apresentar novas considerações em 2019. Há uma quebra do ciclo, do procedimento adotado, para se promover uma pauta política que não guarda nenhuma relação com as discussões jurídicas promovidas internamente e com as próprias normas internacionais.

A presença do Brasil na lista de países a serem inquiridos pela Comissão de Normas, além de não representar consequência jurídica, será apenas indicativo de que a OIT cedeu a pressões políticas.
A utilização de um órgão multilateral para a promoção de pautas políticas internas dos países-membros deixa claro o desespero dos opositores da reforma trabalhista.

A modernização das leis do trabalho oxigena o mercado, promove a formalidade e a segurança jurídica. Os que são contra querem manter uma estrutura arcaica, conflituosa e de imensos custos para a geração de empregos. São vozes do atraso que cooptaram a OIT.

Rogério Marinho

Deputado federal (PSDB-RN) e relator do projeto da reforma trabalhista na Câmara

Dependência do Estado - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 04/06

Por mentalidade estatista entenda-se a presunção de que o Estado tem de ter a capacidade de oferecer tudo a todos, como se os recursos à sua disposição fossem infinitos

O apoio popular à greve dos caminhoneiros, particularmente à demanda por redução do preço do óleo diesel – o que necessariamente tem de ser bancado com recursos do Estado, por meio de subsídio –, mostra a persistência de uma mentalidade estatista em grande parte da sociedade brasileira.

Por mentalidade estatista entenda-se a presunção de que o Estado tem de ter a capacidade de oferecer tudo a todos, como se os recursos à sua disposição fossem infinitos. A Constituição de 1988 reflete claramente essa visão, pois, a título de restabelecer direitos sociais depois da ditadura militar, onerou o Estado de tal maneira que hoje a única solução para manter sua solvência é por meio de profundas reformas constitucionais – das quais muito pouca gente quer ouvir falar.

Têm prevalecido até aqui, às vezes com mais vigor, como agora, os interesses das corporações e dos grupos organizados da sociedade, sempre em detrimento da maioria desorganizada – que tem sido incapaz de perceber o quanto tal estado de coisas lhe custa. É como se o dinheiro administrado pelo Estado, fruto da arrecadação de impostos de todos os brasileiros, não fosse público, mas sim do governo – que, conforme esse raciocínio, distribui os recursos segundo critérios misteriosos, incompreensíveis ou, quase sempre, suspeitos. Nesse contexto, a muitos cidadãos, para os quais a política é uma atividade insondável e distante – quando não intrinsecamente corrupta –, não parece restar alternativa senão esperar que o governo também lhes premie com alguma benesse, quando o certo seria inteirar-se de como o dinheiro público é arrecadado e distribuído para, assim, ter condições de opinar sobre sua melhor destinação. Se o vigor de uma democracia se mede, entre outras coisas, pela capacidade que a sociedade tem de determinar como o Orçamento público é gerenciado, então vai mesmo mal a democracia brasileira.

Não se constrói esse estado de coisas da noite para o dia. Trata-se de um longo processo de controle da política por grupos de interesse muito distantes dos cidadãos comuns, para os quais somente os privilegiados e os corruptos parecem ter acesso garantido aos recursos estatais. Não à toa, há uma sensação generalizada de descrença na política – sendo que o vigor do populismo, à esquerda e à direita, é seu natural corolário.

Assim, a mentalidade estatista – a dependência desmedida do Estado e de seus agentes – que hoje parece predominar no País não resulta apenas, nem principalmente, de ignorância, mas sim da sensação de que os recursos estatais foram monopolizados por uma corte de corruptos e parasitas, restando ao cidadão comum esperar que lhe caiba ao menos alguma migalha – na forma, por exemplo, de subsídios e dos chamados “direitos sociais”.

Recorde-se que, nos grandes protestos de 2013, se reivindicava o barateamento da tarifa de ônibus, e, ao mesmo tempo, exigiam-se serviços públicos “padrão Fifa” – em alusão à excelência dos serviços da Copa do Mundo que se avizinhava. Pouco adiantou argumentar que o subsídio para manter baixa a tarifa tiraria recursos de outros setores, tornando o atendimento estatal ainda mais precário. Passados cinco anos, tal situação persiste: a Prefeitura de São Paulo, por exemplo, anunciou que o subsídio da tarifa de ônibus – sem o qual a passagem saltaria de R$ 4,00 para R$ 6,66 – aumentará para R$ 2 bilhões e sacrificará outras áreas, como zeladoria. É provável que o paulistano que hoje exige preço baixo para a tarifa de ônibus acabe mais tarde se queixando das ruas sujas e esburacadas, como se uma coisa nada tivesse a ver com outra.

Mas muitos cidadãos têm dificuldade de enxergar essa relação porque, para eles, o dinheiro existe sim – dá em árvores e só não aparece porque é roubado por políticos corruptos ou engorda funcionários públicos privilegiados. E como condenar tal opinião, quando a Câmara Municipal de São Paulo, no momento em que se apertam os cintos, resolve dar gratificação de até R$ 16 mil para servidores daquela Casa? Ao ver funcionários municipais ganhando até R$ 40 mil de salário, muito acima do teto constitucional do funcionalismo e a despeito da crise, o contribuinte dificilmente deixará de concluir que os governantes que pedem mais sacrifícios ao povo só podem estar de brincadeira.

Nem ordem, nem progresso - GUSTAVO LOYOLA

Valor Econômico -  04/06

A greve/locaute no transporte rodoviário de cargas é um retrato acabado das mazelas passadas e presentes do Brasil, muito embora seu pretexto imediato tenha sido a alta do preço dos combustíveis resultante da política de repasse imediato pela Petrobras das variações do preço do petróleo e da taxa cambial.

Tudo começa no "governar é abrir estradas" de Washington Luís, quando o país optou pelo estímulo ao modal rodoviário de transporte, em detrimento de outros meios, em especial do ferroviário. O equívoco foi reforçado em administrações posteriores, notadamente a partir de JK, cujo governo patrocinou a construção de estradas e estimulou a fabricação de caminhões no Brasil.

A partir de então, o que se viu foi a decadência das ferrovias e a quase extinção do transporte fluvial e marítimo de cabotagem. No governo FHC, a mudança do marco regulatório e as concessões trouxeram alguma esperança de que as coisas poderiam mudar em favor da maior diversificação da nossa infraestrutura de transportes. Alguns avanços de fato ocorreram, mas insuficientes para mudar o quadro de dependência exagerada das rodovias na logística de cargas. Tudo isso, vale ressaltar, num quadro de persistente limitação na qualidade da malha rodoviária brasileira.

Como exemplo recente da dificuldade de fazer decolar os modais alternativos ao transporte rodoviário basta citar o fracasso do governo Temer de modernizar o quadro regulatório do transporte ferroviário e de realizar a concessão de um importante trecho da ferrovia Norte-Sul, pronto há algum tempo, mas sem nenhum uso.

Se o primeiro dos problemas vem da época de Washington Luís, o segundo origina-se do período varguista, com a criação da Petrobras. O monopólio de extração e refino de petróleo, que ali começou a se esboçar, consolidou-se nas décadas seguintes, tendo sido consagrado na Constituição de 1988. A revogação deste monopólio em reforma constitucional no governo FHC não trouxe, contudo, o seu término de fato no campo do refino. Com isso, a Petrobras continuou com o poder de fixar o preço doméstico dos derivados de petróleo, sob o olhar complacente do regulador (a ANP, Agência Nacional do Petróleo) e também do Cade.

O monopólio de fato da Petrobras trouxe consigo a tentação da manipulação político-eleitoral dos preços domésticos dos derivados. Dilma Roussef usou e abusou deste expediente, a ponto de quase falir a monopolista Petrobras, o que seria um feito no campo dos negócios. A correção deste abuso, na administração atual da companhia, levou a uma política de repasse integral ao mercado doméstico das variações dos preços internacionais do petróleo, sem que essa política - correta sob o ponto de vista estrito da empresa - fosse checada pelos mecanismos típicos de mercados concorrenciais.

Já se tem aí um caldo de cultura dos mais explosivos. Dependência quase absoluta do transporte rodoviário associado ao monopólio estatal no refino do petróleo. Mas isso só não bastou. Para piorar, há um terceiro fator, a péssima estrutura tributária que onera expressivamente o preço dos combustíveis no Brasil.

Hoje em dia, uma parcela relevante da arrecadação de ICMS no Brasil vem de apenas três setores: telecomunicações, energia elétrica e combustíveis. Essa tendência foi recentemente agravada com a crise fiscal dos Estados, que levou ao aumento dos impostos incidentes sobre esses três setores. Há também o ônus dos tributos federais, muitos deles incidindo em cascata. Tem-se, portanto, uma carga fiscal excessiva sobre três insumos essenciais cujos custos são naturalmente repassados ao consumidor final.

Aqui se tem um problema cuja gênese é a Constituição de 1988, excessivamente pródiga na criação de gastos e origem de uma vinculação excessiva dos impostos que impôs uma camisa de força orçamentária. O fracasso recente na tentativa de reformar a Previdência Social mostrou claramente os limites políticos para mudar a estrutura das finanças públicas do país. Os políticos brasileiros não têm incentivo algum para apoiar reformas que signifiquem perda de privilégios para certos grupos da sociedade. Preferem, ao contrário, continuar distribuindo "meias entradas" a torto e direito, principalmente com o intuito de auferir dividendos eleitorais.

Por último, mas não menos importante, contribuiu para a crise o equívoco do crédito fortemente subsidiado para aquisição de caminhões através do BNDES durante a gestão do PT. Tal prodigalidade gerou um excesso de oferta de fretes no mercado, reduzindo as margens de lucro e disseminando insatisfação no setor. Essa insatisfação já tinha vindo à superfície durante a gestão Dilma e foi tratada à época com medidas paliativas de duvidosa qualidade, como perdão de multas e isenções em pedágios de rodovias federais. A alta recente dos combustíveis apenas agravou o problema.

O mais desalentador é que o enfrentamento da crise pelo governo Temer mostrou que o aprendizado tem sido nulo. Erros se repetem, o populismo se mantém, assim como o apelo a remendos que trazem distorções maiores ainda ao mercado. Pior de tudo, o governo parece ter sucumbido a uma chantagem que ninguém garante não possa se repetir serialmente. Abriu-se mão da ordem, sem nenhum progresso.