terça-feira, abril 03, 2018

O mecanismo - CARLOS ANDREAZZA

O GLOBO - 03/04

Petistas não gostaram da série Certamente não a entenderam. Barroso entendeu, e gostou. O roteiro poderia ter sido escrito por Janot, sob supervisão de Fachin ou de Barroso


Sem material probatório para avançar, a Polícia Federal pede que o prazo de investigação seja prorrogado em 60 dias. Barroso autoriza. Por quê? Porque sem material probatório para avançar. Ato contínuo, o que pede também? Para que o sigilo bancário do presidente seja quebrado. Barroso autoriza. Por quê? Porque sem material probatório para avançar.

Isso é o Brasil, onde garantias individuais são cassadas em nome da caça aos bandidos escolhidos. Isto é o Brasil: se estamos certos de que Temer é um criminoso, que se faça de tudo para comprovar a convicção. E que se dane se existem regras para perscrutar os dados bancários de alguém; que se dane, portanto, se não há elementos, indícios, que justifiquem a ação: que se vasculhem as contas do sujeito até encontrá-los. O que caracteriza essa inversão da ordem investigativa tem nome: Estado policial.

A cousa prossegue — o mergulho no arbítrio: Gilmar Mendes restringe o recurso à condução coercitiva; Barroso, como alternativa àquele instituto, autoriza a prisão temporária de indivíduos que, jornalisticamente (juro), são chamados de “amigos de Temer”; ouvidos os presos e cumpridas as buscas, depois de pisoteada a presunção de inocência, a PGR pede que os detidos sejam soltos. Barroso autoriza. Já havia dado seu passa-moleque em Mendes, com o que restaria evidente: sem meios para aplicar a condução coercitiva, optara por substituí-la simplesmente submetendo os investigados à cadeia — e assim ainda provocar o colega. “Aprendeu, Gilmar?” — decerto pensou o justiceiro.

Petistas não gostaram da série “O mecanismo”. Certamente não a entenderam. Barroso entendeu — e gostou. O roteiro poderia ter sido escrito por Janot, sob a supervisão de Fachin ou do próprio Barroso. O leitor esteja certo de que Dallagnol e trupe jacobina adoraram. “O mecanismo” é objetivo — um presente para Lula: a atividade política consiste em coisa de bandido e todos os políticos (menos Freixo), de todos os partidos (menos do PSOL), são igualmente criminosos. Sem nuances, sem graus, sem diferenças, sem naturezas ideológicas — como se não houvesse, para muito além do roubo aos cofres públicos, o projeto autoritário de poder bancado por meio do roubo aos cofres públicos.

Engrenagem sem caráter para a locupletação de canalhas, “O mecanismo” ignora a política e menospreza o autoritarismo — aquilo que o grosso do dinheiro desviado financia: a permanência antidemocrática de um grupo no poder. Consequência: o caixa 2 generalizado e o recebimento individual de propinas caem na mesma vala comum de percepções onde repousa, todo disfarçado (e, pois, feliz), o assalto ao Estado para sustentar o programa hegemônico sem precedentes de um partido. Os petistas não compreenderam; mas “O mecanismo” os anistia e reabilita, conforme indicam as pesquisas eleitorais: se são todos delinquentes da mesma índole, se distinções não há, ou se são irrelevantes quando se pensa na causa maior (o combate à corrupção), revigorado estará aquele que liderou a tentativa de tomada do país pela máquina partidária.

Se você, porém, acha que é isso mesmo, que é tudo mesmo igual e que esses vagabundos são todos da mesma laia, é isto mesmo: você comprou “O mecanismo”; você explica por que, mesmo condenado em segunda instância, Lula encabeça todas as pesquisas referentes a 2018. Sua sede de sangue legitima essa miséria. Legitima também o ativismo judicial — o modus operandi de um Barroso — em bárbara ascensão no Brasil: aqui onde todos já são suspeitos, todos sob permanente desconfiança e, ora, investigação.

Esqueça Temer. Esqueça também o estado de direito, se não lhe for importante. Pense no próximo presidente; oportunisticamente, naquele candidato de sua predileção — e avalie se terá condições de governar. Se considera bom que um juiz invada a competência exclusiva de outro Poder e impeça a nomeação de um ministro pelo presidente porque, afinal, esse é Temer ou alguém que despreza: pense se seria diferente com qualquer outro político; diga-me, antes de celebrar o cerco ao presidente, se seria diferente com Bolsonaro?

Bem, com Lula era diferente. Né? Talvez diferente também fosse com Cármen Lúcia ou Joaquim Barbosa na Presidência. O que isso quererá dizer? Quem dirige — ou trava — hoje o país? O mais duradouro mal plantado pelo petismo foi a sindicalização das instituições, o Supremo sendo apenas a mais eloquente expressão de uma cultura que, no Ministério Público, faz multiplicarem os Janots.

Que não se espere qualquer pacificação nacional com a eleição do próximo presidente — tenha quantos milhões de votos tiver. Para governar, não precisará apenas negociar com o Congresso. Isso já é passado romântico. Para governar, deverá contar sobretudo com o apoio do blocão de privilegiados influentes composto pelos partidos do Judiciário, do MP e da PF. Quanto custará? Para começo de conversa: uma reforma da Previdência.

Carlos Andreazza é editor de livros

Os riscos da recaída - BOLÍVAR LAMOUNIER

ESTADÃO - 03/04

Lula e Dilma instalaram no STF uma maioria que cria obstáculos ao combate à corrupção


Em sua acepção mais comum, o verbo latino rebellare é traduzido como rebelar-se, revoltar-se, sublevar-se. Foi nos albores do mundo moderno, nos séculos 16 e 17, que ele se enriqueceu de maneira notável, ganhando na teoria política uma conotação totalmente diferente, a de “voltar ao estado de guerra”.

Tal mudança ocorreu em íntima conexão com o surgimento da doutrina do contrato social, pilar inicial do Estado constitucional e da democracia representativa. Desde Thomas Hobbes, autor de O Leviatã (1650), numerosos pensadores adotaram como ponto de partida o contraste entre uma sociedade fictícia – o “estado de natureza” – e a sociedade real, na qual vivemos, a “sociedade civil”. No “estado de natureza”, a vida humana beira o inimaginável. Fraco e isolado, não podendo contar com a colaboração de seus semelhantes, cada indivíduo se sente constantemente ameaçado pelos demais. Nas expressões clássicas de Hobbes, “o homem é o lobo do homem” e a sociedade, uma perpétua “guerra de todos contra todos”.

Foi para superar tal condição que os homens instituíram a sociedade civil, um contrato ou pacto mediante o qual todos se poriam ao abrigo de instituições e leis estabelecidas por eles mesmos, às quais deveriam estrita obediência, pois elas é que haveriam de os proteger contra a morte violenta, garantir suas propriedades e assegurar a cooperação sem a qual não conseguiriam produzir os bens de que necessitavam para sobreviver.

Assim, a noção de “sociedade civil” abria caminho para a ideia de que a sociedade humana surge e evolui graças à razão, ou seja, à capacidade humana de imaginar futuros alternativos, de escolher entre eles e de cooperar em sua construção. A visão “naturalista” era assim substituída pelo contratualismo, base como antes assinalei, do Estado constitucional e representativo.

Implícita no contratualismo encontra-se, portanto, a ideia de que o indivíduo é portador de direitos que a sociedade é obrigada a respeitar e tutelar. Mais para o final do século 17, em seu Segundo Tratado sobre o Governo Civil, John Locke levou o argumento contratualista à sua conclusão lógica. Quem violasse as premissas da sociedade civil estaria se “rebelando”, ou seja, reinstituindo um “estado de natureza”. A recaída no estado de guerra poderia ser causada por qualquer um dos principais grupos ou instituições que compõem a sociedade, em especial por um governo tirânico, ou por súditos que se recusassem a reconhecer a legitimidade de um governo que fizesse por merecê-la.

À primeira vista, os apontamentos acima podem parecer puramente abstratos e irrelevantes, mas a História registra numerosos breakdowns, ou seja, crises ou rupturas que desembocam em violência generalizada. E não custa lembrar que até hoje é comum nos depararmos com a expressão “pacto social vigente” quando nos referimos à Constituição ou, mais amplamente, à situação prevalecente em determinada sociedade em certo momento.

Observadas tais ressalvas e fazendo referência ao Brasil atual, parece-me plausível caracterizar certos comportamentos das instituições públicas e certas atitudes disseminadas na sociedade e na política como indícios de um processo de desagregação análogo a uma regressão ao estado de guerra. Claro, a recaída não se dá da noite para o dia e raramente é causada por uma parte apenas da sociedade, mas o primeiro ponto a frisar é o discurso das agremiações de esquerda – e do PT, a mais importante delas. Em todas as suas variantes, a ideologia de esquerda orienta-se pela utopia de uma sociedade sem classes e perfeitamente harmoniosa. Arroga-se uma capacidade de antever as etapas do futuro histórico, sendo, pois, de seu dever liderar a marcha que conduzirá a humanidade a esse paraíso terrestre. Essa suposta superioridade alimenta uma ambiguidade em relação às instituições da democracia, às condutas prescritas pela ordem constitucional, e, especificamente, uma perceptível leviandade na ponderação entre fins e meios, da qual decorre um frequente recurso a ameaças de violência.

O caso do PT é ilustrativo. Em 1985 recusou-se a apoiar o restabelecimento do regime civil quando da eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral. Recusou-se a assinar a Constituição de 1988. Não mediu esforços para recolher dividendos eleitorais advindos do impeachment de Fernando Collor, mas recusou-se a assumir sua cota de responsabilidade no governo de transição de Itamar Franco. Quando a hiperinflação bateu às nossas portas, o partido assumiu uma posição de frontal combate ao plano de estabilização. Lula, eleito em 2002, beneficiou-se da estabilidade e de uma transição de governo excepcionalmente cordial e transparente, mas não hesitou em pespegar o slogan “herança maldita” no governo que o precedera, sem dúvida a mais dura agressão de um presidente contra seu antecessor na História republicana brasileira.

Outro indício da desagregação ou recaída a que me referi é a extensão atingida em nosso país pela corrupção. O número e o volume das ocorrências que vieram a público no passado recente sugerem tratar-se de um caso sem paralelo entre as democracias contemporâneas.

Por fim, mas não menos importante, algo precisa ser dito a respeito do Judiciário e especificamente do Supremo Tribunal Federal. É inegável que os governos Lula e Dilma, valendo-se com má-fé de seu poder de nomeação, instalaram no Supremo uma maioria facciosa que não hesita em contrariar a jurisprudência (que em parte ela mesma criou) e não faz segredo de sua intenção de criar obstáculos ao combate à corrupção. Vale lembrar a lição de Locke: “Perde a confiança da comunidade uma instituição que manifestamente negligencia ou se opõe ao fim que lhe foi atribuído”.

* BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE 'LIBERAIS E ANTILIBERAIS'(COMPANHIA DAS LETRAS, 2016)

Prêmios de consolação - JOÃO PEREIRA COUTINHO

FOLHA DE SP - 03/04

Cobiça de prêmios literários é confissão de vulgaridade, mesmo em autores ganharam muitos

Escritores: haverá raça mais abençoada e mais patética? Talvez não.

Tempos atrás, recebi um livro de um autor conhecido com uma dedicatória hiperbólica à minha pessoa. Estranhei. Não conhecia pessoalmente a criatura e já tinha escrito sobre ela em termos particularmente severos. Ali estava uma prova de "fair play" que me envergonhava profundamente: cresce e aparece, João.

Semanas depois, o editor de um jornal português enviava-me o mesmo livro —sem dedicatória, claro— perguntando se eu queria escrever a crítica. Segundo me disseram, o autor fazia questão que fosse eu debruçar-me sobre a sua prosa.

Sorri melancolicamente. O mundo ainda era um lugar previsível. E declinei o convite. A crítica lá apareceu, escrita por um colega de ofício, com elogios de fazer corar Narciso "lui même". Tudo está bem quando acaba bem, certo?

Certíssimo. Mas a minha desilusão não lidava com a hipocrisia do sujeito. Lidava apenas com a preguiça dele em não disfarçar um pouco, o que não deixava de ser um insulto à minha inteligência.

Vaidades todos temos. Inseguranças, também. Mas, nestes casos, é sempre bom aprender com os mestres: quando "No Caminho de Swann" apareceu na França, Marcel Proust escreveu críticas ao próprio livro e publicou-as nos periódicos do seu tempo.

A mais conhecida surgiu na primeira página do Le Figaro e o crítico não se conteve: o livro era uma "pequena obra-prima" que banhava "os vapores soporíferos" das letras francesas com "ar fresco". Consta que Proust pagou qualquer coisa como R$ 4.500 por esta imparcial resenha.

Moral da história: se Proust, que é Proust, vivia consumido pelas inseguranças da arte (e pela magreza da bolsa), quem somos nós para atirar a primeira pedra? A única diferença é que Proust ainda teve a elegância de ocultar a sua ambição.

Infelizmente, estas civilidades vão-se perdendo no meio literário. Não falo apenas do meu fã desinteressado, que nunca mais me enviou livro nenhum.

Falo de nomes como Margaret Atwood, Ian McEwan ou Zadie Smith. Segundo informa o The Guardian, os três fazem parte de um lista generosa de escritores e editores que não querem americanos na competição do Man Booker Prize.

Segundo os paladinos da pureza literária, o prêmio deve consagrar apenas autores do Reino Unido ou da Commonwealth. Só assim, dizem os paladinos, é possível dar visibilidade a autores "marginais", prontamente esmagados pelos George Saunders desta vida (Saunders, com "Lincoln no Limbo", venceu em 2017; Paul Beatty, outro americano, venceu o prêmio no ano anterior, com "O Vendido").

Os jurados do prêmio discordam. E lembram que a língua inglesa é mais importante do que a nacionalidade dos escritores. É a língua e o talento, independentemente da origem, que devem ser premiados.

Como é evidente, a polêmica não lida com a visibilidade dos escritores "marginais". O problema está nos escritores "centrais" que cobiçam o prêmio e temem a competição americana.

Esta revelação entristece qualquer literato.

Primeiro, porque a cobiça pública de prêmios literários é uma confissão de vulgaridade, mesmo em autores que já os ganharam em abundância. Cuidado: falo de cobiça "pública", não privada.

Em privado, sempre vi com graça as espantosas acrobacias dos autores para caírem nas graças de um jurado: elogios, dinheiro, juras de amor —ou, em alternativa, violências e ameaças.

E até conheço escritores que cobiçam os prêmios simplesmente para os recusar —uma espécie de glória sobre a glória que não tem paralelo em qualquer currículo.

Mas o temor explícito dos autores americanos revela outra coisa: um complexo de inferioridade que muitos escritores ingleses ou irlandeses não mereciam. Pessoalmente, não conheço nenhum escritor americano vivo e ativo (o que exclui imediatamente Philip Roth) que escreva como John Banville, sobretudo nesse primor que é "O Mar". Que o mesmo Banville também apoie o boicote aos americanos, eis a prova de que ninguém é perfeito.

Repito: vaidades todos temos. Inseguranças, também. Mas um escritor que não sabe escondê-las do público é como um ilusionista que, antes de executar o truque, explica à audiência como os coelhos saem da cartola.

João Pereira Coutinho

É escritor português e doutor em ciência política.

Sobre política fiscal - BERNARD APPY

ESTADÃO - 03/04

Há um consenso de que o teto dos gastos só será respeitado se for aprovada a reforma da Previdência

O quanto mudou a gestão da política fiscal nos últimos anos? Uma forma de ver essa questão é analisar a evolução do resultado primário do setor público consolidado, o qual pode sugerir uma política fiscal frouxa no período recente, uma vez que desde 2015 o governo vem registrando déficits relevantes, em torno de 2% do PIB.

Outra forma de ver a questão, a qual prefiro, é ver como mudou a trajetória das despesas públicas no período. De 1997 a 2014, as despesas primárias da União (que excluem o gasto com os juros da dívida) cresceram, em média, 6,3% ao ano acima da inflação. Em 17 anos, as despesas reais da União quase triplicaram.

De 2015 para cá a trajetória mudou radicalmente. Tomando-se por base as despesas primárias da União corrigidas pela inflação, os gastos em 2017 estão praticamente no mesmo nível de 2014, tendo registrado uma pequena queda de 0,3%. Há, claramente, um esforço de contenção de despesas por parte do governo federal.

É verdade que em períodos anteriores também houve momentos de contenção de gastos, com quedas reais em alguns anos. No entanto, estes sempre foram movimentos temporários, com o controle das despesas em um ano sendo seguido por forte expansão no ano seguinte. Entre 1997 e 2014, em nenhum momento o crescimento real das despesas primárias da União acumulado em três anos (período compatível com a variação 2014-2017) foi inferior a 9,5%.

Os últimos três anos têm configurado o período de política fiscal mais restritiva desde meados dos anos 1990 e, muito provavelmente, desde a Constituição de 1988. Com o teto à expansão dos gastos introduzido pela Emenda Constitucional 95 (que estabeleceu que até 2026 as despesas primárias da União não poderão crescer acima da inflação) é provável que a política fiscal restritiva se prolongue por muitos anos. No entanto, há um consenso de que este teto só será respeitado se for aprovada a reforma da Previdência, além de outras medidas duras de contenção de despesas.

Pode-se criticar o atual modelo de gestão fiscal – seja por basear o ajuste fiscal apenas na contenção de despesas (mas a alternativa seria a elevação de receitas), seja por realizar grande parte do ajuste por meio do corte de investimentos –, mas é inegável que a trajetória anterior de expansão dos gastos era insustentável e que algo precisava ser feito. Mesmo que seja inviável cumprir o teto dos gastos no modelo atual, é essencial que haja um limite para a expansão das despesas que impeça o crescimento ao ritmo anterior, de mais de 6% ao ano acima da inflação.

A mudança na trajetória fiscal provavelmente afeta também a política monetária. É muito provável que a forte expansão dos gastos públicos seja uma das principais razões para os juros reais extraordinariamente altos que caracterizaram o Brasil nas últimas décadas. Ainda que a queda recente da inflação e das taxas reais de juros se deva também a outros fatores, em particular à queda do preço dos alimentos e à elevada ociosidade da economia, é provável que a mudança na trajetória fiscal explique parte deste desempenho. Deste ponto de vista, a manutenção de uma expansão nula, ou mesmo moderada, dos gastos públicos por um período prolongado abriria espaço para uma mudança estrutural da política monetária brasileira, reduzindo a diferença entre as taxas de juros de nosso país e o padrão internacional.

Acredito que a mudança no modelo de gestão fiscal introduzido no País no período recente influenciará de forma decisiva a trajetória do País nos próximos anos. Mesmo que o atual modelo possa ser aperfeiçoado, se houver uma compreensão dos benefícios que uma trajetória de expansão moderada dos gastos pode trazer para a gestão macroeconômica terá sido um grande avanço para a discussão de políticas públicas no País. Tal compreensão ajudaria também a entender por que a reforma da Previdência é tão importante (além de justa, como já discutido em artigos anteriores).

*DIRETOR DO CENTRO DE CIDADANIA FISCAL

Infraestrutura é a bola da vez - RAUL VELLOSO

Correio Braziliense - 03/04


Ano de eleição presidencial é de discussão intensa dos problemas do país, especialmente os de natureza econômica. Nesse particular, destaca-se a mais intensa e mais longa recessão da história, na qual a pergunta básica é se a recuperação que ora se esboça significa que o país de fato se livrou da recessão e começou uma nova fase de crescimento, ou se passa apenas por uma recuperação cíclica.

No texto provocativo que está sendo elaborado para o Fórum Nacional, de 10 e 11 de maio, a ser realizado pelo INAE na sede do BNDES, no Rio, argumentar-se-á que essa recuperação cíclica não se traduzirá em retomada consistente do crescimento, ou do aumento sustentável da taxa de crescimento do PIB per capita caso não sejam atacados dois problemas básicos: desequilíbrio fiscal e baixo crescimento da produtividade.

Na minha coluna de 20 de março, e no bojo da questão fiscal, tratei especificamente da crise financeira estadual, em que se juntaram difíceis questões estruturais e conjunturais, em busca de soluções urgentes, tema que será objeto de intensa discussão no Fórum.

Nesta, chamo a atenção para a necessidade de viabilizar maiores taxas de investimento e, portanto, de crescimento do emprego e da produtividade, além de outras ações voltadas para o aumento desta — cuja discussão não coube nos limites deste artigo. E é exatamente nesse contexto que se destaca o investimento em infraestrutura, pois, diferentemente do que ocorre em outros setores, ele é essencial para garantir um maior aumento da produtividade a longo prazo. Só que, hoje, esse importante sustentáculo da economia está completamente travado.

Para destravar o investimento em infraestrutura, é necessário tomar uma série de ações, em dois grandes grupos: as que levam à melhoria da governança e aquelas que permitem aprimorar o modelo de concessões. A melhoria da governança, por sua vez, requer ações específicas para duas fases distintas do processo de concessão: a de planejamento/seleção de projetos, e a de gestão dos contratos. Já o modelo de concessões precisa ser aprimorado no desenho do processo licitatório e na elaboração de contratos.

O Brasil perdeu a capacidade de planejamento nos últimos governos. Não há um projeto de longo prazo para o país que pense no tipo de infraestrutura que teremos (diferentes modais, interligação entre eles etc.), no papel do setor privado como provedor de infraestrutura ou nos procedimentos para seleção de projetos prioritários.

As consequências da falta de planejamento são várias: indefinição do processo decisório, com sobreposição de atribuições, ou criação de um vácuo, onde não há decisão alguma; seleção de projetos sem análise criteriosa da relação custo/benefício; e deterioração da capacidade técnica dos órgãos responsáveis. Dependendo do governo de plantão, a contribuição do setor privado pode ser bem acolhida, ou pode ser vista como um mal necessário; instabilidade de regras, incluindo edição de leis que podem alterar substancialmente o equilíbrio dos contratos.

No tocante à gestão de contratos, a falta de autonomia das agências reguladoras tem levado à insegurança jurídica e a prejuízos para as concessionárias. Os dirigentes das agências têm se mostrado reticentes em tomar ações que poderiam gerar ganhos de bem-estar para a sociedade, por medo da ação dos órgãos de fiscalização e controle ou por pura incapacidade técnica de avaliar as propostas. O exemplo mais claro de omissão diz respeito à demora para autorizar o reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos.

Quanto ao modelo de concessões, falta, no processo licitatório, apresentar projeto básico bem elaborado, com estudos de viabilidade técnica e econômica (EVTE) e orçamentos de capital (Capex) e operacional (Opex) realistas; criar condições para que a concessão do licenciamento ambiental e as desapropriações ocorram em prazo adequado; dar maior atenção às audiências públicas, uma vez que a opinião daqueles que trabalham na área pode contribuir muito para aprimorar a concessão. O leilão deve ser capaz de selecionar candidatos realmente capazes de implementar o projeto. Daí a necessidade de exigência de qualificação técnica mais rigorosa, bem como exigência do Plano de Negócios, que permitirá à agência reguladora avaliar a exequibilidade das propostas.

Os contratos devem ser elaborados de forma a reduzir a incerteza jurídica e a tornar atraente o investimento para o setor privado. Nesse contexto, é essencial alocar riscos corretamente. Isso implica eximir a concessionária de riscos sobre eventos para os quais ela não tem a menor capacidade de prevenir ou mitigar seus impactos.

Não há flexibilidade para alterar cronograma de investimentos, direitos e obrigações, tendo em vista que se tratam de contratos de longo prazo, e, portanto, com probabilidade elevada de alterações significativas nas condições iniciais ao longo de sua vigência.

No Fórum, serão debatidas soluções para a grande maioria desses problemas.

Que Lula se encontra um grau acima do nível humano é impossível de negar - JOEL PINHEIRO DA FONSECA

FOLHA DE SP - 03/04

O efeito que ele produz nos militantes nos leva a crer que sim


Em 8 de abril de 2005, o então presidente Lula assistiu a uma missa no Vaticano e comungou. Declarou: "sou um homem sem pecados". Ali ele nos dava os primeiros sinais da verdade mística que só se tornaria manifesta neste ano da graça de 2018.

Que ele se encontra, no mínimo, um grau acima do nível meramente humano é impossível de negar. Lembremos de sua declaração em 2016 de que "não tem uma viva alma mais honesta do que eu." Mas será que a figura humana não esconde algo muito mais sublime?

O efeito que ele produz nos militantes nos leva a crer que sim. A professora Elika Takimoto descreveu o impacto de uma ligação telefônica com o ex-presidente: "Daí, meu povo, eu saí de mim. Meu coração acelerou. (...) Chorei como um bezerro (...) Felicidade é pouco. O que sinto não tem nome". Se um simples telefonema faz isso, imagine o contato em carne e osso.

Exegetas bíblicos analisaram com cuidado as palavras de Jesus para concluir que ele era, de fato, Deus. Muito menos esforço é necessário para concluir o mesmo de Lula. "De vez em quando, eu fico pensando que as pessoas tinham de ler mais a Bíblia para não usar tanto meu nome em vão", disse em depoimento à Justiça em 2017, casualmente revelando sua real natureza.

No mesmo ano, no Rio, bradou às massas: "O Lula não é o Lula. O Lula é uma ideia. O Lula é uma ideia assumida por milhões de pessoas. E eles não sabem que o Lula já renasceu em milhões de mulheres e homens". Mas sua divindade só resplandeceu mesmo no antológico discurso em Belo Horizonte já em 2018. "O problema não é o Lula, são os milhões de Lulas." E, por fim, a revelação plena: "Eles estão lidando com um ser humano diferente. Porque eu não sou eu, eu sou a encarnação de um pedacinho de célula de cada um de vocês". Na democracia, Deus é o povo. Lula é Deus. Logo...

Em entrevista a jornalistas em janeiro, declarou: "Eu quero que um dia eles peçam desculpas para mim. Ou peçam desculpas para o povo brasileiro". E lá existe diferença?

A filósofa Márcia Tiburi, que é também teóloga do lulismo, concorda: "Lula continua em seu papel como representante do povo idêntico ao povo", escreveu em artigo na revista Cult. Assim, prendê-lo é inócuo. "A estrela de Lula é maior. Não se apagará de modo algum da história do Brasil, nem do coração das classes humilhadas."

A fé acredita, mas a carne é fraca. Hoje a comunidade fiel teme a prisão do mestre, que segue os passos de Jesus, concorrente que ele inclusive superou, conforme revelou em 2010. "Se eu pudesse dar uma imagem das punhaladas que levei e pudesse tirar a camisa, meu corpo apareceria mais destroçado do que o de Jesus Cristo."

O mundo celebrou neste domingo (1º) a Páscoa, dia que comemora a libertação do povo judeu e, para os cristãos, a ressurreição de Cristo. Os seguidores de Lula enxergam o paralelo. "Hoje é dia de lembrar do barbudo que caiu na delação premiada de Judas e foi condenado sem provas pelos cidadãos de bem", diz o post do Levante Popular da Juventude.

Todos aguardam apreensivos. Preparam romarias. Caso o pior aconteça e a lei dos homens prevaleça, será que o messias também retornará no terceiro dia? Ou será que ele é só um homem comum que foi condenado por crimes e que deve ser punido como qualquer cidadão? Não! Afaste essa blasfêmia de sua mente.

Joel Pinheiro da Fonseca

É economista pelo Insper, mestre em filosofia pela USP e palestrante do movimento liberal brasileiro.

O BNDES em mutação - FABIO GIAMBIAGI

O GLOBO - 03/04


Reflexão representa desafio de dimensões comparáveis ao que a Petrobras encarou com fim do monopólio de petróleo


Quem anda pela Europa deve ter visto as placas de lojas onde está escrito “Existente desde 1785” ou uma frase do gênero. Num mundo em transformação, é importante estar aberto para as novidades. Por outro lado, o cliente tende a considerar que se entra numa loja que existe há 200 anos, dificilmente será mal servido, pois uma empresa que não atendesse bem à sua freguesia não teria condições de apresentar tanta resiliência.

Algo assim ocorre com as instituições. O Banco Central da Inglaterra tem mais credibilidade que o de um país africano que tenha sido colônia durante 400 ou 500 anos, tenha sido governado por um déspota durante 30 ou 40 anos e só agora esteja dando os primeiros passos no aprendizado da democracia.

Em matéria institucional, o Brasil está na “Série B”. Não pertencemos à “terceira divisão” dos países muito jovens e desorganizados, mas estamos longe de nações onde a estabilidade já é rotina, como Suécia, Alemanha etc.

Por sua vez, na teia complexa que é um país, no Brasil temos de tudo, desde instituições que funcionam entre razoavelmente bem e muito bem — Itamaraty, Banco Central, Justiça Eleitoral etc., para citar algumas das mais importantes — até outras com a imagem bastante prejudicada, que é melhor não citar, para não ferir suscetibilidades.

Nesse contexto, o BNDES — onde, devo informar, trabalho há 34 anos — é uma instituição que, em termos de idade, corresponde a um senhor de 66 anos, pois foi fundado em 1952. Teve muito mais sucesso que o Banco Nacional de Habitação (BNH), banco outrora importante que “capotou” nos anos 80. Por outro lado, não há como negar que já esteve melhor do que atualmente diante da opinião pública, tendo sofrido, ao longo dos últimos anos, uma série de questionamentos que afetaram sua imagem como empresa e marca.

Com o passar do tempo, algumas das questões foram sendo esclarecidas ou endereçadas, especialmente desde meados da década. A mudança de gestão do BNDES no atual governo implicou uma reorientação parcial das ações do banco, com a adoção de políticas operacionais mais horizontais; uma parte não desprezível da dívida expressiva mantida com o Tesouro Nacional foi amortizada, processo esse que já foi anunciado que se acentuará em 2018; houve uma adaptação do tamanho das operações à nova situação; aos poucos, alguns dos problemas creditícios foram sendo resolvidos; na prática, muitos dos questionamentos de órgãos de controle acabarão sendo dirimidos pela Justiça em função das diferenças de interpretação e da defesa feita pelo banco acerca da pertinência de suas ações; tivemos duas CPIs sobre o banco que não identificaram nenhum evento que maculasse o padrão ético dos seus funcionários etc. Permanece, porém, a grande pergunta: qual será a função do BNDES no futuro?

Face às novas demandas da sociedade e da economia, o banco está passando por um processo de reflexão estratégica que representa um desafio de dimensões comparáveis ao que a Petrobras encarou quando acabou o monopólio de petróleo. Naquela ocasião, um ciclo se fechava para a empresa, que soube se adaptar bem à situação representada pelo novo ambiente no qual passou a operar. Analogamente, no Brasil da TLP e da convergência de taxas, o BNDES não terá o tipo de atuação do passado. Porém, haverá um papel importante ainda reservado a ele, com alguma similaridade com o que é desempenhado por outros bancos de desenvolvimento em países estáveis, como por exemplo o KfW alemão.

No futuro, as ações do BNDES estarão focadas em algumas áreas. Em primeiro lugar, o apoio à infraestrutura. Em segundo, o financiamento às micro, pequenas e médias empresas (MPMEs) com restrições de acesso ao crédito. Adicionalmente, ele apoiará iniciativas geradoras de impactos positivos para a economia, como o financiamento de investimentos em transformação de modelos de negócios tradicionais, melhora das condições de saúde, sustentabilidade ambiental e apoio à inovação, às exportações e ao desenvolvimento do mercado de capitais. Conservado o nível técnico da sua equipe, com as novas diretrizes, a instituição poderá estar pronta para se inserir no esforço do país para se reerguer da crise nos próximos anos, já superadas as críticas que marcaram a sua atuação no passado recente.

Fabio Giambiagi é economista

Religião, ficção ou realidade? - HELIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 03/04

Um número não desprezível de pessoas acredita na infalibilidade do papa


O papa disse que o inferno não existe.

Há duas formas de tratar a religião. Podemos vê-la como um discurso puramente alegórico —isto é, sem maiores preocupações em retratar o mundo real (como a série “O Mecanismo”). Nesse plano, abrir o mar Vermelho (Êx. 14:21-28), parar o movimento do Sol (Josué 10:12-14) e falar em concepção imaculada, ressurreições e alma não representam um desafio cognitivo.

Eu diria até que essa religiosidade pode ser saudável. Aquilo que se assume desde sempre como ficção raramente dá margem a fundamentalismos e à violência a eles associada. No mais, frequentar igrejas oferece ao fiel a possibilidade de inventar propósitos para a sua vida, além de oportunidades de interação social, o que é bom para a saúde.

O outro modo de encarar a religião é dar crédito às afirmações dos textos sagrados e de sacerdotes e tratá-las como hipóteses testáveis sobre o mundo. Aí, pouco do que dizem para em pé. Afinal, não dá para suspender a rotação da Terra sem arrasar o planeta; seres humanos não se reproduzem por partenogênese; e inexiste modelo físico pelo qual uma alma imaterial possa interagir com um corpo feito de matéria bariônica.

O fiel pode, é claro, escolher ficar com a religião mesmo que ela vá contra a física, a química, a biologia, a estatística. Um número não desprezível de pessoas acredita na infalibilidade do papa e na inerrância das Escrituras. Mas deve ser cognitivamente frustrante viver num mundo em que a ciência entrega seus produtos (antibióticos, fornos de micro-ondas etc.) e a religião se esconde confortavelmente atrás de uma mercadoria que só pode ser despachada quando o comprador já não estiver aqui para assinar o recibo.

Espero que o Vaticano não precise de mais 2.000 anos para concluir que o paraíso e todo aquele papo de salvação eterna são tão simbólicos quanto o inferno, que não existe.

Fantasma sindical - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/04

Por ação e omissão, governo e Congresso elevam incerteza acerca da reforma trabalhista


Na falta de ideias melhores para atrair associados e contribuições voluntárias, sindicatos tentam manter de pé, como uma espécie de zumbi trabalhista, o imposto que os sustentou por décadas —extinto, no ano passado, pela reforma da CLT.

Realizam-se assembleias, com a presença de alguns integrantes das categorias, nas quais se aprova a cobrança do tributo; daí se demanda que as empresas do setor recolham os recursos para as entidades. A estratégia mambembe ganha, agora, o inusitado apoio do Ministério do Trabalho.

Em nota técnica, a pasta, devidamente aparelhada pelo sindicalismo, considerou que tais resoluções coletivas bastam para que os trabalhadores representados sejam obrigados ao pagamento.

É evidente que uma mera nota de ministério não pode sobrepor-se a uma lei aprovada pelo Congresso. E esta não deixa dúvidas: “O desconto da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal”.

Assim estabelece a nova redação do artigo 579 da Consolidação das Leis do Trabalho. Não parece crível que a canhestra tentativa de driblar a norma vá prosperar. Trata-se, de todo modo, de mais uma incerteza a rondar a reforma, em vigor desde novembro.

Outra fonte de dúvidas é o Congresso, que não se mobilizou para votar a medida provisória 808, editada para promover ajustes negociados na legislação.

A base governista resiste em voltar ao tema, em ano eleitoral e sob pressões pela volta do imposto sindical. Nada menos que 967 emendas foram apresentadas à MP, num indicativo dos riscos da votação.

Sem ela, perecerão aperfeiçoamentos destinados a proteger os assalariados —caso da fixação de um período mínimo de 18 meses a ser respeitado entre uma demissão e a recontratação pela modalidade de trabalho intermitente.

Pretende-se, com a regra, evitar que empresas forcem mudanças em massa na condição legal de seus funcionários.

Além de outras normas para coibir a precarização dos empregos, o texto em tramitação contém dispositivo a determinar que a reforma vale também para os contratos que estavam em vigor antes de sua promulgação. Sem essa clareza, as interpretações ficarão a cargo dos juízes trabalhistas.

Já se sabia que o redesenho da septuagenária CLT não se daria sem conflitos e disputas jurídicas. Por ação e omissão, porém, governo e Congresso estão ampliando a margem para contestações. Fica prejudicado, assim, o objetivo maior de facilitar a criação de vagas com carteira assinada.

Em defesa do Estado de Direito - MICHEL TEMER

ESTADÃO - 03/04

Hoje não se aplica mais a letra da lei, disputam-se espaços para saber quem vai ganhar. Perde o País

Há que resistir. Em nome do Estado Democrático de Direito. A Constituição brasileira não mencionou apenas Estado Democrático ou Estado de Direito. São, praticamente, sinônimos. Assim fez para dar ênfase à democracia, às liberdades individuais, à conduta pautada pela rigorosa observância dos ditames jurídicos. Eis a mensagem da nossa Constituição: não pode haver desvio desses princípios fundamentais, sob pena de resvalar no autoritarismo, venha de onde vier.

Essas menções são dirigidas, especialmente, aos órgãos do poder. São eles o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, que o exercem em nome do povo. Note-se: exercem. Não são donos dele. Para exercer é preciso seguir os valores postos na Carta Magna. Dentre esses valores há uns maiores do que outros. Os maiores são aqueles aos quais o constituinte deu maior relevo jurídico. São as chamadas cláusulas pétreas, que não comportam modificação, nem mesmo por emenda à Constituição. Federação, separação de Poderes, voto direto, secreto e universal com valor igual para todos e direitos e garantias individuais são as que devem servir de norte para a interpretação das demais normas constitucionais e para todo o sistema jurídico. Dessas todas, a que mais revela a ideia de Estado Democrático de Direito é a referente aos direitos e garantias individuais, fórmula conectada com a afirmação constitucional de que o Estado deve preservar “a dignidade da pessoa humana”.

Faço essas considerações preliminares para indagar: será que o nosso sistema de atuação governamental atende a esses pressupostos e determinações? Penso que não. Trago à baila o meu caso. E registro: fiz do Brasil um país em forte recuperação econômica, administrativa e institucional. A economia, apenas repetirei, deu um salto imenso, saindo da profunda recessão em que o País estava mergulhado quando assumi o governo. Em outros setores da administração pública, o mesmo sucesso: na educação, na saúde, na agricultura, no meio ambiente, na integração nacional, no turismo e nos esportes. Conquistas e mais conquistas, na economia e na administração. Ainda nesta última, a recuperação das estatais e a absoluta lisura, nelas, da conduta administrativa. Só para exemplificar, veja-se o que aconteceu com a Petrobrás e com o Banco do Brasil, cujos ações e valor patrimonial aumentaram significativamente.

No campo institucional, os Poderes funcionam regularmente, sendo certo que, pela primeira vez, o Executivo governa juntamente com o Legislativo. Este deixou de ser um apêndice do Executivo, para se tornar um parceiro na arte de governar. Daí as conquistas havidas neste governo, que, convenhamos, não é de quatro ou oito anos, mas de menos de dois anos. O Judiciário, de igual maneira, cumpre as suas funções sem nenhuma interferência externa.

Apesar de todas essas afirmações, nem sempre se cumpre a ideia inicialmente posta referente ao Estado Democrático de Direito.

Vamos ao meu caso: gravou-se uma conversa de um empresário no ano passado. Criticou-se o fato porque estava fora da agenda e foi à noite. Devo dizer que, pelo meu hábito pessoal e parlamentar, às vezes são marcadas cinco audiências e eu recebo 20 pessoas ou setores. E tudo isso das 8 da manhã à meia-noite, quase que diariamente. Mas o pior é que se inventou uma frase que teria sido dita na gravação e que dela não consta.

Outro ponto que quero ressaltar é o ocorrido recentemente referente a um decreto que regulamenta a lei cujo objetivo foi modernizar o sistema portuário. Alegou-se que, embora existisse uma centena de empresas alcançadas pelo decreto, eu teria dedicado todo o meu tempo, esforço, meu coração, minha alma e meus gestos administrativos a beneficiar uma única empresa desse setor. Pois bem, essa foi uma das únicas que não se beneficiaram do teor do decreto. Não são palavras. É a certidão do Ministério dos Transportes, depois de feitas as discussões por mais de seis meses que antecederam a edição do decreto, que afirmou: a referida empresa não foi beneficiada em nenhum de seus contratos.

Sentindo que o objeto inicial de inquérito não seria atingido, buscou-se apanhar um fato ocorrido nos idos de 1998, 1999, gerador de inquérito que fora arquivado em 2001 por absoluta falta de provas e por desmentidos feitos nos autos, o qual, depois, ainda voltou a ser arquivado em 2011, em face de uma provocação inadequada de sua abertura. Arquivamento proposto pela Procuradoria-Geral da República e realizado no Supremo Tribunal Federal.

É esse inquérito que querem agora trazer à luz, ao fundamento de que durante 20 anos nos servimos dos supostos benefícios advindos do Porto de Santos. Esquecem-se de que durante muitos desses 20 anos fui oposição ao governo, não podendo desfrutar quaisquer benesses. Benesses que jamais postulei nem procurei, como inúmeras vezes demonstrado.

Para tentar obter provas levam à prisão, para depor, pessoas que estão à disposição para qualquer depoimento. As quais, aliás, já depuseram e, ao fazê-lo, desmentem a tentativa que setores pretendem praticar para incriminar o presidente da República. É uma atitude incompatível com os postulados básicos do Estado Democrático de Direito. Porque hoje não se aplica mais a letra da lei, mas disputam-se espaços para saber quem vai ganhar. Quem perde é o País e, tanto quanto ele, as liberdades individuais. Hoje é o presidente da República, amanhã será outro – e outros.

Por tudo isso, prezado leitor, dirijo-me a todos para dizer que resistirei. Não apenas em função da minha honorabilidade, vilipendiada irresponsavelmente ao longo do tempo, mas, sim, em nome dos meus longos anos de aprendizado democrático e de culto ao Direito nos mais de 30 anos em que dei aulas de Direito Constitucional.

* MICHEL TEMER É PRESIDENTE DA REPÚBLICA

O reino do arbítrio - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 03/04

Sem qualquer pudor, a prisão temporária foi convertida por um ministro do Supremo Tribunal Federal em substitutivo da condução coercitiva

O Estado tem o indeclinável dever de investigar as suspeitas de práticas criminosas. Omissões nessa seara são especialmente danosas, pois deixam a população indefesa, premiam eventuais criminosos e são um estímulo para novos crimes. Como é natural, essa obrigação do poder público deve ser cumprida dentro da lei. Quando a investigação extrapola os limites do Direito, ela se torna uma afronta à sociedade, que fica refém do arbítrio de agentes públicos, o que é tão ou mais grave que a sujeição aos criminosos comuns. O poder estatal fora da lei é de atroz perversidade, já que justamente aquele que deveria proteger os cidadãos torna-se fonte de barbárie.

Não se fala aqui de um perigo remoto. Essa inversão de papéis tem sido vista no País com espantosa frequência, tão habitual que já não provoca reação. Assume-se como coisa normal, o que confere mais gravidade ao assunto. Foi o que se viu na semana passada com as prisões no âmbito da Operação Skala, decretadas com o objetivo de colher o depoimento de pessoas investigadas no inquérito dos Portos.

A pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), expediu 13 mandados de prisão temporária de envolvidos no caso dos Portos. Na operação, foram presos o advogado José Yunes, o presidente da empresa Rodrimar, Antonio Celso Grecco, o ex-ministro da Agricultura Wagner Rossi e o coronel da PM reserva João Batista de Lima Filho.

Dois dias depois de cumpridos os mandados de prisão, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, requereu a revogação da medida, sob o fundamento de que as prisões já tinham cumprido o seu objetivo. Os depoimentos de investigados haviam sido colhidos.

Fossem os tempos menos esquisitos, seria causa de escândalo o fato de um ministro da Suprema Corte dar aval a esse modo de proceder. Sem qualquer pudor, a prisão temporária foi convertida em substitutivo da condução coercitiva.

O Código de Processo Penal define quando o juiz pode obrigar a condução de uma pessoa a um interrogatório. “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”, diz o art. 260 do Decreto-Lei 3.689/1941. A regra não deixa margens a dúvidas nem dá pé a interpretações alternativas. Se o acusado não tiver faltado a um interrogatório, ao qual tenha sido devidamente intimado, o juiz não pode determinar a condução coercitiva. Neste caso, tal medida, como meio primário de obter um depoimento, é manifestamente ilegal.

No âmbito da Operação Skala, foi dado um passo a mais no atropelo da lei. Expediu-se uma medida restritiva de liberdade ainda mais forte que a condução coercitiva – os investigados foram presos – com o objetivo de obter o seu depoimento. Se não era cabível determinar a condução coercitiva, menos ainda podia ser decretada a prisão temporária para mesma finalidade.

O abuso ficou explícito nas palavras do ministro Luís Roberto Barroso, quando rejeitou o requerimento das defesas dos presos. “Quanto aos pedidos de revogação das prisões temporárias, serão apreciados tão logo tenha sido concluída a tomada de depoimentos pelo delegado encarregado e pelos procuradores da República designados, ouvida a senhora procuradora-geral da República”, afirmou o ministro na sexta-feira. A finalidade da prisão era tão somente colher depoimentos.

A necessidade de que as investigações sejam feitas dentro da lei não representa qualquer tolerância com o crime. É antes o oposto. Não há verdadeiro combate ao crime quando as autoridades são coniventes com ilegalidades. A força da lei está justamente no fato de que ela vale para todos, e não apenas para um dos lados. Não está, portanto, na alçada da autoridade suspender a vigência da lei quando lhe apetece. O reino do arbítrio é o oposto da república.