sábado, março 03, 2018

Para além do dinheiro - FERNANDO GABEIRA

O Globo - 03/03

Suprir salário que não satisfaz com o artifício de uma gambiarra como o auxílio-moradia é um equívoco dos juízes federais


Os juízes federais anunciam uma greve no dia 15 de março. De um modo geral, apoio os magistrados e os procuradores na sua luta contra a corrupção.

Conseguiram avançar muito nesse campo. Muito mais do que nós, que tentamos a mesma tarefa na política e acabamos neutralizados pela aliança transpartidária dos bandidos.

Essa história do auxílio-moradia, no entanto, não é facilmente defensável. O auxílio-moradia é definido para os que não têm casa nos lugares para onde são deslocados.

Conheci juízes em Rondônia que viajam quilômetros, fazem audiências em igrejas e dormem em redes. Um dos meus projetos de programa é viajar com eles e mostrar o que acontece num lugar remoto, quando a Justiça chega e começa a funcionar.

Esta menção é apenas para ressaltar o nível de desprendimento e idealismo que encontro em muitos deles, alguns ameaçados de morte.

Compreendo que o salário não satisfaz, não foi aumentado como se prometeu. No entanto, o caminho de supri-lo com o artifício de uma gambiarra é um equívoco.

A sociedade não aceita a insistência que pode colocar em risco a própria luta contra a corrupção, pois abre uma brecha na valiosa qualidade que é a coerência.

O Brasil vive momentos típicos de nossa cultura avessa à precaução. Discutia-se até aqui a reforma da Previdência, até que a segurança pública caiu na nossa cabeça.

Não tenho dúvidas de que, adiante, a Previdência Social cairá também na nossa cabeça. Nesse momento, certamente não só a Justiça e as próprias Forças Armadas como parte do funcionalismo público serão chamadas a colaborar, adaptando-se ao inevitável esforço nacional.

Não há dúvida que existem riscos nesse processo. Um deles é o deslocamento de bons profissionais para a iniciativa privada. Mas o que fazer? O Estado não pode competir com ela, exceto com um salário digno e a recompensa simbólica de estar servindo ao povo brasileiro.

Não acredito na eficácia de uma greve de juízes, embora seja, indiscutivelmente, legal. Na verdade, creio que abre um flanco para os adversários entrarem em cena, pois vivemos num país em que existe um grande esforço mental para justificar a corrupção, seja desqualificando juízes e procuradores, seja através da acrobacia mental dos que tudo perdoam a quem está do mesmo lado.

Não somente Lula, mas muitos intelectuais afirmam que Sergio Moro é um agente dos Estados Unidos incumbido de entregar o nosso petróleo.

Não comento frases de Lula, pois há muito defendi um habeas língua para ele. No entanto, este é um movimento tradicional da esquerda brasileira, o de fugir de seus erros e apontar para um inimigo externo.

Costumo citar um jornal comunista na Bahia que escreveu isso depois de um choque entre manifestantes e polícia, durante a II Guerra: “Zeca Patriota espancado a mando de Truman”.

Um tríplex no Guarujá pode ser tedioso. Mas ganha uma nova dimensão quando banhado à luz da política internacional, como um instrumento de agressão do império.

Infelizmente, a maioria dos políticos teme ou detesta os juízes. Não há uma boa interlocução. No entanto, um desfecho razoável para esse episódio é essencial, não só como problema salarial de uma categoria. Ele tem o potencial de estremecer a forte aliança renovadora inaugurada com a Lava-Jato.

Lucro não é desonra nem pecado - MAÍLSON DA NÓBREGA

REVISTA VEJA

Ele promove a inovação, o investimento e a prosperidade


A partir do século XIX, a revolução científica e o Iluminismo foram decisivos para a prosperidade, ao criarem o ambiente favorável à inovação e ao investimento. Empreendedores podiam assumir riscos e aproveitar oportunidades apoiados na previsibilidade e na segurança jurídica resultantes de instituições que garantiam direitos de propriedade e respeito a contratos.

Douglass North provou que as instituições têm papel essencial no desenvolvimento. Vários pesquisadores ganharam o Prêmio Nobel de Economia por estudos realizados nesse campo, a começar por North, laureado em 1993.

North defendeu sua teoria no livro Institutions, Institutional Change and Economic Performance (1990), um dos mais citados na literatura econômica. Em Understanding the Process of Economic Change (2005), ele assinalou que “as crenças determinam as escolhas dos seres humanos” e os induzem a aprender, a evoluir culturalmente e a contribuir para mudanças institucionais.

No Brasil, novas crenças plasmaram avanços institucionais. Abandonamos ideias equivocadas que legaram atraso econômico, social e político. Por exemplo, nos anos 1980 deixamos de acreditar que a inflação contribui para o desenvolvimento, uma crença que nos levou à hiperinflação. Agora, valorizamos a estabilidade e rejeitamos governos lenientes com a inflação (Dilma que o diga).

Depois, percebemos que o crescimento econômico não é a única via para reduzir a pobreza. O Estado tem papel irrecusável, inclusive no combate às desigualdades. O Bolsa Família e outros programas sociais são fruto da nova realidade.

Hoje, a rejeição à ideia de que a corrupção seria inerente ao sistema político tornou esse flagelo a nossa maior preocupação, segundo o Datafolha. Daí vêm o apoio à Lava-Jato e a quase impossibilidade de sua reversão.

Ainda não surgiu, todavia, a crença que atribui ao lucro papel relevante no desenvolvimento econômico. O Datafolha revelou que 70% dos brasileiros se opõem à privatização. A ojeriza ao lucro privado pode explicar muito dessa rejeição.

Foi na Inglaterra do século XVIII que a atividade econômica deixou de ser vista como desprezível e desonrosa, como era comum na Idade Média. A aceitação do lucro foi a consequência natural da mudança. Vários pensadores elaboraram teorias nessa área, mas poucos se igualam ao escocês Adam Smith em sua obra A Riqueza das Nações (1776).

Smith sustentou que o lucro é a base do aumento da riqueza. Na opinião de Yuval Harari, autor de Sapiens (2014), essa foi “uma das ideias mais revolucionárias na história humana”. O comércio e a indústria floresceram. Uma inédita prosperidade surgiu onde vicejou o sistema capitalista.

Essa mudança mental é crucial para que possamos materializar o imenso potencial do Brasil. Há que educar os brasileiros, desde muito cedo, a não demonizar o lucro. Quando disso a maioria se convencer, crescerá o apoio a reformas, à competição e à privatização. Seremos um país mais próspero.


"Bala perdida" - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

Uma dessas coisas que só existem no Brasil, como a mula sem cabeça e o adicional de moradia que os juízes recebem para viver na própria casa, é a “bala perdida”. No resto do mundo as armas de fogo nunca disparam sozinhas; se uma bala acerta alguém, é porque um ser humano deu um tiro, de propósito ou por acidente. Aqui não. Toda hora uma pistola ou fuzil abrem fogo, mas ninguém atira. O fato é que nas favelas do Rio de Janeiro e suas vizinhanças a bala perdida se tornou hoje a principal culpada por homicídios de autoria desconhecida. Mas não seriam os criminosos locais que estariam dando esses tiros que matam cada vez mais gente, sobretudo crianças? É uma hipótese que parece não ocorrer nunca no noticiário, e muito menos em qualquer avaliação da Ordem dos Advogados do Brasil, da Anistia Internacional, dos partidos de “esquerda” e outras entidades que se empenham em defender os direitos da população pobre dos morros — no momento ameaçada, segundo elas, pela presença de tropas do Exército nas ruas da cidade. Pelo que dá para entender daquilo que dizem, não há realmente bandidos matando gente nas favelas. Quem mata é “a polícia” ou, então, a bala perdida.

Eis aí uma maneira muito eficaz de esconder quem são os verdadeiros responsáveis pelo massacre em câmera lenta que os moradores mais pobres do Rio de Janeiro estão sofrendo há anos. Se eles são assassinados pela bala perdida, então ninguém é culpado, certo? Afinal de contas, não dá para dizer que a PM mata todo mundo; também ficaria chato dizer que há quadrilhas em guerra, pois isso poderia “criminalizar a pobreza” e reforçar “preconceitos” contra as “comunidades” que cobrem os morros cariocas. Assim, quando os bandidos trocam tiros de AK-47, que podem acertar uma pessoa a 1,5 quilômetro de distância, e acabam matando alguém que não conseguiu se esconder, como é comum acontecer com bebês e crianças pequenas, o assassino é a bala perdida. Pronto — problema resolvido. Todo mundo já pode voltar ao palanque para continuar pregando que o inimigo do pobre é a polícia, agora também o Exército e, se bobear, o juiz Sergio Moro e os desembargadores do TRF4, de Porto Alegre. Pensar desse jeito parece loucura — e é mesmo loucura. Mas, quando se veem as coisas com um pouco mais de atenção, dá para perceber muito bem que existe um método nessa loucura.

A “bala perdida” vem da mesma matriz onde se fabrica a linguagem politicamente correta, no Brasil de hoje, para tratar da questão do crime. Tome cuidado: utilizar um vocabulário diferente pode fazer de você um “fascista”, “direitista”, “golpista”, a favor da “ditadura militar” e sabe-se lá quantos pecados mais. Nessa linguagem o criminoso é sempre descrito como “suspeito”, mesmo que seja pego em flagrante assaltando alguém no meio da rua. Quando a polícia atira contra aqueles que estão de arma na mão em público, ou atirando contra ela, os delinquentes nunca são chamados de bandidos — são “rapazes”, “moradores” ou “pessoas”. Por exemplo: “A PM atirou ontem contra um grupo de rapazes no Complexo da Maré”. Nunca acontecem tiroteios entre quadrilhas de marginais; são “disputas entre facções”. Estão em vigor, também, regras bem claras para estabelecer diferenças morais entre militares e criminosos quando ambos praticam um mesmo ato; basicamente, para quem não quer correr o risco de parecer um extremista de direita, o mais seguro é dizer que a conduta dos militares é do mal e a dos bandidos é do bem, ou neutra.

Quando delinquentes armados invadem uma casa da favela, obrigando seus moradores a escondê-los da polícia durante tanto tempo quanto quiserem, os defensores dos direitos da “comunidade” não abrem a boca. Também não dizem nada quando cidadãos inocentes são forçados a ocultar armas ou drogas em sua residência. Quando o Exército faz uma revista domiciliar, a coisa muda: aí é uma violência contra a privacidade da população. Há grande preocupação da Ordem dos Advogados etc. com o fato de que os militares pedem e fotografam documentos de identidade, na tentativa de localizar foragidos da Justiça. Os bandidos sabem mais sobre os moradores dos morros do que o Exército, a polícia e a Justiça jamais saberão; sabem seus nomes e sobrenomes, endereço, ocupação, família, quanto dinheiro têm, quando devem pagar pela eletricidade, gás ou televisão a cabo, e mais tudo o que queiram saber. Não há lembrança de que isso tenha causado algum dia qualquer protesto por parte dos seus protetores nas classes intelectuais.

É “assim mesmo”, dizem eles — como a bala perdida.


Muito a mostrar - JOÃO DOMINGOS

ESTADÃO - 03/03

A pergunta que fica: conseguirá o candidato do governo vencer a guerra da comunicação?


O candidato do governo à Presidência da República terá o que mostrar na campanha eleitoral: taxas de juros que despencaram, inflação abaixo do piso da meta, País fora da recessão, retomada do emprego, embora de forma ainda tímida, crescimento de 1% do PIB em 2017, depois de dois anos em queda forte, com expectativa de avanço de 3% esse ano, e recuperação da Petrobrás, tanto em valor quanto em credibilidade.

Sem falar na decisão do presidente Michel Temer que levou à intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro, apoiada por ampla maioria da população, conforme pesquisas já feitas. Tão apoiada que transformará a questão do combate à criminalidade num dos principais motes da campanha eleitoral.

O PT e os partidos a ele aliados por certo continuarão a dizer que o programa ultraliberal de Temer não poderia ter sido aplicado, pois ele foi eleito na mesma chapa de Dilma Rousseff. E, na campanha, não se falou em nenhum momento que o governo tentaria privatizar boa parte de suas estatais nem que faria uma reforma trabalhista ou o controle dos gastos públicos por intermédio de uma emenda constitucional. São argumentos políticos e continuarão a sê-lo. Porque a realidade os supera. Em menos de dois anos Temer tirou o País do rumo do caos econômico deixado por Dilma Rousseff e o pôs para andar.

Tudo isso, no entanto, não é garantia de que o presidente Temer fará o sucessor. Seja ele mesmo, se decidir concorrer à Presidência, embora diga que não o fará, seja outro nome. E por que um governo que tem tanta bandeira a levantar não tem a garantia da continuidade? Certamente existem respostas objetivas e subjetivas ainda não conhecidas. Mas é possível fazer, agora, alguns exercícios sobre as que estão mais à vista.

Em primeiro lugar, o governo de Temer nunca ganhou a batalha da comunicação. Com isso, virou moda rejeitá-lo. Ao mesmo tempo, porém, ninguém se anima a ocupar as ruas para pedir a saída de Temer do governo. O que leva à seguinte especulação: falar mal dele parece ser o suficiente. Afinal, está fazendo alguma coisa. E mesmo quando os petistas, que controlam os setores mais mobilizados, prometem fazer um escarcéu, como prometeram no dia do julgamento do ex-presidente Lula, em Porto Alegre, conseguiram reunir 70 mil pessoas. Isso, na conta dos organizadores. E essa conta, não é segredo para ninguém, costuma ser duplicada, triplicada.

Se o governo de Temer nunca ganhou a batalha da comunicação, conseguirá o candidato a presidente do governo vencer essa barreira? Esse é o desafio que está à frente do próprio Temer, do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, e do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Um deles poderá ser o candidato governista, encarregado de defender o legado de Temer, como o próprio Temer costuma dizer. O outro candidato de centro, o governador Geraldo Alckmin, terá dificuldades para conquistar o apoio da maioria dos partidos governistas. Além do mais, enfrenta problemas dentro de seu próprio partido, o PSDB, e dificuldades em montar palanques em Estados fundamentais para suas pretensões, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Pernambuco.

Partido Novo. Recebi de integrantes do Partido Novo reclamações por não ter citado a legenda na coluna de sábado passado, na qual me referi à falta de um projeto de Nação por parte dos candidatos à Presidência conhecidos até agora. Adotei, como critério para as citações, os nomes com melhores porcentuais obtidos até agora nas pesquisas eleitorais e número de representantes na Câmara dos Deputados. João Amoêdo, candidato a presidente, está com 1% e seu partido não tem nenhum deputado. Mas a militância do Novo é valente na defesa de suas ideias.

Ambientalistas de aquário, investimentos e geração de emprego - JULIO GAVINHO

GAZETA DO POVO - PR - 03/03

Vivemos há muitos anos o dilema fundamentalista que opõe o crescimento econômico à preservação ambiental. Esta discussão é vazia e temerária

Aprendi com meu amigo Irineu Guimarães, o dínamo imobiliário do Ceará, que o Piauí recuperou seus 66 quilômetros de belas praias por um jamegão de dom Pedro II. O Ceará se fez de bobo por uns 300 anos, tungando do vizinho o acesso ao mar. A praia de Luís Corrêa, nesta nesga beira-mar do Piauí, é das mais belas do Brasil, com seus recifes coloridos, dunas e um vento preguiçoso que acalma o relógio. Tanto é acalmado o relógio que o desenvolvimento turístico ainda não chegou até lá.

Inúmeros peixes ornamentais nunca viram um rio ou um dos sete mares. Foram paridos e (se sobreviveram ao apetite dos pais) cresceram dentro de um aquário. Assim como vários outros animais de cativeiro, os peixes de aquário não conhecem predadores ou outro alimento a não ser aquele pó estranho que espalhamos sobre a água dos belos aquários que temos em casa. Claro que existem exceções, como aqueles que comem larvas ou as divertidas pítons domésticas que comem pequenos roedores. Mas o fato é: nenhum deles sabe como é a vida real. Assim como os nossos ambientalistas de aquário.

Não há preservação sem ocupação: o que há no lugar da ocupação é a invasão

Passei minhas férias no Ceará, assim como os últimos feriados, fins de semana, etc. Eu e minha família simplesmente amamos o Ceará, suas praias e cenários, mas principalmente amamos o cearense e sua cultura. Eu sempre quis desenvolver um resort no litoral cearense. No Marriott, no Hyatt e nos últimos anos da minha dura vida empresarial. Sempre esbarrei em questões ambientais que, de uma forma ou de outra, diminuíram meu apetite e daqueles que me financiavam. Fazendo uma conta de padeiro (excelentes matemáticos, por sinal), o meu desejo seria de um resort de cerca de 500 apartamentos e entre 500 e 1 mil empregos diretos. Seriam cerca de R$ 350 milhões em investimentos apenas no hotel. Seriam... seriam... seriam.Todos os centavos espantados pelo fantasma da incerteza de licenças ambientais.

Eu advogo pelo desenvolvimento, pelo emprego e pelo crescimento da economia através da iniciativa privada. Não advogo pelas dunas nem pelo mico-leão-dourado. Tem muita gente fazendo isso, do escritório, das estações ambientais e do sofá da sua casa mesmo. Embora eu entenda que ambos devam ser preservados, vivemos há muitos anos o dilema fundamentalista que opõe o crescimento econômico à preservação ambiental. Esta discussão é vazia e temerária, pois não há preservação sem ocupação: o que há no lugar da ocupação é a invasão, como atestam as encostas do Rio de Janeiro, o entorno da Lagoa da Conceição e quase toda a reserva de Mata Atlântica remanescente, abandonada pelos ambientalistas de cativeiro.

Durante meus 15 dias no litoral cearense pude observar, estarrecido, o fluxo de caminhonetes de luxo disputando rachas sobre as dunas. Também vi hordas de bugres com turistas, voando baixo nas dunas, com emoção. Até esqui puxado por caminhonetes eu vi, coroando o vácuo entre o entendimento burocrático da restrição/preservação e a humilhação do argumento oficial, real, prático, enterrado na areia.

Eu não toco o “samba do incorporador doido”, como diria o Stanislaw Ponte Preta. Mas demando uma visão prática sobre projetos turístico-imobiliários em um logradouro público dito turístico, como o Brasil.

Julio Gavinho é executivo da área de hotelaria, fundador da doispontozero Hotéis, criador da marca ZiiHotel, sócio e diretor da MTD Hospitality.

Tentação - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 03/03

Governo deve evitar o erro de buscar estímulo efêmero ao consumo


Pela primeira vez desde a terrível recessão de 2014-16, há boas notícias para o Orçamento do governo.

Os resultados recém-divulgados do Tesouro Nacional em janeiro mostram expressiva melhora em relação aos de um ano antes. É verdade que houve ajuda de recursos atípicos, decorrentes de programa de parcelamento de dívidas com o fisco; de todo modo, a arrecadação está em clara recuperação desde o final do ano passado.

Devido à alta da receita e à entrada em vigor do teto constitucional para as despesas, o déficit das contas federais encerrou 2017 bem menor do que se antecipava. Foram R$ 118,4 bilhões (sem contar encargos com a dívida), para uma meta de R$ 159 bilhões.

Não por acaso, a maior parte dos analistas calcula que a mesma meta possa ser cumprida neste 2018 com folga —de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões, de acordo com as projeções mais consensuais.

Embora se trate de alívio bem-vindo, a situação impõe um dilema perigoso em ano eleitoral.

Está posta a chance concreta de buscar resultados mais ambiciosos para as contas do Tesouro; a outra opção é aproveitar as margens legais e promover uma considerável expansão dos gastos.

A segunda possibilidade está contemplada no Orçamento deste ano —que autoriza desembolsos de R$ 1,37 trilhão, em alta de 3% acima da inflação. Essa elevação só é possível porque em 2017 os dispêndios ficaram abaixo do teto.

Dadas as carências em tantos setores da política pública, é compreensível que se deseje aproveitar a oportunidade para o incremento de verbas. Não se viola, afinal, o programa de ajuste das finanças federais, de natureza gradualista.

Entretanto há o fato inescapável de que todo aumento de despesa implica, de imediato, aumento da já exorbitante dívida pública. A arrecadação tributária, embora avance, está longe do suficiente para bancar os pagamentos de pessoal, custeio e investimentos.

Tudo considerado, importará a qualidade das escolhas do governo Michel Temer (MDB).

Uma coisa será retomar, por exemplo, investimentos urgentes em infraestrutura; outra, indefensável, é ceder à tentação de usar o gasto estatal para um estímulo efêmero ao consumo e à atividade econômica —marca, aliás, das duas últimas eleições presidenciais.


Eleitores e bananas - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 03/03

Durante um mês, veremos a democracia representativa ser enxovalhada à luz do dia, sem qualquer pudor

O deputado cassado Eduardo Cunha está preso desde outubro de 2016, cumprindo pena por corrupção, mas seu “legado” como presidente da Câmara ainda se faz sentir. Foi ele o principal artífice da minirreforma política que permitirá aos atuais deputados federais trocarem de partido no período entre 7 de março e 7 de abril, sem nenhum tipo de punição.

Pode-se dizer que a tal emenda constitucional foi feita à imagem e semelhança de seu articulador. Aprovada em fevereiro de 2016, a medida permite que políticos eleitos pelo sistema proporcional possam mudar de partido no último ano de mandato, dentro de um período estipulado de 30 dias. Ou seja, abriu-se uma janela de oportunidade para que esses políticos possam perseguir de maneira explícita seus interesses pessoais, sem qualquer consideração pelo eleitor que o elegeu seu representante.

A troca de partido é feita de acordo com estratégias eleitoreiras. O parlamentar terá a chance de se juntar àquelas legendas que lhe ofereçam melhores condições de conquistar um novo mandato. Não há nada nessa negociação que se aproxime, nem remotamente, de alguma afinidade ideológica ou programática. Tudo o que importa – tanto para o político que está em busca de dinheiro e viabilidade eleitoral como para o partido que pretende engordar sua bancada prometendo a políticos de outros partidos um bom palanque e razoável financiamento – é melhorar as chances de vitória nas urnas. Essa vitória garante, para os partidos, as desejadas fatias do Fundo Partidário e do novo Fundo Eleitoral, dinheiro que alimentará essa engrenagem eleitoreira, criando uma espécie de moto-contínuo.

Tudo isso abastarda a representação parlamentar e partidária. Em nenhum momento desse arranjo se leva em conta o eleitor ou as instituições democráticas. A emenda aprovada sob a batuta de Eduardo Cunha cria um monstro constitucional. Conforme a Constituição (artigo 14, parágrafo 3.º, inciso V), uma das condições de elegibilidade é “filiação partidária”. Logo, quando um eleitor escolhe um candidato em eleição proporcional, está votando antes de mais nada em sua legenda, sem a qual o político nem poderia se candidatar. Foi isso o que entenderam tanto o Tribunal Superior Eleitoral como o Supremo Tribunal Federal em diversas decisões a respeito do tema desde 2008.

Segundo essas decisões, o político só poderia reivindicar o mandato ao mudar de partido se invocasse uma das seguintes causas, consideradas justas: a incorporação ou fusão de partidos, a criação de novo partido, a mudança substancial ou desvio reiterado do programa partidário e grave discriminação pessoal. Mas, com a emenda constitucional legada por Eduardo Cunha e seus sequazes, feita sob medida para quem não nutre senão uma relação utilitária com a democracia, tudo ficou mais simples para os políticos “infiéis”.

Assim, a partir da segunda semana de março, o País assistirá estupefato e impotente ao pornográfico “troca-troca partidário”. Durante um mês, veremos a democracia representativa ser enxovalhada à luz do dia, sem qualquer pudor. Conforme constatou reportagem do Estado, há até uma tabela de valores prometidos pelos partidos a parlamentares que se dispuserem a integrar seus quadros e, assim, aumentar sua participação nos fundos públicos destinados à atividade partidária, cujo porcentual é proporcional ao tamanho da bancada.

O MDB, por exemplo, promete repassar a cada deputado R$ 1,5 milhão para a campanha. Os senadores em busca de reeleição terão R$ 2 milhões. Legendas como PP, PR e PTB, segundo se diz, topam dar R$ 2,5 milhões para os deputados que vestirem suas camisas.

Com o veto às doações empresariais, tornou-se explícita a incapacidade da maioria dos atuais partidos de convencer seus eleitores a financiar suas campanhas, sobretudo porque grande parte dessas legendas não representa senão os interesses de seus donos. Na falta de criatividade e de compromisso cidadão, resta transformar o Congresso em feira livre, em que eleitores são tratados como bananas.


O marketing acadêmico das disciplinas sobre o golpe de 2016 - DEMÉTRIO MAGNOLI

FOLHA DE SP - 03/03

Na era Lula, acadêmicos eram militantes partidários. Agora, eles ingressam no ofício de marqueteiros

A campanha presidencial simulada de Lula dissolveu a delgada película que ainda separava o pensamento acadêmico do imperativo partidário. O ácido foi derramado pelo professor da UnB Luis Felipe Miguel, que criou uma disciplina intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.

Uma reclamação imprópria do ministro da Educação serviu como pretexto para que dezenas de colegas emulassem o gesto de vandalismo intelectual, ofertando disciplinas idênticas em departamentos da USP, Unicamp, UFBA, Ufam e outras. Na “era Lula”, acostumamo-nos com a redução de acadêmicos a militantes partidários. Agora, assistimos ao ingresso deles no ofício de marqueteiros.

O vaga-lume ativa e desativa a bioluminescência segundo suas necessidades biológicas. O PT acende e apaga o sinal de “golpe” de acordo com as circunstâncias políticas. O luminoso foi ativado para reagrupar a militância, na hora do colapso dilmista, mas desativado pouco depois, quando o PT anunciou a retomada das alianças eleitorais com os partidos “golpistas” (o MDB e as siglas do “centrão”). Hoje, pressiona-se novamente o interruptor para denunciar o veto legal à candidatura de Lula. A ciência política tem algo a dizer sobre as funções desempenhadas pela narrativa do golpe. Já os acadêmicos que a reproduzem, aplicando-lhe um verniz de discurso científico, depredam a instituição na qual trabalham.

Na UFBA, a disciplina decola no golpe do Estado Novo, transita pelo golpe de 1964 e aterrissa no “golpe de 2016”, que abriria uma etapa de “autoritarismo”. As leis de exceção, a proibição de partidos, a cassação de parlamentares, as prisões políticas, a tortura, a censura, a repressão a manifestações —nada disso aparece no “golpe de 2016”, que obedeceu à letra da Constituição e procedeu segundo regras ditadas pelo STF. Por qual motivo, além da fidelidade ao partido, a disciplina não contempla o “golpe de 1992” (ou seja, o processo de impeachment contra Collor)?

“O discurso da ‘imparcialidade’ é muitas vezes brandido para inibir qualquer interpelação crítica do mundo”, alegou constrangedoramente Felipe Miguel em defesa de sua obra de marketing fantasiada de disciplina acadêmica. Ocorre que a noção de “imparcialidade”, tão cara ao direito, é estranha à investigação científica. O discurso científico distingue-se do discurso político-ideológico por rejeitar o finalismo: no campo da ciência, é proibido fabricar uma conclusão prévia da qual escorrem as “provas”. A disciplina dos neomarqueteiros não peca por “parcialidade”, mas por violar o método científico.

A prevalência da esquerda nas faculdades de humanidades nem sempre conduziu à dissolução do método científico. Os professores socialistas ou comunistas do passado separavam sua militância partidária de seu trabalho acadêmico, pois acreditavam que a transformação social não seria produzida por eles, mas por uma revolução dos “de baixo”. A ascensão do PT coincidiu com o descrédito da ideia revolucionária —eabriu caminho para o vale tudo intelectual.

Na confusa ideologia original petista, o socialismo nasceria “por cima”, pela construção de uma hegemonia social da esquerda, não da anacrônica insurreição proletária. A missão exigiria a produção de um direito, uma história, uma sociologia, uma antropologia “dos oprimidos”. Na mente dos quadros acadêmicos petistas, a fronteira entre discurso científico e discurso ideológico aparecia como uma conservadora exigência de “imparcialidade” destinada a proteger “as elites”.

Os professores que se entregam ao marketing lulista pertencem à geração de estudantes universitários do “PT das origens”. Tirando os mais ingênuos, eles já desistiram do objetivo socialista, contentando-se hoje com uma migalha: o sucesso eleitoral do partido. O golpe do “golpe de 2016” —eis o título para uma disciplina útil.

Demétrio Magnoli - É doutor em geografia humana e especialista em política internacional.

O momento exige ações incomuns - JOÃO LUIZ MAUAD

O GLOBO - 03/03
Os militares estão trabalhando para tentar ajudar os próprios cidadãos das comunidades, que são os mais prejudicados e diariamente aviltados pelos traficantes

A OAB-RJ e a Defensoria Pública do estado resolveram pedir explicações ao general Braga Netto sobre as identificações de moradores que vêm sendo realizadas por militares em diversas comunidades do Rio de Janeiro, desde a decretação da intervenção federal. Nas abordagens, acompanhadas de perto pela imprensa, os militares enviam número da identidade e foto das pessoas, através de um aplicativo de celular, para um setor de inteligência, que avaliava eventual existência da anotação criminal.

Segundo consta, aquelas instituições estão preocupadas com eventuais abusos em relação a direitos civis. Algumas organizações de direitos humanos, por outro lado, afirmam que essas abordagens violam dispositivos constitucionais, pois retiram do cidadão o direito à liberdade e à intimidade. Seria uma preocupação bastante louvável, se não cheirasse a oportunismo ideológico.

Há cerca de um par de meses, um amigo foi abordado por uma blitz da Polícia Militar de forma bastante ríspida. Policiais de fuzil em punho mandaram-no sair do veículo a fim de revistá-lo. Uma varredura também foi realizada no carro. Tudo isso sem nenhum motivo aparente, já que a documentação apresentada estava em dia.

Blitzes semelhantes, embora sem tanta agressividade, são realizadas diuturnamente nas ruas das grandes cidades brasileiras, sem que quase ninguém reclame, pois a motivação, pelo menos aparente, é a segurança dos próprios cidadãos.

Da mesma forma, inúmeros prédios públicos e comerciais exigem não apenas identificação, como tiram fotografias de todos os visitantes. Meu nome, identidade e foto já estão no cadastro de diversos desses prédios, sem que eu jamais tenha visto nisso um abuso contra meus direitos civis. Simplesmente, sempre enxerguei nessas iniciativas uma forma de zelo pela minha própria segurança.

O mesmo ocorre em praticamente todos os aeroportos do planeta, onde, além da identificação de praxe de cada passageiro, a entrada nas aeronaves só é permitida depois de uma verificação das bagagens de mão e do próprio passageiro, através de aparelhos de raios X. Nos Estados Unidos, o cuidado é tanto que, ao invés dos raios X, todos os passageiros são literalmente escaneados, quando não revistados manualmente. É desagradável? Sim, mas as pessoas se submetem porque sabem que tudo aquilo é feito para resguardar a sua segurança.

O cidadão de bem morador da favela com certeza irá compreender e colaborar. Ninguém gosta de ser abordado, mas o momento exige ações incomuns. Os militares estão trabalhando para tentar ajudar os próprios cidadãos daquelas comunidades, que são os mais prejudicados e diariamente aviltados pelos traficantes.

Nada contra o fato de se manter estrita vigilância para evitar exageros, principalmente porque as ações militares estão focadas em localidades onde os cidadãos são mais vulneráveis e, no mais das vezes, não têm meios de defender-se de eventuais abusos. Porém, até onde se sabe, os soldados do Exército têm agido com cautela e respeito. Logo, pelo menos por enquanto, não há que se falar de abusos, nem tampouco acusar as Forças Armadas de usurpação da liberdade e da intimidade.

Preocupações perfeitamente legítimas com direitos individuais sagrados não podem transformar-se em cortina de fumaça para esconder a real intenção de certos valentes: o boicote político-ideológico à intervenção federal, não por acaso apoiada por mais de 70% da população fluminense, reféns do crime organizado e de falsos defensores do povo faz tempo.

João Luiz Mauad é administrador e diretor do Instituto Liberal

Por que Maduro ainda não caiu? - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 03/03

De acordo com alguns modelos da ciência política, isso já deveria ter ocorrido


Os sinais de que o regime chavista fracassou não poderiam ser mais evidentes. Estão presentes em tudo, dos indicadores macroeconômicos em colapso, às prateleiras vazias dos supermercados, e encontram expressão visceral no aumento da desnutrição e na regressão epidemiológica por que passa o país. Quando pais abandonam seus filhos em orfanatos na esperança de que lá sejam alimentados, sabemos que algo deu muito errado.

Por que então a população não se rebelou e pôs o ditador para correr?

De acordo com alguns modelos da ciência política, isso já deveria ter ocorrido. Muitas das autocracias contemporâneas só sobrevivem porque conseguem entregar alguma prosperidade à população, que, num barganha tácita, deixa de questionar a falta de liberdade política ou mesmo a repressão. É o caso da Rússia de Putin, da Turquia de Erdogan e até da China do Partido Comunista. Foi também, durante algum tempo, a situação da Venezuela sob Hugo Chávez.

Hoje, porém, não há mais traço da prosperidade; ao contrário, a vida dos venezuelanos tornou-se um inferno, mas o governo ainda resiste. Ao que tudo indica, o regime, que capturou as instituições e tem o apoio de setores minoritários da população e do aparato militar, encontrou um ponto de equilíbrio de baixo desempenho, sob o qual a maioria dos venezuelanos que quer se livrar de Maduro não consegue coordenar suas ações para obter esse resultado.

O que está faltando para romper o ciclo é alguma faísca que deflagre a sincronização, isto é, que sirva de senha para que as pessoas-chavesque ainda sustentam o governo, mas sabem que não há futuro com Maduro, possam desertar em bloco.

Ela pode assumir formas inesperadas. Na Romênia dos Ceausescus foi o despejo do padre László Tökés; na Tunísia da Primavera Árabe, a autoimolação do vendedor de fruta Mohamed Bouazizi. Vamos aguardar o gatilho venezuelano.

A economia em busca de um crescimento equilibrado - EDITORIAL O GLOBO

O GLOBO - 03/03
Crescimento do ano passado marca o fim da maior recessão da história, mas a retomada é lenta e ainda são necessárias condições para que os investimentos retornem com força

O 1% do crescimento do PIB no ano passado, calculado pelo IBGE, é modesto, mas tem a especial importância de significar o fechamento do ciclo da recessão, a maior já registrada no país, do biênio 2015/16. A retração da economia em mais de 7%, com 14 milhões de desempregados, é o legado da aplicação de políticas nacional-populistas em Lula II e Dilma.

Um ano de virtual estagnação, 2014, e dois em que o PIB encolheu 3,5% em cada um, significaram um mergulho profundo, e por isso a retomada tem sido lenta e desigual. Se o grande destaque na economia brasileira nos últimos tempos, a agropecuária, for retirado dos cálculos, a expansão de 1% encolhe para 0,3%, destaca em entrevista ao GLOBO a economista Sílvia Matos, do Ibre/FGV.

Todos os sinais, porém, são positivos, inclusive as condições macroeconômicas — inflação baixa e juros também. Assim, firma-se como bastante provável a previsão para este ano de um crescimento na faixa dos 3%. Mas, retornar ao nível do PIB de 2014, marco zero desta recessão, só em 2020, e se tudo correr bem.

Neste processo de retomada, a indústria estagnou no ano passado, e a construção civil se manteve em queda livre — já retrocedeu por 15 trimestres, ou 45 meses, mais de três anos e meio. O crescimento ainda precisa ser mais bem distribuído. Foi tamanho o tranco levado pela economia brasileira pela política de gastos sem controle, na vã tentativa de se manter e elevar a expansão do PIB, que os investimentos desabaram. Vieram a desaceleração de 2014 e a recessão dos dois anos seguintes. Pressões inflacionárias — devido ao crescente desequilíbrio fiscal — e a consequente perda de confiança na política econômica postergaram investimentos.

Os economistas consideram a taxa ideal de investimentos entre 20% e 25% do PIB. Em 2017, ao cair pelo quarto ano consecutivo, o índice ficou em 15,6%, o mais baixo desde 1996. É certo que, a se manter a recuperação, o que deve acontecer, os investimentos voltarão com alguma intensidade.

Já há movimentos nesta direção. Entre outubro e dezembro do ano passado, eles cresceram 2% em relação aos três meses anteriores, puxando a produção de máquinas e equipamentos. Há, também, gastos de empresas em melhorias tecnológicas, para avanços na produtividade. Mas aumentar a capacidade de produção ainda levará algum tempo. Antes disso, a capacidade ociosa criada pela recessão precisa ser preenchida.

Um fator-chave para os investimentos voltarem com força é a confiança. Como projetos de investimentos são de longo prazo, é crucial que, por meio da reforma da Previdência, seja dado um horizonte para o Tesouro recuperar a solvência. Não se pode menosprezar o efeito da retomada do PIB na arrecadação. Mas a tendência estrutural da Previdência a elevar os gastos com aposentadorias e outros benefícios é muito forte. Esta reforma está à espera do novo governo.

A reconstrução do Brasil - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 03/03

As quase três décadas da Constituição de 1988 devem ser ocasião para uma reflexão madura sobre a sua aplicação, pondo freio às aventuras realizadas em seu nome


A Constituição de 1988 tem 250 artigos e já sofreu 99 emendas. Por sua vez, a Constituição dos EUA, que tem 7 artigos, recebeu apenas 27 emendas ao longo de 230 anos. A comparação foi feita pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e professor de Direito da USP Eros Grau, durante o primeiro Fórum Estadão – A Reconstrução do Brasil. Também participaram do debate sobre a Constituição o professor de Direito da FGV-RJ Joaquim Falcão e o ex-presidente do STF Nelson Jobim.

No debate, foram discutidas algumas consequências da excessiva amplidão da Constituição de 1988. Como exemplo, Joaquim Falcão mencionou o fato de a Carta Magna ter 32 artigos relativos ao funcionalismo público e apenas 1 referente ao trabalhador privado. Com isso, o funcionário público tem 16 vezes mais chances de levar suas demandas para julgamento pelo STF em comparação com o trabalhador do setor privado. “Os funcionários públicos constitucionalizaram todas as suas pretensões durante a Constituinte”, disse Falcão.

“Precisamos fazer uma lipoaspiração na Constituição”, disse Jobim. Para ele, o excesso de regras constitucionais dificulta a governabilidade, alimentando o presidencialismo de coalizão, que torna o Poder Executivo refém do Congresso e abre caminho para a corrupção. Sendo a Constituição muito ampla, com frequência o governo precisa fazer emendas constitucionais, o que requer maioria de três quintos no Congresso.

Nelson Jobim lembrou que as dificuldades para compor a maioria durante a Assembleia Constituinte levaram à redação ambígua de muitos artigos, já que assim era mais fácil obter a sua aprovação. No entanto, essa solução, que apenas adiou o problema, foi ocasião para que o Judiciário fizesse interpretações muito além do conteúdo aprovado em 1988.

O debate possibilitou evidenciar, uma vez mais, que os principais problemas da Constituição de 1988 não são decorrência apenas das deficiências do seu texto. Eles deixaram claro que o Poder Judiciário vem aplicando mal a Constituição, com criações interpretativas que não têm fundamento no texto votado pela Constituinte.

Joaquim Falcão lembrou que o cumprimento da Carta Magna é tarefa dos Três Poderes, não apenas do Judiciário. “O poder moderador não é o Supremo”, disse. “O Legislativo interpreta a Constituição para fazer suas leis e o Executivo interpreta a Constituição ao regulá-la através das agências. A Constituição é sua aplicação.” Ou seja, o STF não é o proprietário da Constituição.

Eros Grau avaliou que “o STF se transformou num grande espetáculo televisivo”, em contraste com o que se vê em outros países. O professor do Largo São Francisco citou como exemplo a França, onde os integrantes da Corte constitucional não desfrutam de qualquer protagonismo perante a opinião pública.

“O Supremo tem que ser um órgão plenário, e não um órgão de soma de vontades e conflitos individuais, como está acontecendo”, disse Nelson Jobim. Ele defendeu que o Judiciário deve apenas aplicar a lei. “Ele não pode ser o elemento arbitrador dos interesses da sociedade”, afirmou.

Como comentou Joaquim Falcão, integrantes do Supremo têm desrespeitado o processo decisório, descumprindo, por exemplo, o prazo para a devolução das vistas de um processo. Tais descuidos procedimentais têm graves consequências. Com isso, decisões liminares, que são monocráticas, ganham uma perenidade que não deveriam ter, aumentando, fora da lei, o poder discricionário de cada ministro. É o caso das liminares do ministro Luiz Fux concedendo auxílio-moradia a juízes e procuradores. Poucas vezes se viu tamanho prejuízo aos cofres públicos por força de uma única canetada. A atuação de integrantes do STF fora dos cânones regimentais, tardando o fim do processo, também alimenta a imprevisibilidade. O Supremo, que deveria ser a segurança da lei, passa a ser, assim, causa de insegurança jurídica.

As quase três décadas da Constituição de 1988 devem ser ocasião para uma reflexão madura sobre a sua aplicação, pondo freio às aventuras realizadas em seu nome. Por ser fundamento do Estado Democrático de Direito, ela impõe que o poder estatal seja sempre exercido com responsabilidade e controle. É, por isso, que a última palavra deve ser sempre dela.