REVISTA VEJA
Que história é essa? Quer dizer que no Brasil de hoje os tribunais mais elevados do Poder Judiciário podem optar por aplicar ou não aplicar a lei? Pelo que estão dizendo por aí, é isso mesmo. O Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça e o Tribunal Superior Eleitoral têm diante de si, ao longo do futuro próximo, precisamente essa tarefa prodigiosa. Vão ver se, no caso da condenação do ex-presidente Lula, a lei que está em vigor vale ou não vale. É uma das marcas mais triunfantes do nosso subdesenvolvimento. Trata-se de um hábito comum tanto aos mais civilizados cérebros da Escola Fernando Henrique de Pensamento quanto aos bate-paus da CUT que fecham estradas para fazer política: segundo essa maneira de ver a vida, aplicar a lei pode “criar problema”. Dependendo da hora, do caso, do grão-duque que se enrolou com a Justiça etc., a execução da lei, “assim ao pé da letra”, talvez não seja o ideal. É possível que “a cura seja pior que a doença” — enfim, por aí vai rolando esse tipo de filosofia rasteira à venda em loja de contrabandista paraguaio, onde não existe nada de legal no estoque.
No momento, a discussão levada aos nossos tribunais é algo realmente capaz de encher de orgulho a atual “Corte Suprema” da Venezuela, ou os conselheiros jurídicos do cacique Cunhambebe: defende-se, abertamente, a ideia de que a autoridade pública “não deve” executar a sentença que condenou a doze anos de prisão, por corrupção e lavagem de dinheiro, o ex-presidente Lula. Mas por que não, Deus do céu? Sua sentença original foi confirmada, e ampliada, por 3 a 0 no TRF4, o tribunal superior para o qual o réu apelou. Não há mais fatos a discutir. As provas contra Lula foram julgadas perfeitas, após seis meses e meio de estudo pelos três desembargadores do TRF4. Seus cúmplices e corruptores confessaram os crimes e receberam pesadas penas de prisão por isso. Todos os direitos da defesa foram plenamente exercidos. Sobram ainda alguns recursos formais, de decisão rápida — e, depois de resolvidos, a única coisa a fazer é executar a sentença. Com Lula, porém, não está sendo assim. Aplicar a lei, no caso, poderia “não fazer bem ao Brasil”, segundo alegam o PT e o restante do “Complexo Lula”: juristas militantes, políticos que têm medo de dizer que são contra Lula (o alto PSDB é uma de suas tocas mais notórias), grandes comunicadores, o sistema CUT-MST-UNE-MTST, artistas de televisão, intelectuais, o movimento LGBT, e por aí vamos.
Resultado: cobra-se, agora, que os tribunais façam ao ex-presidente a gentileza de “rever” a lei que permite a prisão de réus condenados em segunda instância. É esse, justamente, o dispositivo legal que levou o TRF4 a ordenar a execução imediata da sentença, depois de serem cumpridas as disposições de praxe ainda restantes. “Rever” por quê? É uma decisão absolutamente legal; na verdade, o TRF não teria o direito de deixar tudo por isso mesmo, depois de confirmar a condenação de Lula por 3 a 0. Cobra-se que seja “revista”, também, a Lei da Ficha Limpa, que está aí desde 2010, foi aprovada em cima de 1,6 milhão de assinaturas dos eleitores e proíbe a candidatura de condenados como o ex-presidente. Nesse caso, temos algo realmente fabuloso: o Partido dos Trabalhadores brasileiros, mais um monte de gente de alta reputação, pedindo na prática uma Lei da Ficha Suja. Nada pode funcionar desse jeito.
Todo mundo tem o direito, é claro, de não gostar da sentença, ou de achar que ela foi injusta — assim como há, igualzinho, o direito de gostar da decisão e achar que foi justíssima. E daí? A Justiça não é um instituto de pesquisas; ela não pode funcionar, em nenhum lugar onde há seres humanos, pela votação do público, ou pelo que se “percebe” que é o “sentimento da maioria”, etc. Se a sentença foi limpa, ela tem de ser executada, ponto-final — e a sentença que condenou Lula é uma das mais limpas da história do Judiciário brasileiro. Mas o nome “mais bem colocado nas pesquisas” não estará na “lista de candidatos”, exclama o círculo do ex-presidente. E daí? O que uma “pesquisa” tem a ver com a execução da lei? Haverá “convulsão social”, ameaçam o PT e um ministro do próprio STF. Que convulsão? Quais as provas disso? Não há nem haverá nenhuma convulsão. O ex-presidente Alberto Fujimori, do Peru, ficou preso durante doze anos e foi solto apenas em dezembro último. Jorge Videla, da Argentina, condenado a prisão perpétua, morreu no cárcere. O que há de tão especial com Lula? Presidente na prisão nunca acabou com país algum.
REVISTA VEJA
Existe bom projeto para criar o necessário IVA nacional
Não é tarefa fácil mudar um sistema tributário, mas o Brasil dispõe de proposta para modernizar o seu e aumentar a produtividade. É a melhor entre as que já li e analisei. Ela foi preparada por experientes especialistas do Centro de Cidadania Fiscal. O projeto pretende reformar a tributação do consumo e está disponível no endereço www.ccif.com.br.
A proposta responde ao desafio de resgatar princípios da reforma de 1965, quando introduzimos, antes de muitos países desenvolvidos, a forma de tributação do consumo em que o imposto é cobrado pelo método do valor agregado (IVA) pioneiramente adotado na França (1954). Só que o IVA brasileiro nasceu defeituoso.
O objetivo dos franceses foi assegurar a neutralidade na tributação do consumo, evitando distorção dos preços. Antes do IVA, o imposto incidia sobre ele mesmo, em cascata, incorporando-se ao valor do bem ou serviço em cada etapa. Não se podia calcular o seu custo ao longo da cadeia produtiva. Era impossível desonerar as exportações.
Já o IVA incide apenas sobre o valor agregado em cada etapa. Por exemplo, se o preço ao consumidor for 100 reais e a alíquota for 15%, a soma de todos os valores cobrados será 15 reais. Não há mais o efeito cascata.
Com o IVA, as empresas produzem o que fazem de melhor, adquirindo de fornecedores o restante. A produtividade, o crescimento, o emprego e a renda se expandem. As exportações são desoneradas.
Na União Europeia, o IVA é obrigatório aos seus 28 membros, com regras harmonizadas. O imposto vigora hoje em mais de 150 países. A exceção são os Estados Unidos, onde o imposto é cobrado apenas na venda final ao consumidor, evitando a cascata.
A reforma brasileira de 1965 revogou a confusa tributação do consumo, cobrada em cadeia nas três esferas de governo. Os ganhos de produtividade contribuíram para o forte crescimento da economia nos anos seguintes.
O defeito de origem comprometeu o nosso IVA, que foi dividido em IPI (federal), ICM, depois ICMS (estadual), e ISS (municipal), esse último em cascata. Os estados não podiam alterar alíquotas e bases de cálculo. O Confaz cuidava da harmonização.
A situação piorou com a nova Constituição. O ICMS é agora regido por 27 legislações, incontáveis alíquotas e confusos regimes. São setenta mudanças por semana. O Simples tornou-se necessário a pequenas e médias empresas, mas reintroduziu a cascata. Regredimos décadas.
O Brasil e a Índia são dos poucos a ter estados legislando sobre esse tipo de imposto. A Índia acaba de aprovar um modelo coordenado de IVA nacional, o que pode aumentar o PIB potencial em 2 pontos porcentuais por ano.
Tal mudança teria efeito semelhante no Brasil. Quem se opõe a uma reforma desse tipo diz que ela fere a autonomia estadual, esquecendo que o IVA nacional é a forma de tributação do consumo em federações relevantes. É hora de ousarmos, substituindo todos os disfuncionais e falidos impostos sobre consumo por um eficiente IVA nacional.
FOLHA DE SP - 02/02
O DATAFOLHA confirma que os brasileiros não estavam tão otimistas com as perspectivas da economia fazia três anos. Nesta quinta (1º), soube-se ainda que a indústria cresceu mais do que o previsto em dezembro passado, que a venda de automóveis continuou a aumentar em janeiro, que a venda de caminhões ressuscita e que a confiança dos empresários é a maior em três anos e meio.
Dada a ruína que ainda é fácil e doloroso observar nas ruas e nas estatísticas, ainda há quem se insulte com o comentário a respeito da reanimação dos brasileiros, captada em todas as pesquisas.
Por que então interessa notar o fenômeno da confiança em alta casada com a recuperação, nanoscópica mas disseminada agora por quase toda a economia?
Porque essa consonância de ânimos e notícias melhores é novidade, coisa que não se via desde o início da década. Porque essa ainda discreta, mas provavelmente crescente, melhora de ânimos deve ter efeitos políticos. Porque a economia fora do coma muda um pouco os termos do debate do que é necessário mexer na política econômica.
Antes de mais nada, observe-se que, no caso dos números do Datafolha, o sentimento dos brasileiros quanto a desemprego, inflação e poder de compra dos salários ainda é parecido com o de meados de 2014. Trata-se de nível de confiança muito maior que o registrado durante o desastre de 2015 a 2017, mas não é lá grande coisa, embora algo se mova.
Em meados de 2014, último ano de Dilma 1, os brasileiros sentiam os efeitos do começo da recessão. A confiança no futuro da economia vinha na verdade em baixa desde o junho de 2013.
A diferença, agora, neste começo de 2018, é que a confiança vem crescendo e é corroborada pelos primeiros efeitos visíveis da recuperação econômica, evidente desde fins do ano passado. Visíveis com lupa, mas visíveis.
Sim, o crescimento da indústria, de 2,5% no ano passado, nem de longe compensa a destruição das fábricas desde 2014. A produção industrial no final de 2017 ainda era quase 15% menor do que no final de 2013. Isso é destruição de bombardeios de guerra.
A taxa de desemprego é ainda quase o dobro da registrada em 2014. Se tudo der certo, não vai chegar a um nível aceitável antes de 2021 ou 2022.
O aumento real médio dos salários neste ano não deve ser grande coisa, pois em 2017 a renda do trabalho se beneficiou especialmente da queda grande e inesperada da inflação. Neste ano, a inflação deve subir um tico, e os reajustes nominais serão menores. O aumento da renda total do trabalho vai vir do crescimento do número de pessoas empregadas. De resto, dificilmente o mercado de trabalho será menos precário do que em 2016, por exemplo: não deve haver criação de empregos formais suficientes para compensar os danos.
Portanto, trata-se uma recuperação em meio a ruínas. Como em filmes do pós-Segunda Guerra, vê-se a vida voltar ao normal em cidades de prédios destruídos por bombas e o povo sujeito a racionamento de comida.
Dado que a situação econômica é muito frágil e o governo do Brasil está quebrado, há o risco de choques externos ou tumulto político colocarem tudo a perder. Mas, por ora, é preciso pensar a vida no pós-guerra. Tende a ser diferente.
O Estado de S.Paulo - 02/02
Neste Brasil ainda jovem, mas já de cabelos brancos, quase 15% da população tem 60 anos ou mais. A idade avança e novos desafios se impõem.
Um desses desafios é o do tratamento à saúde de uma população de coroas. Com mais anos de vida vêm também mais registros de algumas doenças, como a de Alzheimer, mal de Parkinson, diversos tipos de câncer, acidente vascular cerebral (AVC), diabetes, catarata, etc. É cada vez maior o impacto dessa longa lista de patologias sobre os sistemas público e privado de saúde.
No sistema público, as consequências são mais evidentes, uma vez que o sistema enfrenta males já crônicos, como a falta de leitos para internação; equipes médicas insuficientes; e filas enormes à espera de atendimento.
Quanto ao sistema suplementar é preciso mais atenção para identificar as mazelas que estão ali, e devem piorar. A sobrecarga do sistema público ajuda a aumentar a demanda por planos de saúde, mas o acesso a eles continua complicado, em consequência das mensalidades elevadas, especialmente à terceira idade. Em 2017, o item Plano e seguro de saúde foi o que mais influenciou, com 0,27 ponto porcentual, o avanço de 3,80% do IPC-3i, indicador da FGV que mede a inflação dos idosos.
Os números mais recentes da Agência Nacional de Saúde (ANS) são de 2015, mas dão boa ideia do que acontece. Para quem tinha 59 anos ou mais e estava associado a um plano individual, a média das mensalidades era de R$ 972,22. No plano coletivo empresarial, o valor caía para R$ 685,71, mas ainda era 250% mais alto do que o mesmo plano para quem tivesse entre 29 e 33 anos (R$ 195,55).
A FenaSaúde, associação que representa 18 operadoras de planos de saúde no País, não vacila nas justificativas: os altos custos com tratamentos e procedimentos justificam as altas contribuições. Os números da ANS mostram, por exemplo, que o custo médio de internação por paciente de 54 a 58 anos é de R$ 4.173,81. A partir dos 59 anos, a despesa sobe para R$ 5.850,30.
Para equilibrar as contas e não repassar todas as despesas para os associados, as operadoras adotam o conceito do mutualismo, o princípio de que a contribuição dos mais jovens ajuda a custear os procedimentos médicos de um cliente de 60 anos ou mais.
E aí vem mais um dos males silenciosos de que sofre o sistema suplementar. Há 18 anos, como aponta a FenaSaúde, para cada beneficiário com 60 anos ou mais havia três entre 0 e 19 anos. Hoje, para cada idoso, há 1,9 jovem.
Para atender aos interesses da FenaSaúde, a presidente Solange Beatriz Palheiro Mendes prega a mudança de modelo de pagamento dos serviços médico-hospitalares pelos planos de saúde que hoje é feito a cada atendimento, exame, cirurgia e medicamentos aplicados: “Temos de adotar pagamento por pacotes de tratamento”.
A baixa oferta de planos individuais é outra barreira ao acesso ao tratamento de saúde dos idosos. Mais de 70% das mensalidades ativas correspondem a planos de saúde coletivos, que atendem funcionários de uma mesma empresa ou grupos de uma categoria profissional.
Para a advogada e pesquisadora Ana Navarrete, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a baixa oferta de planos individuais afasta as pessoas acima dos 60 anos, uma vez que poucas se mantêm no mercado de trabalho.
O Idec também identificou entre alguns dos planos de saúde procedimentos que considera discriminatórios aos clientes idosos, como entrevistas qualificadas e exames médicos prévios na contratação do plano exclusivos às faixas etárias mais altas.
Enfim, também por isso, vai ficando mais difícil envelhecer.
FOLHA DE SP - 02/02
Lula foi condenado sem provas; petistas só protestam porque a vítima é ele
Deve-se fugir de um clichê como o diabo da cruz (ops!), a menos que nada haja de mais preciso. Ao se referir aos Bourbons, Talleyrand definiu os petistas: "Não aprenderam nada; não esqueceram nada". Lula é hoje vítima da concepção de mundo de seu próprio partido. Trecho de um artigo de André Singer publicado nesta Folha, não me deixou de queixo caído: "Olhemos para o julgamento do TRF-4 do ângulo das consequências políticas e eleitorais que traz, deixando a controvérsia jurídica a cargo de quem dela entende".
Porca miséria! Então Lula é condenado sem provas, e sou eu =o pai dos termos petralha, esquerdopata e Babalorixá de Banânia= a apontar as múltiplas trapaças técnicas do julgamento!? Já o petista Singer afirma ser essa uma questão menor? Não! Ele não é um covarde. Ele é um petista.
Eleição sem Lula é ilegítima, gritam os companheiros, porque Lula representa milhões. A lógica: a um político irrelevante, tolera-se um homicídio; a um grande líder, um morticínio. Entendo. Stálin não se fez apenas da vontade de matar, mas também da lassidão moral de acólitos. Aquele pequeno trecho de Singer sintetiza quase 200 anos de crimes em nome de um novo mundo.
Julgamento do ex-presidente Lula
Há dias, Lula recomendou que o partido construísse alternativas a seu nome. Segundo o Datafolha, 27% dos entrevistados votariam em quem ele indicasse. Outros 17% poderiam fazê-lo. Isso bastaria, dado o quadro, para pôr um ungido seu no segundo turno. A propósito: sem o ex-presidente, o partido se retira da peleja? Caso dispute e vença, o eleito carregará a mácula da ilegitimidade?
O que explica a estupidez? Resposta: o desprezo às regras da democracia e ao Estado de Direito. Se o MPF apresentou ou não as provas, pouco importa. Ainda que o tivesse feito, os companheiros estariam proclamando a ilegitimidade da disputa do mesmo modo. Ao petismo, são irrelevantes as questões de direito. Só valem as questões de fato na exata medida em que servem ou não para fortalecer o partido. Em sua história, o PT tanto destruiu a reputação de gente séria como ajudou a lavar a biografia de larápios.
Essa gente é incapaz de enxergar na hipertrofia do MPF e do Judiciário uma ameaça à democracia, que, por consequência, atinge também Lula e o PT. Se e quando tocam na questão democrática, os petistas o fazem para proteger o partido e seu líder. Tudo o que fere os interesses da legenda feriria também a democracia, mas nem tudo o que agride a democracia ofende a legenda. Controvérsia jurídica, afinal, remete à organização do Estado democrático, às instituições, à ordem =instâncias que o petismo sempre viu como fases ou obstáculos a serem superados.
Lula foi condenado sem provas. Os petistas só protestam porque a vítima é o ex-presidente. Tanto é assim que seus autointitulados intelectuais, artistas e pensadores continuam a pedir a cabeça de adversários aos mesmos verdugos que condenaram seu líder à guilhotina, o que legitima os Robespierres de meia-tigela e terninho preto, aliados da legenda no assalto essencial ao Estado. Nesta quinta, membros do Ministério Público e juízes protestavam em frente ao STF contra a reforma da Previdência.
Mais de uma vez já me vi tentado a escrever: Lula merece o que está aí; é ele o grande artífice da maior máquina de destruir reputações jamais criada no país. Mas não consigo. Vejo o que o PT não vê: um indivíduo condenado sem provas condena sem provas todos os indivíduos. Por isso entro, sim, na controvérsia jurídica.
Ao escrever "Lula foi condenado sem provas", chego ao estado da arte do meu antipetismo. Ao escrever "isso é coisa de especialistas", Singer atinge o petismo como ideia.
De volta à terra: a única arma que pode livrar o ex-presidente da cadeia é a jurídica. A menos que o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) tenha uma ideia melhor...
FOLHA DE SP - 02/02
"Estou recebendo por força da decisão do Supremo e da resolução do CNJ. Não tenho opinião, disse Humberto Martins", ministro do Superior Tribunal de Justiça, sobre o auxílio-moradia pago a ele todos os meses, mesmo sendo dono de um apartamento a 15 minutos de seu gabinete em Brasília.
Boa parte da cúpula do Judiciário prefere o silêncio no debate sobre o benefício. A presidente do STJ, Laurita Vaz, nem quis comentar o assunto. Dos 26 ministros que têm imóveis na capital e recebem a ajuda de R$ 4.378, só dois responderam aos questionamentos dos repórteres Camila Mattoso e Ranier Bragon sobre o tema.
A omissão é sinal de que o auxílio se transformou, em alguns casos, em um privilégio injustificável.
A Lei Orgânica da Magistratura de 1979 previa o pagamento do benefício "exceto nas capitais". O objetivo principal era cobrir os aluguéis dos juízes enviados ao interior.
Em 1986, a legislação mudou para estender o auxílio às outras cidades. "Nas capitais, existe imenso deficit habitacional e, por isso mesmo, os aluguéis são caríssimos", dizia o relatório da Câmara. Os parlamentares decidiram que os cofres públicos deveriam bancar esse valor.
O Judiciário agiu nos anos seguintes para disciplinar o benefício pago a seus próprios integrantes. O STF chegou a proibir o pagamento a juízes auxiliares que tivessem imóvel próprio no Distrito Federal.
Quando deu a canetada que liberou o auxílio para todos os juízes do país, o ministro Luiz Fux afirmou que "não podem existir castas no Poder Judiciário" e que a demarcação de critérios criava uma "diferenciação iníqua e odiosa" entre magistrados.
Desvirtuado, o auxílio-moradia se tornou um bônus salarial disfarçado para categorias específicas e consumiu R$ 5 bilhões no Judiciário e no Ministério Público. No momento em que o país discute o combate aos privilégios e rejeita os políticos, esses juízes deveriam reconhecer suas regalias e dar o exemplo a ser seguido.
O ESTADÃO - 02/02
O Judiciário, que combate a corrupção alheia, não pode brigar por privilégio ilegítimo
A abertura do Ano Judiciário de 2018, ontem, no Supremo, virou um ato de desagravo à Justiça, que está na berlinda com a Lava Jato e é atacada sem cerimônia pelo PT e pelo próprio ex-presidente Lula desde que ele foi condenado pelo juiz Sérgio Moro e depois pelo TRF-4 .
Em discurso, a presidente do Supremo, Cármen Lúcia, declarou que é “inadmissível e inaceitável desacatar a Justiça”. Em seguida, a procuradora-geral Raquel Dodge lembrou singelamente o óbvio, que as decisões judiciais “devem ser cumpridas”. E o presidente da OAB, Claudio Lamachia, condenou tentativa de “constranger e influenciar” a Justiça.
Tudo isso no dia seguinte a um encontro de entidades de juízes, magistrados e procuradores que criticaram duramente os ataques à Justiça, em referência às vezes indireta, às vezes mesmo direta, à declaração de Lula de que não respeitaria a decisão do TRF-4, à nota do PT classificando essa decisão de “farsa judicial” e às barbaridades que senadores como Gleisi Hoffmann e Lindbergh Farias andam falando.
Houve também uma defesa em cadeia ao entendimento do Supremo de que condenados em segunda instância, caso de Lula, já podem ser presos. Cármen Lúcia abriu a fila, ao anunciar publicamente que não poria em pauta a revisão dessa questão. Na quarta, as entidades do Judiciário foram na mesma linha. Na quinta, Dodge ratificou. Fecha-se o cerco.
A defesa às decisões do Judiciário, uma constante de Cármen Lúcia, está sendo neste momento um recado duro para o PT e para Lula, mas não custa lembrar que não são só eles, muito pelo contrário, os alvos da Lava Jato. Os demais partidos talvez sejam mais discretos, ou tenham mais prurido, ou ajam mais institucionalmente nas críticas, mas eles também não morrem de amores por essa “nova” Justiça que parte para cima, incisivamente, decisivamente, dos poderosos de colarinho branco e dos crimes de corrupção.
Mas... os mesmos juízes, desembargadores e procuradores, que têm não apenas o direito, mas também o dever de defender o Judiciário, não estão sabendo lidar com uma outra face da moeda. Eles têm de reagir à altura aos ataques às decisões de juízes e tribunais, mas não devem permitir que o corporativismo comprometa os méritos, avanços e louros do Judiciário.
Na mesma reunião em que falaram grosso contra os ataques do PT, as entidades de juízes e procuradores bateram o martelo a favor de um manifesto exigindo a manutenção dos privilégios de suas categorias. Colocaram-se contra a reforma da Previdência para, por exemplo, manter os salários e os índices de reajuste salarial mesmo depois de aposentados.
Pior: insistem no auxílio-moradia indiscriminado, mesmo para quem sempre morou no mesmo lugar e mesmo para juízes como Marcelo Bretas, do Rio, que são casados com juízas e acumulam dois auxílios-moradia para morar numa só casa. Não é nada, não é nada, são R$ 8.400 mensais cobrados do meu, do seu, do nosso e daquele rico dinheirinho da parte da população que mais sofre com crises e déficits.
Daí porque Cármen Lúcia foi dura ao reagir aos ataques do PT e de Lula, mas também mandou um recado claríssimo ao corporativismo do Judiciário no seu discurso de ontem: “A nós, servidores públicos, o acatamento irrestrito à lei impõe-se como dever acima de qualquer outro. Constitui mau exemplo para o cidadão. E o mau exemplo contamina e compromete”.
A Justiça que combate a corrupção alheia deve ter vergonha de dar “mau exemplo”. Estourar o teto constitucional (R$ 33.700) para ganhar o dobro, ou mais, à custa de auxílios-moradia ilegítimos e coisas assim é um péssimo exemplo. Ainda mais numa hora dessas.
O GLOBO - 02/02
Poderia ter pago as obras até em dez vezes, numa cortesia do Léo Pinheiro, e vendido o tríplex com grande lucro
‘Bom dia, chefe. Temos um probleminha com o apartamento do Guarujá. O GLOBO deu na primeira pagina, dizendo que a OAS está reformando o apartamento para vocês.
— Mas que filhos da puta! Querem me ferrar, né, Okamotto? Mas vão se dar mal. Vamos dar uma nota dizendo que o apartamento foi comprado pela Marisa na planta e que eu vou pagar pelas reformas. Quanto vai ser essa porra? Quinhentos mil, um milhão? Ora, isso eu pago com três palestras e dou uma banana para O GLOBO. Vê lá com o Léo Pinheiro quanto vai sair a obra. Vamos pagar essa merda e acabar com essa história.
— Boa ideia, chefe. O pessoal do Léo queria te dar de presente, e pode até parecer uma indelicadeza recusar, mas é mais seguro pagar as obras e evitar aborrecimentos para todo mundo. Ele vai entender.
— Então manda pagar logo essa merda. Mas não conta para a Marisa porque ela vai ficar puta. Ela acha que é presente do Léo, vai achar que é desprestígio meu. Sabe como é a Marisa. Depois eu explico para ela.
Poderia ter pago a reforma até em dez vezes, numa cortesia do Léo Pinheiro. E depois poderia vender o tríplex valorizado com grande lucro. Só que não. Nunca o barato saiu tão caro.
A essas alturas, Lula já tinha um patrimônio de mais de R$ 10 milhões, construído com seus salários presidenciais e suas palestras de R$ 300 mil, com nota fiscal e impostos pagos, tudo nos conformes.
— Chefe, como é que vamos fazer com o sítio de Atibaia?
— Pô, japa, não enche o saco. Deixa em nome do Jonas e do Bittar e pronto, eles são de confiança total. E as obras são assunto da Marisa e do Bumlai.
— Mas, chefe, por que não botar em seu nome depois das obras? Fica tudo legalizado. É menos de um milhão, uma merreca para o seu patrimônio, você tem recursos para comprar dez sítios como esse.
— Ah é? Já imaginou o carnaval que vão fazer? Vão dizer que eu estou milionário. O sítio hollywoodiano do Lula vai sair na “Caras”. Vai pegar muito mal com o PT. E o que é que eu vou dizer para os pobres? Nem pensar. Deixa em nome dos meninos, e vamos economizar essa graninha das obras... hehe.
O resto é história.
ESTADÃO - 02/02
O fundamento para o respeito às decisões judiciais não é a autoridade do magistrado. A decisão se fundamenta na lei, votada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo
Na sessão solene de abertura do Ano Judiciário de 2018, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, fez uma enfática defesa do Poder Judiciário: “Pode-se ser favorável ou desfavorável à decisão judicial pela qual se aplica o direito. Pode-se buscar reformá-la, pelos meios legais e nos juízos competentes. O que é inadmissível e inaceitável é desacatar a Justiça, agravá-la ou agredi-la”.
Na defesa do Judiciário, a ministra recorreu a Ruy Barbosa para lembrar a importância do respeito à lei. “Não há civilização nacional enquanto o direito não assume a forma imperativa, traduzindo-se em lei. A lei é, pois, a divisória entre a moral e a barbárie”, disse ela, citando o Águia de Haia.
A presidente do STF não mencionou, no entanto, que é o Poder Judiciário que, com frequência crescente, descumpre as leis, criando-as à revelia do Congresso, instituição moldada para legislar. Foi o que mostrou o professor Conrado Hübner Mendes, no artigo STF, vanguarda ilusionista, publicado no jornal Folha de S.Paulo, onde expôs as mazelas da Justiça brasileira, em especial da Suprema Corte.
As decisões da Justiça devem ser respeitadas. Mas é igualmente certo que, em primeiro lugar, quem deve respeitar a lei é o juiz. O fundamento para o respeito às decisões judiciais não é a autoridade do magistrado, como se sua voz tivesse um valor especial por si só. A decisão da Justiça tem seu fundamento na lei, votada pelo Legislativo e sancionada pelo Executivo.
A ministra Cármen Lúcia disse que “o Judiciário aplica a Constituição e a lei”. Ele deve aplicar a Constituição e a lei, mas, nos tempos atuais, não é isso o que se tem visto. Tanto é assim que, no mesmo dia em que a presidente do STF abriu o Ano Judiciário de 2018, o ministro Luís Roberto Barroso, em claro desrespeito às competências previstas na Constituição, manteve a suspensão parcial do indulto de Natal do presidente Michel Temer. Barroso repetia o equívoco cometido pela própria ministra Cármen Lúcia, ao conceder uma liminar sobre o caso durante o período de recesso.
Tem razão a ministra Cármen Lúcia ao recordar que todos os cidadãos devem respeitar as decisões judiciais. Mas é fundamental que o Poder Judiciário respeite, além das leis, o cidadão que entrega seu destino, nos planos pessoal e social, ao aparelho judicial. E muitas vezes essa confiança não vem sendo correspondida. Tem se visto uma contínua invasão de competências, com excessivo protagonismo judicial, como se a lei nascesse da cabeça do magistrado. Quando os juízes não aplicam a lei, há um claro desrespeito ao cidadão e ao País.
A agressão à República que ocorre quando não é a lei que rege a vida nacional, mas a cabeça de cada juiz, é ainda mais grave quando praticada pelo próprio STF. Nesse caso, a população fica absolutamente indefesa, sem ter a quem recorrer. O problema é real e vem causando enorme dano ao País. Há mais de três anos, por exemplo, o ministro Luiz Fux concedeu liminares estendendo o auxílio-moradia a todos os desembargadores e juízes do País, além dos procuradores do Ministério Público da União e promotores dos Ministérios Públicos estaduais. A decisão monocrática de Fux, que até hoje não foi julgada pelo plenário do STF, custa, apenas à União, mais de R$ 430 milhões por ano. Tal privilégio, além de imoral, é especialmente danoso aos cofres públicos. E sobre tais abusos as mais altas autoridades da Justiça não se fazem ouvir.
Em diversas ocasiões, o Judiciário tem sido o primeiro a legislar e a determinar políticas públicas. Levanta-se como o grande moralizador do País. Mas não se vê essa disposição em relação aos assuntos de sua seara. A Justiça continua tarda e falha, entra década, sai década, e não se vê nos mais elevados juizados a disposição para solucionar este que é um gravíssimo defeito seu, embora sobre energia para interferir no campo alheio.
“Façamos com que 2018 seja tempo de superação em nossa dificultosa história de adiantes e retornos, para que fases mais tristes sejam apenas memórias de dias de tormenta passada”, disse a presidente do STF. É cristalina a necessidade de abreviar essa “dificultosa história de adiantes e retornos”. Por isso mesmo não cabe à Justiça ignorar que, nos últimos tempos, tem contribuído para muitos retrocessos.
Devemos, sim, todos os brasileiros, respeitar a Justiça – e esperar, na mesma medida, que ela respeite cada um do povo.