segunda-feira, janeiro 29, 2018

Sexo no blockchain - LUIZ FELIPE PONDÉ

FOLHA DE SP - 29/01

O tema assédio está na moda. Entre os extremos, a vida segue seu curso, às vezes, dando a impressão de que poderá se tornar irrespirável em algum momento.

Num lado extremo dessa realidade das relações sexuais, homens violentos (ou mulheres violentas, em bastante menor número) que tornam a vida no trabalho ou nos espaços de lazer um inferno para suas vítimas. No outro extremo, o sentimento de risco (real) que muitos homens sentem de que a simples demonstração de desejo por uma mulher poderá ser tachada de assédio.

Ou, pior, de que, mesmo tendo tido seu consentimento, ela poderá, posteriormente, dizer que o "retirou", ou que o cara mentiu sobre ela ter dado o consentimento, ou que a entendeu errado e que, portanto, o suposto "date" foi estupro.

É justamente na área privada do consentimento que residem algumas das paranoias contemporâneas que ameaçam transformar as relações cotidianas entre homens e mulheres num tédio contínuo preenchido por pessoas civilizadas, limpinhas e imóveis. Mas, como tudo mais no mundo contemporâneo, principalmente em se tratando de relações humanas e serviços, o espírito do Vale do Silício oferece uma solução.

Os holandeses criaram um aplicativo chamado Legal Fling, que visa garantir que pessoas (principalmente, homens) se defendam da acusação de assédio ou estupro quando houve consentimento prévio para o ato sexual ou a abordagem.

A expressão em inglês "fling" é ambivalente. Entre o substantivo, que nos remete à ideia de um momento de diversão, gostoso, e o verbo, que pode significar um arremesso violento de algo, ou seja, algum tipo de ato com risco de violência, reside a realidade ambivalente do tema.

"Legal fling" seria, portanto, essa ambivalência tornada "legítima", levando essa arriscada ambivalência para o universo "garantido" pelo novo oráculo, a tecnologia blockchain (base de registro que funciona como prova de um acordo ou transação). Será verdade um aplicativo assim?

Nem todos concordam que o aplicativo ofereça de fato a segurança absoluta contra acusações de que consentimentos supostamente dados se transformem em acusações supostamente falsas. O "supostamente" aqui é essencial.

Voltamos ao caráter privado do tema. É difícil saber o que acontece entre quatro paredes. O combate à violência sexual tem razão em se preocupar com os abusos em geral. A crítica feita à tentativa de judicializar as relações entre homem e mulher também tem razão quando aponta a cultura da paranoia como fato dado no mundo presente.

É possível um "meio-termo" ou "bom senso" nesse assunto? Não creio. O mundo vai, pouco a pouco, sucumbindo à ambivalência criada pela modernização, na sua contínua tentativa de organizar e limpar tudo.

Zygmunt Bauman (1925-2017) acertou em cheio no seu "Modernidade e Ambivalência" ao apontar para esse caráter de "jardineiro" que o Estado moderno (e a sociedade como um todo) tem em querer fazer do mundo um "jardim do bem".

O aplicativo funciona basicamente assim: você preenche um cadastro onde afirma aceitar ou não sair e fazer sexo com fulano, depois detalha o que gosta, tipo, sei lá, sexo anal, no carro, oral, se gosta ou não de apanhar, se gosta ou não de ser tratada ou tratado de forma humilhante, se gosta de ser chamado ou chamada por termos como "cachorra", "vadia", "filho da puta" e por aí vai.

Sei. Pensar numa lista assim parece ridículo. Mas, se você tiver como princípio de entendimento do mundo contemporâneo o fato de que caminhamos para um contrato social baseado no ridículo como forma de vínculo, não estranhará tanto assim um aplicativo como esse.

O aplicativo lançará então esse "contrato" numa plataforma blockchain e, portanto, você não terá como impedir que a "humanidade em cadeia" tenha ciência de que, sim, você gosta de apanhar no sexo ou que você, sim, aceitou ser amante do seu chefe, quem sabe, em troca de uma promoção no trabalho.

O que salvaguardará juridicamente a legitimidade do ato sexual em questão será de uma ordem análoga à de uma moeda virtual, como o bitcoin. Neste caso, a "moeda" é a exposição pública da intimidade, em nome da segurança de cada cidadão envolvido em atos sexuais.

Família combate crime - CARLOS ALBERTO DI FRANCO

ESTADÃO - 29/01

A grande doença dos nossos dias tem nome: desumanização das relações familiares


Jovens de classe média e média alta têm frequentado o noticiário policial. Crimes, vandalismo, consumo e tráfico de drogas deixaram de ser marca registrada das favelas e da periferia das grandes cidades. O novo mapa do crime transita nos bares badalados, vive nos condomínios fechados, estuda nos colégios da moda e não se priva de regulares viagens ao exterior. O fenômeno, aparentemente surpreendente, é o reflexo de uma cachoeira de equívocos e de uma montanha de omissões. O novo perfil da delinquência é o resultado acabado da crise da família, da educação permissiva e do bombardeio de setores do mundo do entretenimento que se empenham em apagar qualquer vestígio de valores.

Os pais da geração transgressora têm grande parte da culpa. Choram os desvios que cresceram no terreno fertilizado pela omissão. O delito não é apenas reflexo da falência da autoridade familiar. É, frequentemente, um grito de revolta e carência. A pobreza material castiga o corpo, mas a falta de amor corrói a alma. Os adolescentes, disse alguém, necessitam de pais morais, e não de pais materiais. A grande doença dos nossos dias tem um nome menos técnico, mas mais cruel: a desumanização das relações familiares.

Reféns da cultura da autorrealização, alguns pais não suportam ser incomodados pelas necessidades dos filhos. O vazio afetivo, imaginam na insanidade do seu egoísmo, pode ser preenchido com carros, boas mesadas e consumismo desenfreado. Acuados pela desenvoltura antissocial dos seus filhos, recorrem ao salva-vidas da psicoterapia. E é aí que a coisa pode complicar. Como dizia Otto Lara Rezende, com ironia e certa dose de injusta generalização, “a psicanálise é a maneira mais rápida e objetiva de ensinar a odiar o pai, a mãe e os melhores amigos”. Na verdade, a demissão do exercício da paternidade está na raiz do problema. A omissão da família está se traduzindo no assustador aumento da delinquência infanto-juvenil e no comprometimento, talvez irreversível, de parcelas significativas da nova geração.

Se a crescente falange de adolescentes criminosos deixa algo claro, é o fato de que cada vez mais pais não conhecem os próprios filhos. Não é difícil imaginar em que ambiente afetivo se desenvolvem os integrantes das gangues bem-nascidas. As análises dos especialistas em políticas públicas esgrimem inúmeros argumentos politicamente corretos. Fala-se de tudo, menos da crise da família. Mas o nó está aí. Se não tivermos a firmeza de desatá-lo, assistiremos, acovardados e paralisados, a uma espiral de crueldade sem precedentes. É uma questão de tempo. Infelizmente.

Certas teorias no campo da educação, cultivadas em escolas que fizeram uma opção preferencial pela permissividade, também estão apresentando um amargo resultado. Uma legião de desajustados, crescida à sombra do dogma da educação não traumatizante, está mostrando a sua face antissocial. Ao traçar o perfil de alguns desvios da sociedade norte-americana, o sociólogo Christopher Lach (autor do livro A Rebelião das Elites) sublinha as dramáticas consequências que estão ocultas sob a aparência da tolerância: “Gastamos a maior parte da nossa energia no combate à vergonha e à culpa, pretendendo que as pessoas se sentissem bem consigo mesmas”. O saldo é uma geração desorientada e vazia. A despersonalização da culpa e a certeza da impunidade têm produzido uma onda de superpredadores.

O inchaço do ego e o emagrecimento da solidariedade estão na origem de inúmeras patologias. A forja do caráter, compatível com o clima de verdadeira liberdade, começa a ganhar contornos de solução válida. A pena é que tenhamos de pagar um preço tão alto para redescobrir o óbvio. A sociedade precisa de um choque de bom senso. O erro deve ser condenado e punido. A solidariedade deve ser recuperada. É preciso ensinar à moçada que o ser está acima do ter.

O pragmatismo e a irresponsabilidade de alguns setores do mundo do entretenimento estão na outra ponta do problema. A era do mundo do espetáculo, rigorosamente medida pelas oscilações da audiência, tem na violência um de seus carros-chefes. A transgressão passou a ser a diversão mais rotineira de todas. A valorização do sucesso sem limites éticos, a apresentação de desvios comportamentais num clima de normalidade e a consagração da impunidade têm colaborado para o aparecimento de mauricinhos do crime. Apoiados numa manipulação do conceito de liberdade artística e de expressão, alguns programas de TV crescem à sombra da exploração das paixões humanas. Ao subestimar a influência perniciosa da violência ficcional, levam adolescentes ao delírio em shows de auditório que promovem uma grotesca sucessão de quadros desumanizadores e humilhantes. A guerra pela conquista de mercados passa por cima de quaisquer balizas éticas. Nos Estados Unidos, por exemplo, o marketing do entretenimento com conteúdo violento está apontando as baterias na direção do público infantil.

A onipresença de uma televisão pouco responsável e a transformação da internet num descontrolado espaço para a manifestação de atividades criminosas (pedofilia, racismo e oferta de drogas, frequentemente presentes na clandestinidade de alguns sites, desconhecem fronteiras, ironizam legislações e ameaçam o Estado de Direito Democrático) estão na origem de inúmeros comportamentos patológicos.

É preciso ir às causas profundas da delinquência. Ou encaramos tudo isso com coragem ou seremos tragados por uma onda de violência jamais vista. O resultado final da pedagogia da concessão, da desestruturação familiar e da crise da autoridade está apresentando consequências dramáticas. Chegou para todos a hora de falar claro. É preciso pôr o dedo na chaga e identificar a relação que existe entre o medo de punir e os seus dramáticos efeitos antissociais.

* CARLOS ALBERTO DI FRANCO É JORNALISTA.

Guardei o suficiente para me aposentar? MARCIA DESSEN

FOLHA DE SP - 29/01

Maria cresceu ouvindo os conselhos do pai de que devia guardar pelo menos 20% do salário para formar uma confortável reserva financeira para o futuro. Bendito conselho! Maria não desprezou o ensinamento paterno e, com muita disciplina e esforço, conseguiu acumular R$ 1 milhão!

Há algum tempo vem pensando em reduzir a carga de trabalho, ter mais tempo livre para desfrutar a vida e colher os frutos da poupança que tem. A empresa onde trabalha vem sinalizando mudanças na política de recursos humanos, renovando a equipe de colaboradores. Maria sente que, em breve, estará aposentada.

Debruçada sobre a planilha do seu orçamento, fez um exercício para definir os fluxos de receitas e despesas futuras e apurou que precisará de uma renda mensal de R$ 5.000 para complementar a pensão do INSS. E se pergunta por quanto tempo o capital de R$ 1 milhão será capaz de prover essa renda mensal antes que se esgote.

Maria definiu a renda complementar de R$ 5.000 com base nos valores atuais, mas sabe que esse valor aumentará em razão da inflação dos preços. O capital disponível também vai crescer por causa dos rendimentos da aplicação financeira que tem, mas sabe que o poder de compra desse capital diminuirá em razão da mesma inflação.

Podemos ignorar o impacto da inflação nos dois fluxos se utilizarmos uma taxa de juros real, acima da inflação, para projetar o crescimento desse capital. Seremos mais conservadores ainda, lembrando que além da inflação haverá pagamento de taxas administrativas e Imposto de Renda. Vamos utilizar uma taxa de juros real líquida de 0,20% ao mês.
Editoria de arte/Folhapress




Outra premissa deve ser definida: Maria deseja preservar o capital e criar um fluxo perpétuo de saques ou pretende esgotar o capital ao longo do tempo? No caso dela, a segunda opção. Como não tem familiares que dependem de sua ajuda financeira, pretende fazer saques até esgotar o capital.

Fazendo cálculos rudimentares e supondo que não haverá nenhum rendimento, podemos dividir 1 milhão por 5.000 e dizer que o dinheiro será suficiente para 200 saques (16,6 anos). Entretanto, e felizmente, o capital atual produzirá juros que estenderão sua duração.

Alimentamos uma calculadora financeira com as premissas de Maria: valor presente de R$ 1 milhão, retiradas mensais (PMT) de R$ 5.000, juros de 0,20 (i). Pressionada, a tecla (n) indicará a quantidade de saques: 256 meses (21,3 anos).

Ela não gostou do resultado. Um cálculo feito anteriormente, estimando juros de 0,5% ao mês, indicou que o capital suportaria cerca de mil saques, mais de 80 anos, induzindo ao erro de imaginar que poderia fazer retiradas maiores sem correr o risco de o dinheiro acabar antes de sua morte.

Maria entendeu a importância de ser prudente nas projeções. Se a taxa de juro real for maior, ela poderá fazer saques extraordinários, uma viagem a mais, um curso novo, desfrutar a vida como bem entender.

Considerando sua expectativa de vida de mais 35 anos (420 meses), projetando juros de 0,20% e saques de R$ 5.000, a calculadora indica um valor presente de R$ 1,42 milhão. Ela precisa, portanto, aumentar seu capital ou reduzir o valor das retiradas para minimizar a incerteza dessa projeção.

A tabela informa a quantidade de retiradas que determinado capital suporta até que se esgote, com premissa de taxa de juros real líquida de 0,2% ao mês. Há casos em que o capital se esgota na próxima geração. Em outros, quando o saque é igual ou inferior ao valor dos juros reais, o capital não acaba nunca, provê um fluxo perpétuo de pagamentos.

O PT e o Judiciário: a criatura voltou-se contra o criador? - MARCUS ANDRÉ MELO

FOLHA DE SP - 29/01

A tese de que foram os governos do PT que lançaram as bases da autonomia e protagonismo das instituições de controle lato senso (Judiciário, Ministério Público, Tribunais de Contas) incorre em erro argumentativo sério. Essas características são o produto da delegação ampla de poderes a tais instituições ocorrida na Constituinte de 1987-88, na qual o PT detinha 2,9% dos assentos.

É acurada a conclusão do então procurador-geral da República ao afirmar, quando a nova Carta foi promulgada, que "poucos textos constitucionais terão confiado tanto no Poder Judiciário e nele, em particular, o Supremo Tribunal Federal". O Ministério Público converteu-se "no mais poderoso do mundo, após o italiano," como afirmou o cientista político especializado no tema Carlo Guarnieri (Universitá di Bologna).

Que fatores explicam tal delegação de poderes? Em primeiro lugar, o fato de que a Constituinte estava fragmentada politicamente: não havia setor hegemônico. O próprio presidente da República —historicamente o formador da agenda— não teve protagonismo, salvo quanto a questões pontuais. Como mostra uma extensa literatura, face à incerteza em relação ao futuro, os atores, ao criar regras, delegam amplos poderes que lhes garantam proteção.

Essa delegação foi articulada por uma coalizão de setores liberais e da esquerda que formavam a oposição ao regime militar. Para os primeiros, o fundamental era o controle do abuso do Poder Executivo. Para o segundo, os direitos e garantias individuais eram essenciais e sua agenda refletia o arbítrio e perseguição de que foram vítimas.

A extensa delegação também imbricava-se em um dilema de segunda ordem. Havia virtual unanimidade nos setores de alto escalão da burocracia pública e juristas, desde a década de 1950 —vide os trabalhos da Comissão de Reforma Constitucional de 1956—, de que era necessário fortalecer o Poder Executivo na área administrativa, orçamentária e legislativa. Como o país saía de um regime ditatorial, forte delegação de poder às instituições de controle se fazia ainda mais necessária para controlá-lo: "para um cachorro grande, uma coleira forte".

O que permitiu a consolidação e sustentabilidade dos fins perseguidos pelo desenho institucional foi a robusta competição e alternância política ocorrida nos últimos 30 anos. Como um dos polos dessa competição, o PT contribuiu certamente para lhes dar sustentação (iniciativas recentes —por exemplo, a Lei de Organizações Criminosas— serão objeto de nova coluna). Recentemente a ação dessas instituições estendeu-se do Poder Executivo ao Legislativo.

Foi, assim, a democracia —e o pluralismo— que permitiu a autonomização das instituições de controle, não partidos ou governantes.

A Previdência Social possível - ABRAM SZAJMAN

ESTADÃO - 29/01

O que o Estado garante dificilmente corresponderá à expectativa das pessoas


É inútil brigar com os fatos. A reforma da Previdência Social no Brasil faz-se urgente e necessária. Baseado no sistema de repartição simples, em que os recursos recolhidos pelos contribuintes se destinam a cobrir os gastos com os aposentados, o atual modelo não será capaz de atender os futuros inativos. Isso porque, em decorrência do aumento da expectativa de vida da população e da esperada queda na taxa de natalidade, haverá inapelavelmente mais beneficiários do que contribuintes.

O déficit do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), que trata dos segurados do setor privado, registrou em 2015 R$ 85,8 bilhões e em 2016, R$ 149,7 bilhões. No ano passado o rombo chegou a R$ 182,4 bilhões, que se tornarão R$ 200 bilhões em 2018, de acordo com a estimativa do governo. O aumento do desemprego e a alta do salário mínimo dos últimos anos encareceram ainda mais os gastos do governo com aposentadorias e pensões, apesar de o último reajuste ter sido o menor dos últimos 24 anos (1,81%).

Já no sistema dos servidores públicos, regidos pelo Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), em 2015 o déficit registrado foi de R$ 72,5 bilhões; em 2016, de 77,2 bilhões; e em 2017, de R$ 110 bilhões.

Cabe lembrar que em 2016 o RGPS tinha 29,2 milhões de beneficiários, que receberam em média R$ 1.339 por mês. Do outro lado, no setor público, havia 980 mil beneficiários, civis e militares, cujo valor médio recebido foi de R$ 8.695 mensais – valor 550% acima do pago ao segmento privado. Com isso o contingente de servidores públicos, mesmo representando só 3,2% da soma de beneficiários do sistema da previdência global, respondeu por 34% do total do déficit previdenciário em 2016.

A título de comparação, os gastos totais com a Previdência Social hoje equivalem a 9,9% do PIB nacional. Desse porcentual, 1,8% se refere ao RGPS e 8,1% ao RPPS, ou seja, quase um terço de toda a arrecadação do governo. Mais preocupante ainda é o fato de que esse número tende a crescer vertiginosamente, como ocorreu entre 2015 e 2017, quando o déficit passou de R$ 86 bilhões para R$ 182 bilhões, indicando superar os R$ 200 bilhões neste ano: essa trajetória é explosiva, impagável e torna o sistema previdenciário absolutamente inviável.

Diante desse cenário, o governo encaminhou à Câmara dos Deputados, em 5/12/2016, a PEC 287, que trata da reforma da Previdência dos segurados dos setores privado e público, e desde então busca aprovar a reforma. A proposta original já passou por alterações e no final de 2017 o governo anunciou redução da proposta inicial, considerando apenas o estabelecimento de idade mínima e regra de transição, a equiparação entre o regime dos servidores públicos (regime próprio) e o dos segurados da iniciativa privada (regime geral) e a retirada da incidência da Desvinculação das Receitas da União (DRU) nas receitas previdenciárias.

Além disso, a nova proposta prevê a redução do tempo mínimo de contribuição para aposentadoria no regime geral para 15 anos (a proposta inicial do governo era de 25 anos), com o recebimento de 60% da média dos salários de contribuição, e para o recebimento integral serão necessários 40 anos de contribuição. Para o regime próprio será mantido o tempo mínimo de contribuição da proposta original, 25 anos, com o recebimento de 70% da média dos salários.

As idades mínimas para concessão da aposentadoria em ambos os regimes foram mantidas, 62 anos para as mulheres e 65 anos para os homens.

Dentre as novas medidas anunciadas, a FecomercioSP entende que a mais relevante é a exclusão das contribuições sociais destinadas à seguridade social da DRU. A DRU foi criada em 1994 para ser transitória, mas acabou prorrogada por diversas vezes. Atualmente desvincula 30% das contribuições sociais, tais como Cofins e CSLL (que deveriam ser 100% destinadas ao custeio da seguridade social), produzindo efeitos negativos nas contas da Previdência Social.

Em 2015, enquanto a Previdência registrou déficit de R$ 85,8 bilhões, o total da DRU foi de R$ 58,6 bilhões. Em 2016, o déficit nas contas da Previdência foi de R$ 149,7 bilhões, enquanto foram desvinculados R$ 83,6 bilhões pela DRU. Apesar de tais valores serem destinados à Previdência Social, à assistência social e à saúde, o restabelecimento do valor integralmente arrecadado vai reduzir consideravelmente o déficit da Previdência.

Por esses motivos, a FecomercioSP acredita ser importante a exclusão das receitas previdenciárias da DRU, como forma de reduzir os déficits que a Previdência vem sofrendo nos últimos anos. Ora, se a Previdência Social apresenta déficit, não é razoável ter uma medida que reduza sua receita.

As demais propostas previstas no texto inicial, consideradas as mais polêmicas, poderão ser encaminhadas posteriormente, por projetos de lei ou por medidas provisórias, como as que se referem à aposentadoria do trabalhador rural e aos benefícios de prestação continuada.

De acordo com informações do governo, se a reforma fosse aprovada na íntegra (texto original), haveria uma economia de R$ 800 bilhões nos próximos dez anos. Com a reforma mitigada, a economia será reduzida em 50%: R$ 400 bilhões.

Procrastinar a votação da reforma da Previdência, como tem sido feito, é um retrocesso para a economia brasileira, pois apenas empurra o problema para a frente. Sua aprovação, ainda que de forma parcial, é indispensável e urgente para que as alterações possam ser implantadas de forma gradual, garantindo o equilíbrio do sistema para gerações presentes e futuras.

Por último, é preciso lembrar: o que o Estado garante dificilmente corresponderá às expectativas das pessoas, que precisam se habituar a planejar o outono de sua vida com poupança e previdência privada.

* ABRAM SZAJMAN É PRESIDENTE DA FECOMERCIOSP, ENTIDADE QUE GERE O SESC E O SENAC NO ESTADO

Brasil transforma presidentes em divindades - VINICIUS MOTA

FOLHA DE SP - 29/01

SÃO PAULO - Em março de 2016, deu-se o aglutinado de incidentes que provavelmente determinou a degringolada do PT e de seu mandachuvas. Lula e o partido estiveram então diante de uma bifurcação que conduz ou à glória ou à desgraça.

A assunção do aiatolá petista como presidente de fato, disfarçado de chefe da Casa Civl, destinava-se a solapar o movimento pró-impeachment no PMDB e em outras siglas. A nomeação retiraria dos procuradores em Curitiba e de Sergio Moro os casos judiciais contra Lula, submetendo-os ao padrão vagaroso e incerto da Procuradoria-Geral e do Supremo.

A reação à manobra foi imediata. Moro, ao remeter os autos ao STF, tornou públicos os áudios feitos nas investigações, entre os quais a famosa gravação do "Bessias", que, por ter colhido a presidente da República e ter ocorrido após o fim do mandado para escutas, não poderia ter sido divulgada pelo juiz de primeira instância.

O ministro Gilmar Mendes atendeu a um pedido para suspender a nomeação de Lula. Teve o cuidado de não sustentar a decisão no áudio ilegalmente divulgado, mas carregou na heterodoxia ao cercear a prerrogativa constitucional do presidente da República de nomear ministros.

Assim desmoronou a última cartada petista com chance de vingar, e a trajetória do seu líder despencou. Lula, que provavelmente não teria tido problemas maiores com a Justiça até hoje em caso de sucesso daquela jogada, está condenado a 12 anos de prisão na segunda instância.

Há mais duas ações em Curitiba, no mínimo tão consistentes como a do tríplex, que ao longo dos próximos 24 meses podem elevar sua pena para perto de 30 anos. A única forma de sustar tudo isso, e de retornar ao modo da imunidade absoluta, é Lula conquistar a Presidência.

Na República, o poder político não deveria valer tanto. Não deveria transformar os poderosos eventuais em divindades.

Sonhos suburbanos - DEMÉTRIO MAGNOLI

O GLOBO - 29/01

A ‘esquerda’ lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza


Os três desembargadores do TRF-4 serviram-se do tríplex na Praia de Astúrias, no Guarujá, para contar uma história sobre o Brasil. Nos seus votos unânimes de condenação de Lula, eles discorreram sobre poder e patrimônio: a tenda do capitalismo de compadrio na qual convivem políticos e empresários. O futuro julgamento do caso do sítio de Atibaia, que também “não é do Lula”, provavelmente funcionará para o mesmo fim. Contudo, tríplex e sítio abrem-nos uma janela para outra paisagem, outra história e outro crime — um crime que só existe na esfera da política.

“Quem está no banco do réu é o Lula, mas quem foi condenado é o povo brasileiro com o golpe que eles deram”, reclamou Lula na Praça da República, perante duas dúzias de sindicalistas, reiterando o hábito deplorável de identificar-se com o “povo brasileiro”. E prosseguiu, usando sua fórmula predileta: “Lula é apenas um homem de carne e osso (nota minha: modéstia!). Podem prender o Lula, mas as ideias já estão colocadas na cabeça da sociedade brasileira. As pessoas já sabem que é gostoso comer bem, morar bem, viajar de avião, comprar carro novo, ter casa com televisão e computador.” Tríplex no Guarujá, sítio em Atibaia — é “gostoso” isso?

O paradoxo não terá escapado à percepção pública. Sob o governo Lula e a tríplice aliança PT-PMDB-PP, a Petrobras foi saqueada em R$ 88,6 bilhões, segundo cálculos da própria estatal, em balanço divulgado (e depois removido) em janeiro de 2015. Qual foi a contrapartida patrimonial do “garantidor geral do esquema”, como os desembargadores qualificaram Lula, se dermos como certo que o ex-presidente recebeu como presentes tanto o tríplex quanto o sítio? O primeiro está avaliado em menos de R$ 1,2 milhão. O segundo foi adquirido, em 2010, por R$ 1,5 milhão, e sua reforma custou R$ 700 mil, segundo planilha do departamento de propina da Odebrecht. São valores insignificantes, diante da operação de rapina da Petrobras.

Corrupção é corrupção, os valores são secundários. Mas o cotejo evidencia que o sonho de Lula era perenizar seu poder político e seu prestígio pessoal, não acumular patrimônio notável. Imóvel de novo-rico em edifício de estilo mais que duvidoso, o tríplex situa-se em praia atingida por vazamento de esgotos. Já o sítio de Atibaia, com seu lago, seus marrecos, seus pedalinhos e a improvável estátua de um Cristo Redentor, pertence à categoria das casas de campo da alta classe média paulista. “Gostoso”, segundo Lula, é trotar numa praia urbana com os netos, assar churrascos e derrubar cervejas em rodas de puxa-sacos do domingão. Os seus sonhos suburbanos converteram-se, desde 2003, na fonte de inspiração de um programa de governo. Até certo ponto, o Brasil foi reinventado a partir delas.

Releia o trecho programático do discurso da Praça da República. “Morar bem”, a laje e o puxadinho, “viajar de avião”, a CVC de janeiro, “comprar carro novo”, o Onix com caixas de som no compartimento traseiro, “ter casa com televisão”, a de plasma e tela grande — o “gostoso” do lulismo concentra-se no consumo privado, uma refração popular da receita tríplex mais sítio. Durante 13 anos, os oito de Lula e os cinco de Dilma, que abrangem o mais longo ciclo de expansão das economias emergentes, entre 2003 e 2010, o Brasil aplicou seus recursos naquilo que é “gostoso”. Quando as rendas extraordinárias se esgotaram, a Nova Matriz Macroeconômica dilmista conferiu um impulso derradeiro ao programa “gostoso”, catapultando a dívida pública às alturas de 74% do PIB e, de quebra, falindo a Petrobras, a Eletrobras e a Caixa Econômica.

O Brasil do lulismo está em todos os lugares, da periferia paulistana à Baixada Fluminense, passando pelos povoados de praia nordestinos, nas paisagens em alta definição de semianalfabetos com smartphones, puxadinhos sem massa corrida adornados de parabólicas, montanhas de lixo plástico e latinhas de cerveja arrastadas pelas chuvas, correntes de esgotos infiltrando-se pelos córregos — tudo sob a zoeira nauseante de igrejas barulhentas e o funk-pancadão de sentenças abomináveis. O capital social não é “gostoso” — ao menos no horizonte imediato da próxima eleição. Nos anos dourados que não voltam mais, nos esquecemos da escola, da praça, do parque, da calçada, da quadra pública, do saneamento básico, do ônibus, do metrô. A “esquerda” lulista escolheu o capitalismo selvagem do consumo privado, do crédito popular, do cartão magnético, das Casas Bahia e do Magazine Luiza.

Leandro Paulsen, o revisor da turma do TRF-4, classificou os atos de Lula como uma “imoralidade gravíssima”. A corrupção deve, certamente, experimentar a devida punição. Mas que ninguém se iluda. O tríplex, o sítio e mesmo a montanha de bilhões de reais extraída das arcas da Petrobras não formam a alma do lulismo nem o crime principal. O crime mais relevante, que não será identificado por um tribunal ou descrito na linguagem do Código Penal, são “as ideias” que “já estão colocadas na cabeça da sociedade brasileira”. Lula caminha rumo ao ocaso. Sua herança permanece, como ética e estética da destruição.

Demétrio Magnoli é sociólogo

A esquerda e o esquerdismo - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/01

Os verdadeiros partidos de esquerda são aqueles que não confundem a luta política com a destruição dos pilares da democracia representativa

Se o brasileiro que se considera de centro não tem ainda uma candidatura presidencial que represente seus ideais mais caros, como constatamos neste espaço no domingo retrasado (ver Um vazio a ser preenchido), o eleitor que defende os ideais da esquerda democrática tampouco tem melhor sorte.

Não há hoje, na ampla oferta de candidatos e partidos do chamado campo “progressista” que almejam o poder, nenhum que rejeite toda e qualquer ditadura, que preze a Constituição e que consiga superar seus limites ideológicos radicais para se apresentar como governante de todos os brasileiros, e não apenas da patota. Ao contrário, os partidos mais proeminentes entre os que se dizem de esquerda fazem campanha sistemática contra as instituições democráticas, como se estas fossem instrumentos de uma guerra política das “elites” contra o “povo”. Segundo esse ponto de vista, nenhuma derrota política que essa turma tenha sofrido ou venha a sofrer é aceitável, pois só pode ser resultado de um complô contra os interesses do “povo” – de quem o PT, o PSOL e quejandos se consideram os únicos e legítimos intérpretes. Afinal, sua teoria e prática conseguem ser ainda mais vazias que a da desusada luta de classes.

O caso do PT é o mais óbvio. A insurgência do partido contra as instituições não começou agora, em razão das vicissitudes judiciais de seu poderoso chefão, Lula da Silva, mas há muito tempo, praticamente desde a sua fundação. Quando o PT estava na oposição, não houve um único presidente da República contra o qual o partido não tenha feito campanha pelo impeachment. Uma vez no poder, o PT tratou de desmoralizar a política institucional, ao remunerar parlamentares em troca de votos e ao financiar partidos associados e a si mesmo com dinheiro desviado de estatais. De volta à oposição, por força do impedimento da presidente Dilma Rousseff, o PT seguiu em sua campanha de desmoralização das leis e da democracia, ao enxergar golpistas no Congresso e até no Supremo Tribunal Federal e ao deixar de reconhecer os crimes fiscais cometidos pelo “poste” inventado por Lula da Silva. Portanto, não constitui nenhuma novidade o fato de que o PT esteja a mobilizar mundos e fundos para não apenas jurar a inocência de seu padrinho, mas principalmente para atacar, de roldão, todo o arcabouço institucional brasileiro – Congresso, Judiciário e imprensa livre.

Diante disso, pode-se imaginar a frustração do eleitor que é de esquerda, mas não compactua com o “esquerdismo”, que, no léxico leninista, conforme lembrou Luiz Sérgio Henriques em artigo a propósito da hostilidade do PT à democracia (A difícil identidade do petismo, 21/1, pág. A2), designa um comportamento infantil, que tende a ver o mundo pela óptica do radicalismo, sem o menor espaço para a negociação.

Os verdadeiros partidos de esquerda – não os “esquerdistas” – são aqueles que não confundem a luta política com a destruição dos pilares da democracia representativa. Não é possível se considerar genuinamente de esquerda – o que inclui não apenas fazer a crítica ao sistema capitalista, mas também defender de modo intransigente as liberdades políticas e civis – e apoiar ao mesmo tempo ditaduras como a da Venezuela, como fazem oficialmente o PT e o PSOL.

Ademais, como salientou Luiz Sérgio Henriques em seu artigo, os partidos esquerdistas hoje no Brasil são reféns do culto à personalidade, alçando Lula da Silva à categoria de santo e impedindo, dessa maneira, a renovação de sua liderança. O resultado é a transformação do PT em mera barricada atrás da qual Lula pretende se proteger da Justiça.

A julgar pelo que dizem os capas pretas do petismo, nada disso vai mudar. O ex-prefeito Fernando Haddad, coordenador da campanha de Lula, por exemplo, disse ao Estado que “a esquerda vai ter que se repensar” a partir de 2019, mas se negou a reconhecer os erros do partido, atribuindo-os ao “sistema”, e reafirmou que “o lulismo vai sobreviver ao Lula por força de sua liderança”. Ou seja, a principal força política e eleitoral da autointitulada “esquerda” no País continuará refém do pensamento autoritário e excludente que tão bem caracteriza o demiurgo petista.

Decisão consistente - EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 29/01

A folha dos servidores é a segunda maior despesa primária do Orçamento, só superada pela Previdência


Era inevitável que a iniciativa do governo Temer de adiar reajustes salariais do funcionalismo da União e elevar a contribuição previdenciária dos servidores, de 11% para 14%, atrairia feroz resistência. Assim agem corporações sindicais em geral e, em particular, as do funcionalismo, em que PT e CUT têm grande presença.

Liminar concedida pelo ministro do STF Ricardo Lewandowski suspendeu os efeitos da medida provisória que congela salários e reajusta a contribuição previdenciária, mas o mérito ainda será julgado. O debate continua. E as carências fiscais também.

Afinal, há razões objetivas para o governo haver tomado essa decisão. A principal, o fato de a folha de salários dos servidores ser a segunda maior despesa primária do Orçamento, apenas superada pela Previdência. Logo, em uma situação de grave crise fiscal, assim como é tentada a imprescindível reforma do sistema de seguridade, é forçoso o governo conter o crescimento da folha e, como fazem muitos estados, elevar a contribuição previdenciária do funcionalismo. A medida está incluída nas exigências da União à unidade da Federação que deseje aderir ao programa de recuperação fiscal. Com toda a razão.

Além da lógica irrefutável em função do tamanho desta despesa, o ajuste nos salários — via congelamento momentâneo e elevação da contribuição previdenciária — também se justifica por uma questão de justiça social.

Deve-se lembrar que, na estratificação salarial do país, os servidores são privilegiados. Não apenas pelos níveis salariais propriamente ditos, mas por vantagens como, principalmente, a estabilidade no emprego. Privilégio de alto valor, como demonstrado na funda recessão de 2015-16, quando até 14 milhões de pessoas perderam o emprego (ainda são 12 milhões). O mundo do funcionalismo federal é um universo paralelo, sem desemprego e atraso de salário. No estadual e municipal, é diferente: estados e municípios não podem emitir títulos de dívida. A União pode. No mundo dos privilegiados há alguns mais iguais que outros.

Por que não funciona a clássica “solidariedade de classe”? Afinal, servidores federais não abrirem mão de qualquer vantagem contribui para travar a economia, porque atravanca o ajuste fiscal e, dessa forma, retarda a recuperação da economia. Com isso, estados e municípios demoram a sair da crise fiscal e, assim, afetam os respectivos funcionalismos. Logo, servidores federais prejudicam o funcionalismo estadual e municipal.

Um indicador do caráter de justiça social de uma distribuição mais equilibrada dos custos do ajuste, sem proteger indevidamente servidores federais, é a enorme disparidade entre as aposentadorias do funcionalismo da União e do resto da sociedade.

Aos números: enquanto a média da aposentadoria no INSS (assalariados do setor privado) é de R$ 1.240, e o teto, neste campo, R$ 5.531,31, a do servidor público federal é R$ 7.583. Nem é preciso citar cifras das elites do serviço público (por exemplo, R$ 28 mil no funcionalismo do Legislativo) para se constatar a injustiça.

A sedução da popularidade - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 29/01

A usurpação de competência entre Poderes prejudica a democracia

A usurpação de competências de um Poder por outro em nada contribui para o amadurecimento institucional do País. Para prejuízo da democracia brasileira, no entanto, a malsinada prática tem ocorrido com frequência muito além do preocupante. A Constituição, à qual todos os cidadãos devem obediência, sobretudo membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, tem servido como mero guia de consulta para alguns destes, um texto descartado quando nele não encontram os fundamentos jurídicos que corroboram as suas teses.

Exemplo recente dessa porosidade dos limites entre os Poderes da República é a liminar do juiz Adriano Marcos Laroca, da 12.ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo, que havia suspendido o leilão de concessão das Linhas 5 e 17 do metrô. Antes de sua decisão ser cassada, a justificativa do magistrado para acolher o pedido de suspensão, feito pelo PSOL, foi o valor “muito baixo” fixado pelo governo do Estado como lance mínimo.

Extrapolando o seu campo institucional de atuação – não cabe a ele determinar políticas públicas –, o juiz se sentiu confortável para emitir opinião. “Basicamente, pode-se dizer que se trata de uma privatização custeada com recursos públicos. Ironia àqueles, economistas convencionais, que defendem a privatização das estatais brasileiras como um dos tópicos principais da política econômica-fiscal (sic) de austeridade”, afirmou Laroca.

Em entrevista ao Estado, Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, procurador da República que está à frente da Operação Greenfield, que apura fraudes nos fundos de pensão das estatais, deu mais mostras da balbúrdia institucional por que passa o País. Sobre o recente afastamento de quatro vice-presidentes da Caixa, disse que o MPF não “fulanizou” a recomendação para a saída dos investigados. “Buscamos que houvesse um cronograma público e adequado de substituição dos vice-presidentes por meio de mecanismos profissionais, com a contratação de uma empresa de headhunter. Não adianta afastar e trocar seis por meia dúzia. O ideal é alterar o modo de seleção para que os ilícitos não se repitam”, disse ele, ignorando que não cabe ao Ministério Público definir modelos de gestão para instituições como a Caixa e que a autoria de “ilícitos” é pessoal e intransferível, sendo essa a área limitada de atuação do parquet.

As afrontas à ordem institucional provêm até de Cortes Superiores. Basta ver a série de decisões do Judiciário a respeito da posse da indicada pelo presidente da República para ocupar o Ministério do Trabalho, uma prerrogativa que é única e exclusiva do chefe do Poder Executivo. A ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, suspendeu temporariamente a posse de Cristiane Brasil (PTB-RJ) alegando riscos “aos princípios constitucionais da segurança jurídica e da efetividade da jurisdição”, sem detalhar tais riscos. Somou-se a juízes que querem ter um poder de veto ilimitado sobre atos do Executivo, quando não conseguem controlar nem mesmo a gestão administrativa de seus tribunais, como se comprova por julgamentos tardios e por vistas de processos que se perdem no tempo.

O processo seletivo por que passam juízes e membros do Ministério Público avalia conhecimento técnico e currículo profissional e acadêmico. Não recebem um único voto de delegação da vontade popular e, portanto, não estão autorizados a fazer política. Aqueles que querem entrar nesse campo devem se desligar de suas funções, filiar-se a um partido político e disputar eleições.

As prerrogativas dos cargos que ocupam, a remuneração superior à que é paga, em média, para outras categorias profissionais, a inamovibilidade e a vitaliciedade não são gratuitas. São garantias dadas aos servidores da Justiça justamente para que não sofram qualquer embaraço no exercício de suas funções públicas.

Quando deixam de atuar como guardiões da lei e da Constituição e se reduzem à condição de prisioneiros de interesses corporativos ou se deixam seduzir pela popularidade, põem sob risco o equilíbrio e a harmonia entre os Poderes e, consequentemente, a democracia.