FOLHA DE SP - 20/05
Não adianta negar as restrições do mundo, pois a conta sempre chega
O professor do Instituto de Economia da Unicamp Marcio Pochmann, responsável pelo programa do candidato do PT, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 29 de abril, afirmou: "O fundamental no início do governo é um programa de emergência, que permita ao país sair da crise e voltar a crescer. Nós entendemos que a questão fiscal se resolve com volta do crescimento".
Certa feita, o presidente da Argentina Juan Perón escreveu em carta ao então presidente do Chile, Carlos Ibáñez: "Meu caro amigo: dê ao povo tudo o que for possível. Quando lhe parecer que você está dando muito, dê mais. Você verá os resultados. Todos irão lhe apavorar com o espectro de um colapso econômico. Mas tudo isso é uma mentira. Não há nada mais elástico do que a economia, que todos temem tanto porque ninguém a entende".
Para os populistas, a economia é elástica e a crise fiscal se resolve apertando o pé no acelerador e colocando a economia para crescer. Na América Latina o populismo produziu décadas de inflação e estagnação. A Argentina regride há sete décadas.
É compreensível que políticos escolham a estratégia populista. Dá resultados eleitorais. É péssimo para o país e para a sociedade e, principalmente, para os pobres --populismo sempre leva à crise e ao desemprego--, mas traz bônus eleitorais no curto prazo.
Quando técnicos ou intelectuais prometem o Paraíso, eles escondem dos cidadãos as reais limitações da economia e os verdadeiros problemas a serem enfrentados.
Pior ainda, dão munição à pior forma de política: a que procura manipular a opinião pública em busca de votos, evitando uma discussão civilizada e adulta de nossos problemas.
O desequilíbrio fiscal representa um genuíno conflito distributivo. Se no século 19 esse embate se dava prioritariamente no âmbito do confronto entre o capital e o trabalho, hoje seus principais campos de batalha são o Tesouro Nacional e o Congresso, que é a instância que arbitra o conflito.
Sempre haverá temas técnicos. Por exemplo, qual será o efeito desta ou daquela forma de tributação sobre o crescimento? E sobre a desigualdade e pobreza? Estes e outros temas demandam o debate sério informado com o melhor aporte da academia. Mas a decisão final é política.
A teoria demonstra, e nossa história já provou,que a política preconizada por Pochmann sempre nos levou à inflação e ao desemprego. Não há nenhum indício ou estudo acadêmico sério que indique que seria diferente desta vez. E, como já disse, das formas de tentar gerir o conflito distributivo, a única pior que a inflação é a guerra civil.
Pochmann, em artigo na Folha na quinta feira (17), chamou-me de paladino do governo para ricos. Mostrou os números dos lucros dos bancos no governo Temer. Se tivesse se dado ao trabalho de averiguar a lucratividade dos bancos nos anos Lula e Dilma, notaria que foi ainda maior do que no último biênio.
No início do governo Lula, Pochmann também foi contrário à focalização das políticas públicas nos mais pobres, princípio que está na base do programa Bolsa Família.
Uma das raízes da atual crise política foi uma campanha eleitoral em que se esconderam da sociedade seus limites, escolhas e conflitos. Repetir a estratégia, fugir a um debate civilizado e adulto, levará ao aprofundamento da crise.
Não adianta negar as restrições do mundo, pois a conta sempre chega. Na Argentina de Perón, na Argentina hoje e no futuro que Pochmann propõe.
Samuel Pessôa
Físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV
domingo, maio 20, 2018
quarta-feira, maio 16, 2018
Ser credor em dólar faz país ganhar tempo para solucionar problema fiscal - ALEXANDRE SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 16/05
Quadro político, no entanto, não colabora para a solução do desequilíbrio nas contas públicas
Por que o dólar subiu tanto? Fácil: porque passei dez dias no exterior (Portugal, participei de prova de ciclismo no Douro, incrível, obrigado por perguntar) e sempre que viajo para fora o dólar dá um jeito de subir, pelo menos até que pague a fatura do cartão do crédito...
Entendo, porém, que nem todo o mundo compartilhe minha opinião. Nesse caso, o melhor é olhar o que está acontecendo globalmente com o dólar, que tem se valorizado diante das demais moedas mundiais, embora, é claro, não na mesma proporção. Um euro, por exemplo, comprava cerca de US$ 1,24 há cerca de um mês; hoje, compra menos do que US$ 1,20.
Parte do fortalecimento da moeda americana se deve às tensões geopolíticas. O dólar costuma ser visto como um porto seguro para aplicações, mesmo quando os Estados Unidos estão no centro da turbulência, seja ela política, como hoje, seja econômica, como, por exemplo, durante a crise financeira no final de 2008.
Outra parte da história se deve à percepção de que a inflação americana, ainda que permaneça em patamares relativamente baixos, finalmente começou a se mover.
Assim, o IPC, deduzidos alimentos e combustíveis, ultrapassou a marca de 2% nos últimos 12 meses pela primeira vez desde fevereiro do ano passado. A medida favorita do Federal Reserve, o deflator do consumo (também livre de alimentos e combustíveis), segue um pouco abaixo disso (1,9% nos 12 meses até março), mas a tendência de elevação é também visível.
Obviamente não se trata de aceleração descontrolada, longe disso, mas tais números se traduzem em probabilidades mais elevadas de aumentos da taxa de juros americana além do que era esperado no começo do ano. Assim, a taxa de juros de dez anos do Tesouro americano, que embute as perspectivas de alterações das taxas de juros mais curtas, veio de 2,5% anuais para 3,0% ao ano do começo de 2018 para cá.
Aos poucos, portanto, as condições financeiras vão finalmente se normalizando, dez anos depois da crise de 2008. Isso significa que a enorme liquidez mundial que caracterizou esse período deve declinar gradualmente, processo liderado pela economia cuja recuperação foi mais longe, os Estados Unidos, o que, naturalmente, implica dólar mais forte.
A reação de cada moeda, contudo, não deve ser, a princípio, a mesma, muito embora o impulso original o seja. Características específicas de cada país, como a extensão do seu desequilíbrio externo (portanto, a necessidade de recorrer a capitais internacionais) ou problemas fiscais, modulam a resposta das moedas à mudança internacional.
Assim, moedas de países com elevados desequilíbrios externos, como a lira turca, sofreram forte desvalorização.
Já no caso do Brasil o problema é, como de praxe, fiscal. A dívida governamental já ultrapassou 75% do PIB (Produto Interno Bruto), e o déficit operacional recorrente do setor público permanece na casa de 5% do PIB.
Mais relevante, porém, do que os números é a noção de que o quadro político não colabora para a solução dos desequilíbrios nas contas públicas. Pelo contrário, o que se vê é o predomínio da hostilidade ao processo reformista e, portanto, a desvalorização da moeda.
Prevalece, apesar disso, o fato de o país ser credor em moeda estrangeira, fenômeno que limita a realimentação da fraqueza do real para os balanços dos setores público e privado. Isso não soluciona a questão fiscal, mas ganha tempo para o país decidir se irá (ou não) tomar o rumo correto.
Alexandre Schwartsman
Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia.
Quadro político, no entanto, não colabora para a solução do desequilíbrio nas contas públicas
Por que o dólar subiu tanto? Fácil: porque passei dez dias no exterior (Portugal, participei de prova de ciclismo no Douro, incrível, obrigado por perguntar) e sempre que viajo para fora o dólar dá um jeito de subir, pelo menos até que pague a fatura do cartão do crédito...
Entendo, porém, que nem todo o mundo compartilhe minha opinião. Nesse caso, o melhor é olhar o que está acontecendo globalmente com o dólar, que tem se valorizado diante das demais moedas mundiais, embora, é claro, não na mesma proporção. Um euro, por exemplo, comprava cerca de US$ 1,24 há cerca de um mês; hoje, compra menos do que US$ 1,20.
Parte do fortalecimento da moeda americana se deve às tensões geopolíticas. O dólar costuma ser visto como um porto seguro para aplicações, mesmo quando os Estados Unidos estão no centro da turbulência, seja ela política, como hoje, seja econômica, como, por exemplo, durante a crise financeira no final de 2008.
Outra parte da história se deve à percepção de que a inflação americana, ainda que permaneça em patamares relativamente baixos, finalmente começou a se mover.
Assim, o IPC, deduzidos alimentos e combustíveis, ultrapassou a marca de 2% nos últimos 12 meses pela primeira vez desde fevereiro do ano passado. A medida favorita do Federal Reserve, o deflator do consumo (também livre de alimentos e combustíveis), segue um pouco abaixo disso (1,9% nos 12 meses até março), mas a tendência de elevação é também visível.
Obviamente não se trata de aceleração descontrolada, longe disso, mas tais números se traduzem em probabilidades mais elevadas de aumentos da taxa de juros americana além do que era esperado no começo do ano. Assim, a taxa de juros de dez anos do Tesouro americano, que embute as perspectivas de alterações das taxas de juros mais curtas, veio de 2,5% anuais para 3,0% ao ano do começo de 2018 para cá.
Aos poucos, portanto, as condições financeiras vão finalmente se normalizando, dez anos depois da crise de 2008. Isso significa que a enorme liquidez mundial que caracterizou esse período deve declinar gradualmente, processo liderado pela economia cuja recuperação foi mais longe, os Estados Unidos, o que, naturalmente, implica dólar mais forte.
A reação de cada moeda, contudo, não deve ser, a princípio, a mesma, muito embora o impulso original o seja. Características específicas de cada país, como a extensão do seu desequilíbrio externo (portanto, a necessidade de recorrer a capitais internacionais) ou problemas fiscais, modulam a resposta das moedas à mudança internacional.
Assim, moedas de países com elevados desequilíbrios externos, como a lira turca, sofreram forte desvalorização.
Já no caso do Brasil o problema é, como de praxe, fiscal. A dívida governamental já ultrapassou 75% do PIB (Produto Interno Bruto), e o déficit operacional recorrente do setor público permanece na casa de 5% do PIB.
Mais relevante, porém, do que os números é a noção de que o quadro político não colabora para a solução dos desequilíbrios nas contas públicas. Pelo contrário, o que se vê é o predomínio da hostilidade ao processo reformista e, portanto, a desvalorização da moeda.
Prevalece, apesar disso, o fato de o país ser credor em moeda estrangeira, fenômeno que limita a realimentação da fraqueza do real para os balanços dos setores público e privado. Isso não soluciona a questão fiscal, mas ganha tempo para o país decidir se irá (ou não) tomar o rumo correto.
Alexandre Schwartsman
Ex-diretor de Assuntos Internacionais do BC, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia.
A eleição e a economia - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 16/05
Rombo orçamentário e pleito imprevisível acentuam temores que podem dificultar a recuperação do país
Nem sempre a alta do dólar e outros movimentos dos mercados podem ser atribuídos com precisão a este ou aquele motivo, em particular do campo político. Em ano eleitoral, contudo, tais associações se tornam quase inevitáveis.
É fato que a moeda americana se valoriza em grande parte do mundo, devido à perspectiva de crescimento econômico e de alta de juros nos EUA. Essa tendência se manifesta de modos variáveis entre os países, a depender das fragilidades e incertezas locais.
Na Argentina, mais dependente de capital estrangeiro, os efeitos se mostraram dramáticos. No Brasil, ainda que em grau menor, também se observa nervosismo dos investidores —e as dúvidas suscitadas pelo pleito presidencial são explicações recorrentes.
Já se cogita que tais inquietações tenham consequências além da mera especulação financeira. Na sexta-feira (11), um documento do Fundo Monetário Internacional afirmou que um risco-chave para a recuperação da economia do país é a possibilidade de mudança da agenda reformista após a eleição.
Para Henrique Meirelles (MDB), ex-ministro da Fazenda e presidenciável de chances até aqui obscuras, os efeitos negativos já se dão agora: temores relacionados à disputa pelo Planalto estariam inibindo os investimentos privados e desacelerando a retomada.
Desconte-se o óbvio viés dessa tese, ao mesmo tempo desculpa conveniente para os resultados decepcionantes deste ano e ensaio de discurso de campanha. É inegável, de todo modo, que existem motivos de sobra para angústias.
Estes não se limitam à imprevisibilidade da eleição e aos diferentes defeitos dos principais postulantes.
A fragmentação inédita do quadro partidário nacional prenuncia um cenário inóspito para o próximo governo —ainda mais porque parece improvável que o presidente vá assumir o posto embalado por uma votação consagradora.
À sua espera haverá o enorme rombo orçamentário a exigir decisões imediatas. Levar adiante ou não o teto do gasto federal e a reforma da Previdência, definir a política para o salário mínimo: todas as opções implicam custos elevados.
Não surpreende, pois, que os pré-candidatos mais importantes tratem de cercar-se de economistas de boa reputação ou, ao menos, de mostrar disposição, real ou imaginária, para ajustes e negociações.
Quem pretende herdar um país governável precisa administrar as expectativas —dos mercados, de eleitores, da política— desde já.
Rombo orçamentário e pleito imprevisível acentuam temores que podem dificultar a recuperação do país
Nem sempre a alta do dólar e outros movimentos dos mercados podem ser atribuídos com precisão a este ou aquele motivo, em particular do campo político. Em ano eleitoral, contudo, tais associações se tornam quase inevitáveis.
É fato que a moeda americana se valoriza em grande parte do mundo, devido à perspectiva de crescimento econômico e de alta de juros nos EUA. Essa tendência se manifesta de modos variáveis entre os países, a depender das fragilidades e incertezas locais.
Na Argentina, mais dependente de capital estrangeiro, os efeitos se mostraram dramáticos. No Brasil, ainda que em grau menor, também se observa nervosismo dos investidores —e as dúvidas suscitadas pelo pleito presidencial são explicações recorrentes.
Já se cogita que tais inquietações tenham consequências além da mera especulação financeira. Na sexta-feira (11), um documento do Fundo Monetário Internacional afirmou que um risco-chave para a recuperação da economia do país é a possibilidade de mudança da agenda reformista após a eleição.
Para Henrique Meirelles (MDB), ex-ministro da Fazenda e presidenciável de chances até aqui obscuras, os efeitos negativos já se dão agora: temores relacionados à disputa pelo Planalto estariam inibindo os investimentos privados e desacelerando a retomada.
Desconte-se o óbvio viés dessa tese, ao mesmo tempo desculpa conveniente para os resultados decepcionantes deste ano e ensaio de discurso de campanha. É inegável, de todo modo, que existem motivos de sobra para angústias.
Estes não se limitam à imprevisibilidade da eleição e aos diferentes defeitos dos principais postulantes.
A fragmentação inédita do quadro partidário nacional prenuncia um cenário inóspito para o próximo governo —ainda mais porque parece improvável que o presidente vá assumir o posto embalado por uma votação consagradora.
À sua espera haverá o enorme rombo orçamentário a exigir decisões imediatas. Levar adiante ou não o teto do gasto federal e a reforma da Previdência, definir a política para o salário mínimo: todas as opções implicam custos elevados.
Não surpreende, pois, que os pré-candidatos mais importantes tratem de cercar-se de economistas de boa reputação ou, ao menos, de mostrar disposição, real ou imaginária, para ajustes e negociações.
Quem pretende herdar um país governável precisa administrar as expectativas —dos mercados, de eleitores, da política— desde já.
terça-feira, maio 15, 2018
A mulher que matou o bandido - J.R. GUZZO
REVISTA VEJA
Uma guerreira lava a alma das brasileiras oprimidas pelo crime
A cabo Kátia da Silva Sastre, da Polícia Militar de São Paulo, é uma heroína das mulheres brasileiras. No último sábado, em defesa da filha que tinha ido buscar na escola, de outras meninas que saíam com ela e das mães que as esperavam na calçada, matou com três tiros um bandido que apontava uma arma de fogo contra as crianças e mulheres. Foi uma cena que só se vê em série de TV americana, onde a polícia age sempre com heroísmo, competência, respeito à lei e boa pontaria. Kátia não errou nenhum dos três tiros que disparou do revólver que sacara da bolsa. Com o assaltante caído no chão, depois de atirar nela duas vezes, deu-lhe voz de prisão ─ e afastou com o pé, para fora do seu alcance, a arma que ele havia apontado para as meninas e suas mães. Em seguida, mantendo o criminoso imobilizado no chão, esperou pela chegada da polícia. Levado para o hospital, o sujeito morreu uma hora e tanto depois.
A cena, gravada em vídeo pelas câmeras de seguranças instaladas no lugar, está à disposição de todos, a qualquer momento, pelo Google ou o YouTube. Logo saiu da grande periferia de São Paulo e passou a correr o Brasil pela internet ─ é possível que tenha ido ainda além. Qual a surpresa? O ato da policial da PM paulista foi um desses casos claros ─ e raros ─ de vitória absoluta do bem sobre o mal. É o tipo do episódio pelo qual torcem nove entre dez brasileiros exaustos com a praga dos assaltos, com a crueldade demente dos bandidos ou com a humilhação de se verem toda hora obrigados a deitar no chão para tentarem sobreviver aos tiroteios nas “comunidades”. É o dia em que o monstro perde ─ dia de lavar a alma para os milhões de cidadãos decentes que sofrem a opressão diária dos criminosos e só têm guerreiras como a cabo Kátia para arriscar a vida em sua defesa. Para completar, o caso aconteceu justo na véspera do Dia das Mães. A imagem da mulher sem medo, defendendo de arma na mão as crianças e mães aterrorizadas sob a mira do bandido, ficará por longo tempo no pensamento de quem padece a angústia diária, sem descanso, de não saber se hoje os filhos vão voltar vivos da escola. Para todas essas mães, enquanto houver Kátias haverá alguma esperança.
Não é nenhuma surpresa, naturalmente, que nenhum de todos esses “movimentos femininos” que vivem de denunciar a “violência contra as mulheres” tenha dito uma única palavra em apoio a Kátia Sastre. Seu ato de heroísmo não existiu, simplesmente. Na verdade, a moça terá sorte se não acabar sendo denunciada, ou algo assim, por essas “lideranças” que estão todos os dias nas primeiras páginas e nos horários nobres. Ela não é negra, nem lésbica, nem favelada, nem líder comunitária, nem do PSOL-PCdoB-PT. É mãe de família, policial e vai buscar a filha na escola, como milhões de outras. Ou seja, é o tipo da pessoa detestada nesse ambiente ─ e amada pela massa dos cidadãos, o que só comprova mais uma vez o quanto os movimentos “populares”, na vida real, se afastam do povo. É o mesmo que acontece nos meios de comunicação, onde o bandido foi descrito como “suspeito” do assalto, embora tenha sido filmado, com o máximo de clareza, apontando o seu revólver para a cabeça de uma menina de seis ou sete anos de idade. Também foi chamado de “rapaz”. Assim: “O rapaz foi atingido com três tiros”. Rapaz? A preocupação central, como sempre acontece, é saber se a policial se excedeu ao atirar no criminoso que tinha atirado duas vezes nela, ou se a sua atitude não poderá incentivar a “letalidade” da polícia. Foram buscar a opinião de “criminalistas” para medir os prós e contras da questão ─ como se houvesse contras. É provável que passem a exigir, junto com as alas “militantes” do Ministério Público, uma apuração rigorosa do gesto da mãe que enfrentou o bandido. Cada vez mais, junto com os “movimentos” feministas e outros bichos parecidos, se descolam da realidade e se colocam como adversários do povo brasileiro.
A cabo Kátia da Silva Sastre, da Polícia Militar de São Paulo, é uma heroína das mulheres brasileiras. No último sábado, em defesa da filha que tinha ido buscar na escola, de outras meninas que saíam com ela e das mães que as esperavam na calçada, matou com três tiros um bandido que apontava uma arma de fogo contra as crianças e mulheres. Foi uma cena que só se vê em série de TV americana, onde a polícia age sempre com heroísmo, competência, respeito à lei e boa pontaria. Kátia não errou nenhum dos três tiros que disparou do revólver que sacara da bolsa. Com o assaltante caído no chão, depois de atirar nela duas vezes, deu-lhe voz de prisão ─ e afastou com o pé, para fora do seu alcance, a arma que ele havia apontado para as meninas e suas mães. Em seguida, mantendo o criminoso imobilizado no chão, esperou pela chegada da polícia. Levado para o hospital, o sujeito morreu uma hora e tanto depois.
A cena, gravada em vídeo pelas câmeras de seguranças instaladas no lugar, está à disposição de todos, a qualquer momento, pelo Google ou o YouTube. Logo saiu da grande periferia de São Paulo e passou a correr o Brasil pela internet ─ é possível que tenha ido ainda além. Qual a surpresa? O ato da policial da PM paulista foi um desses casos claros ─ e raros ─ de vitória absoluta do bem sobre o mal. É o tipo do episódio pelo qual torcem nove entre dez brasileiros exaustos com a praga dos assaltos, com a crueldade demente dos bandidos ou com a humilhação de se verem toda hora obrigados a deitar no chão para tentarem sobreviver aos tiroteios nas “comunidades”. É o dia em que o monstro perde ─ dia de lavar a alma para os milhões de cidadãos decentes que sofrem a opressão diária dos criminosos e só têm guerreiras como a cabo Kátia para arriscar a vida em sua defesa. Para completar, o caso aconteceu justo na véspera do Dia das Mães. A imagem da mulher sem medo, defendendo de arma na mão as crianças e mães aterrorizadas sob a mira do bandido, ficará por longo tempo no pensamento de quem padece a angústia diária, sem descanso, de não saber se hoje os filhos vão voltar vivos da escola. Para todas essas mães, enquanto houver Kátias haverá alguma esperança.
Não é nenhuma surpresa, naturalmente, que nenhum de todos esses “movimentos femininos” que vivem de denunciar a “violência contra as mulheres” tenha dito uma única palavra em apoio a Kátia Sastre. Seu ato de heroísmo não existiu, simplesmente. Na verdade, a moça terá sorte se não acabar sendo denunciada, ou algo assim, por essas “lideranças” que estão todos os dias nas primeiras páginas e nos horários nobres. Ela não é negra, nem lésbica, nem favelada, nem líder comunitária, nem do PSOL-PCdoB-PT. É mãe de família, policial e vai buscar a filha na escola, como milhões de outras. Ou seja, é o tipo da pessoa detestada nesse ambiente ─ e amada pela massa dos cidadãos, o que só comprova mais uma vez o quanto os movimentos “populares”, na vida real, se afastam do povo. É o mesmo que acontece nos meios de comunicação, onde o bandido foi descrito como “suspeito” do assalto, embora tenha sido filmado, com o máximo de clareza, apontando o seu revólver para a cabeça de uma menina de seis ou sete anos de idade. Também foi chamado de “rapaz”. Assim: “O rapaz foi atingido com três tiros”. Rapaz? A preocupação central, como sempre acontece, é saber se a policial se excedeu ao atirar no criminoso que tinha atirado duas vezes nela, ou se a sua atitude não poderá incentivar a “letalidade” da polícia. Foram buscar a opinião de “criminalistas” para medir os prós e contras da questão ─ como se houvesse contras. É provável que passem a exigir, junto com as alas “militantes” do Ministério Público, uma apuração rigorosa do gesto da mãe que enfrentou o bandido. Cada vez mais, junto com os “movimentos” feministas e outros bichos parecidos, se descolam da realidade e se colocam como adversários do povo brasileiro.
Até quando? - ANA CARLA ABRÃO
ESTADÃO - 15/05
Em tempos de revolução digital, é de surpreender que ainda dependamos de cartórios
Outro dia recebi uma ligação dizendo que o registro do meu imóvel estava vencido e que precisava de uma nova certidão emitida pelo cartório para evitar que meu pedido de remoção de uma árvore condenada fosse arquivado. Mais do que depressa, fui ao cartório e paguei as custas para a emissão da certidão – cujo prazo de validade é de 30 dias –, garantindo assim a autorização para retirar a árvore que ameaçava cair sobre a minha casa.
Fornecer essa informação à prefeitura me custou R$ 51, individualmente uma quantia irrisória. Mas significou também tempo, esforço e perda de produtividade, pois exigiu deslocamento e esperar numa fila para ter acesso a um pedaço de papel que ainda teve de ser entregue do outro lado da cidade. Além disso, meus R$ 51 ajudaram a engrossar uma receita que atingiu R$ 14,6 bilhões no ano de 2017 e que, além da parcela que entra como receita do cartório, alimenta um fundo do Tribunal de Justiça, outro do Ministério Público e em alguns Estados também ajuda os Tesouros estaduais a reforçar os caixas para custear despesas vinculadas ao sistema penitenciário.
Em tempos de revolução digital, não é difícil antever um futuro muito próximo em que a blockchain se torne a grande e única forma de conferir credibilidade às informações. É, portanto, de se surpreender que ainda dependamos tanto de instituições como os cartórios e que tenhamos de lançar mão de documentos físicos para garantir que as informações prestadas sejam verídicas. Ainda mais quando se trata de registros que deveriam estar unificados e acessíveis por órgãos públicos mediante uma simples autorização do cidadão. É como se manter na idade da pedra quando o mundo contemporâneo já se estabeleceu há muito e uma nova realidade digital já se impôs.
O Projeto de Lei 9.327/17, que cria a duplicata eletrônica, tenta trazer o avanço. Além do ganho generalizado de redução do custo do registro de garantias e do aumento da agilidade, o projeto traz um grande benefício às micro, pequenas e médias empresas que só têm no desconto de duplicatas o caminho para ampliar o seu pouco acesso a crédito. Ao tornar essas garantias mais seguras, o registro eletrônico reduz o custo de crédito não tanto para as grandes corporações, mas principalmente para um segmento que representa hoje 16 milhões de empresas, responde por 63% dos empregos com carteira assinada e 48% dos salários pagos no Brasil.
Conceitualmente, não diferimos muito do resto do mundo. Esse é um segmento que sofre os efeitos de balanços não confiáveis, da alta volatilidade e da pouca governança. A falta de acesso a dados sobre essas empresas gera incerteza quanto à qualidade do crédito e aumenta o prêmio de risco. Além disso, a falta de uma base de dados centralizada enfraquece a garantia. Com isso, a insegurança jurídica para cobrança e recuperação dos empréstimos é muito alta, o que se reflete em taxas de juros também mais altas.
Se essas garantias forem percebidas como de boa qualidade e críveis, ou seja, pouco sujeitas a fraudes, as evidências mostram que o mercado cresce e ajuda a alavancar empresas que, de outra forma, morrem sem acesso a financiamento para seus projetos. Isso reduz o diferencial de juros entre grandes e pequenas empresas. No Brasil, esse diferencial é hoje duas vezes maior do que na maioria dos países e é isso que o registro eletrônico das duplicatas quer combater.
Ao baratear o custo de registro e fortalecer as garantias, o registro eletrônico dá maior poder de barganha ao pequeno e médio empresário, ampliando a competição e diminuindo os juros do crédito. Todos ganham com isso, a não ser aqueles cujas receitas vêm do monopólio de atestar o que pode ser atestado de forma mais rápida, barata e transparente.
Ao tolerarmos que o atraso continue se sobrepondo ao avanço, estaremos também aceitando que empregos deixem de ser gerados, que boas empresas percam a chance de crescer e que pequenos empreendedores continuem presos aos juros altos. Até quando continuaremos presos ao passado, evitando que um futuro melhor nos garanta um país mais rico e próspero?
ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN
Em tempos de revolução digital, é de surpreender que ainda dependamos de cartórios
Outro dia recebi uma ligação dizendo que o registro do meu imóvel estava vencido e que precisava de uma nova certidão emitida pelo cartório para evitar que meu pedido de remoção de uma árvore condenada fosse arquivado. Mais do que depressa, fui ao cartório e paguei as custas para a emissão da certidão – cujo prazo de validade é de 30 dias –, garantindo assim a autorização para retirar a árvore que ameaçava cair sobre a minha casa.
Fornecer essa informação à prefeitura me custou R$ 51, individualmente uma quantia irrisória. Mas significou também tempo, esforço e perda de produtividade, pois exigiu deslocamento e esperar numa fila para ter acesso a um pedaço de papel que ainda teve de ser entregue do outro lado da cidade. Além disso, meus R$ 51 ajudaram a engrossar uma receita que atingiu R$ 14,6 bilhões no ano de 2017 e que, além da parcela que entra como receita do cartório, alimenta um fundo do Tribunal de Justiça, outro do Ministério Público e em alguns Estados também ajuda os Tesouros estaduais a reforçar os caixas para custear despesas vinculadas ao sistema penitenciário.
Em tempos de revolução digital, não é difícil antever um futuro muito próximo em que a blockchain se torne a grande e única forma de conferir credibilidade às informações. É, portanto, de se surpreender que ainda dependamos tanto de instituições como os cartórios e que tenhamos de lançar mão de documentos físicos para garantir que as informações prestadas sejam verídicas. Ainda mais quando se trata de registros que deveriam estar unificados e acessíveis por órgãos públicos mediante uma simples autorização do cidadão. É como se manter na idade da pedra quando o mundo contemporâneo já se estabeleceu há muito e uma nova realidade digital já se impôs.
O Projeto de Lei 9.327/17, que cria a duplicata eletrônica, tenta trazer o avanço. Além do ganho generalizado de redução do custo do registro de garantias e do aumento da agilidade, o projeto traz um grande benefício às micro, pequenas e médias empresas que só têm no desconto de duplicatas o caminho para ampliar o seu pouco acesso a crédito. Ao tornar essas garantias mais seguras, o registro eletrônico reduz o custo de crédito não tanto para as grandes corporações, mas principalmente para um segmento que representa hoje 16 milhões de empresas, responde por 63% dos empregos com carteira assinada e 48% dos salários pagos no Brasil.
Conceitualmente, não diferimos muito do resto do mundo. Esse é um segmento que sofre os efeitos de balanços não confiáveis, da alta volatilidade e da pouca governança. A falta de acesso a dados sobre essas empresas gera incerteza quanto à qualidade do crédito e aumenta o prêmio de risco. Além disso, a falta de uma base de dados centralizada enfraquece a garantia. Com isso, a insegurança jurídica para cobrança e recuperação dos empréstimos é muito alta, o que se reflete em taxas de juros também mais altas.
Se essas garantias forem percebidas como de boa qualidade e críveis, ou seja, pouco sujeitas a fraudes, as evidências mostram que o mercado cresce e ajuda a alavancar empresas que, de outra forma, morrem sem acesso a financiamento para seus projetos. Isso reduz o diferencial de juros entre grandes e pequenas empresas. No Brasil, esse diferencial é hoje duas vezes maior do que na maioria dos países e é isso que o registro eletrônico das duplicatas quer combater.
Ao baratear o custo de registro e fortalecer as garantias, o registro eletrônico dá maior poder de barganha ao pequeno e médio empresário, ampliando a competição e diminuindo os juros do crédito. Todos ganham com isso, a não ser aqueles cujas receitas vêm do monopólio de atestar o que pode ser atestado de forma mais rápida, barata e transparente.
Ao tolerarmos que o atraso continue se sobrepondo ao avanço, estaremos também aceitando que empregos deixem de ser gerados, que boas empresas percam a chance de crescer e que pequenos empreendedores continuem presos aos juros altos. Até quando continuaremos presos ao passado, evitando que um futuro melhor nos garanta um país mais rico e próspero?
ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORIA OLIVER WYMAN
Razões para o abandono de imóveis - JOÃO LUIZ MAUAD
O GLOBO - 15/05
Ninguém é contra a conservação do patrimônio cultural e arquitetônico das cidades, mas é inegável que há excesso de tombamentos em Pindorama
O incêndio e posterior desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Centro de São Paulo, abriu um interessante debate sobre a quantidade absurda de imóveis abandonados e/ou degradados no Centro da capital paulista. Segundo a prefeitura, existem atualmente mais de 700 imóveis vazios naquela região.
Infelizmente, este é um problema que não está restrito a São Paulo. Quem anda pelo Centro do Rio percebe que, por aqui, a coisa não é muito diferente. São centenas de prédios antigos abandonados e/ou em processo de deterioração, muitos dos quais com risco de desabamento. Não é raro encontrarmos também imóveis vítimas de incêndio, dos quais sobraram apenas a fachada (tombada) e um terreno vazio atrás.
Uma reportagem recente do site de notícias G1 tentou responder à pergunta que está na cabeça de muita gente: por que há tantos prédios abandonados por aí? Não é uma pergunta de fácil resposta, principalmente porque existem diversas causas (não excludentes) concorrendo entre si.
A explicação mais comum fala de falta de planejamento urbano e fiscalização por parte do poder público. Estas podem ser até causas menores, mas definitivamente não explicam por que tantos proprietários — agindo de forma absolutamente contrária à própria natureza humana — simplesmente abandonam seus bens.
Evidentemente, existem outras razões. Eu destacaria pelo menos três, porém lembrando que esta não é uma lista exaustiva:
1) zelo exagerado por tudo que é antigo;
2) excesso de burocracia e regulamentações;
3) absurda lentidão judiciária.
Analisemos uma a uma:
Não seria nenhum exagero dizer que grande parte dos imóveis existentes no Centro do Rio é tombada ou situada em áreas de preservação (corredores culturais e outras). Ninguém é contra a conservação do patrimônio cultural e arquitetônico das cidades, mas é inegável que há excesso de tombamentos em Pindorama. Para início de conversa, quaisquer das esferas de governo — federal, estadual e municipal — estão aptas a decretar tombamento e/ou preservação. Não por acaso, há casos de imóveis tombados por mais de uma esfera, e cuja preservação deve obedecer aos detalhados ditames de ambas. Sem falar da confusão que alguns fazem entre o antigo e o belo.
Junte-se a essa volúpia preservacionista quase nenhuma preocupação com a compensação dos proprietários pela perda de valor de mercado dos seus imóveis quando objetos de tombamento ou preservação — no Rio, há previsão de isenção do IPTU, mas sua concessão está vinculada às sempre necessárias obras de conservação e adequação ao projeto original, as quais não costumam sair nada baratas.
Além de caras, estas obras estão sujeitas a tanta burocracia, exigências arquitetônicas e regulamentações que, não raro, acabam inviabilizadas — digo isso com a experiência de alguém que tenta, há dez anos, regularizar a situação (tanto arquitetônica quanto fiscal) de um sobrado bastante bem preservado na região da Candelária. Em resumo, o detalhismo dos ciosos agentes públicos, no afã de preservar exatamente e nos seus mínimos detalhes a arquitetura original, acaba muitas vezes inviabilizando a recuperação dos prédios, condenando-os à completa degradação.
Finalmente, porém não menos importante, vem a extrema lentidão do nosso Judiciário. Uma parte dos imóveis abandonados é refém de intrincados processos de falência empresarial ou sucessão familiar, os quais costumam arrastar-se por décadas. O resultado é que esses imóveis acabam numa espécie de limbo jurídico, sujeitando-os a toda sorte de invasões e ocupações irregulares.
João Luiz Mauad é administrador e diretor do Instituto Liberal
O incêndio e posterior desabamento do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Centro de São Paulo, abriu um interessante debate sobre a quantidade absurda de imóveis abandonados e/ou degradados no Centro da capital paulista. Segundo a prefeitura, existem atualmente mais de 700 imóveis vazios naquela região.
Infelizmente, este é um problema que não está restrito a São Paulo. Quem anda pelo Centro do Rio percebe que, por aqui, a coisa não é muito diferente. São centenas de prédios antigos abandonados e/ou em processo de deterioração, muitos dos quais com risco de desabamento. Não é raro encontrarmos também imóveis vítimas de incêndio, dos quais sobraram apenas a fachada (tombada) e um terreno vazio atrás.
Uma reportagem recente do site de notícias G1 tentou responder à pergunta que está na cabeça de muita gente: por que há tantos prédios abandonados por aí? Não é uma pergunta de fácil resposta, principalmente porque existem diversas causas (não excludentes) concorrendo entre si.
A explicação mais comum fala de falta de planejamento urbano e fiscalização por parte do poder público. Estas podem ser até causas menores, mas definitivamente não explicam por que tantos proprietários — agindo de forma absolutamente contrária à própria natureza humana — simplesmente abandonam seus bens.
Evidentemente, existem outras razões. Eu destacaria pelo menos três, porém lembrando que esta não é uma lista exaustiva:
1) zelo exagerado por tudo que é antigo;
2) excesso de burocracia e regulamentações;
3) absurda lentidão judiciária.
Analisemos uma a uma:
Não seria nenhum exagero dizer que grande parte dos imóveis existentes no Centro do Rio é tombada ou situada em áreas de preservação (corredores culturais e outras). Ninguém é contra a conservação do patrimônio cultural e arquitetônico das cidades, mas é inegável que há excesso de tombamentos em Pindorama. Para início de conversa, quaisquer das esferas de governo — federal, estadual e municipal — estão aptas a decretar tombamento e/ou preservação. Não por acaso, há casos de imóveis tombados por mais de uma esfera, e cuja preservação deve obedecer aos detalhados ditames de ambas. Sem falar da confusão que alguns fazem entre o antigo e o belo.
Junte-se a essa volúpia preservacionista quase nenhuma preocupação com a compensação dos proprietários pela perda de valor de mercado dos seus imóveis quando objetos de tombamento ou preservação — no Rio, há previsão de isenção do IPTU, mas sua concessão está vinculada às sempre necessárias obras de conservação e adequação ao projeto original, as quais não costumam sair nada baratas.
Além de caras, estas obras estão sujeitas a tanta burocracia, exigências arquitetônicas e regulamentações que, não raro, acabam inviabilizadas — digo isso com a experiência de alguém que tenta, há dez anos, regularizar a situação (tanto arquitetônica quanto fiscal) de um sobrado bastante bem preservado na região da Candelária. Em resumo, o detalhismo dos ciosos agentes públicos, no afã de preservar exatamente e nos seus mínimos detalhes a arquitetura original, acaba muitas vezes inviabilizando a recuperação dos prédios, condenando-os à completa degradação.
Finalmente, porém não menos importante, vem a extrema lentidão do nosso Judiciário. Uma parte dos imóveis abandonados é refém de intrincados processos de falência empresarial ou sucessão familiar, os quais costumam arrastar-se por décadas. O resultado é que esses imóveis acabam numa espécie de limbo jurídico, sujeitando-os a toda sorte de invasões e ocupações irregulares.
João Luiz Mauad é administrador e diretor do Instituto Liberal
A cabo Sastre educa - CARLOS ANDREAZZA
O GLOBO - 15/05
O que o bandido faria quando, revistando aqueles que emparedava, encontrasse a pistola da policial e, de repente, até mesmo seu distintivo? Não seja cínico na resposta
Não integra a equação reativa de uma policial treinada — ademais mãe — se o criminoso, que aponta arma de fogo contra uma dezena de pessoas (inclusive crianças, entre as quais sua filha), é negro, amarelo, branco, cinza ou verde. Ponto final. Antepor filtros político-engajados a um cálculo de defesa imediato é doença; uma das patologias de nosso tempo, essa em decorrência da qual, em espetacular inversão de valores, uma policial que age em perfeito, estrito, cumprimento de seu dever profissional pode ser tratada, achincalhada, como assassina, promotora de uma tal faxina social contra pobres. Oi?
É preciso lembrar, em nome da distribuição de responsabilidades, que armas de fogo não disparam sozinhas — e que muitas vezes, oh!, são disparadas para o melhor. Contra a mentira permanente, é necessário escrever que: na mão de policiais, a grande maioria dos quais agentes públicos honestos, os tiros geralmente são para o melhor, contra criminosos armados e em defesa da sociedade mais desguarnecida, sobretudo daquela sua parcela pobre, oprimida pelo tráfico de drogas e por toda sorte de atividade criminosa relativizada, quando não badalada, por intelectuais da maconha e do pó cujo único chão pisado é o dos automóveis blindados.
É preciso dizer-lhes, aos oportunistas da penúria, que existe um mundo que não o do faz de conta, um em que as coisas ocorrem com violência e de repente, e onde as pessoas, aquelas desprovidas de seguranças particulares, vivem; um em que às vezes é preciso atirar, ou atirar primeiro — um em que as pessoas não gostam de armas tanto quanto sabem que, em situações extremas (às quais se habituaram como normalidade), só uma pistola, na mão precisa e preciosa de uma policial como Katia da Silva Sastre, representa alguma chance de integridade, talvez de sobrevivência.
Problematizar o fato de um sujeito — ademais policial — reagir a ataque de outro é expressão do longo processo de apagamento da consciência individual promovido, com sucesso, por grupos de pressão influentes dedicados à engenharia social e, pois, a políticas de segurança pública que exploram a miséria e criminalizam a pobreza; essas patotas pensadoras, mui infiltradas no jornalismo, segundo as quais o bandido é um homem bom, de natureza virtuosa, a quem, no entanto, tendo sido negada a cidadania, só restaria o crime.
Se há quem goste de ver um indivíduo baleado: é exceção desprezível. Alguém que se alegre com a morte alheia: desprezível exceção. Ninguém fica feliz em assistir ao vídeo em que a policial alveja o bandido. Não é essa a sensação. As imagens não causam prazer, bem ao contrário; mas, desmontando a mistificação que criminalizou a polícia como instituição, a ninguém pode ser interditada a percepção de que segurança pública também se faz no mundo real, conforme a ação da cabo Sastre.
Sim, o bandido morreu. A humanidade o preferia vivo, recuperando-se no hospital, preso em seguida. Pergunte-se, porém, sobre o ato deflagrador da reação: não carregava ostensivamente um revólver, que apontava contra adultos e crianças, colocando-se ele próprio em posição de risco, quando baleado? Que espécie de gente perverte a realidade a ponto de criminalizar a ação impecável da policial que reagiu ao ataque e interrompeu a investida do criminoso, sem quaisquer outras vítimas? Que atitude esses engenheiros sociais esperavam da cabo Sastre? Que, no calor da hora, em vez de no tórax, mirasse nos braços ou nas pernas, reduzindo a superfície para acerto tanto quanto aumentando a possibilidade de troca de tiros e — aí, sim — de uma tragédia? Ou, claro, que deixasse o bandido agir, para que, armado, fizesse, na mais generosa projeção, sua expropriação? Pensemos, assim, na melhor hipótese de desfecho — a mais provável: que fosse apenas um assaltante, com a única disposição de roubar. O que ele faria quando, revistando aqueles que emparedava, encontrasse a pistola da policial e, de repente, até mesmo seu distintivo? Não seja cínico na resposta.
Ainda que à paisana, Katia era ali uma militar, condição que (como a de mãe) se impõe 24 horas por dia, em pleno cumprimento de sua função pública: não a de matar bandidos, efeito colateral do confronto; mas a de proteger a sociedade contra bandidos. Não é uma heroína, mas alguém muito mais importante, curto-circuito na mente revolucionária: uma mulher, policial, profissional exemplar, que honra seu dever — que tem senso de dever — numa sociedade em que as pessoas são viciadas em direitos e propensas ao vitimismo. A cabo Sastre educa.
Carlos Andreazza é editor de livros
Não integra a equação reativa de uma policial treinada — ademais mãe — se o criminoso, que aponta arma de fogo contra uma dezena de pessoas (inclusive crianças, entre as quais sua filha), é negro, amarelo, branco, cinza ou verde. Ponto final. Antepor filtros político-engajados a um cálculo de defesa imediato é doença; uma das patologias de nosso tempo, essa em decorrência da qual, em espetacular inversão de valores, uma policial que age em perfeito, estrito, cumprimento de seu dever profissional pode ser tratada, achincalhada, como assassina, promotora de uma tal faxina social contra pobres. Oi?
É preciso lembrar, em nome da distribuição de responsabilidades, que armas de fogo não disparam sozinhas — e que muitas vezes, oh!, são disparadas para o melhor. Contra a mentira permanente, é necessário escrever que: na mão de policiais, a grande maioria dos quais agentes públicos honestos, os tiros geralmente são para o melhor, contra criminosos armados e em defesa da sociedade mais desguarnecida, sobretudo daquela sua parcela pobre, oprimida pelo tráfico de drogas e por toda sorte de atividade criminosa relativizada, quando não badalada, por intelectuais da maconha e do pó cujo único chão pisado é o dos automóveis blindados.
É preciso dizer-lhes, aos oportunistas da penúria, que existe um mundo que não o do faz de conta, um em que as coisas ocorrem com violência e de repente, e onde as pessoas, aquelas desprovidas de seguranças particulares, vivem; um em que às vezes é preciso atirar, ou atirar primeiro — um em que as pessoas não gostam de armas tanto quanto sabem que, em situações extremas (às quais se habituaram como normalidade), só uma pistola, na mão precisa e preciosa de uma policial como Katia da Silva Sastre, representa alguma chance de integridade, talvez de sobrevivência.
Problematizar o fato de um sujeito — ademais policial — reagir a ataque de outro é expressão do longo processo de apagamento da consciência individual promovido, com sucesso, por grupos de pressão influentes dedicados à engenharia social e, pois, a políticas de segurança pública que exploram a miséria e criminalizam a pobreza; essas patotas pensadoras, mui infiltradas no jornalismo, segundo as quais o bandido é um homem bom, de natureza virtuosa, a quem, no entanto, tendo sido negada a cidadania, só restaria o crime.
Se há quem goste de ver um indivíduo baleado: é exceção desprezível. Alguém que se alegre com a morte alheia: desprezível exceção. Ninguém fica feliz em assistir ao vídeo em que a policial alveja o bandido. Não é essa a sensação. As imagens não causam prazer, bem ao contrário; mas, desmontando a mistificação que criminalizou a polícia como instituição, a ninguém pode ser interditada a percepção de que segurança pública também se faz no mundo real, conforme a ação da cabo Sastre.
Sim, o bandido morreu. A humanidade o preferia vivo, recuperando-se no hospital, preso em seguida. Pergunte-se, porém, sobre o ato deflagrador da reação: não carregava ostensivamente um revólver, que apontava contra adultos e crianças, colocando-se ele próprio em posição de risco, quando baleado? Que espécie de gente perverte a realidade a ponto de criminalizar a ação impecável da policial que reagiu ao ataque e interrompeu a investida do criminoso, sem quaisquer outras vítimas? Que atitude esses engenheiros sociais esperavam da cabo Sastre? Que, no calor da hora, em vez de no tórax, mirasse nos braços ou nas pernas, reduzindo a superfície para acerto tanto quanto aumentando a possibilidade de troca de tiros e — aí, sim — de uma tragédia? Ou, claro, que deixasse o bandido agir, para que, armado, fizesse, na mais generosa projeção, sua expropriação? Pensemos, assim, na melhor hipótese de desfecho — a mais provável: que fosse apenas um assaltante, com a única disposição de roubar. O que ele faria quando, revistando aqueles que emparedava, encontrasse a pistola da policial e, de repente, até mesmo seu distintivo? Não seja cínico na resposta.
Ainda que à paisana, Katia era ali uma militar, condição que (como a de mãe) se impõe 24 horas por dia, em pleno cumprimento de sua função pública: não a de matar bandidos, efeito colateral do confronto; mas a de proteger a sociedade contra bandidos. Não é uma heroína, mas alguém muito mais importante, curto-circuito na mente revolucionária: uma mulher, policial, profissional exemplar, que honra seu dever — que tem senso de dever — numa sociedade em que as pessoas são viciadas em direitos e propensas ao vitimismo. A cabo Sastre educa.
Carlos Andreazza é editor de livros
Argentina: sem efeito Orloff no Brasil - MAÍLSON DA NÓBREGA
REVISTA VEJA
Inflação baixa, reservas internacionais altas e déficit externo confortável indicam que são baixos os riscos de contágio da crise argentina por aqui
Até recentemente, as crises na Argentina repercutiam no Brasil. Os mercados financeiros chamam isso de contágio, mas se falava em “efeito Orloff””. Um comercial de TV de uma vodca exibia um homem sóbrio que dizia: “eu sou você amanhã” (sem ressaca no dia seguinte), mas uma Argentina bêbada pressagiava um Brasil trôpego depois.
Naqueles tempos, a Argentina e o Brasil padeciam dos mesmos problemas: inflação alta, déficit público elevado, desequilíbrio no balanço de pagamentos e escassas reservas internacionais. Logo, uma crise de confiança se reproduzia imediatamente por aqui.
A situação mudou. A Argentina voltou a ter os mesmos problemas. Maurício Macri herdou uma economia em pior estado do que a recebida por Michel Temer. A inflação passa de 25%; o déficit em conta-corrente do balanço de pagamentos é de 5% do PIB. No Brasil a inflação é baixa: menos de 3% em doze meses. O déficit em conta-corrente é 0,5% do PIB. As reservas internacionais estão em US$ 382 bilhões. Não há contágio.
A Argentina precisava de uma terapia de choque, mas Macri preferiu o gradualismo. A estratégia deu certo enquanto a taxa anual de juros americana era baixa. Agora, os sinais são de alta: já atingiu 3%, depois de anos abaixo de 1%. As aplicações em títulos públicos americanos, os mais seguros do mundo, ficam mais atrativas. Nesse contexto, presta-se mais atenção aos fundamentos dos mercados emergentes.
Foi o que aconteceu com a Argentina. Percebeu-se que havia riscos de descontrole inflacionário e de uma insolvência externa, que pioraram com a seca que reduziu substancialmente as exportações de soja.
Como sempre acontece nesses casos, os mercados azedaram subitamente. Saídas de capital agravaram os riscos externos, que provocaram novas saídas de capital e assim por diante. A taxa de câmbio subiu muito, aumentando os riscos inflacionários. Para enfrentar a situação, o Banco Central aumentou a taxa básica anual de juros para mais de 30%.
A Argentina gastou US$ 5 bilhões de reservas, mas adiantou pouco. Os investidores sabem que o país não tem muito poder de fogo. As reservas baixaram para as proximidades dos US$ 30 bilhões. A saída foi recorrer ao FMI, o qual foi criado exatamente para socorrer países a braços com crises cambiais.
O apoio do FMI pode estancar a crise, mas exigirá um duro programa para atacar os desequilíbrios da economia. Como nossos vizinhos odeiam o FMI mais do que os brasileiros, Macri pode perder popularidade, inclusive pelos efeitos da austeridade fiscal e dos juros altos na atividade econômica e no emprego.
Macri corre o risco de não se reeleger em 2019. Antes de curar seus problemas, os argentinos podem ter que enfrentar as incertezas de uma eleição presidencial e os riscos de retorno de Cristina Kirchner ao poder. Nesse campo, o “efeito Orloff” se inverte. Torçamos para não haver uma ressaca nem lá nem aqui.
No país dos falsos dilemas - FERNÃO LARA MESQUITA
ESTADÃO - 15/05
Está invertido o poder de mando na pseudodemocracia brasileira
A questão do foro especial é mais um dos falsos dilemas brasileiros. A discussão ingressa agora no tema “tira o foro de todo mundo ou não” e engastalha de saída na momentosa questão do “o que, tecnicamente, define uma súmula vinculante” que seria uma das maneiras de estender a derrubada do privilégio para o Judiciário e demais caronas. Esperar que o Judiciário extinga um privilégio dele próprio é arriscar deixar a coisa rolar por mais 100 anos nesse vai não vai. A “via rápida” seria o Legislativo fazer uma lei que anule as diversas leis e quase leis que estenderam indevidamente a regalia. Como, porém, tanta gente lá tem o rabo preso nas garras do Judiciário a coisa não é tão simples. E ainda que passasse só como vingança é de esperar, a julgar pela “jurisprudência” mais recente, que o Judiciário desfaça o que o Legislativo fizer em idas e vindas sucessivas e o País continue parado esperando até que estejamos todos mortos...
Outro ponto a considerar é o vaticínio de Gilmar Mendes de que vamos nos arrepender de termos suspenso o foro especial amplo, geral e irrestrito ao menos para políticos. Diz ele, “conhecedor da nossa Justiça criminal que é”, que a impunidade vai ficar mais garantida pelo caminho certo do que estava pelo caminho errado. E o pior é que todo mundo sabe que ele tem razão.
Essa seria a “deixa” para levar a discussão para o que interessa, mas o Brasil que precisa disso ficou mudo depois que as escolas de jornalismo conseguiram estabelecer como dogma que o bom jornalista só “ouve fontes” e o exercício do raciocínio próprio para desafiá-las e inquiri-las, ainda que seja apenas confrontando-as com os fatos que exponham suas mentiras, seria uma violação do princípio da separação entre opinião e reportagem. O resultado é que “cobrir política” de forma “isenta” passou a significar amplificar o que dizem as fontes oficiais desde que justapondo o dito pela “situação” ao dito pela “oposição” lá do Brasil que manda, deixando o Brasil mandado absolutamente sem voz. É isso que explica por que denunciar e exigir o fim dos privilégios que “situação” e “oposição” gostosamente compartilham enquanto se alternam no poder tornou-se oficialmente “impopular” ou no mínimo “controvertido” em todos os jornais e televisões do País, apesar de estarmos falando da causa primeira e última da sangria desatada de todos os bolsos miseráveis da Nação estrebuchante para rechear com mais largueza, haja o que houver, os da ínfima minoria não meritocrática dentro da minoria dos mais ricos.
O ponto que interessa ao Brasil mandado é que o foro especial não é “causa” de nada, como dizem por aí, é apenas mais um efeito, ainda que este com poder multiplicador, do defeito essencial que responde por todas as nossas desgraças, que é estar invertido o poder de mando na relação entre representantes e representados da pseudodemocracia brasileira. Se tivéssemos, como tem toda democracia de verdade, o direito de demitir, por iniciativa popular e a qualquer momento, políticos e funcionários indignos (recall) e recusar leis pervertidas vindas dos Legislativos (referendo), não só o foro especial jamais teria extrapolado a função de proteger a palavra e a ação de quem nós elegemos para falar e agir por nós para a qual foi criado, como também tais palavras e ações jamais se teriam desviado para a criação de uma clientela militante para servir-se do serviço público com o propósito exclusivo de reelegê-los em troca do compartilhamento de privilégios indecentes. Se fizéssemos, como faz toda democracia de verdade, eleições periódicas de retenção (ou não) dos juízes encarregados de nos entregar justiça, nós jamais teríamos de temer que levar os crimes comuns dos servidores do povo para a Justiça comum pudesse resultar em mais impunidade.
O problema do Brasil sempre foi e continua sendo um só, de uma obviedade mais ululante a cada dia que persiste no seu anacronismo medieval. Pois há 1/4 de milênio, já, que vem sendo confirmado e reconfirmado pelo argumento indiscutível do resultado que colhe toda e qualquer sociedade que se põe a salvo disso, que é uma lei da natureza que sempre que se concentra o poder está-se fornecendo um endereço ao bandido que dorme dentro de cada ser humano: “Trabalhar pra quê? Suborne aqui e tenha o seu problema resolvido”. Por isso, em todo o mundo que funciona, a última palavra sobre cada medida que possa vir a afetar a vida da coletividade passou a ser da própria coletividade, convertida para efeitos práticos num eleitorado com poderes absolutos, mas distritalmente pulverizados, a única maneira de não fornecer endereços a bandidos nem fazer da emenda um desastre pior que o soneto deixando o país sujeito aos golpes e passa-moleques de ilegitimidade que vêm junto com outros sistemas de representação pouco transparentes.
As eleições distritais puras deixam absolutamente claro quem representa quem na relação país real x país oficial. Desconcentram radicalmente o poder e assentam o país sobre uma base ampla e sólida de legitimidade. E, ao mesmo tempo, garantem o controle fino que se requer dos representantes encarregados de operar a reforma permanente das instituições que o mundo implacavelmente dinâmico e competitivo de hoje exige, sem o corolário da imprevisibilidade da arbitrariedade do monarca da hora que impede o desenvolvimento baseado na inovação.
Não há como extinguir efeitos sem remover suas causas. O Brasil tem se alternado em variações de fórmulas autoritárias em que “iluminados” tratam de substituir-se ao povo para decidir o que é melhor para o povo e o resultado, salvo alguns soluços de marcha adiante, é uma sucessão de desastres. Mais radicais quanto mais radical for a dose de autoritarismo, mas desastres sempre. A escolha real que há é entre aderirmos, finalmente, ao sistema de governo do povo, pelo povo e para o povo, ou nos conformarmos em permanecer para sempre no século 18 pagando as carências e as doenças do século 18 como estamos hoje.
*JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM
Está invertido o poder de mando na pseudodemocracia brasileira
A questão do foro especial é mais um dos falsos dilemas brasileiros. A discussão ingressa agora no tema “tira o foro de todo mundo ou não” e engastalha de saída na momentosa questão do “o que, tecnicamente, define uma súmula vinculante” que seria uma das maneiras de estender a derrubada do privilégio para o Judiciário e demais caronas. Esperar que o Judiciário extinga um privilégio dele próprio é arriscar deixar a coisa rolar por mais 100 anos nesse vai não vai. A “via rápida” seria o Legislativo fazer uma lei que anule as diversas leis e quase leis que estenderam indevidamente a regalia. Como, porém, tanta gente lá tem o rabo preso nas garras do Judiciário a coisa não é tão simples. E ainda que passasse só como vingança é de esperar, a julgar pela “jurisprudência” mais recente, que o Judiciário desfaça o que o Legislativo fizer em idas e vindas sucessivas e o País continue parado esperando até que estejamos todos mortos...
Outro ponto a considerar é o vaticínio de Gilmar Mendes de que vamos nos arrepender de termos suspenso o foro especial amplo, geral e irrestrito ao menos para políticos. Diz ele, “conhecedor da nossa Justiça criminal que é”, que a impunidade vai ficar mais garantida pelo caminho certo do que estava pelo caminho errado. E o pior é que todo mundo sabe que ele tem razão.
Essa seria a “deixa” para levar a discussão para o que interessa, mas o Brasil que precisa disso ficou mudo depois que as escolas de jornalismo conseguiram estabelecer como dogma que o bom jornalista só “ouve fontes” e o exercício do raciocínio próprio para desafiá-las e inquiri-las, ainda que seja apenas confrontando-as com os fatos que exponham suas mentiras, seria uma violação do princípio da separação entre opinião e reportagem. O resultado é que “cobrir política” de forma “isenta” passou a significar amplificar o que dizem as fontes oficiais desde que justapondo o dito pela “situação” ao dito pela “oposição” lá do Brasil que manda, deixando o Brasil mandado absolutamente sem voz. É isso que explica por que denunciar e exigir o fim dos privilégios que “situação” e “oposição” gostosamente compartilham enquanto se alternam no poder tornou-se oficialmente “impopular” ou no mínimo “controvertido” em todos os jornais e televisões do País, apesar de estarmos falando da causa primeira e última da sangria desatada de todos os bolsos miseráveis da Nação estrebuchante para rechear com mais largueza, haja o que houver, os da ínfima minoria não meritocrática dentro da minoria dos mais ricos.
O ponto que interessa ao Brasil mandado é que o foro especial não é “causa” de nada, como dizem por aí, é apenas mais um efeito, ainda que este com poder multiplicador, do defeito essencial que responde por todas as nossas desgraças, que é estar invertido o poder de mando na relação entre representantes e representados da pseudodemocracia brasileira. Se tivéssemos, como tem toda democracia de verdade, o direito de demitir, por iniciativa popular e a qualquer momento, políticos e funcionários indignos (recall) e recusar leis pervertidas vindas dos Legislativos (referendo), não só o foro especial jamais teria extrapolado a função de proteger a palavra e a ação de quem nós elegemos para falar e agir por nós para a qual foi criado, como também tais palavras e ações jamais se teriam desviado para a criação de uma clientela militante para servir-se do serviço público com o propósito exclusivo de reelegê-los em troca do compartilhamento de privilégios indecentes. Se fizéssemos, como faz toda democracia de verdade, eleições periódicas de retenção (ou não) dos juízes encarregados de nos entregar justiça, nós jamais teríamos de temer que levar os crimes comuns dos servidores do povo para a Justiça comum pudesse resultar em mais impunidade.
O problema do Brasil sempre foi e continua sendo um só, de uma obviedade mais ululante a cada dia que persiste no seu anacronismo medieval. Pois há 1/4 de milênio, já, que vem sendo confirmado e reconfirmado pelo argumento indiscutível do resultado que colhe toda e qualquer sociedade que se põe a salvo disso, que é uma lei da natureza que sempre que se concentra o poder está-se fornecendo um endereço ao bandido que dorme dentro de cada ser humano: “Trabalhar pra quê? Suborne aqui e tenha o seu problema resolvido”. Por isso, em todo o mundo que funciona, a última palavra sobre cada medida que possa vir a afetar a vida da coletividade passou a ser da própria coletividade, convertida para efeitos práticos num eleitorado com poderes absolutos, mas distritalmente pulverizados, a única maneira de não fornecer endereços a bandidos nem fazer da emenda um desastre pior que o soneto deixando o país sujeito aos golpes e passa-moleques de ilegitimidade que vêm junto com outros sistemas de representação pouco transparentes.
As eleições distritais puras deixam absolutamente claro quem representa quem na relação país real x país oficial. Desconcentram radicalmente o poder e assentam o país sobre uma base ampla e sólida de legitimidade. E, ao mesmo tempo, garantem o controle fino que se requer dos representantes encarregados de operar a reforma permanente das instituições que o mundo implacavelmente dinâmico e competitivo de hoje exige, sem o corolário da imprevisibilidade da arbitrariedade do monarca da hora que impede o desenvolvimento baseado na inovação.
Não há como extinguir efeitos sem remover suas causas. O Brasil tem se alternado em variações de fórmulas autoritárias em que “iluminados” tratam de substituir-se ao povo para decidir o que é melhor para o povo e o resultado, salvo alguns soluços de marcha adiante, é uma sucessão de desastres. Mais radicais quanto mais radical for a dose de autoritarismo, mas desastres sempre. A escolha real que há é entre aderirmos, finalmente, ao sistema de governo do povo, pelo povo e para o povo, ou nos conformarmos em permanecer para sempre no século 18 pagando as carências e as doenças do século 18 como estamos hoje.
*JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM
E o atraso vai vencendo - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 15/05
É surpreendente a dificuldade encontrada pelo governo para pôr em andamento o plano de privatizar a Eletrobrás
A situação da Eletrobrás é insustentável. Em vez de induzir o crescimento, ela está parada na contramão, acumulando resultados deficitários. Seu controlador, o Estado, não tem condições de realizar os investimentos necessários. A solução para o problema é, todos sabem, a sua privatização. Além de dar remédio às deficiências da estatal, a medida tem potencial de produzir efeitos muito benéficos para a economia do País, em tempos de difícil retomada.
Não deixa de ser surpreendente, portanto, a dificuldade encontrada para pôr em andamento o plano do governo federal de privatizar a Eletrobrás. Todos os passos encontram grandes resistências, em boa medida oriundas da própria base aliada do governo.
Em agosto de 2017, o governo de Michel Temer anunciou sua intenção de privatizar a Eletrobrás. Como a Lei 10.848/2004 havia excluído a estatal do Programa Nacional de Desestatização, o Palácio do Planalto expediu, no mês de dezembro, a Medida Provisória (MP) 814/2017, que retirou essa proibição. Tal medida encontra-se ainda em tramitação no Congresso, que parece não ter entendido a urgência do assunto.
Além disso, em janeiro de 2018, o Executivo apresentou ao Legislativo um projeto de lei definindo o modelo a ser adotado na privatização da Eletrobrás. Segundo a proposta do Palácio do Planalto, a desestatização deverá ser feita por aumento do capital social mediante subscrição pública de ações ordinárias. Assim, a participação da União seria diluída, deixando de ser majoritária. Também seria criada uma ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União (golden share), de modo a assegurar poder de veto sobre algumas decisões de especial interesse público. No momento, o Projeto de Lei (PL) 9.463/2018 aguarda o parecer de uma comissão especial, sem previsão de data para ir a votação pela Câmara.
Como forma de destravar este complicado processo, o governo federal anunciou que incluiria, por decreto, a estatal no Programa Nacional de Desestatização. De fato, na quinta-feira passada, foi expedido o Decreto 9.351/2018 com o teor anunciado. No entanto, surgiu uma pequena novidade. Segundo o ato, o início dos “procedimentos necessários à contratação dos estudos pertinentes” à privatização da estatal ficará suspenso até que o Congresso aprove o PL 9.463/2018. Assim, mais do que agilizar a desestatização, o decreto presidencial oficializou a incerteza. Fez depender do Congresso o início dos trabalhos para a privatização.
Essa previsão parece ter sido resultado de uma exigência da Câmara dos Deputados, que almeja precedência no assunto. Tivesse o Congresso uma maioria minimamente sintonizada com o interesse nacional, o texto do decreto não causaria maiores transtornos, já que, diante das evidentes razões para privatizar a Eletrobrás, certamente o PL 9.463/2018 seria rapidamente aprovado.
Como se sabe, a atual composição do Congresso não manifesta especial interesse na privatização da Eletrobrás. A cada dia, constata-se uma nova resistência por parte de alguns políticos, desejosos de continuarem contando com a estatal a serviço de seus interesses. Não querem perder o butim – e por isso é tão preocupante que o Decreto 9.351/2018 determine esperar a aprovação do Congresso. É sinal de que o pessoal contrário à privatização está conseguindo incluir todos os obstáculos necessários para que a Eletrobrás continue exatamente como está.
Nessa demora, quem perde, uma vez mais, é a população. O contribuinte vê-se obrigado a bancar uma estatal deficitária. A infraestrutura do País fica cada vez mais defasada. O mercado de energia torna-se menos competitivo e, portanto, a conta de luz para as famílias e as empresas fica mais cara. Tem-se, assim, a vitória do atraso. O resultado podia ser diferente, mas para isso o interesse nacional tem de ser defendido com mais empenho.
É surpreendente a dificuldade encontrada pelo governo para pôr em andamento o plano de privatizar a Eletrobrás
A situação da Eletrobrás é insustentável. Em vez de induzir o crescimento, ela está parada na contramão, acumulando resultados deficitários. Seu controlador, o Estado, não tem condições de realizar os investimentos necessários. A solução para o problema é, todos sabem, a sua privatização. Além de dar remédio às deficiências da estatal, a medida tem potencial de produzir efeitos muito benéficos para a economia do País, em tempos de difícil retomada.
Não deixa de ser surpreendente, portanto, a dificuldade encontrada para pôr em andamento o plano do governo federal de privatizar a Eletrobrás. Todos os passos encontram grandes resistências, em boa medida oriundas da própria base aliada do governo.
Em agosto de 2017, o governo de Michel Temer anunciou sua intenção de privatizar a Eletrobrás. Como a Lei 10.848/2004 havia excluído a estatal do Programa Nacional de Desestatização, o Palácio do Planalto expediu, no mês de dezembro, a Medida Provisória (MP) 814/2017, que retirou essa proibição. Tal medida encontra-se ainda em tramitação no Congresso, que parece não ter entendido a urgência do assunto.
Além disso, em janeiro de 2018, o Executivo apresentou ao Legislativo um projeto de lei definindo o modelo a ser adotado na privatização da Eletrobrás. Segundo a proposta do Palácio do Planalto, a desestatização deverá ser feita por aumento do capital social mediante subscrição pública de ações ordinárias. Assim, a participação da União seria diluída, deixando de ser majoritária. Também seria criada uma ação preferencial de classe especial, de propriedade exclusiva da União (golden share), de modo a assegurar poder de veto sobre algumas decisões de especial interesse público. No momento, o Projeto de Lei (PL) 9.463/2018 aguarda o parecer de uma comissão especial, sem previsão de data para ir a votação pela Câmara.
Como forma de destravar este complicado processo, o governo federal anunciou que incluiria, por decreto, a estatal no Programa Nacional de Desestatização. De fato, na quinta-feira passada, foi expedido o Decreto 9.351/2018 com o teor anunciado. No entanto, surgiu uma pequena novidade. Segundo o ato, o início dos “procedimentos necessários à contratação dos estudos pertinentes” à privatização da estatal ficará suspenso até que o Congresso aprove o PL 9.463/2018. Assim, mais do que agilizar a desestatização, o decreto presidencial oficializou a incerteza. Fez depender do Congresso o início dos trabalhos para a privatização.
Essa previsão parece ter sido resultado de uma exigência da Câmara dos Deputados, que almeja precedência no assunto. Tivesse o Congresso uma maioria minimamente sintonizada com o interesse nacional, o texto do decreto não causaria maiores transtornos, já que, diante das evidentes razões para privatizar a Eletrobrás, certamente o PL 9.463/2018 seria rapidamente aprovado.
Como se sabe, a atual composição do Congresso não manifesta especial interesse na privatização da Eletrobrás. A cada dia, constata-se uma nova resistência por parte de alguns políticos, desejosos de continuarem contando com a estatal a serviço de seus interesses. Não querem perder o butim – e por isso é tão preocupante que o Decreto 9.351/2018 determine esperar a aprovação do Congresso. É sinal de que o pessoal contrário à privatização está conseguindo incluir todos os obstáculos necessários para que a Eletrobrás continue exatamente como está.
Nessa demora, quem perde, uma vez mais, é a população. O contribuinte vê-se obrigado a bancar uma estatal deficitária. A infraestrutura do País fica cada vez mais defasada. O mercado de energia torna-se menos competitivo e, portanto, a conta de luz para as famílias e as empresas fica mais cara. Tem-se, assim, a vitória do atraso. O resultado podia ser diferente, mas para isso o interesse nacional tem de ser defendido com mais empenho.
Dois anos de avanços - MICHEL TEMER
FOLHA DE SP - 15/05
O Brasil e os brasileiros têm escolha fundamental a fazer neste ano; continuar no caminho certo, com resultados reais, ou buscar alternativas que podem gerar insegurança
Peço alguns instantes de sua atenção para recordar um número de janeiro de 2016. Na Bolsa de Valores, a Petrobras valia R$ 67 bilhões. Pouco mais de dois anos se passaram. Nesta última semana, a Petrobras reconquistou o título de empresa mais valiosa do Brasil. Ultrapassou os R$ 350 bilhões.
Em 24 meses, recuperamos a Petrobras, o Banco do Brasil, os Correios, a Caixa Econômica Federal; elevamos o PIB a patamar positivo, melhoramos a gestão pública, ajudamos estados e municípios; reformamos leis e instituições. Trabalhamos sem parar.
Recuperamos o Brasil. No aniversário de dois anos de meu governo, aqueles que analisarem com isenção vão constatar: cumprimos o que escrevemos no documento "Ponte Para o Futuro". Transformamos a mais grave recessão da nossa história em crescimento consistente. Trocamos as famosas "pedaladas" por responsabilidade fiscal.
Integramos o Brasil ao mundo, atraindo investimentos e recuperando a credibilidade. Os programas sociais, que estavam ameaçados, têm hoje os melhores indicadores da história.
O resultado está aí: o que antes era desalento agora é trabalho. Quando assumimos, havia uma dilapidação de 150 mil empregos de carteira assinada por mês. Neste ano, registramos um saldo de 204 mil vagas com carteira assinada. E, nos últimos 12 meses, foram criados mais de 1,5 milhão de postos de trabalho.
O Bolsa Família está mais amplo —atende hoje 160 mil famílias a mais do que as 14 milhões do seu recorde anterior, em 2014. Está mais acessível para quem precisa porque zeramos a fila, que chegou a ter quase 2 milhões de famílias em maio de 2015.
Melhoramos a gestão do programa, e o benefício alcançou seu maior poder de compra porque aumentamos seu valor em mais de 100% acima da inflação do período. Financiamos no tempo certo as duas maiores safras da história, que baratearam os alimentos, favorecendo os mais necessitados.
Asseguramos os contratos do Minha Casa, Minha Vida, pagamos os atrasados que encontramos no começo de governo, em maio de 2016, e garantimos a expansão do programa, entregando uma média de 38 mil residências por mês. Fizemos mais e melhor.
Implantamos o Criança Feliz para proteger e acolher a gestante e a primeira infância. Criamos o programa "Progredir", que, pela primeira vez, capacita e emprega jovens de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família.
Em três meses, quase 70 mil deles conseguiram seu lugar no mercado de trabalho. O que deve ser permanente é a formação para melhorar de vida. Movidos por esse espírito, revolucionamos a educação. Reforma do ensino médio, novas 500 mil vagas em tempo integral e capacitação dos professores —o Brasil está apenas começando a colher os avanços da mudança.
Os resultados são incontestáveis em todas as áreas: a menor inflação da história do Plano Real, as menores taxas de juros de nossa história, os dois maiores superávits comerciais, duas safras agrícolas recordes, o maior número de títulos de propriedade (mais de 200 mil), agrária ou urbana, já distribuídos.
A indústria automobilística reagiu, com mais 40% na produção de veículos leves em abril, no comparativo com o mesmo mês de 2017. A produção aquecida e as demandas do comércio (mais 4% na construção civil em 2018) elevaram em 77% as vendas de caminhões em abril deste ano, na comparação com o ano passado. Fizemos nossa parte para essa retomada com a liberação das contas inativas do FGTS, que colocou R$ 44 bilhões na economia e beneficiou 25,9 milhões de trabalhadores.
Desde a primeira hora, saí em busca de mais investimentos, de mais comércio e de mais empregos aos brasileiros. Estive na Ásia, Europa e em nossos vizinhos da América. Trouxemos bilhões em negócios. Saímos do oitavo para o segundo lugar como melhor destino para investimentos em todo o mundo.
A maior quantidade de unidades de conservação por km² de todos os tempos foi criada em minha gestão, superando todos os governos anteriores somados. A maior reserva marinha do mundo foi criada no Brasil por ato da minha Presidência. Reduzimos o desmatamento da Amazônia depois de dois anos de crescimento contínuo na devastação.
Tivemos a coragem de, pela primeira vez, encarar para valer o tema da segurança pública, demanda social prioritária, que a Constituição colocou a cargo dos estados. Criei o Ministério da Segurança Pública e decretei a intervenção federal na área de segurança do Rio de Janeiro.
Os resultados são animadores: o mês de abril já registra considerável redução de crimes violentos e roubos sobre o mês anterior. Na região de Bangu, Gericinó, Padre Miguel, Senador Camará e Vila Kennedy, onde a intervenção concentrou algumas ações, a letalidade violenta registrou o menor número de vítimas para o mês de março desde o início da série histórica. São vidas que foram preservadas. Cada uma delas, uma vitória sobre as milícias e o crime organizado.
Nada disso surgiu por geração espontânea, como alguns querem acreditar ao tentar desvincular nosso trabalho de todos os êxitos econômicos, sociais, ambientais e de segurança. Tamanhos resultados premiam o esforço de uma equipe de alta competência e dedicação ao interesse público. Para alcançá-los, foi preciso dialogar com o Congresso e construir um conjunto de normas que sepultaram o populismo do resultado fácil.
A virada na economia, assim como no resultado das estatais, é fruto dessa fórmula. Trilhamos um caminho de coragem, de mudanças. Tem sido duro, difícil, a ponto de nos custar popularidade, num país ansioso por soluções fáceis. Os resultados estão aí, os números falam mais alto. Fizemos em dois anos o que outros não fizeram em 20 anos.
O Brasil e os brasileiros têm escolha fundamental a fazer neste ano. Continuar no caminho certo, com resultados reais, ou buscar alternativas que podem gerar insegurança, crise, dívidas, inflação, recessão, desemprego, pessimismo e desesperança.
Nosso projeto acelera o desenvolvimento, amplia investimentos, cria empregos, aumenta salários, qualifica nossos jovens, oferece mais segurança. Ao cumprir o que escrevemos, o Brasil voltou a ter um futuro de prosperidade.
Michel Temer
Presidente da República; ex-vice-presidente (2011-2016, governo Dilma) e ex-presidente da Câmara (1997-2001 e 2009-2010)
O Brasil e os brasileiros têm escolha fundamental a fazer neste ano; continuar no caminho certo, com resultados reais, ou buscar alternativas que podem gerar insegurança
Peço alguns instantes de sua atenção para recordar um número de janeiro de 2016. Na Bolsa de Valores, a Petrobras valia R$ 67 bilhões. Pouco mais de dois anos se passaram. Nesta última semana, a Petrobras reconquistou o título de empresa mais valiosa do Brasil. Ultrapassou os R$ 350 bilhões.
Em 24 meses, recuperamos a Petrobras, o Banco do Brasil, os Correios, a Caixa Econômica Federal; elevamos o PIB a patamar positivo, melhoramos a gestão pública, ajudamos estados e municípios; reformamos leis e instituições. Trabalhamos sem parar.
Recuperamos o Brasil. No aniversário de dois anos de meu governo, aqueles que analisarem com isenção vão constatar: cumprimos o que escrevemos no documento "Ponte Para o Futuro". Transformamos a mais grave recessão da nossa história em crescimento consistente. Trocamos as famosas "pedaladas" por responsabilidade fiscal.
Integramos o Brasil ao mundo, atraindo investimentos e recuperando a credibilidade. Os programas sociais, que estavam ameaçados, têm hoje os melhores indicadores da história.
O resultado está aí: o que antes era desalento agora é trabalho. Quando assumimos, havia uma dilapidação de 150 mil empregos de carteira assinada por mês. Neste ano, registramos um saldo de 204 mil vagas com carteira assinada. E, nos últimos 12 meses, foram criados mais de 1,5 milhão de postos de trabalho.
O Bolsa Família está mais amplo —atende hoje 160 mil famílias a mais do que as 14 milhões do seu recorde anterior, em 2014. Está mais acessível para quem precisa porque zeramos a fila, que chegou a ter quase 2 milhões de famílias em maio de 2015.
Melhoramos a gestão do programa, e o benefício alcançou seu maior poder de compra porque aumentamos seu valor em mais de 100% acima da inflação do período. Financiamos no tempo certo as duas maiores safras da história, que baratearam os alimentos, favorecendo os mais necessitados.
Asseguramos os contratos do Minha Casa, Minha Vida, pagamos os atrasados que encontramos no começo de governo, em maio de 2016, e garantimos a expansão do programa, entregando uma média de 38 mil residências por mês. Fizemos mais e melhor.
Implantamos o Criança Feliz para proteger e acolher a gestante e a primeira infância. Criamos o programa "Progredir", que, pela primeira vez, capacita e emprega jovens de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família.
Em três meses, quase 70 mil deles conseguiram seu lugar no mercado de trabalho. O que deve ser permanente é a formação para melhorar de vida. Movidos por esse espírito, revolucionamos a educação. Reforma do ensino médio, novas 500 mil vagas em tempo integral e capacitação dos professores —o Brasil está apenas começando a colher os avanços da mudança.
Os resultados são incontestáveis em todas as áreas: a menor inflação da história do Plano Real, as menores taxas de juros de nossa história, os dois maiores superávits comerciais, duas safras agrícolas recordes, o maior número de títulos de propriedade (mais de 200 mil), agrária ou urbana, já distribuídos.
A indústria automobilística reagiu, com mais 40% na produção de veículos leves em abril, no comparativo com o mesmo mês de 2017. A produção aquecida e as demandas do comércio (mais 4% na construção civil em 2018) elevaram em 77% as vendas de caminhões em abril deste ano, na comparação com o ano passado. Fizemos nossa parte para essa retomada com a liberação das contas inativas do FGTS, que colocou R$ 44 bilhões na economia e beneficiou 25,9 milhões de trabalhadores.
Desde a primeira hora, saí em busca de mais investimentos, de mais comércio e de mais empregos aos brasileiros. Estive na Ásia, Europa e em nossos vizinhos da América. Trouxemos bilhões em negócios. Saímos do oitavo para o segundo lugar como melhor destino para investimentos em todo o mundo.
A maior quantidade de unidades de conservação por km² de todos os tempos foi criada em minha gestão, superando todos os governos anteriores somados. A maior reserva marinha do mundo foi criada no Brasil por ato da minha Presidência. Reduzimos o desmatamento da Amazônia depois de dois anos de crescimento contínuo na devastação.
Tivemos a coragem de, pela primeira vez, encarar para valer o tema da segurança pública, demanda social prioritária, que a Constituição colocou a cargo dos estados. Criei o Ministério da Segurança Pública e decretei a intervenção federal na área de segurança do Rio de Janeiro.
Os resultados são animadores: o mês de abril já registra considerável redução de crimes violentos e roubos sobre o mês anterior. Na região de Bangu, Gericinó, Padre Miguel, Senador Camará e Vila Kennedy, onde a intervenção concentrou algumas ações, a letalidade violenta registrou o menor número de vítimas para o mês de março desde o início da série histórica. São vidas que foram preservadas. Cada uma delas, uma vitória sobre as milícias e o crime organizado.
Nada disso surgiu por geração espontânea, como alguns querem acreditar ao tentar desvincular nosso trabalho de todos os êxitos econômicos, sociais, ambientais e de segurança. Tamanhos resultados premiam o esforço de uma equipe de alta competência e dedicação ao interesse público. Para alcançá-los, foi preciso dialogar com o Congresso e construir um conjunto de normas que sepultaram o populismo do resultado fácil.
A virada na economia, assim como no resultado das estatais, é fruto dessa fórmula. Trilhamos um caminho de coragem, de mudanças. Tem sido duro, difícil, a ponto de nos custar popularidade, num país ansioso por soluções fáceis. Os resultados estão aí, os números falam mais alto. Fizemos em dois anos o que outros não fizeram em 20 anos.
O Brasil e os brasileiros têm escolha fundamental a fazer neste ano. Continuar no caminho certo, com resultados reais, ou buscar alternativas que podem gerar insegurança, crise, dívidas, inflação, recessão, desemprego, pessimismo e desesperança.
Nosso projeto acelera o desenvolvimento, amplia investimentos, cria empregos, aumenta salários, qualifica nossos jovens, oferece mais segurança. Ao cumprir o que escrevemos, o Brasil voltou a ter um futuro de prosperidade.
Michel Temer
Presidente da República; ex-vice-presidente (2011-2016, governo Dilma) e ex-presidente da Câmara (1997-2001 e 2009-2010)
A guerra do sexo - JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 15/05
Como esquecer as verdadeiras 'minorias sexuais' que sofrem na solidão dos lençóis?
Só agora conheci o movimento "incel". A culpa é do psicopata canadense que matou 10 pessoas e feriu 15 em ataque terrorista.
O psicopata era membro do clube. E o clube, como o próprio nome indica ("incel", ou seja, "involuntary celibates"), é constituído por legiões de infelizes que, incapazes de arranjarem mulheres, desatam a matar as mulheres dos outros (ou, então, os homens que conseguem conquistá-las).
Estranho mundo: antigamente, quem não conseguia mulheres, militava na extrema-esquerda ou na extrema-direita. Hoje, prefere dedicar-se ao terrorismo, seguindo o exemplo dos jihadistas tradicionais que descarregam o ressentimento e a abstinência na humanidade circundante. Que dizer?
Peço desculpa aos psiquiatras, mas a questão também é política. Sobretudo quando "acadêmicos" vários levam a sério o sofrimento dos "incels".
Escreve Ross Douthat, no New York Times, que o debate rola com vigor no mundo anglo-saxônico (curioso: houve tempos em que a imbecilidade teórica era um exclusivo dos franceses; não mais). E a pergunta que domina os melhores espíritos é esta: se a função de uma sociedade civilizada é distribuir de forma justa a propriedade e o dinheiro, por que não o sexo?
Ou, para usar uma linguagem mais polida, se a justiça social implica que os "bens primários" sejam alocados de forma equitativa, não será o prazer sexual um desses bens? Como defender, com cara séria, que o acesso à alimentação e à habitação são necessidades básicas —mas não o sexo?
O caso se adensa quando falamos das pessoas mais afetadas pela ausência de trepidação. Obesos, deficientes, feios. Toda gente fala em nome das minorias. Mas como esquecer as verdadeiras "minorias sexuais" que sofrem na solidão dos lençóis?
A preocupação não é nova. É velha. São incontáveis os tratados utópicos que, nas suas propostas, contemplam igualmente a satisfação carnal dos seus habitantes. Mas pergunto, de espírito aberto, como instituir uma política sexual "inclusiva" no mundo real?
Primeiro, seria necessário estabelecer quem poderia aceder a essa Bolsa Folia (nome hipotético). Ser feio, só por si, nada significa. Será preciso lembrar que Serge Gainsbourg namorou, por ordem alfabética, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve, France Gall, Jane Birkin ou Vanessa Paradis? Desperdiçar "recursos" com um Gainsbourg seria o mesmo que dar o Bolsa Família a Jorge Paulo Lemann.
Seria mais útil, e mais decente, medir a atividade neuronal do candidato quando confrontado com uma foto de corpo inteiro de Gisele Bündchen ou, sei lá, de um João Pereira Coutinho. A massa cinzenta nunca mente.
E os "recursos" propriamente ditos para saciar os famintos?
Sei: a resposta óbvia seria recorrer às profissionais do ofício. Mas a prostituição sempre me pareceu uma degradação das mulheres (e dos homens) que nenhuma sociedade igualitária pode tolerar.
Os robôs sexuais vão pelo mesmo caminho: não são a mesma coisa (dizem, dizem) e, como se viu em Paris neste ano, algumas feministas não toleram a existência de prostíbulos onde os adultos brincam com bonecas e até abusam delas.
Além disso, oferecer simulacros a "celibatários involuntários" seria uma forma trágica de criar novas desigualdades: corpos reais para os privilegiados, robôs sexuais para os excluídos? Pior a emenda que o soneto.
Se todos nós concordamos que a) o sexo é um bem primário e b) todas as pessoas devem ter igual acesso a esses bens, o melhor é não inventar. E seguir um modelo próximo da cobrança de impostos: não existe redistribuição da riqueza pelos mais necessitados sem privar os indivíduos e as famílias de uma parte da sua renda.
Pois bem: se as pessoas já pagam impostos (em dinheiro), talvez o caminho para diminuir a angústia dos "celibatários involuntários" seja pagar outro tipo de imposto (em gêneros). Estou certo que os igualitaristas radicais seriam os primeiros a oferecer os seus serviços.
E para os céticos que tentassem resistir, aconselharia uma primeira abordagem pedagógica (antes da cadeia). Pagamos impostos, não apenas por solidariedade —mas porque esperamos do Estado certas funções sociais de que podemos precisar um dia.
O mesmo vale para o sexo, camaradas: nesta vida, só podemos receber o que estamos dispostos a dar.
João Pereira Coutinho
É escritor português e doutor em ciência política.
Como esquecer as verdadeiras 'minorias sexuais' que sofrem na solidão dos lençóis?
Só agora conheci o movimento "incel". A culpa é do psicopata canadense que matou 10 pessoas e feriu 15 em ataque terrorista.
O psicopata era membro do clube. E o clube, como o próprio nome indica ("incel", ou seja, "involuntary celibates"), é constituído por legiões de infelizes que, incapazes de arranjarem mulheres, desatam a matar as mulheres dos outros (ou, então, os homens que conseguem conquistá-las).
Estranho mundo: antigamente, quem não conseguia mulheres, militava na extrema-esquerda ou na extrema-direita. Hoje, prefere dedicar-se ao terrorismo, seguindo o exemplo dos jihadistas tradicionais que descarregam o ressentimento e a abstinência na humanidade circundante. Que dizer?
Peço desculpa aos psiquiatras, mas a questão também é política. Sobretudo quando "acadêmicos" vários levam a sério o sofrimento dos "incels".
Escreve Ross Douthat, no New York Times, que o debate rola com vigor no mundo anglo-saxônico (curioso: houve tempos em que a imbecilidade teórica era um exclusivo dos franceses; não mais). E a pergunta que domina os melhores espíritos é esta: se a função de uma sociedade civilizada é distribuir de forma justa a propriedade e o dinheiro, por que não o sexo?
Ou, para usar uma linguagem mais polida, se a justiça social implica que os "bens primários" sejam alocados de forma equitativa, não será o prazer sexual um desses bens? Como defender, com cara séria, que o acesso à alimentação e à habitação são necessidades básicas —mas não o sexo?
O caso se adensa quando falamos das pessoas mais afetadas pela ausência de trepidação. Obesos, deficientes, feios. Toda gente fala em nome das minorias. Mas como esquecer as verdadeiras "minorias sexuais" que sofrem na solidão dos lençóis?
A preocupação não é nova. É velha. São incontáveis os tratados utópicos que, nas suas propostas, contemplam igualmente a satisfação carnal dos seus habitantes. Mas pergunto, de espírito aberto, como instituir uma política sexual "inclusiva" no mundo real?
Primeiro, seria necessário estabelecer quem poderia aceder a essa Bolsa Folia (nome hipotético). Ser feio, só por si, nada significa. Será preciso lembrar que Serge Gainsbourg namorou, por ordem alfabética, Brigitte Bardot, Catherine Deneuve, France Gall, Jane Birkin ou Vanessa Paradis? Desperdiçar "recursos" com um Gainsbourg seria o mesmo que dar o Bolsa Família a Jorge Paulo Lemann.
Seria mais útil, e mais decente, medir a atividade neuronal do candidato quando confrontado com uma foto de corpo inteiro de Gisele Bündchen ou, sei lá, de um João Pereira Coutinho. A massa cinzenta nunca mente.
E os "recursos" propriamente ditos para saciar os famintos?
Sei: a resposta óbvia seria recorrer às profissionais do ofício. Mas a prostituição sempre me pareceu uma degradação das mulheres (e dos homens) que nenhuma sociedade igualitária pode tolerar.
Os robôs sexuais vão pelo mesmo caminho: não são a mesma coisa (dizem, dizem) e, como se viu em Paris neste ano, algumas feministas não toleram a existência de prostíbulos onde os adultos brincam com bonecas e até abusam delas.
Além disso, oferecer simulacros a "celibatários involuntários" seria uma forma trágica de criar novas desigualdades: corpos reais para os privilegiados, robôs sexuais para os excluídos? Pior a emenda que o soneto.
Se todos nós concordamos que a) o sexo é um bem primário e b) todas as pessoas devem ter igual acesso a esses bens, o melhor é não inventar. E seguir um modelo próximo da cobrança de impostos: não existe redistribuição da riqueza pelos mais necessitados sem privar os indivíduos e as famílias de uma parte da sua renda.
Pois bem: se as pessoas já pagam impostos (em dinheiro), talvez o caminho para diminuir a angústia dos "celibatários involuntários" seja pagar outro tipo de imposto (em gêneros). Estou certo que os igualitaristas radicais seriam os primeiros a oferecer os seus serviços.
E para os céticos que tentassem resistir, aconselharia uma primeira abordagem pedagógica (antes da cadeia). Pagamos impostos, não apenas por solidariedade —mas porque esperamos do Estado certas funções sociais de que podemos precisar um dia.
O mesmo vale para o sexo, camaradas: nesta vida, só podemos receber o que estamos dispostos a dar.
João Pereira Coutinho
É escritor português e doutor em ciência política.
Lobby do carimbo - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 15/05
Cartórios pressionam contra projetos que buscam a melhora do ambiente de negócios
Há muito se cunhou a expressão “capitalismo cartorial” para caracterizar vícios dos arranjos econômicos do Brasil —em particular, as prebendas do Estado que permitem a grupos influentes obter ganhos vultosos sem preocupações com a competição no mercado.
Os cartórios de fato ilustram à perfeição tais práticas, operando à sombra do poder público e do incomum cipoal burocrático do país.
Até a Constituição de 1988, seus titulares eram indicados por gestão política; depois veio a exigência de concurso —e resta considerável pressão para que se efetivem os apadrinhados remanescentes. Ainda hoje o posto é vitalício.
Alguns indicadores ajudam a dimensionar as recompensas proporcionadas por essas sinecuras. Em 2017, os quase 12 mil tabelionatos nacionais contabilizaram faturamento de R$ 14,65 bilhões, cifra que permanece estável desde 2015.
Dados das declarações do Imposto de Renda das pessoas físicas apontam o comando de cartórios na liderança das ocupações mais bem remuneradas, em média.
Dificilmente um setor com tais benesses se bateria por propostas modernizadoras. Não surpreende, pois, que tenha feito lobby contra o cadastro positivo de devedores e a duplicata eletrônica, dois projetos que buscam melhorar o ambiente de negócios do país.
No primeiro caso, propõe-se a inclusão automática de consumidores em um banco de dados de informações financeiras, de modo que bancos e outras instituições possam identificar os melhores clientes e competir por eles.
No segundo, pretende-se instituir um registro digital obrigatório de títulos negociados entre empresas.
Ambos representam, em alguma medida, ameaça à renda dos cartórios —seja por reduzir a inadimplência e o número de papéis em protesto, seja por eliminar procedimentos tornados arcaicos pelo avanço da eletrônica.
Também em comum, os textos avançam aos trancos num Congresso altamente permeável aos interesses de minorias bem remuneradas e organizadas. Daí se tem uma ideia de como será árduo levar adiante uma agenda de eliminação de privilégios, redução da desigualdade e abertura econômica.
Cartórios pressionam contra projetos que buscam a melhora do ambiente de negócios
Há muito se cunhou a expressão “capitalismo cartorial” para caracterizar vícios dos arranjos econômicos do Brasil —em particular, as prebendas do Estado que permitem a grupos influentes obter ganhos vultosos sem preocupações com a competição no mercado.
Os cartórios de fato ilustram à perfeição tais práticas, operando à sombra do poder público e do incomum cipoal burocrático do país.
Até a Constituição de 1988, seus titulares eram indicados por gestão política; depois veio a exigência de concurso —e resta considerável pressão para que se efetivem os apadrinhados remanescentes. Ainda hoje o posto é vitalício.
Alguns indicadores ajudam a dimensionar as recompensas proporcionadas por essas sinecuras. Em 2017, os quase 12 mil tabelionatos nacionais contabilizaram faturamento de R$ 14,65 bilhões, cifra que permanece estável desde 2015.
Dados das declarações do Imposto de Renda das pessoas físicas apontam o comando de cartórios na liderança das ocupações mais bem remuneradas, em média.
Dificilmente um setor com tais benesses se bateria por propostas modernizadoras. Não surpreende, pois, que tenha feito lobby contra o cadastro positivo de devedores e a duplicata eletrônica, dois projetos que buscam melhorar o ambiente de negócios do país.
No primeiro caso, propõe-se a inclusão automática de consumidores em um banco de dados de informações financeiras, de modo que bancos e outras instituições possam identificar os melhores clientes e competir por eles.
No segundo, pretende-se instituir um registro digital obrigatório de títulos negociados entre empresas.
Ambos representam, em alguma medida, ameaça à renda dos cartórios —seja por reduzir a inadimplência e o número de papéis em protesto, seja por eliminar procedimentos tornados arcaicos pelo avanço da eletrônica.
Também em comum, os textos avançam aos trancos num Congresso altamente permeável aos interesses de minorias bem remuneradas e organizadas. Daí se tem uma ideia de como será árduo levar adiante uma agenda de eliminação de privilégios, redução da desigualdade e abertura econômica.
segunda-feira, maio 14, 2018
Inevitáveis reformas - PAULO GUEDES
O Globo - 14/05
Por despreparo ou covardia, vamos empurrar a falta crônica de empregos e o caos previdenciário para as futuras gerações?
Os regimes trabalhista e previdenciário brasileiros são politicamente anacrônicos, economicamente desastrosos e socialmente perversos. São armas de destruição em massa de nossos empregos, em meio à competição global. Reduzem a competitividade das empresas, fabricam desigualdades sociais, dissipam em consumo corrente a poupança compulsória dos encargos recolhidos, derrubam o crescimento da economia e o valor futuro das aposentadorias. Os excessivos encargos sociais e trabalhistas aumentam o custo de mão de obra para empresas, reduzem as oportunidades de emprego e os salários dos trabalhadores. Condenam à informalidade dezenas de milhões de brasileiros, que deixam por sua vez de contribuir para a Previdência. Com um novo regime, poderíamos baixar encargos, ampliar a base de contribuintes, criar milhões de empregos formais, aumentar a produtividade e os salários dos trabalhadores, aumentar a taxa de poupança, democratizar os lucros e a acumulação de riqueza, melhorar a eficiência dos investimentos e acelerar o crescimento econômico.
O atual regime previdenciário está estruturalmente condenado. Há bombas-relógios a serem pois desarmadas. a Previdência A quebrou primeira antes é demográfica, mesmo do envelhecimento da população. A segunda são os privilégios da classe política e do funcionalismo público em relação aos trabalhadores do setor privado. A terceira é a explosiva mistura de assistência social com benefícios previdenciários. A quarta são os proibitivos encargos sociais e trabalhistas, excluindo pelo menos 30 milhões de trabalhadores do mercado formal e impedindo suas contribuições. A quinta bomba é a dissipação de recursos num ineficiente e corrupto sistema público de repartição, em vez de acumular investimentos em sistema de capitalização da nova indústria previdenciária gerida por agentes privados, sob supervisão pública. A sexta é a dupla indexação dos privilégios previdenciários de uma casta superior, por múltiplos do salário mínimo.
Vamos condenar nossos filhos e netos a cair na mesma armadilha? Por despreparo ou covardia, vamos empurrar a falta crônica de empregos e o caos previdenciário para as futuras gerações? É tempo de escapar da insolvência, do desemprego em massa e do baixo crescimento com as reformas.
Por despreparo ou covardia, vamos empurrar a falta crônica de empregos e o caos previdenciário para as futuras gerações?
Os regimes trabalhista e previdenciário brasileiros são politicamente anacrônicos, economicamente desastrosos e socialmente perversos. São armas de destruição em massa de nossos empregos, em meio à competição global. Reduzem a competitividade das empresas, fabricam desigualdades sociais, dissipam em consumo corrente a poupança compulsória dos encargos recolhidos, derrubam o crescimento da economia e o valor futuro das aposentadorias. Os excessivos encargos sociais e trabalhistas aumentam o custo de mão de obra para empresas, reduzem as oportunidades de emprego e os salários dos trabalhadores. Condenam à informalidade dezenas de milhões de brasileiros, que deixam por sua vez de contribuir para a Previdência. Com um novo regime, poderíamos baixar encargos, ampliar a base de contribuintes, criar milhões de empregos formais, aumentar a produtividade e os salários dos trabalhadores, aumentar a taxa de poupança, democratizar os lucros e a acumulação de riqueza, melhorar a eficiência dos investimentos e acelerar o crescimento econômico.
O atual regime previdenciário está estruturalmente condenado. Há bombas-relógios a serem pois desarmadas. a Previdência A quebrou primeira antes é demográfica, mesmo do envelhecimento da população. A segunda são os privilégios da classe política e do funcionalismo público em relação aos trabalhadores do setor privado. A terceira é a explosiva mistura de assistência social com benefícios previdenciários. A quarta são os proibitivos encargos sociais e trabalhistas, excluindo pelo menos 30 milhões de trabalhadores do mercado formal e impedindo suas contribuições. A quinta bomba é a dissipação de recursos num ineficiente e corrupto sistema público de repartição, em vez de acumular investimentos em sistema de capitalização da nova indústria previdenciária gerida por agentes privados, sob supervisão pública. A sexta é a dupla indexação dos privilégios previdenciários de uma casta superior, por múltiplos do salário mínimo.
Vamos condenar nossos filhos e netos a cair na mesma armadilha? Por despreparo ou covardia, vamos empurrar a falta crônica de empregos e o caos previdenciário para as futuras gerações? É tempo de escapar da insolvência, do desemprego em massa e do baixo crescimento com as reformas.
Pelo ajuste fiscal e pela infraestrutura - RAUL VELLOSO
O Globo - 14/05
Há só uma saída: equacionar a previdência dos servidores, uma sequência natural do esforço de ajuste iniciado na era FH e afinal consolidado na fase Lula
Difícil entender por que a sociedade — governo, imprensa, entidades de classe etc. — não se mobiliza o suficiente para solucionar dois problemas fundamentais do país. Um é a velha questão fiscal, que, em vez de melhorar de forma sustentável, piora a cada ano e impõe tamanha incerteza, a ponto de, por último — e puxada pela queda da taxa de investimento —, estarmos vivendo a pior recessão de nossa história. O outro é a nossa superprecária infraestrutura — particularmente de transportes — em piores condições do que a da grande maioria dos países, em que nossa falta de cuidado impede que o Brasil saia da armadilha do baixo crescimento.
Poucos talvez saibam, mas, além de expandir a capacidade de prestar tais serviços, investir em infraestrutura aumenta mais a produtividade do que no caso de o investimento se dirigir a vários outros setores. É só imaginar a ampliação da fronteira agrícola no oeste brasileiro resultante de um maior investimento em rodovias, ferrovias e portos naquela região, e o quanto isso representaria em termos de maior produção e emprego. Nada contra eles, mas obviamente, muito mais do que numa fábrica de badulaques no Centro-Sul. É incrível que um país com as oportunidades do nosso não aproveite a abundância de recursos financeiros que há muito prevalece nos mercados mundiais e está aí para captarmos. É só se organizar para isso.
Ou seja, na infraestrutura, dinheiro não falta, exceto no setor público. (E aí voltamos à crise fiscal). Em geral, o que falta é planejamento, bons projetos, entendimento de como o setor privado funciona, combate ao populismo exacerbado que impera no país, e coragem para enfrentar os problemas que surgem. Sobre isso, sugiro a leitura dos textos que acabam de ser apresentados ao Fórum Nacional a respeito desses temas, disponíveis em www.inae.org.br, onde há inclusive o link para o vídeo das discussões do encontro.
Com a vantagem de ter insônia com esses assuntos por tantos anos, volto à crise fiscal para dizer que, neste momento, há só uma saída: equacionar a previdência dos servidores, uma sequência natural do esforço de ajuste iniciado na era FH e afinal consolidado na fase Lula. Com menos sofrimento do que se pensa, isso permite apartar um pedaço grande de gasto obrigatório dos orçamentos, e depois dar-lhe o devido tratamento em fundos de pensão, como os que já existem por aí.
Aqui, apesar das vitórias parciais de reduzir a Selic e a inflação, o atual governo passou (e passa) batido. Na verdade, ajustar regras previdenciárias, como tentou e deu com os burros n’água até há pouco, é algo que pode esperar um momento menos explosivo politicamente para ser enfrentado. Mas assistir impassível ao enorme crescimento desse tipo de gasto em todas as esferas, e não fazer nada para dar um basta a essa situação, não dá mais. E fico tremendo só de pensar que, na campanha eleitoral que se inicia, ninguém vai querer tocar nesse tipo de assunto pelo temor de desgaste junto aos eleitores. E virá o velho refrão de pedir a quem sai que
Há só uma saída: equacionar a previdência dos servidores, uma sequência natural do esforço de ajuste iniciado na era FH e afinal consolidado na fase Lula
Difícil entender por que a sociedade — governo, imprensa, entidades de classe etc. — não se mobiliza o suficiente para solucionar dois problemas fundamentais do país. Um é a velha questão fiscal, que, em vez de melhorar de forma sustentável, piora a cada ano e impõe tamanha incerteza, a ponto de, por último — e puxada pela queda da taxa de investimento —, estarmos vivendo a pior recessão de nossa história. O outro é a nossa superprecária infraestrutura — particularmente de transportes — em piores condições do que a da grande maioria dos países, em que nossa falta de cuidado impede que o Brasil saia da armadilha do baixo crescimento.
Poucos talvez saibam, mas, além de expandir a capacidade de prestar tais serviços, investir em infraestrutura aumenta mais a produtividade do que no caso de o investimento se dirigir a vários outros setores. É só imaginar a ampliação da fronteira agrícola no oeste brasileiro resultante de um maior investimento em rodovias, ferrovias e portos naquela região, e o quanto isso representaria em termos de maior produção e emprego. Nada contra eles, mas obviamente, muito mais do que numa fábrica de badulaques no Centro-Sul. É incrível que um país com as oportunidades do nosso não aproveite a abundância de recursos financeiros que há muito prevalece nos mercados mundiais e está aí para captarmos. É só se organizar para isso.
Ou seja, na infraestrutura, dinheiro não falta, exceto no setor público. (E aí voltamos à crise fiscal). Em geral, o que falta é planejamento, bons projetos, entendimento de como o setor privado funciona, combate ao populismo exacerbado que impera no país, e coragem para enfrentar os problemas que surgem. Sobre isso, sugiro a leitura dos textos que acabam de ser apresentados ao Fórum Nacional a respeito desses temas, disponíveis em www.inae.org.br, onde há inclusive o link para o vídeo das discussões do encontro.
Com a vantagem de ter insônia com esses assuntos por tantos anos, volto à crise fiscal para dizer que, neste momento, há só uma saída: equacionar a previdência dos servidores, uma sequência natural do esforço de ajuste iniciado na era FH e afinal consolidado na fase Lula. Com menos sofrimento do que se pensa, isso permite apartar um pedaço grande de gasto obrigatório dos orçamentos, e depois dar-lhe o devido tratamento em fundos de pensão, como os que já existem por aí.
Aqui, apesar das vitórias parciais de reduzir a Selic e a inflação, o atual governo passou (e passa) batido. Na verdade, ajustar regras previdenciárias, como tentou e deu com os burros n’água até há pouco, é algo que pode esperar um momento menos explosivo politicamente para ser enfrentado. Mas assistir impassível ao enorme crescimento desse tipo de gasto em todas as esferas, e não fazer nada para dar um basta a essa situação, não dá mais. E fico tremendo só de pensar que, na campanha eleitoral que se inicia, ninguém vai querer tocar nesse tipo de assunto pelo temor de desgaste junto aos eleitores. E virá o velho refrão de pedir a quem sai que
aprove alguma coisa penosa antes de ir embora, a fim de poupar o inevitável desgaste político ao próximo governante.
As mudanças introduzidas por FH e Lula são perfeitas, exceto porque só farão efeito daqui a 20-30 anos. Até lá o forte crescimento do gasto previdenciário que vem prevalecendo desde muito, e alcança fatias privilegiadas da sociedade, vai continuar acontecendo. Só que algo terá de ser feito, pois os orçamentos já estão completamente estrangulados, uns mais, outros um pouco menos. Quem teve força suficiente já avançou, e hoje abocanha uma fatia relevante. São os que chamo de “donos do Orçamento”.
Vejam que de 2002 a 2017, o gasto com os aposentados/pensionistas do conjunto dos estados, setor onde se situam os maiores problemas, subiu nada menos que 111% acima da inflação, enquanto o PIB real, açoitado pela recessão, subia apenas 28%. O que obviamente não se sustenta. O fatores básicos são que o percentual de idosos da população brasileira aumenta cada vez mais, combinado com as vergonhosas regras de dar aos aposentados os mesmos reajustes obtidos pelos ativos, em cima de benefícios que foram calculados pelos últimos salários da fase ativa (“paridade” e “integralidade”). Esses “direitos”, pelas regras atuais, só vão diminuir daqui a 20-30 anos.
A criação de fundos de pensão para “saldar” a dívida previdenciária está prevista na Carta Magna, e essa tarefa é bastante conhecida dos brasileiros, que tantos fundos desse tipo já montaram com sucesso nos últimos 50-100 anos. É só arregaçar as mangas e trabalhar.
As mudanças introduzidas por FH e Lula são perfeitas, exceto porque só farão efeito daqui a 20-30 anos. Até lá o forte crescimento do gasto previdenciário que vem prevalecendo desde muito, e alcança fatias privilegiadas da sociedade, vai continuar acontecendo. Só que algo terá de ser feito, pois os orçamentos já estão completamente estrangulados, uns mais, outros um pouco menos. Quem teve força suficiente já avançou, e hoje abocanha uma fatia relevante. São os que chamo de “donos do Orçamento”.
Vejam que de 2002 a 2017, o gasto com os aposentados/pensionistas do conjunto dos estados, setor onde se situam os maiores problemas, subiu nada menos que 111% acima da inflação, enquanto o PIB real, açoitado pela recessão, subia apenas 28%. O que obviamente não se sustenta. O fatores básicos são que o percentual de idosos da população brasileira aumenta cada vez mais, combinado com as vergonhosas regras de dar aos aposentados os mesmos reajustes obtidos pelos ativos, em cima de benefícios que foram calculados pelos últimos salários da fase ativa (“paridade” e “integralidade”). Esses “direitos”, pelas regras atuais, só vão diminuir daqui a 20-30 anos.
A criação de fundos de pensão para “saldar” a dívida previdenciária está prevista na Carta Magna, e essa tarefa é bastante conhecida dos brasileiros, que tantos fundos desse tipo já montaram com sucesso nos últimos 50-100 anos. É só arregaçar as mangas e trabalhar.
Uma resposta deslavada - LUIZ FELIPE PONDÉ
FOLHA DE SP - 14/05
Sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas tá OK?
Vou propor hoje uma questão para sua segunda-feira. Dedico-a aos inteligentinhos do Brasil. Sabe-se que a filosofia, desde a Grécia, indaga-se acerca do chamado “relativismo”. Os sofistas eram os filósofos gregos que o defendiam: “o homem é a medida de todas as coisas” é uma máxima atribuída a Protágoras (481 a.C.–411 a.C.).
Grosso modo, relativista é quem entende que não existe verdade absoluta, nem moral absoluta, nem crença absoluta. Tudo depende do ponto de vista, da cultura, do momento histórico, enfim, “cada um é cada um”, como dizem os mais jovens. Claro que você já percebeu que ser relativista é bem contemporâneo.
Uma das formas mais importantes de relativismo é aquele “científico”, abraçado pela antropologia moderna. Segundo esta, é o conjunto de crenças, práticas e hábitos que determina o universo do que é verdade e do que é mentira, do que é bem e do que é mal, do que é certo e do que é errado. Logo, não havendo um conjunto único de crenças, práticas e hábitos na história humana, podemos afirmar que não há uma compreensão única do que é verdade ou mentira, bem ou mal, certo ou errado.
Lamento, mas a moçada dos direitos humanos é etnocêntrica, eurocêntrica e, portanto, “opressora”. Seria uma espécie de cristãos sem Jesus. Mas, não precisamos ir tão longe e estragar de forma tão radical a semana dos inteligentinhos. Nem temos esse poder. Mas, podemos, pelo menos, colocar uma questão para a moçada que defende o relativismo antropológico assim como quem toma chá natural. E para quem não defende também vale a reflexão.
Será que o que eu vou relatar é fake news? Ou verdade? Vamos aos fatos. Arqueólogos descobriram na costa norte do Peru, a cerca de 300 km do oceano Pacífico, região outrora habitada por uma civilização “pré-colombiana” (termo etnocêntrico, claro), conhecida como Chimú, 140 restos de crianças que, pelos sinais que os corpos apresentam, foram oferecidas em sacrifício.
A tinta encontrada nas cabeças das 140 crianças mortas parece ser a mesma tinta conhecida como a utilizada em seus rituais religiosos. Aliás, 200 baby lhamas também foram mortas no mesmo “evento”. Coitadinhas das baby llhamas. Que diriam os veganos disso? Coitadinhas das crianças também, claro.
O peito aberto das crianças parece indicar que o coração delas foi retirado (não há traços dos corações) durante o processo. Talvez para rituais canibais religiosos. Esse fato parece ter ocorrido 550 anos atrás, antes de os terríveis espanhóis chegarem. Vale salientar que achados semelhantes foram encontrados na região da atual capital do México: 42 crianças mortas em rituais. Estas, fruto da civilização asteca, também destruída pelos terríveis espanhóis.
Agora voltemos ao tema do relativismo. A questão que proponho nesta segunda-feira é: o que dizer desses achados? Vou responder de modo relativista, tá? Não quero incorrer no pecado capital do etnocentrismo.
Sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas (não vamos ser humanocêntricos e esquecer dos baby llhamas mortos também!) não é errado. E por que não? Se levarmos em conta o conjunto de crenças, práticas e hábitos desses povos, sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas está justificado por esse mesmo conjunto de crenças, práticas e hábitos. Questão resolvida. Vamos trabalhar.
Mas, antes, peço um momento de reflexão. É fato evidente que, se não levarmos em conta esse conjunto de crenças, práticas e hábitos, nunca seremos capazes de entender esse mesmo conjunto de crenças, práticas e hábitos. E, por consequência, jamais entenderemos o “Outro”. Como esse problema é uma questão de método, não podemos fugir da posição relativista se quisermos compreender o mundo dos diferentes conjuntos de crenças, práticas e hábitos culturais.
Imagino como reagiria o “novo mundo dos comentários”, esse pequeno inferno de bolso criado pelas mídias sociais, a achados como esse. E também à minha “deslavada” resposta relativista. Como fica a tal ética do “Outro” nessa? Como alguém em sã consciência pode não se revoltar com tamanho ato de violência contra crianças e baby llhamas (não esqueçamos delas!)? Desafio a qualquer inteligentinho dar a mesma resposta “deslavada” que dei.
Difícil de engolir? Vou te ajudar. Entenda que sua absurda revolta é, apenas, um brutal ato de etnocentrismo, portanto cale-se e vá trabalhar.
Luiz Felipe Pondé
Pernambucano, é escritor, filósofo e ensaísta. Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap.
Sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas tá OK?
Vou propor hoje uma questão para sua segunda-feira. Dedico-a aos inteligentinhos do Brasil. Sabe-se que a filosofia, desde a Grécia, indaga-se acerca do chamado “relativismo”. Os sofistas eram os filósofos gregos que o defendiam: “o homem é a medida de todas as coisas” é uma máxima atribuída a Protágoras (481 a.C.–411 a.C.).
Grosso modo, relativista é quem entende que não existe verdade absoluta, nem moral absoluta, nem crença absoluta. Tudo depende do ponto de vista, da cultura, do momento histórico, enfim, “cada um é cada um”, como dizem os mais jovens. Claro que você já percebeu que ser relativista é bem contemporâneo.
Uma das formas mais importantes de relativismo é aquele “científico”, abraçado pela antropologia moderna. Segundo esta, é o conjunto de crenças, práticas e hábitos que determina o universo do que é verdade e do que é mentira, do que é bem e do que é mal, do que é certo e do que é errado. Logo, não havendo um conjunto único de crenças, práticas e hábitos na história humana, podemos afirmar que não há uma compreensão única do que é verdade ou mentira, bem ou mal, certo ou errado.
Lamento, mas a moçada dos direitos humanos é etnocêntrica, eurocêntrica e, portanto, “opressora”. Seria uma espécie de cristãos sem Jesus. Mas, não precisamos ir tão longe e estragar de forma tão radical a semana dos inteligentinhos. Nem temos esse poder. Mas, podemos, pelo menos, colocar uma questão para a moçada que defende o relativismo antropológico assim como quem toma chá natural. E para quem não defende também vale a reflexão.
Será que o que eu vou relatar é fake news? Ou verdade? Vamos aos fatos. Arqueólogos descobriram na costa norte do Peru, a cerca de 300 km do oceano Pacífico, região outrora habitada por uma civilização “pré-colombiana” (termo etnocêntrico, claro), conhecida como Chimú, 140 restos de crianças que, pelos sinais que os corpos apresentam, foram oferecidas em sacrifício.
A tinta encontrada nas cabeças das 140 crianças mortas parece ser a mesma tinta conhecida como a utilizada em seus rituais religiosos. Aliás, 200 baby lhamas também foram mortas no mesmo “evento”. Coitadinhas das baby llhamas. Que diriam os veganos disso? Coitadinhas das crianças também, claro.
O peito aberto das crianças parece indicar que o coração delas foi retirado (não há traços dos corações) durante o processo. Talvez para rituais canibais religiosos. Esse fato parece ter ocorrido 550 anos atrás, antes de os terríveis espanhóis chegarem. Vale salientar que achados semelhantes foram encontrados na região da atual capital do México: 42 crianças mortas em rituais. Estas, fruto da civilização asteca, também destruída pelos terríveis espanhóis.
Agora voltemos ao tema do relativismo. A questão que proponho nesta segunda-feira é: o que dizer desses achados? Vou responder de modo relativista, tá? Não quero incorrer no pecado capital do etnocentrismo.
Sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas (não vamos ser humanocêntricos e esquecer dos baby llhamas mortos também!) não é errado. E por que não? Se levarmos em conta o conjunto de crenças, práticas e hábitos desses povos, sacrificar 140 crianças, comer seus corações e sacrificar 200 baby llhamas está justificado por esse mesmo conjunto de crenças, práticas e hábitos. Questão resolvida. Vamos trabalhar.
Mas, antes, peço um momento de reflexão. É fato evidente que, se não levarmos em conta esse conjunto de crenças, práticas e hábitos, nunca seremos capazes de entender esse mesmo conjunto de crenças, práticas e hábitos. E, por consequência, jamais entenderemos o “Outro”. Como esse problema é uma questão de método, não podemos fugir da posição relativista se quisermos compreender o mundo dos diferentes conjuntos de crenças, práticas e hábitos culturais.
Imagino como reagiria o “novo mundo dos comentários”, esse pequeno inferno de bolso criado pelas mídias sociais, a achados como esse. E também à minha “deslavada” resposta relativista. Como fica a tal ética do “Outro” nessa? Como alguém em sã consciência pode não se revoltar com tamanho ato de violência contra crianças e baby llhamas (não esqueçamos delas!)? Desafio a qualquer inteligentinho dar a mesma resposta “deslavada” que dei.
Difícil de engolir? Vou te ajudar. Entenda que sua absurda revolta é, apenas, um brutal ato de etnocentrismo, portanto cale-se e vá trabalhar.
Luiz Felipe Pondé
Pernambucano, é escritor, filósofo e ensaísta. Doutor em filosofia pela USP, é professor da PUC e da Faap.
domingo, maio 13, 2018
Precisa disso? - J.R. GUZZO
REVISTA VEJA, edição nº 2582
Nunca aconteceu em nenhuma democracia do mundo, em nenhuma época, um caso de político que tenha sido preso por fazer política. Alguém sabe de algum parlamentar da Inglaterra, por exemplo, punido por fazer um discurso contra o governo? Ou de um deputado da França, Estados Unidos ou Alemanha cassado por desfilar numa passeata, fazer um comício ou organizar uma reunião com militantes do seu partido? Ou por brigar com uma autoridade qualquer? É claro que ninguém jamais ouviu falar de nada disso, nem vai ouvir falar, porque numa democracia a atividade política é livre. Ou seja: nenhum político precisa de “foro privilegiado” ou “imunidade parlamentar” para se proteger de qualquer tipo de perseguição quando está no exercício legítimo dos seus direitos e funções — venha a perseguição do Executivo, do Judiciário ou de onde vier. Ao mesmo tempo, segundo a lógica mais simples, vai ser processado como todos os demais cidadãos se roubar o cofre do governo ou der um tiro na cabeça do vizinho.
Crime político? Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta. O que existe é crime mesmo, previsto no Código Penal, e quando alguém comete um crime tem de responder por ele na Justiça comum. Tanto faz se for deputado, governador ou astronauta. Se é acusado de um ato criminoso, que arrume um advogado e vá se defender. Se não fez nada proibido nas leis penais, não precisa de imunidade nenhuma. Qualquer zé-mané entende isso em dois minutos. Só não entendem os políticos, magistrados e intelectuais que raciocinam em bloco e aparecem na mídia ensinando como funciona o mundo. Na verdade, não querem entender. O que eles querem, isto sim, é impedir que os homens públicos corram o risco de ir para a cadeia — e não apenas por corrupção, como é normal esperar de um indivíduo que entra na vida política brasileira, mas por qualquer crime já concebido e praticado pelo ser humano desde que Caim matou Abel.
Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta
Se você estiver achando que há algo errado com essa comédia degenerada, espere pelo segundo ato. O “foro privilegiado” não se limita aos políticos: neste preciso momento, protege 55 000 pessoas em todo o Brasil. É impossível pensar num país sério no qual existam 55 000 sujeitos que têm uma licença virtual de cometer crimes — pois o “foro privilegiado”, na vida real, torna praticamente impunes os criminosos que contam com esse privilégio, como diz o próprio nome da tramoia. É por isso, exatamente, que o Brasil não tem a menor chance de ser confundido com um país sério. Entram nesse cardume prodigioso, além do presidente da República e do vice, todos os ministros de Estado, os comandantes das três armas e os governadores. Junte aí deputado federal, senador, prefeito, mais a ministrada dos “tribunais superiores”: o STF, o STJ, o militar, o eleitoral e até o do “trabalho”. Também estão a salvo os conselheiros dos tribunais de contas, os procuradores federais e estaduais, os desembargadores e juízes federais, os desembargadores e juízes estaduais — enfim, é um milagre que não tenham enfiado aí os juízes de futebol e os bandeirinhas.
Quem poderia acabar com essa aberração? A última tentativa foi feita, ao que parece, no STF. Mas não foi. No mundo das coisas práticas, mais uma vez, houve muita falação, muita data venia e muita cara séria fazendo discurso sobre o “Estado de direito” — mas ação mesmo, que é bom, nada. Como sempre, ficaram ciscando durante horas a fio numa língua que poderia ser o servo-croata (pior: se fosse em servo-croata um cidadão da Sérvia ou da Croácia, pelo menos, iria entender alguma coisa), e no fim acabaram não indo nem para diante, nem para trás, nem para os lados. Qual é o problema dessa gente? Existem no mundo coisas permitidas e coisas proibidas. As coisas proibidas não podem ser feitas — nenhum cidadão pode cometer estupro, guiar embriagado ou assaltar um banco. Não há exceções. Em lugar nenhum está dito que há dois tipos de estupro, por exemplo — o cometido por um indivíduo comum e o cometido por um dos 55 000 portadores de “foro privilegiado”. Se o senador, o conselheiro de contas ou o “juiz do trabalho” praticarem algum desses crimes, paciência. Vão ter de ser indiciados em inquérito policial, denunciados, julgados e punidos. Fim de conversa.
Não aqui. Aqui as leis são feitas para a conversa não acabar nunca. Os leigos podem não entender isso — mas é preciso preservar os “agentes do Estado” de acusações injustas, não é mesmo? Se não for assim, o Brasil vai acabar virando uma baderna.
Nunca aconteceu em nenhuma democracia do mundo, em nenhuma época, um caso de político que tenha sido preso por fazer política. Alguém sabe de algum parlamentar da Inglaterra, por exemplo, punido por fazer um discurso contra o governo? Ou de um deputado da França, Estados Unidos ou Alemanha cassado por desfilar numa passeata, fazer um comício ou organizar uma reunião com militantes do seu partido? Ou por brigar com uma autoridade qualquer? É claro que ninguém jamais ouviu falar de nada disso, nem vai ouvir falar, porque numa democracia a atividade política é livre. Ou seja: nenhum político precisa de “foro privilegiado” ou “imunidade parlamentar” para se proteger de qualquer tipo de perseguição quando está no exercício legítimo dos seus direitos e funções — venha a perseguição do Executivo, do Judiciário ou de onde vier. Ao mesmo tempo, segundo a lógica mais simples, vai ser processado como todos os demais cidadãos se roubar o cofre do governo ou der um tiro na cabeça do vizinho.
Crime político? Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta. O que existe é crime mesmo, previsto no Código Penal, e quando alguém comete um crime tem de responder por ele na Justiça comum. Tanto faz se for deputado, governador ou astronauta. Se é acusado de um ato criminoso, que arrume um advogado e vá se defender. Se não fez nada proibido nas leis penais, não precisa de imunidade nenhuma. Qualquer zé-mané entende isso em dois minutos. Só não entendem os políticos, magistrados e intelectuais que raciocinam em bloco e aparecem na mídia ensinando como funciona o mundo. Na verdade, não querem entender. O que eles querem, isto sim, é impedir que os homens públicos corram o risco de ir para a cadeia — e não apenas por corrupção, como é normal esperar de um indivíduo que entra na vida política brasileira, mas por qualquer crime já concebido e praticado pelo ser humano desde que Caim matou Abel.
Não existe “crime político” em nenhum regime democrático deste planeta
Se você estiver achando que há algo errado com essa comédia degenerada, espere pelo segundo ato. O “foro privilegiado” não se limita aos políticos: neste preciso momento, protege 55 000 pessoas em todo o Brasil. É impossível pensar num país sério no qual existam 55 000 sujeitos que têm uma licença virtual de cometer crimes — pois o “foro privilegiado”, na vida real, torna praticamente impunes os criminosos que contam com esse privilégio, como diz o próprio nome da tramoia. É por isso, exatamente, que o Brasil não tem a menor chance de ser confundido com um país sério. Entram nesse cardume prodigioso, além do presidente da República e do vice, todos os ministros de Estado, os comandantes das três armas e os governadores. Junte aí deputado federal, senador, prefeito, mais a ministrada dos “tribunais superiores”: o STF, o STJ, o militar, o eleitoral e até o do “trabalho”. Também estão a salvo os conselheiros dos tribunais de contas, os procuradores federais e estaduais, os desembargadores e juízes federais, os desembargadores e juízes estaduais — enfim, é um milagre que não tenham enfiado aí os juízes de futebol e os bandeirinhas.
Quem poderia acabar com essa aberração? A última tentativa foi feita, ao que parece, no STF. Mas não foi. No mundo das coisas práticas, mais uma vez, houve muita falação, muita data venia e muita cara séria fazendo discurso sobre o “Estado de direito” — mas ação mesmo, que é bom, nada. Como sempre, ficaram ciscando durante horas a fio numa língua que poderia ser o servo-croata (pior: se fosse em servo-croata um cidadão da Sérvia ou da Croácia, pelo menos, iria entender alguma coisa), e no fim acabaram não indo nem para diante, nem para trás, nem para os lados. Qual é o problema dessa gente? Existem no mundo coisas permitidas e coisas proibidas. As coisas proibidas não podem ser feitas — nenhum cidadão pode cometer estupro, guiar embriagado ou assaltar um banco. Não há exceções. Em lugar nenhum está dito que há dois tipos de estupro, por exemplo — o cometido por um indivíduo comum e o cometido por um dos 55 000 portadores de “foro privilegiado”. Se o senador, o conselheiro de contas ou o “juiz do trabalho” praticarem algum desses crimes, paciência. Vão ter de ser indiciados em inquérito policial, denunciados, julgados e punidos. Fim de conversa.
Não aqui. Aqui as leis são feitas para a conversa não acabar nunca. Os leigos podem não entender isso — mas é preciso preservar os “agentes do Estado” de acusações injustas, não é mesmo? Se não for assim, o Brasil vai acabar virando uma baderna.
A lógica do “Estado-Babá” - CLAUDIO DE MOURA CASTRO
REVISTA VEJA - EDIÇÃO nº 2582
A defesa da qualidade era mera cortina de fumaça
Em uma economia de mercado, como é a nossa (apesar das imperfeições), cabe ao Estado monitorar e estimular a qualidade da educação privada. Isso se faz por regulação e competição. Ele deve também garantir um amplo fluxo de informações, essencial para quem precisa tomar decisões. O risco de não haver demanda, ou seja, candidatos aos cursos, é de cada dono de faculdade. Se há emprego para quem se forma, isso é responsabilidade de quem pretende se matricular. O Estado fica de fora.
Universidades públicas devem incluir o interesse social e as necessidades da economia. Contudo, não faz sentido gastar em cursos em que não haja candidatos à matrícula ou cujos graduados não encontram empregos. O ministro Paulo Renato Souza descobriu que, até para reduzir vagas, o MEC exigia autorização. Naquele momento, florescia uma tal de “demanda social”, conceito inexistente na teoria econômica. De fato, a demanda é apenas a função que associa o preço a pagar com o número de candidatos que se apresentam aos vestibulares. A palavra “social” apenas confunde.
No fundo, era uma cortina de fumaça para os lobbies dos que já estavam operando no local onde alguém ousava querer abrir um curso. O que parecia uma cruzada contra a “mercantilização do ensino” não passava de proteção ao capitalista que chegou primeiro. “Qualidade” era mera cortina de fumaça. Reinava o Estado-babá, exarando a sua sapiência para decretar se em Cabrobó havia mercado para mais um curso de fisioterapia. Como mais da metade dos graduados de ensino superior não exerce a profissão — o que é normal e esperado —, como decidir se vender terrenos conta como mercado para fisioterapeutas? Em boa hora, a “demanda social” foi defenestrada.
Mas demos um passo atrás. Para deleite dos lobbies, o conceito foi exumado. Em particular na medicina, os grupos de interesse denunciam a má qualidade dos cursos, pregando que não se abram mais faculdades. Em que pese ser certeira, a denúncia de má qualidade refere-se aos cursos que estão operando legalmente. Impedir que outros sejam criados não mitiga as deficiências dos existentes. Se a preocupação é com a qualidade, cumpre levantar a barra para todos, novos e velhos. Se alguém apresenta um projeto convincente, não importa onde seja, ele deve ser autorizado. E, se algum curso existente não atinge o limiar de qualidade estipulado, que seja fechado. Os exames seriados que estão sendo instituídos fazem muito mais sentido. O mesmo com as provas para médicos recém-graduados em São Paulo. É preciso não confundir políticas públicas de estímulo à criação de escolas em regiões problemáticas com a liberdade para o setor privado de operar onde quiser, desde que ofereça a qualidade estipulada.
Pela regra da “demanda social”, novas escolas de medicina foram autorizadas nos municípios vizinhos, mas não nas capitais, que estariam saturadas de outras escolas. O resultado é uma grande procissão de alunos das capitais às escolas dos municípios vizinhos. Ainda não foi encontrada a evidência de que isso promove a interiorização, mas o tamanho do fluxo nega a saturação do mercado.
A defesa da qualidade era mera cortina de fumaça
Em uma economia de mercado, como é a nossa (apesar das imperfeições), cabe ao Estado monitorar e estimular a qualidade da educação privada. Isso se faz por regulação e competição. Ele deve também garantir um amplo fluxo de informações, essencial para quem precisa tomar decisões. O risco de não haver demanda, ou seja, candidatos aos cursos, é de cada dono de faculdade. Se há emprego para quem se forma, isso é responsabilidade de quem pretende se matricular. O Estado fica de fora.
Universidades públicas devem incluir o interesse social e as necessidades da economia. Contudo, não faz sentido gastar em cursos em que não haja candidatos à matrícula ou cujos graduados não encontram empregos. O ministro Paulo Renato Souza descobriu que, até para reduzir vagas, o MEC exigia autorização. Naquele momento, florescia uma tal de “demanda social”, conceito inexistente na teoria econômica. De fato, a demanda é apenas a função que associa o preço a pagar com o número de candidatos que se apresentam aos vestibulares. A palavra “social” apenas confunde.
No fundo, era uma cortina de fumaça para os lobbies dos que já estavam operando no local onde alguém ousava querer abrir um curso. O que parecia uma cruzada contra a “mercantilização do ensino” não passava de proteção ao capitalista que chegou primeiro. “Qualidade” era mera cortina de fumaça. Reinava o Estado-babá, exarando a sua sapiência para decretar se em Cabrobó havia mercado para mais um curso de fisioterapia. Como mais da metade dos graduados de ensino superior não exerce a profissão — o que é normal e esperado —, como decidir se vender terrenos conta como mercado para fisioterapeutas? Em boa hora, a “demanda social” foi defenestrada.
Mas demos um passo atrás. Para deleite dos lobbies, o conceito foi exumado. Em particular na medicina, os grupos de interesse denunciam a má qualidade dos cursos, pregando que não se abram mais faculdades. Em que pese ser certeira, a denúncia de má qualidade refere-se aos cursos que estão operando legalmente. Impedir que outros sejam criados não mitiga as deficiências dos existentes. Se a preocupação é com a qualidade, cumpre levantar a barra para todos, novos e velhos. Se alguém apresenta um projeto convincente, não importa onde seja, ele deve ser autorizado. E, se algum curso existente não atinge o limiar de qualidade estipulado, que seja fechado. Os exames seriados que estão sendo instituídos fazem muito mais sentido. O mesmo com as provas para médicos recém-graduados em São Paulo. É preciso não confundir políticas públicas de estímulo à criação de escolas em regiões problemáticas com a liberdade para o setor privado de operar onde quiser, desde que ofereça a qualidade estipulada.
Pela regra da “demanda social”, novas escolas de medicina foram autorizadas nos municípios vizinhos, mas não nas capitais, que estariam saturadas de outras escolas. O resultado é uma grande procissão de alunos das capitais às escolas dos municípios vizinhos. Ainda não foi encontrada a evidência de que isso promove a interiorização, mas o tamanho do fluxo nega a saturação do mercado.
Argentina, de volta aos anos 1990 - SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 13/05
O exemplo argentino indica que acertamos na estratégia de choque contra a inflação
A Argentina vai ao Fundo Monetário Internacional. A economia apresenta um déficit de transações com o exterior --contando comércio de bens e serviços e pagamento de juros, lucros e dividendos-- de 5% do PIB, ou uns US$ 30 bilhões.
A dívida pública, somente do governo central, é da ordem de 50% do PIB, sendo que 70% dela é denominada em moeda externa. Quando o câmbio se desvaloriza, a dívida pública aumenta.
Vale entender como chegamos aqui.
Algum tempo depois da grande crise na Argentina entre o fim de 2001 e o início de 2002, quando o país decretou moratória da dívida externa e acabou com a paridade fixa entre o peso argentino e o dólar americano, registrou-se, já no período Kirchner, forte ritmo de crescimento.
Entre 2002 e 2011, a economia cresceu a uma média anual de 6,3%, ou 74% em nove anos.
Três motivos explicam o crescimento: o ponto inicial com elevada ociosidade, em seguida à crise fortíssima; os efeitos benéficos do longo ciclo de commodities; e a colheita das reformas institucionais do governo Menem. Da mesma forma pela qual Lula colheu parte dos benefícios das políticas liberalizantes de FHC.
Evidentemente, o boom de commodities passou, a ociosidade terminou e os efeitos benéficos das reformas institucionais do período Cavallo passaram. Como ocorreu por aqui.
Tanto lá quanto cá, quando o crescimento fraquejou, optou-se por manter a política de pé embaixo. Até esse ponto o paralelismo surpreende.
Por aqui, entretanto, por alguma razão a tolerância do eleitor à inflação e à bagunça fiscal é, em geral, mais baixa. Dilma no segundo mandato começou a arrumar a casa, tanto com Joaquim Levy quanto com Nelson Barbosa. Temer, com Meirelles, continuou.
Muito há a ser feito. No entanto, estamos no caminho certo. Falta a sociedade se pronunciar nas eleições e negociar os detalhes do ajuste fiscal estrutural.
Na Argentina, Cristina Kirchner dobrou a aposta e passou para a oposição a economia estagnada há muitos anos, com inflação na casa de 30% anuais, além do atraso tarifário e do elevado desequilíbrio fiscal.
Chegou um momento em que os desequilíbrios macroeconômicos teriam de ser enfrentados. A arrumação da casa caiu no colo do governo Mauricio Macri.
O desastre com a inflação é que, uma vez ela tendo início, é muito difícil derrubá-la --e impossível sem custo social. A desorganização representada pela elevação sistemática dos preços demanda aumento do desemprego e da ociosidade. É o doloroso mecanismo disciplinador para impedir aumentos excessivos dos salários e dos preços.
Macri calculou que era mais viável politicamente uma estratégia gradual de enfrentamento da inflação. Talvez a existência por lá de eleição de meio de mandato, que encurta de quatro anos para dois anos o prazo para que o Executivo colha os efeitos benéficos dos ajustes inicialmente implantados, tenha pesado na escolha da estratégia gradual.
O gradualismo tinha como uma de suas hipóteses juro zero mundo afora a perder de vista. Os títulos do Tesouro americano de dez anos rodando a 3% ao ano abortaram o gradualismo.
O exemplo argentino indica que acertamos em termos adotado estratégia de choque no combate à inflação.
HETERODOXIA
A ótima coluna de Nelson Barbosa de sexta-feira (11) neste espaço mostrou que não necessariamente heterodoxia é incompatível com responsabilidade fiscal.
Samuel Pessôa
Físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV
O exemplo argentino indica que acertamos na estratégia de choque contra a inflação
A Argentina vai ao Fundo Monetário Internacional. A economia apresenta um déficit de transações com o exterior --contando comércio de bens e serviços e pagamento de juros, lucros e dividendos-- de 5% do PIB, ou uns US$ 30 bilhões.
A dívida pública, somente do governo central, é da ordem de 50% do PIB, sendo que 70% dela é denominada em moeda externa. Quando o câmbio se desvaloriza, a dívida pública aumenta.
Vale entender como chegamos aqui.
Algum tempo depois da grande crise na Argentina entre o fim de 2001 e o início de 2002, quando o país decretou moratória da dívida externa e acabou com a paridade fixa entre o peso argentino e o dólar americano, registrou-se, já no período Kirchner, forte ritmo de crescimento.
Entre 2002 e 2011, a economia cresceu a uma média anual de 6,3%, ou 74% em nove anos.
Três motivos explicam o crescimento: o ponto inicial com elevada ociosidade, em seguida à crise fortíssima; os efeitos benéficos do longo ciclo de commodities; e a colheita das reformas institucionais do governo Menem. Da mesma forma pela qual Lula colheu parte dos benefícios das políticas liberalizantes de FHC.
Evidentemente, o boom de commodities passou, a ociosidade terminou e os efeitos benéficos das reformas institucionais do período Cavallo passaram. Como ocorreu por aqui.
Tanto lá quanto cá, quando o crescimento fraquejou, optou-se por manter a política de pé embaixo. Até esse ponto o paralelismo surpreende.
Por aqui, entretanto, por alguma razão a tolerância do eleitor à inflação e à bagunça fiscal é, em geral, mais baixa. Dilma no segundo mandato começou a arrumar a casa, tanto com Joaquim Levy quanto com Nelson Barbosa. Temer, com Meirelles, continuou.
Muito há a ser feito. No entanto, estamos no caminho certo. Falta a sociedade se pronunciar nas eleições e negociar os detalhes do ajuste fiscal estrutural.
Na Argentina, Cristina Kirchner dobrou a aposta e passou para a oposição a economia estagnada há muitos anos, com inflação na casa de 30% anuais, além do atraso tarifário e do elevado desequilíbrio fiscal.
Chegou um momento em que os desequilíbrios macroeconômicos teriam de ser enfrentados. A arrumação da casa caiu no colo do governo Mauricio Macri.
O desastre com a inflação é que, uma vez ela tendo início, é muito difícil derrubá-la --e impossível sem custo social. A desorganização representada pela elevação sistemática dos preços demanda aumento do desemprego e da ociosidade. É o doloroso mecanismo disciplinador para impedir aumentos excessivos dos salários e dos preços.
Macri calculou que era mais viável politicamente uma estratégia gradual de enfrentamento da inflação. Talvez a existência por lá de eleição de meio de mandato, que encurta de quatro anos para dois anos o prazo para que o Executivo colha os efeitos benéficos dos ajustes inicialmente implantados, tenha pesado na escolha da estratégia gradual.
O gradualismo tinha como uma de suas hipóteses juro zero mundo afora a perder de vista. Os títulos do Tesouro americano de dez anos rodando a 3% ao ano abortaram o gradualismo.
O exemplo argentino indica que acertamos em termos adotado estratégia de choque no combate à inflação.
HETERODOXIA
A ótima coluna de Nelson Barbosa de sexta-feira (11) neste espaço mostrou que não necessariamente heterodoxia é incompatível com responsabilidade fiscal.
Samuel Pessôa
Físico com doutorado em economia, ambos pela USP, sócio da consultoria Reliance e pesquisador do Ibre-FGV
Vamos propor algo diferente? - MARCOS LISBOA
FOLHA DE SP - 13/05
Alguns assessores de candidatos deveriam ser mais precisos sobre a desvalorização cambial
O setor produtivo no Brasil enfrenta graves problemas no lado de fora da fábrica.
A infraestrutura deficiente, a estrutura tributária disfuncional, a baixa qualidade da educação, o alto custo do capital e a insegurança jurídica prejudicam as empresas há muito tempo. O resultado tem sido o baixo crescimento da nossa economia desde 1995, em comparação com os demais países emergentes.
Apesar dessa imensidão de problemas, alguns insistem no binômio juros-câmbio como o principal desafio para o país. Essa insistência é ainda mais curiosa tendo em vista que, há poucos anos, o governo expandiu o crédito subsidiado, com baixas taxas de juros, e o resultado não foi maior crescimento.
Além disso, a ausência de crise nas contas externas nos últimos 15 anos mostra que algo melhorou desde a adoção do câmbio flutuante. Até então, o governo fixava o câmbio e eram recorrentes as crises externas.
Existem duas principais formas de o governo desvalorizar o câmbio. A primeira é aumentar a poupança pública. Em tempos de crise fiscal, essa agenda teria a vantagem adicional de contribuir para a queda da taxa de juros.
A segunda é intervir diretamente no mercado de câmbio. Aqui começa a controvérsia. Essa política pode aumentar um pouco a taxa de crescimento desde que resulte em aumento da taxa de poupança.
O clássico modelo de Kaldor-Pasinetti descreve o mecanismo. A desvalorização cambial resulta em maior inflação. Caso os salários não sejam reajustados, a renda real dos trabalhadores cai para benefício dos lucros dos capitalistas (a denominação revela a velhice do modelo). Como os capitalistas poupam mais do que os trabalhadores, o resultado é o aumento da taxa de crescimento.
Alguns assessores de candidatos à Presidência defendem a necessidade de desvalorização cambial. Eles deveriam ser mais precisos sobre os instrumentos a serem utilizados, os resultados esperados e as evidências que suportam as suas conclusões.
O ajuste fiscal para estabilizar a dívida pública, que adicionalmente desvaloriza o câmbio, tem o apoio de economistas ortodoxos e alguns heterodoxos. Resta explicar a receita do ajuste, as medidas a serem adotadas, sobretudo para previdência, e mostrar que a conta fecha.
O mesmo apoio não ocorre com a intervenção no mercado de câmbio, cujo duvidoso e modesto sucesso depende do aumento da inflação, da redução do poder de compra dos salários e de muitas outras condições. Não parece a melhor estratégia.
Fica a dúvida: por que não começar por enfrentar os problemas que prejudicam o ambiente de negócios e que dificultam desnecessariamente a vida de nossas empresas?
Marcos Lisboa
Doutor em economia, foi secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda (2003 a 2005). Preside o Insper.
Alguns assessores de candidatos deveriam ser mais precisos sobre a desvalorização cambial
O setor produtivo no Brasil enfrenta graves problemas no lado de fora da fábrica.
A infraestrutura deficiente, a estrutura tributária disfuncional, a baixa qualidade da educação, o alto custo do capital e a insegurança jurídica prejudicam as empresas há muito tempo. O resultado tem sido o baixo crescimento da nossa economia desde 1995, em comparação com os demais países emergentes.
Apesar dessa imensidão de problemas, alguns insistem no binômio juros-câmbio como o principal desafio para o país. Essa insistência é ainda mais curiosa tendo em vista que, há poucos anos, o governo expandiu o crédito subsidiado, com baixas taxas de juros, e o resultado não foi maior crescimento.
Além disso, a ausência de crise nas contas externas nos últimos 15 anos mostra que algo melhorou desde a adoção do câmbio flutuante. Até então, o governo fixava o câmbio e eram recorrentes as crises externas.
Existem duas principais formas de o governo desvalorizar o câmbio. A primeira é aumentar a poupança pública. Em tempos de crise fiscal, essa agenda teria a vantagem adicional de contribuir para a queda da taxa de juros.
A segunda é intervir diretamente no mercado de câmbio. Aqui começa a controvérsia. Essa política pode aumentar um pouco a taxa de crescimento desde que resulte em aumento da taxa de poupança.
O clássico modelo de Kaldor-Pasinetti descreve o mecanismo. A desvalorização cambial resulta em maior inflação. Caso os salários não sejam reajustados, a renda real dos trabalhadores cai para benefício dos lucros dos capitalistas (a denominação revela a velhice do modelo). Como os capitalistas poupam mais do que os trabalhadores, o resultado é o aumento da taxa de crescimento.
Alguns assessores de candidatos à Presidência defendem a necessidade de desvalorização cambial. Eles deveriam ser mais precisos sobre os instrumentos a serem utilizados, os resultados esperados e as evidências que suportam as suas conclusões.
O ajuste fiscal para estabilizar a dívida pública, que adicionalmente desvaloriza o câmbio, tem o apoio de economistas ortodoxos e alguns heterodoxos. Resta explicar a receita do ajuste, as medidas a serem adotadas, sobretudo para previdência, e mostrar que a conta fecha.
O mesmo apoio não ocorre com a intervenção no mercado de câmbio, cujo duvidoso e modesto sucesso depende do aumento da inflação, da redução do poder de compra dos salários e de muitas outras condições. Não parece a melhor estratégia.
Fica a dúvida: por que não começar por enfrentar os problemas que prejudicam o ambiente de negócios e que dificultam desnecessariamente a vida de nossas empresas?
Marcos Lisboa
Doutor em economia, foi secretário de Política Econômica no Ministério da Fazenda (2003 a 2005). Preside o Insper.
Como nos vemos? Como somos vistos? - PEDRO MALAN
O Estado de S.Paulo - 13/05
O que estabelece a diferença na sorte dos mortais pode ser reduzido a três determinações fundamentais. O que alguém é; portanto, a personalidade no sentido mais amplo. Nessa categoria se incluem a saúde, a força, a beleza, o temperamento, o caráter moral, a inteligência e seu cultivo. O que alguém tem – a propriedade e posse em qualquer sentido. O que alguém representa: aquilo que se é na representação dos outros e que, portanto, consiste nas opiniões deles a seu respeito.”
Assim escreveu Schopenhauer, em 1851. E a propósito dessa reflexão volto a um tema que me é caro: essas determinações fundamentais seriam igualmente aplicáveis à sorte dos países? Aquilo que um país é– sua “identidade” no sentido mais amplo; aquilo que um país tem – seus recursos naturais, o estoque de capital físico e humano; e, por último, o que o país representa na percepção de outras sociedades e culturas? Essa percepção condiciona a sua reputação, que não repousa apenas sobre a autoavaliação. Uma pessoa, e talvez um país, precisa também ver-se sob a lente da opinião dos outros.
Como nos vemos a nós, brasileiros? Como somos, vistos por outros? Cada sociedade tem ideias, mais ou menos compartilhadas, precárias que sejam, sobre seu passado, seu presente; bem como vislumbres do futuro possível. Recente pesquisa do Datafolha identificou “valores comuns à grande maioria” dos brasileiros, dentre os quais sobressaem “a crença no governo, depositário das esperanças nacionais” e “a moral cristã em relação a costumes”. Para 76% dos entrevistados, “o governo deve ser o maior responsável pelo investimento e pelo crescimento”. Nada menos que 83% dizem que “acreditar em Deus torna as pessoas melhores”. No editorial Ideologia nacional em que comenta a pesquisa, a Folha de S.Paulo opina que, “com raízes que remetem ao surgimento da Nação, tais valores não são imutáveis, mas ainda parecem os guias mais genuínos do que seria uma ideologia brasileira”. Ou, pelo menos, de uma certa ideia de Brasil, real ou desejado.
Ocorrem-me duas ilustrações relevantes do enraizamento de certas ideias de Brasil. Joaquim Falcão reuniu em belo livro artigos publicados entre 1982 e 1988 por Raymundo Faoro na revista Istoé/Senhor, em que incluiu entrevista com Faoro a propósito da transição do regime militar para a Presidência civil. Ancorado em seu clássico Os Donos do Poder, Faoro argumenta que em 1985 o Brasil tentava encontrar mais uma solução de conciliação intraelite, de longuíssima tradição entre nós. Tratava-se claramente de “uma certa ideia do Brasil’. Como a tem, seguramente, José Mutilo de Carvalho. Seu recente e belíssimo Pecado Original da República reúne artigos e ensaios que ajudam a compreender por que, embora uma democracia, tanto nos falte para constituirmos uma verdadeira República. Para Faoro, como para José Murilo, são necessários avanços que exigem mediações e lideranças de forma a conter os inevitáveis conflitos de interesse – e o consequente potencial de instabilidade, polarização e violência. Tancredo Neves era, à sua época, o principal depositário das esperanças de mediação – e foi-se exatamente quando dele e de pessoas como ele mais se precisava. Como precisa o Brasil de agora, com urgência. De muitas pessoas, não de um messias.
Entre os quase 200 países soberanos, contam-se nos dedos de uma mão os que estão simultaneamente na lista dos dez maiores em termos de extensão territorial, população e tamanho de sua economia. Uma década antes do surgimento da sigla Bric, George Kennan antecipou que os países em questão – Brasil, Rússia Índia e China –, além dos EUA, tinham o que chamou de hubrys of inordinate size: “Certa falta de modéstia na autoimagem do grande país; um sentimento de que seu papel no mundo deveria ser equivalente à sua dimensão nas três áreas acima, com a consequente tendência a superlativas pretensões e ambições”. Prossegue Kennan: “Em geral, o país grande tem uma vulnerabilidade a sonhos de poder e glória, aos quais Estados menores são menos inclinados”. Os países-monstro, como os designa o autor, “por vezes criam problemas para si próprios, mesmo quando não constituem problemas para outros”.
É, inequivocamente, o caso do Brasil. Nossos problemas são autoinfligidos, não somos vítimas passivas de eventos externos, fora de nosso controle – essa cantilena que, durante muito tempo, encontrou ampla acolhida entre nós. Não tenhamos dúvida: assim nos veem os outros. E esperam que possamos resolver esses problemas, pelos quais ninguém podemos culpar. O mundo nos olha através de nossos indicadores sociais e econômicos relevantes. Somos a sétima ou oitava economia do mundo, mas em termos de PIB per capita há mais de 40 países à nossa frente. Na avaliação internacional da OCDE sobre o aprendizado (alunos na faixa dos 15 anos) em linguagem, matemática e ciências estamos entre os dez últimos colocados em universo de quase 70 países, resultado de desigualdades e deficiências de aprendizagem nas idades certas. Outros dados relevantes – sobre a precariedade de nossas finanças públicas, por exemplo – abundam.
Nosso futuro está em nossas próprias mãos. Como sempre esteve, e estará. Nas eleições de outubro o eleitorado brasileiro tomará decisão histórica. O próximo quadriênio permitirá avaliar quão correta é a inquietante observação do jornalista Hélio Schwartsman Folha, 25/3: “Estamos, muito provavelmente, condenados a ser um país de renda média e um pouco menos civilizado do que teria sido possível”. Apesar de tudo, e paradoxalmente, também nos vemos, e somos vistos, como um país extraordinário na sua diversidade, de enorme potencial, com recursos naturais, humanos, técnicos, bem como recursos culturais, morais e criatividade. Que podem e devem nos levar, talvez, à superação das dificuldades presentes, que são parte real e sofrida – parafraseando Aguinis – do “atroz encanto” de ser brasileiro.
*ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC
O que estabelece a diferença na sorte dos mortais pode ser reduzido a três determinações fundamentais. O que alguém é; portanto, a personalidade no sentido mais amplo. Nessa categoria se incluem a saúde, a força, a beleza, o temperamento, o caráter moral, a inteligência e seu cultivo. O que alguém tem – a propriedade e posse em qualquer sentido. O que alguém representa: aquilo que se é na representação dos outros e que, portanto, consiste nas opiniões deles a seu respeito.”
Assim escreveu Schopenhauer, em 1851. E a propósito dessa reflexão volto a um tema que me é caro: essas determinações fundamentais seriam igualmente aplicáveis à sorte dos países? Aquilo que um país é– sua “identidade” no sentido mais amplo; aquilo que um país tem – seus recursos naturais, o estoque de capital físico e humano; e, por último, o que o país representa na percepção de outras sociedades e culturas? Essa percepção condiciona a sua reputação, que não repousa apenas sobre a autoavaliação. Uma pessoa, e talvez um país, precisa também ver-se sob a lente da opinião dos outros.
Como nos vemos a nós, brasileiros? Como somos, vistos por outros? Cada sociedade tem ideias, mais ou menos compartilhadas, precárias que sejam, sobre seu passado, seu presente; bem como vislumbres do futuro possível. Recente pesquisa do Datafolha identificou “valores comuns à grande maioria” dos brasileiros, dentre os quais sobressaem “a crença no governo, depositário das esperanças nacionais” e “a moral cristã em relação a costumes”. Para 76% dos entrevistados, “o governo deve ser o maior responsável pelo investimento e pelo crescimento”. Nada menos que 83% dizem que “acreditar em Deus torna as pessoas melhores”. No editorial Ideologia nacional em que comenta a pesquisa, a Folha de S.Paulo opina que, “com raízes que remetem ao surgimento da Nação, tais valores não são imutáveis, mas ainda parecem os guias mais genuínos do que seria uma ideologia brasileira”. Ou, pelo menos, de uma certa ideia de Brasil, real ou desejado.
Ocorrem-me duas ilustrações relevantes do enraizamento de certas ideias de Brasil. Joaquim Falcão reuniu em belo livro artigos publicados entre 1982 e 1988 por Raymundo Faoro na revista Istoé/Senhor, em que incluiu entrevista com Faoro a propósito da transição do regime militar para a Presidência civil. Ancorado em seu clássico Os Donos do Poder, Faoro argumenta que em 1985 o Brasil tentava encontrar mais uma solução de conciliação intraelite, de longuíssima tradição entre nós. Tratava-se claramente de “uma certa ideia do Brasil’. Como a tem, seguramente, José Mutilo de Carvalho. Seu recente e belíssimo Pecado Original da República reúne artigos e ensaios que ajudam a compreender por que, embora uma democracia, tanto nos falte para constituirmos uma verdadeira República. Para Faoro, como para José Murilo, são necessários avanços que exigem mediações e lideranças de forma a conter os inevitáveis conflitos de interesse – e o consequente potencial de instabilidade, polarização e violência. Tancredo Neves era, à sua época, o principal depositário das esperanças de mediação – e foi-se exatamente quando dele e de pessoas como ele mais se precisava. Como precisa o Brasil de agora, com urgência. De muitas pessoas, não de um messias.
Entre os quase 200 países soberanos, contam-se nos dedos de uma mão os que estão simultaneamente na lista dos dez maiores em termos de extensão territorial, população e tamanho de sua economia. Uma década antes do surgimento da sigla Bric, George Kennan antecipou que os países em questão – Brasil, Rússia Índia e China –, além dos EUA, tinham o que chamou de hubrys of inordinate size: “Certa falta de modéstia na autoimagem do grande país; um sentimento de que seu papel no mundo deveria ser equivalente à sua dimensão nas três áreas acima, com a consequente tendência a superlativas pretensões e ambições”. Prossegue Kennan: “Em geral, o país grande tem uma vulnerabilidade a sonhos de poder e glória, aos quais Estados menores são menos inclinados”. Os países-monstro, como os designa o autor, “por vezes criam problemas para si próprios, mesmo quando não constituem problemas para outros”.
É, inequivocamente, o caso do Brasil. Nossos problemas são autoinfligidos, não somos vítimas passivas de eventos externos, fora de nosso controle – essa cantilena que, durante muito tempo, encontrou ampla acolhida entre nós. Não tenhamos dúvida: assim nos veem os outros. E esperam que possamos resolver esses problemas, pelos quais ninguém podemos culpar. O mundo nos olha através de nossos indicadores sociais e econômicos relevantes. Somos a sétima ou oitava economia do mundo, mas em termos de PIB per capita há mais de 40 países à nossa frente. Na avaliação internacional da OCDE sobre o aprendizado (alunos na faixa dos 15 anos) em linguagem, matemática e ciências estamos entre os dez últimos colocados em universo de quase 70 países, resultado de desigualdades e deficiências de aprendizagem nas idades certas. Outros dados relevantes – sobre a precariedade de nossas finanças públicas, por exemplo – abundam.
Nosso futuro está em nossas próprias mãos. Como sempre esteve, e estará. Nas eleições de outubro o eleitorado brasileiro tomará decisão histórica. O próximo quadriênio permitirá avaliar quão correta é a inquietante observação do jornalista Hélio Schwartsman Folha, 25/3: “Estamos, muito provavelmente, condenados a ser um país de renda média e um pouco menos civilizado do que teria sido possível”. Apesar de tudo, e paradoxalmente, também nos vemos, e somos vistos, como um país extraordinário na sua diversidade, de enorme potencial, com recursos naturais, humanos, técnicos, bem como recursos culturais, morais e criatividade. Que podem e devem nos levar, talvez, à superação das dificuldades presentes, que são parte real e sofrida – parafraseando Aguinis – do “atroz encanto” de ser brasileiro.
*ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FHC
Para afundar o Brasil dispensa choque externo - ROLF KUNTZ
ESTADÃO - 13/05
Diante de um Congresso indiferente aos grandes problemas, os perigos externos ficam muito menos assustadores
A maior ameaça à economia brasileira, como quase sempre, é tão nacional quanto o pato no tucupi. Se for para o brejo a recuperação econômica, hoje um tanto cambaleante, mas ainda inegável, a causa principal será certamente made in Brazil. Na escassa e rala discussão sobre planos de governo têm surgido bobagens do tipo “crise fiscal se resolve com crescimento”, ao lado de propostas quase incríveis, como a de retorno do chamado imposto do cheque, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).
Diante de um Congresso indiferente aos grandes problemas, de um debate eleitoral indigente e de um cenário institucional confuso, os perigos externos ficam muito menos assustadores do que devem parecer aos cidadãos de outros países. Não há como desconhecer, é claro, a truculência do presidente Donald Trump e seus efeitos sobre o comércio internacional, o preço do dólar e o mercado do petróleo. É indispensável seguir o jogo no Oriente Médio. É essencial acompanhar a inflação nos Estados Unidos e o ritmo de elevação dos juros pelo Federal Reserve, o banco central americano. Esses juros têm potencial para mexer em todo o mercado financeiro. Tudo isso pode afetar o Brasil, mas o Brasil pode perfeitamente afundar sozinho, sem depender de choques externos.
Choques podem vir, naturalmente, e seu efeito será tanto pior quanto mais desarranjado estiver o País. O risco de contágio da crise argentina pode ser muito limitado neste momento, mas o sinal de alerta é claro. Com reservas em torno de US$ 380 bilhões, superávit comercial de US$ 20 bilhões em quatro meses, uma boa safra para exportar e a inflação bem abaixo da meta anual de 4,5%, o Brasil parece pouco vulnerável, pelo menos neste ano. Essa avaliação pode ser hoje correta, mas o mundo continuará, muito provavelmente, girando em torno do Sol depois do próximo réveillon.
No dia seguinte um novo presidente deverá ocupar a sala principal do Palácio do Planalto. Como estará o País e como será sua imagem nos mercados no começo de 2019? Por enquanto, a indústria produz mais que há um ano, apesar de alguns tropeços. No primeiro trimestre a produção foi 3,1% maior que a de janeiro a março de 2017 e o crescimento acumulado em 12 meses chegou a 2,9%. As vendas no varejo cresceram em volume 3,7% em 12 meses, sem contar o comércio de veículos, componentes e material de construção. Incluídos esses itens, o aumento bateu em 6,2% nos 12 meses terminados em março. A inflação continua abaixo de 3%. Deverá subir um pouco até o fim do ano. Se isso refletir aumento do emprego e do consumo, será um efeito bem-vindo.
Mas um Brasil mais próspero, com níveis mais altos de atividade e de consumo, ainda poderá ter inflação civilizada se as contas públicas forem arrumadas. O governo ainda poderá fechar 2018 sem romper a meta fiscal e o teto de gastos e sem descumprir a regra de ouro, a proibição de endividar o Tesouro para despesas de custeio. Mas o novo governo terá muita dificuldade para atender a esses padrões, mesmo com a economia mais ativa.
Na melhor hipótese, passará por esses obstáculos, mas ainda poderá chegar ao terceiro ou ao quarto ano de mandato sem ter contido a expansão da dívida pública. Nenhum avanço duradouro será conseguido sem a execução da pauta de ajustes e reformas. E é também preciso levar em conta as condições de financiamento, se a avaliação de risco piorar e o mercado se retrair.
O crescimento dependerá também da evolução da produtividade – tanto do governo quanto do setor privado. Será preciso, além de buscar o equilíbrio contábil das finanças públicas, elevar os padrões de administração. Será necessário mexer na composição do Orçamento, para reduzir as vinculações e aumentar a racionalidade na aplicação de recursos. Não se consertará o Orçamento, nem a economia, com aberrações como a CPMF. Tributos funcionais incidem sobre a produção de bens e serviços, a circulação, a apropriação de renda e as operações financeiras. Aquele monstrinho incide sobre a mera movimentação de dinheiro. Ao realizar um pagamento, o cidadão paga um tributo sobre o ato de pagar. Esse é um tributo de incidência múltipla, encarecedor de toda a atividade econômica, regressivo e, acima de tudo, teratológico.
Mas qualquer projeção de crescimento continuado ainda neste ano e também nos próximos tem como pressuposto um mínimo razoável de normalidade, racionalidade e confiança. As expectativas quanto ao próximo governo pesarão cada vez mais nos próximos meses. Por enquanto, o quadro eleitoral é pouco animador. Há pouca conversa séria sobre os fundamentos econômicos, sobre a agenda de reformas e sobre estratégias para tornar a economia mais eficiente e mais competitiva.
Pior que isso: nem está claro se todos os pré-candidatos à Presidência reconhecem como reais os desafios apontados no dia a dia do debate econômico mais qualificado. Sem o claro reconhecimento desses problemas, a campanha será de novo marcada por promessas tão sedutoras quanto distantes do bom senso.
Não há como desprezar o risco de um novo governo fantasiado de progressista e comprometido, de fato, com os interesses de facções empresariais e sindicais sempre famintas de benefícios fiscais, subsídios de crédito e protecionismo comercial. Foi assim no longo e desastroso período petista e assim poderá ser, mais uma vez, se esse tipo de aliança prevalecer. Nesse caso, o País estará de novo no rumo de um desastre, porque nenhum desarranjo importante será corrigido e outros serão acrescentados. No resto do cenário pré-eleitoral predomina, por enquanto, o marasmo.
O próximo governo, dizem os otimistas, será forçado a reconhecer os problemas e a cumprir as tarefas necessárias. Por enquanto, as falas e os movimentos táticos indicam a repetição de erros tão conhecidos quanto custosos.
JORNALISTA*
Diante de um Congresso indiferente aos grandes problemas, os perigos externos ficam muito menos assustadores
A maior ameaça à economia brasileira, como quase sempre, é tão nacional quanto o pato no tucupi. Se for para o brejo a recuperação econômica, hoje um tanto cambaleante, mas ainda inegável, a causa principal será certamente made in Brazil. Na escassa e rala discussão sobre planos de governo têm surgido bobagens do tipo “crise fiscal se resolve com crescimento”, ao lado de propostas quase incríveis, como a de retorno do chamado imposto do cheque, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF).
Diante de um Congresso indiferente aos grandes problemas, de um debate eleitoral indigente e de um cenário institucional confuso, os perigos externos ficam muito menos assustadores do que devem parecer aos cidadãos de outros países. Não há como desconhecer, é claro, a truculência do presidente Donald Trump e seus efeitos sobre o comércio internacional, o preço do dólar e o mercado do petróleo. É indispensável seguir o jogo no Oriente Médio. É essencial acompanhar a inflação nos Estados Unidos e o ritmo de elevação dos juros pelo Federal Reserve, o banco central americano. Esses juros têm potencial para mexer em todo o mercado financeiro. Tudo isso pode afetar o Brasil, mas o Brasil pode perfeitamente afundar sozinho, sem depender de choques externos.
Choques podem vir, naturalmente, e seu efeito será tanto pior quanto mais desarranjado estiver o País. O risco de contágio da crise argentina pode ser muito limitado neste momento, mas o sinal de alerta é claro. Com reservas em torno de US$ 380 bilhões, superávit comercial de US$ 20 bilhões em quatro meses, uma boa safra para exportar e a inflação bem abaixo da meta anual de 4,5%, o Brasil parece pouco vulnerável, pelo menos neste ano. Essa avaliação pode ser hoje correta, mas o mundo continuará, muito provavelmente, girando em torno do Sol depois do próximo réveillon.
No dia seguinte um novo presidente deverá ocupar a sala principal do Palácio do Planalto. Como estará o País e como será sua imagem nos mercados no começo de 2019? Por enquanto, a indústria produz mais que há um ano, apesar de alguns tropeços. No primeiro trimestre a produção foi 3,1% maior que a de janeiro a março de 2017 e o crescimento acumulado em 12 meses chegou a 2,9%. As vendas no varejo cresceram em volume 3,7% em 12 meses, sem contar o comércio de veículos, componentes e material de construção. Incluídos esses itens, o aumento bateu em 6,2% nos 12 meses terminados em março. A inflação continua abaixo de 3%. Deverá subir um pouco até o fim do ano. Se isso refletir aumento do emprego e do consumo, será um efeito bem-vindo.
Mas um Brasil mais próspero, com níveis mais altos de atividade e de consumo, ainda poderá ter inflação civilizada se as contas públicas forem arrumadas. O governo ainda poderá fechar 2018 sem romper a meta fiscal e o teto de gastos e sem descumprir a regra de ouro, a proibição de endividar o Tesouro para despesas de custeio. Mas o novo governo terá muita dificuldade para atender a esses padrões, mesmo com a economia mais ativa.
Na melhor hipótese, passará por esses obstáculos, mas ainda poderá chegar ao terceiro ou ao quarto ano de mandato sem ter contido a expansão da dívida pública. Nenhum avanço duradouro será conseguido sem a execução da pauta de ajustes e reformas. E é também preciso levar em conta as condições de financiamento, se a avaliação de risco piorar e o mercado se retrair.
O crescimento dependerá também da evolução da produtividade – tanto do governo quanto do setor privado. Será preciso, além de buscar o equilíbrio contábil das finanças públicas, elevar os padrões de administração. Será necessário mexer na composição do Orçamento, para reduzir as vinculações e aumentar a racionalidade na aplicação de recursos. Não se consertará o Orçamento, nem a economia, com aberrações como a CPMF. Tributos funcionais incidem sobre a produção de bens e serviços, a circulação, a apropriação de renda e as operações financeiras. Aquele monstrinho incide sobre a mera movimentação de dinheiro. Ao realizar um pagamento, o cidadão paga um tributo sobre o ato de pagar. Esse é um tributo de incidência múltipla, encarecedor de toda a atividade econômica, regressivo e, acima de tudo, teratológico.
Mas qualquer projeção de crescimento continuado ainda neste ano e também nos próximos tem como pressuposto um mínimo razoável de normalidade, racionalidade e confiança. As expectativas quanto ao próximo governo pesarão cada vez mais nos próximos meses. Por enquanto, o quadro eleitoral é pouco animador. Há pouca conversa séria sobre os fundamentos econômicos, sobre a agenda de reformas e sobre estratégias para tornar a economia mais eficiente e mais competitiva.
Pior que isso: nem está claro se todos os pré-candidatos à Presidência reconhecem como reais os desafios apontados no dia a dia do debate econômico mais qualificado. Sem o claro reconhecimento desses problemas, a campanha será de novo marcada por promessas tão sedutoras quanto distantes do bom senso.
Não há como desprezar o risco de um novo governo fantasiado de progressista e comprometido, de fato, com os interesses de facções empresariais e sindicais sempre famintas de benefícios fiscais, subsídios de crédito e protecionismo comercial. Foi assim no longo e desastroso período petista e assim poderá ser, mais uma vez, se esse tipo de aliança prevalecer. Nesse caso, o País estará de novo no rumo de um desastre, porque nenhum desarranjo importante será corrigido e outros serão acrescentados. No resto do cenário pré-eleitoral predomina, por enquanto, o marasmo.
O próximo governo, dizem os otimistas, será forçado a reconhecer os problemas e a cumprir as tarefas necessárias. Por enquanto, as falas e os movimentos táticos indicam a repetição de erros tão conhecidos quanto custosos.
JORNALISTA*
Os abusos do Ministério Público - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 13/05
Não é de hoje que, arvorando-se em consciência moral da Nação, promotores e procuradores desenvolvem cruzadas contra o que julgam ir contra suas convicções
Uma semana depois de o Ministério Público do Trabalho (MPT) ter encaminhado uma “notificação recomendatória” à Embraer e à Boeing, pedindo a elas que informem as salvaguardas trabalhistas que incluirão no acordo comercial que estão negociando, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) lançou uma pesquisa para saber quais áreas, segundo a população, devem ser prioritárias na atuação dos promotores e procuradores de Justiça nos próximos dez anos.
Os dois fatos têm, como denominador comum, a recorrente discussão sobre os limites da atuação da corporação. Pela Constituição, o MP é uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Na prática, isso significa que o órgão tem as atribuições de exigir o cumprimento das leis, defender as garantias fundamentais, preservar os interesses da coletividade e proteger os interesses individuais – aqueles de que os cidadãos não podem abrir mão.
O problema, contudo, é que os promotores e procuradores interpretaram essas atribuições de forma extensiva, indo muito além do que o legislador constitucional pretendia, quando concedeu autonomia funcional e administrativa ao MP. Graças à esperteza hermenêutica, a corporação ampliou o alcance de suas prerrogativas, passando a agir como se tivesse competência para interferir de modo ilimitado nas relações econômicas entre empresas privadas, no livre jogo de mercado e no funcionamento das instituições políticas.
Não é de hoje que, arvorando-se em consciência moral da Nação, promotores e procuradores desenvolvem cruzadas contra o que julgam ir contra suas convicções moralistas, políticas e ideológicas, investigando, julgando e condenando à execração pública cidadãos e empresas, sem reunir provas que os tribunais consideram cabais. Também não é de hoje que, fundamentando suas iniciativas em princípios vagos ou indeterminados, como os da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, a corporação imagina ter o poder de dirigir o País.
O ofício encaminhado pelo MPT à Embraer e à Boeing é um exemplo desse sentimento de onipotência. Além de exigir que as duas empresas mantenham “o patamar de empregos no Brasil” e apresentem relatórios sobre o risco de “possível transferência da cadeia produtiva para solo americano”, a notificação pede que elas levem em conta a posição dos sindicatos de metalúrgicos com relação ao negócio e as sugestões feitas em audiências públicas promovidas pela Comissão de Direitos Humanos do Senado. Apesar de alegar que só está agindo “preventivamente”, o MPT fixou o prazo de 15 dias para que as empresas informem como cumprirão as “recomendações”, sob pena de serem acionadas judicialmente.
A pesquisa lançada pelo CNMP para ouvir da população quais áreas os promotores e procuradores de Justiça deverão priorizar, sob o pretexto de reunir informações para a elaboração de um planejamento decenal estratégico do MP, vai na mesma linha de inconsequência. A pesquisa apresenta 11 áreas – como direitos humanos, combate à corrupção, infância e adolescência, segurança pública, educação e saúde – e pede aos consultados, que não têm formação jurídica e não conhecem a legislação civil, penal e processual, que definam as mais importantes, numa escala de 1 a 5. Nas chamadas questões abertas, a pesquisa indaga dos consultados quais são, a seu ver, as “oportunidades” (sic) para o MP nos próximos dez anos.
Se não fosse mal formulada e com respostas previsíveis, a pesquisa poderia servir ao CNMP para obrigar o MP a restringir sua atuação aos limites fixados pela Constituição. Mas, do modo como está sendo conduzida, permitindo manipulação do “clamor público”, ela pode legitimar a atuação “justiceira” de um órgão que expandiu suas atribuições e sua margem de arbítrio ao sabor das conveniências e da interpretação que cada promotor ou procurador faz da lei.
Não é de hoje que, arvorando-se em consciência moral da Nação, promotores e procuradores desenvolvem cruzadas contra o que julgam ir contra suas convicções
Uma semana depois de o Ministério Público do Trabalho (MPT) ter encaminhado uma “notificação recomendatória” à Embraer e à Boeing, pedindo a elas que informem as salvaguardas trabalhistas que incluirão no acordo comercial que estão negociando, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) lançou uma pesquisa para saber quais áreas, segundo a população, devem ser prioritárias na atuação dos promotores e procuradores de Justiça nos próximos dez anos.
Os dois fatos têm, como denominador comum, a recorrente discussão sobre os limites da atuação da corporação. Pela Constituição, o MP é uma “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Na prática, isso significa que o órgão tem as atribuições de exigir o cumprimento das leis, defender as garantias fundamentais, preservar os interesses da coletividade e proteger os interesses individuais – aqueles de que os cidadãos não podem abrir mão.
O problema, contudo, é que os promotores e procuradores interpretaram essas atribuições de forma extensiva, indo muito além do que o legislador constitucional pretendia, quando concedeu autonomia funcional e administrativa ao MP. Graças à esperteza hermenêutica, a corporação ampliou o alcance de suas prerrogativas, passando a agir como se tivesse competência para interferir de modo ilimitado nas relações econômicas entre empresas privadas, no livre jogo de mercado e no funcionamento das instituições políticas.
Não é de hoje que, arvorando-se em consciência moral da Nação, promotores e procuradores desenvolvem cruzadas contra o que julgam ir contra suas convicções moralistas, políticas e ideológicas, investigando, julgando e condenando à execração pública cidadãos e empresas, sem reunir provas que os tribunais consideram cabais. Também não é de hoje que, fundamentando suas iniciativas em princípios vagos ou indeterminados, como os da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho, a corporação imagina ter o poder de dirigir o País.
O ofício encaminhado pelo MPT à Embraer e à Boeing é um exemplo desse sentimento de onipotência. Além de exigir que as duas empresas mantenham “o patamar de empregos no Brasil” e apresentem relatórios sobre o risco de “possível transferência da cadeia produtiva para solo americano”, a notificação pede que elas levem em conta a posição dos sindicatos de metalúrgicos com relação ao negócio e as sugestões feitas em audiências públicas promovidas pela Comissão de Direitos Humanos do Senado. Apesar de alegar que só está agindo “preventivamente”, o MPT fixou o prazo de 15 dias para que as empresas informem como cumprirão as “recomendações”, sob pena de serem acionadas judicialmente.
A pesquisa lançada pelo CNMP para ouvir da população quais áreas os promotores e procuradores de Justiça deverão priorizar, sob o pretexto de reunir informações para a elaboração de um planejamento decenal estratégico do MP, vai na mesma linha de inconsequência. A pesquisa apresenta 11 áreas – como direitos humanos, combate à corrupção, infância e adolescência, segurança pública, educação e saúde – e pede aos consultados, que não têm formação jurídica e não conhecem a legislação civil, penal e processual, que definam as mais importantes, numa escala de 1 a 5. Nas chamadas questões abertas, a pesquisa indaga dos consultados quais são, a seu ver, as “oportunidades” (sic) para o MP nos próximos dez anos.
Se não fosse mal formulada e com respostas previsíveis, a pesquisa poderia servir ao CNMP para obrigar o MP a restringir sua atuação aos limites fixados pela Constituição. Mas, do modo como está sendo conduzida, permitindo manipulação do “clamor público”, ela pode legitimar a atuação “justiceira” de um órgão que expandiu suas atribuições e sua margem de arbítrio ao sabor das conveniências e da interpretação que cada promotor ou procurador faz da lei.