FOLHA DE SP - 24/10
É uma triste verdade: Henry David Thoreau (1817-1862) é cada vez mais o meu herói. A verdade é triste porque nunca fui um libertário. Mas o contexto determina o meu texto: como lidar com o fanatismo e a imbecilidade que esquerda e direita vomitam todos os dias?
Pela fuga. Pelo isolamento. Pela vida no bosque, onde os animais são mais civilizados do que a espécie humana em geral.
Nesta semana, em duas revistas diferentes ("The Economist" e "The Spectator"), contemplei o estado a que chegaram as universidades anglo-saxônicas, tomadas de assalto por meninos semiletrados que gostam de censurar as opiniões que consideram ofensivas.
O problema é que essas crianças têm uma saúde mental assaz frágil. Resultado: tudo é ofensivo para elas. Até a chuva que cai, imagino eu. Um mundo de silêncio seria o ideal —o silêncio de um cemitério, embora a palavra "cemitério", pela sua evocação da morte, possa ser um insulto desnecessário para quem acredita na eternidade da juventude. As minhas desculpas antecipadas.
A "The Economist", mais otimista, diz que o mundo não está perdido: nas universidades, sempre houve batalhas ideológicas contra ideias polêmicas. Certo. Mas a mesma revista informa que 20% dos estudantes universitários defendem a violência contra palestrantes controversos.
Mais: em Yale, 42% dos estudantes (e 71% dos estudantes conservadores) preferem não emitir opinião sobre política, raça, religião ou gênero.
Só a Universidade de Chicago se salva do dilúvio. Por quê? Porque decidiu aprovar uma declaração onde se recusa a proteger os estudantes de ideias ou opiniões que os mesmos considerem ofensivas. Para Chicago, não é permitido cancelar palestras ou criar "espaços seguros" para que as crianças se sintam, enfim, seguras.
Sem surpresa, não há praticamente incidentes na Universidade de Chicago, prova definitiva de que a covardia das universidades é a razão primeira para haver problemas.
Na "The Spectator", a escritora Lionel Shriver, uma progressista "old school", relembra outros números: 38% dos britânicos e 70% dos alemães defendem que o governo deve proibir discursos ofensivos para as minorias. A típica receita autoritária: por favor, Estado, exerce a tua censura para que eu não conviva com aquilo de que não gosto.
O Estado agradece —e cresce em autoridade e poder. Um clássico.
Tudo isso são loucuras esquerdistas? Seriam, sim, se uma certa direita não fosse igual.
Nas últimas semanas, tenho acompanhado as polêmicas "artísticas" brasileiras. Confesso que rio. Muito e alto. Um país onde Alexandre Frota é uma referência ideológica "conservadora" deveria ser caso de estudo internacional.
Mas uma parte da direita brasileira também tem o seu interesse. Deixemos a questão da "pedofilia" para psiquiatras: não é preciso ter lido Freud para perceber que aqueles que veem "pedofilia" quando uma criança toca no braço de um artista pelado em pleno museu estão a falar mais dos seus fantasmas do que da realidade propriamente dita.
O que me impressionou foi ver essa direita a pedir mais Estado, mais intervenção do Estado, mais censura do Estado —e não, como seria de esperar, mais responsabilidade individual, ou familiar, na forma como se educam os menores.
Se isso é a direita, eu prefiro a esquerda. Entre a cópia e o original, eu sempre preferi o original.
Corrijo: eu não prefiro ninguém. Só o bosque, embora os meus amigos aconselhem prudência. Longe da civilização, eu não duraria 24 horas.
Talvez eles tenham razão. E eu, suspirando por ar limpo e alguma companhia, sinto uma estranha admiração pelos pensadores utópicos do século 19.
Com uma diferença: imagino uma comunidade de adultos, e não de autômatos, onde as pessoas discutem livremente; usam as palavras sem medo das patrulhas; educam os filhos sem mendigar o chicote do Estado; e até, Deus me livre, flertam com mulheres (ou homens) sem temerem acusações de machismo, assédio ou violência psicológica.
Seria uma espécie de reserva natural, digamos, onde se entra e de onde se sai voluntariamente —e longe desse berçário onde esquerdas e direitas gritam e fazem birra na mesma linguagem infantil.
Com sorte, as patrulhas acabariam por se destruir mutuamente —e nós, os sobreviventes, poderíamos sair da reserva e fazer o que mais interessa: começar de novo.
terça-feira, outubro 24, 2017
O projeto Maia - CARLOS ANDREAZZA
O Globo - 24/10
Rodrigo Maia só é presidente da Câmara, reeleito em fevereiro deste ano, como produto de mais um golpe na Constituição (parágrafo 4º do artigo 57) e de um bico no regimento interno (artigo 5º) da Casa que comanda. Os textos são expressos: numa mesma legislatura, num período de quatro anos, ninguém pode ocupar o mesmo cargo, na Mesa Diretora da Câmara, duas vezes seguidas.
Devedor de Michel Temer para que lá chegasse, Maia concluiu o mandato de Eduardo Cunha — e lhe herdou os limites. Tinha conhecimento disso ao se projetar como candidato a tampão. Só se reelegeu porque o Supremo — essa corte estranha, que toma prerrogativas constitucionais do Legislativo quando não pode, mas que faz corpo mole quando um Poder distorce a leitura da Carta Magna de que deveria ser guardião — deixou passar.
E aí está: Maia, empoderado por manobra ilegal, muito à vontade para confessar ter extrapolado a função protocolar de presidente da Câmara (de modo a derrubar a primeira denúncia contra Temer) somente para exibir sua força — e isso com a intenção de ameaçar o presidente da República. Ou terá querido dar recado diferente ao dizer — em resposta ao advogado Eduardo Carnelós — que, depois de tudo o que fizera por Temer, aquilo de que se julgava vítima não era aceitável e que, a partir de então, cumpriria exclusivamente seu papel institucional? Oi? Que “tudo” é esse? O que fez Maia — por Temer — para além do que estritamente lhe cabia? Sabe-se agora que pretende ser apenas o presidente da Câmara acerca da segunda denúncia contra Temer. Ok. Mas: será essa doravante uma condição estável, ou algo pode fazer com que mude e possa novamente, aqui ou acolá, dar uma força ao presidente ou a qualquer outro enrolado?
Noto, à margem, que o motivo do conflito foi a publicação, no site da Câmara, de vídeos com a delação de Lúcio Funaro. Material que a assessoria de Edson Fachin, diante do imbróglio, formalmente comunicou estar sob sigilo, mas que continuaria disponível, no mesmo lugar, como se não consistisse numa afronta a uma determinação do Judiciário. Mesmo, porém, que não houvesse sigilo: nada obrigava a Câmara a dar publicidade aos vídeos. Se o fez, a responsabilidade é de seu presidente —e é natural que se leia no fato, na semana em que a Casa trata da denúncia contra Temer, um gesto autoritário para efeito político.
Sei que o homem é querido por gente influente, fonte farta para o jornalismo de fofoca e interlocutor privilegiado do mercado financeiro. Aécio Neves também o era. E isso serve de alerta a Maia. Para que não se deslumbre; não se tenha em conta desproporcional. Leio, por exemplo, que sua gestão à frente da Câmara é considerada excelente, embora ninguém saiba explicar por que nem tampouco declinar por quem.
A valoração sobre um bom comando da Casa — num juízo honesto intelectualmente — deveria decorrer da percepção de que há uma agenda positiva para o país se desenvolvendo ali. Mas isso há? Qual é a agenda atual da Câmara para o Brasil? Qual é a diretriz de Maia para a Câmara? Que perfil tem a instituição hoje que a difira daquela dirigida por Cunha?
O esforço para o estabelecimento do teto de gastos públicos remonta ao final de 2016, na vigência ainda do mandato-tampão, antes de algum arrivista difundir a ideia de que Maia presidir o país seria a solução. E de lá pra cá? Ele foi reeleito em fevereiro — e temos já oito meses em que esteve diariamente nas manchetes não para o debate sobre as reformas (nesse período, só a trabalhista prosperou), mas em futricas relativas à sua relação com Temer, derivadas do surto de grandeza segundo o qual, “CEO do Brasil”, pode polarizar com o presidente da República.
É tudo muito cafona e pequeno. Há, contudo, método no projeto de se manter em evidência seja como for, ascendendo artificialmente — Parlamento como escada — enquanto a Câmara vai paralisada. O plano é óbvio. Maia pode ser instrumento a interesses vários, daí porque inflados os seus dotes, mas ainda é— e tem consciência de que é — deputado federal de apertados 53 mil votos, cuja eleição à presidência da Câmara se deu no vácuo oportunista de uma das maiores crises da história da Casa e em cuja gestão se aprovou, sob a anarquia do que se chamou de reforma política, o sonho maior do petismo: o financiamento público de campanhas eleitorais.
Ele pode até dar corda para que se especule a respeito, mas sabe que não tem densidade — voto — para ser governador. Nem senador. Sabe também que a superfície sobre a qual tenta encorpar o DEM é frágil e que, se bem-sucedido, garantirá, no máximo, a vaga de vice na chapa presidencial do PSDB.
Com seu investimento em aparecer, Maia quer apenas se reeleger, mas com votação expressiva, entre as maiores do Estado do Rio de Janeiro, e depois ser reeleito presidente da Câmara. Afinal, também ele tem motivos para não arriscar eleitoralmente em 2018 — ou não está citado nas delações da Odebrecht que podem lhe valer uma denúncia a qualquer momento?
Como qualquer outro, quer — precisa — manter o foro especial. Não está onde está por suas qualidades distintivas, mas por ser representativo.
Rodrigo Maia só é presidente da Câmara, reeleito em fevereiro deste ano, como produto de mais um golpe na Constituição (parágrafo 4º do artigo 57) e de um bico no regimento interno (artigo 5º) da Casa que comanda. Os textos são expressos: numa mesma legislatura, num período de quatro anos, ninguém pode ocupar o mesmo cargo, na Mesa Diretora da Câmara, duas vezes seguidas.
Devedor de Michel Temer para que lá chegasse, Maia concluiu o mandato de Eduardo Cunha — e lhe herdou os limites. Tinha conhecimento disso ao se projetar como candidato a tampão. Só se reelegeu porque o Supremo — essa corte estranha, que toma prerrogativas constitucionais do Legislativo quando não pode, mas que faz corpo mole quando um Poder distorce a leitura da Carta Magna de que deveria ser guardião — deixou passar.
E aí está: Maia, empoderado por manobra ilegal, muito à vontade para confessar ter extrapolado a função protocolar de presidente da Câmara (de modo a derrubar a primeira denúncia contra Temer) somente para exibir sua força — e isso com a intenção de ameaçar o presidente da República. Ou terá querido dar recado diferente ao dizer — em resposta ao advogado Eduardo Carnelós — que, depois de tudo o que fizera por Temer, aquilo de que se julgava vítima não era aceitável e que, a partir de então, cumpriria exclusivamente seu papel institucional? Oi? Que “tudo” é esse? O que fez Maia — por Temer — para além do que estritamente lhe cabia? Sabe-se agora que pretende ser apenas o presidente da Câmara acerca da segunda denúncia contra Temer. Ok. Mas: será essa doravante uma condição estável, ou algo pode fazer com que mude e possa novamente, aqui ou acolá, dar uma força ao presidente ou a qualquer outro enrolado?
Noto, à margem, que o motivo do conflito foi a publicação, no site da Câmara, de vídeos com a delação de Lúcio Funaro. Material que a assessoria de Edson Fachin, diante do imbróglio, formalmente comunicou estar sob sigilo, mas que continuaria disponível, no mesmo lugar, como se não consistisse numa afronta a uma determinação do Judiciário. Mesmo, porém, que não houvesse sigilo: nada obrigava a Câmara a dar publicidade aos vídeos. Se o fez, a responsabilidade é de seu presidente —e é natural que se leia no fato, na semana em que a Casa trata da denúncia contra Temer, um gesto autoritário para efeito político.
Sei que o homem é querido por gente influente, fonte farta para o jornalismo de fofoca e interlocutor privilegiado do mercado financeiro. Aécio Neves também o era. E isso serve de alerta a Maia. Para que não se deslumbre; não se tenha em conta desproporcional. Leio, por exemplo, que sua gestão à frente da Câmara é considerada excelente, embora ninguém saiba explicar por que nem tampouco declinar por quem.
A valoração sobre um bom comando da Casa — num juízo honesto intelectualmente — deveria decorrer da percepção de que há uma agenda positiva para o país se desenvolvendo ali. Mas isso há? Qual é a agenda atual da Câmara para o Brasil? Qual é a diretriz de Maia para a Câmara? Que perfil tem a instituição hoje que a difira daquela dirigida por Cunha?
O esforço para o estabelecimento do teto de gastos públicos remonta ao final de 2016, na vigência ainda do mandato-tampão, antes de algum arrivista difundir a ideia de que Maia presidir o país seria a solução. E de lá pra cá? Ele foi reeleito em fevereiro — e temos já oito meses em que esteve diariamente nas manchetes não para o debate sobre as reformas (nesse período, só a trabalhista prosperou), mas em futricas relativas à sua relação com Temer, derivadas do surto de grandeza segundo o qual, “CEO do Brasil”, pode polarizar com o presidente da República.
É tudo muito cafona e pequeno. Há, contudo, método no projeto de se manter em evidência seja como for, ascendendo artificialmente — Parlamento como escada — enquanto a Câmara vai paralisada. O plano é óbvio. Maia pode ser instrumento a interesses vários, daí porque inflados os seus dotes, mas ainda é— e tem consciência de que é — deputado federal de apertados 53 mil votos, cuja eleição à presidência da Câmara se deu no vácuo oportunista de uma das maiores crises da história da Casa e em cuja gestão se aprovou, sob a anarquia do que se chamou de reforma política, o sonho maior do petismo: o financiamento público de campanhas eleitorais.
Ele pode até dar corda para que se especule a respeito, mas sabe que não tem densidade — voto — para ser governador. Nem senador. Sabe também que a superfície sobre a qual tenta encorpar o DEM é frágil e que, se bem-sucedido, garantirá, no máximo, a vaga de vice na chapa presidencial do PSDB.
Com seu investimento em aparecer, Maia quer apenas se reeleger, mas com votação expressiva, entre as maiores do Estado do Rio de Janeiro, e depois ser reeleito presidente da Câmara. Afinal, também ele tem motivos para não arriscar eleitoralmente em 2018 — ou não está citado nas delações da Odebrecht que podem lhe valer uma denúncia a qualquer momento?
Como qualquer outro, quer — precisa — manter o foro especial. Não está onde está por suas qualidades distintivas, mas por ser representativo.
O telemarketing enlouqueceu de vez - MARIA INÊS DOLCI
FOLHA DE SP - 24/10
Oito ligações para a mesma pessoa, no mesmo dia, de telefones com números ou DDDs diferentes, para vender um determinado produto ou serviço parecem um absurdo até para o Brasil, em que o telemarketing não obedece às noções mais elementares de respeito ao consumidor.
Pois isso já aconteceu comigo e com pessoas próximas, que têm recebido chamadas telefônicas durante o dia, à noite ou também em finais de semana.
Nós bloqueamos números no smartphone, mas eles continuam tentando por meio de novas ligações do mesmo DDD ou de outros Estados.
A impressão é que os call centers têm sistemas que simulam números e que discam em cascata para cumprir as metas de seus colaboradores. Para o consumidor, é uma tortura que se repete quase diariamente.
No passado, ironizávamos a chamada "fidelização", o cerco ao cliente para vender de qualquer jeito. Pois era muito mais suave do que se verifica agora.
As empresas terceirizadas que vendem para operadoras de telecomunicações e bancos não respeitam o consumidor e tentam nos empurrar pacotes de TV por assinatura, contratos de telefonia e produtos bancários com uma sem-cerimônia que nos irrita e até assusta.
É também evidente que a atual e longa recessão econômica brasileira apimentou essa relação, transformando-a em uma espécie de "vale-tudo comercial".
Em lugar de bordoadas e pontapés, esse marketing apela para assédio comercial, viola as mais comezinhas normas de civilidade e provoca repúdio a determinadas marcas famosas.
Para se defender, recomenda-se que você instale aplicativos para bloquear chamadas de telefones e SMS desconhecidos ou cadastrados em uma lista especial.
Também é possível bloquear chamadas de telemarketing mediante cadastro nos Procons de vários Estados, como São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Alagoas.
Uma lei federal poderia tornar obrigatório esse serviço em todos os Estados, para ser executado pelos Procons, unificando as legislações já existentes.
Além disso, deveria ser criado um ranking de empresas que mais geram reclamação por abusos no telemarketing, para exposição em meios de comunicação e redes sociais.
O consumidor também pode se precaver não atendendo ligações de números desconhecidos.
Empresas de vendas usam sistemas que discam para milhares de telefones.
Quando alguém atende, aumenta a probabilidade de que o número do seu telefone seja incluído em uma lista de telemarketing. Ou seja, que passe então a receber mais ligações de televendas.
Um lembrete às empresas que se utilizam desse expediente de marketing destrutivo (muito pior do que o agressivo): os brasileiros estão mais conscientes de seus direitos e não toleram mais corrupção, desrespeito e invasão de privacidade.
O Código de Defesa do Consumidor, uma das melhores legislações de consumo do mundo, está em vigor desde 1991, portanto já há uma geração que viveu integralmente sobre a proteção do CDC.
Espero que o Ministério Público, órgãos de defesa do consumidor e autoridades em geral dediquem especial atenção a este absurdo assédio comercial.
Chega de invadir nossos lares com ligações indesejadas!
-
BLITZ DE VENDAS
Táticas usadas pelo telemarketing agressivo
Robô-secretário
"Alô, têm alguém aí?" Algumas empresas fazem a ligação com robô. Quando o usuário aguarda na linha, a ligação é transferida para um atendente. Se não há ninguém disponível, a ligação cai
Escapada rápida
Alguns atendentes desligam o telefone antes que o cliente possa dizer "gostaria que você parasse de me ligar", como uma forma de se prevenir de provas contra a empresa
Celebridades
Michel Teló e Luan Santana vendem planos de celular. Francisco Cuoco oferece um plano funerário, e Moacyr Franco já foi garoto-propaganda de suplementos nutricionais. Parece uma ligação espontânea, mas é uma gravação
A praga do fixo
Recebeu uma ligação indesejada no celular? Basta bloquear o número. Por isso, as centrais de telemarketing preferem ligar no fixo, já que, nesse meio, nem todos sabem como bloquear números indesejados (Vivo e Oi disponibilizam esse serviço)
Insistência é chave
Se o operador não consegue vender o produto ou falar com o cliente almejado, muitos sistemas de telemarketing são programados para continuar insistindo, e alguns chegam a ligar mais de uma vez por dia
O cliente ideal
As centrais de telemarketing e empresas têm bancos de dados para selecionar clientes com o perfil adequado. Aposentados, idosos e quem tem dinheiro sobrando no banco são alvos atraentes
Oito ligações para a mesma pessoa, no mesmo dia, de telefones com números ou DDDs diferentes, para vender um determinado produto ou serviço parecem um absurdo até para o Brasil, em que o telemarketing não obedece às noções mais elementares de respeito ao consumidor.
Pois isso já aconteceu comigo e com pessoas próximas, que têm recebido chamadas telefônicas durante o dia, à noite ou também em finais de semana.
Nós bloqueamos números no smartphone, mas eles continuam tentando por meio de novas ligações do mesmo DDD ou de outros Estados.
A impressão é que os call centers têm sistemas que simulam números e que discam em cascata para cumprir as metas de seus colaboradores. Para o consumidor, é uma tortura que se repete quase diariamente.
No passado, ironizávamos a chamada "fidelização", o cerco ao cliente para vender de qualquer jeito. Pois era muito mais suave do que se verifica agora.
As empresas terceirizadas que vendem para operadoras de telecomunicações e bancos não respeitam o consumidor e tentam nos empurrar pacotes de TV por assinatura, contratos de telefonia e produtos bancários com uma sem-cerimônia que nos irrita e até assusta.
É também evidente que a atual e longa recessão econômica brasileira apimentou essa relação, transformando-a em uma espécie de "vale-tudo comercial".
Em lugar de bordoadas e pontapés, esse marketing apela para assédio comercial, viola as mais comezinhas normas de civilidade e provoca repúdio a determinadas marcas famosas.
Para se defender, recomenda-se que você instale aplicativos para bloquear chamadas de telefones e SMS desconhecidos ou cadastrados em uma lista especial.
Também é possível bloquear chamadas de telemarketing mediante cadastro nos Procons de vários Estados, como São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Goiás e Alagoas.
Uma lei federal poderia tornar obrigatório esse serviço em todos os Estados, para ser executado pelos Procons, unificando as legislações já existentes.
Além disso, deveria ser criado um ranking de empresas que mais geram reclamação por abusos no telemarketing, para exposição em meios de comunicação e redes sociais.
O consumidor também pode se precaver não atendendo ligações de números desconhecidos.
Empresas de vendas usam sistemas que discam para milhares de telefones.
Quando alguém atende, aumenta a probabilidade de que o número do seu telefone seja incluído em uma lista de telemarketing. Ou seja, que passe então a receber mais ligações de televendas.
Um lembrete às empresas que se utilizam desse expediente de marketing destrutivo (muito pior do que o agressivo): os brasileiros estão mais conscientes de seus direitos e não toleram mais corrupção, desrespeito e invasão de privacidade.
O Código de Defesa do Consumidor, uma das melhores legislações de consumo do mundo, está em vigor desde 1991, portanto já há uma geração que viveu integralmente sobre a proteção do CDC.
Espero que o Ministério Público, órgãos de defesa do consumidor e autoridades em geral dediquem especial atenção a este absurdo assédio comercial.
Chega de invadir nossos lares com ligações indesejadas!
-
BLITZ DE VENDAS
Táticas usadas pelo telemarketing agressivo
Robô-secretário
"Alô, têm alguém aí?" Algumas empresas fazem a ligação com robô. Quando o usuário aguarda na linha, a ligação é transferida para um atendente. Se não há ninguém disponível, a ligação cai
Escapada rápida
Alguns atendentes desligam o telefone antes que o cliente possa dizer "gostaria que você parasse de me ligar", como uma forma de se prevenir de provas contra a empresa
Celebridades
Michel Teló e Luan Santana vendem planos de celular. Francisco Cuoco oferece um plano funerário, e Moacyr Franco já foi garoto-propaganda de suplementos nutricionais. Parece uma ligação espontânea, mas é uma gravação
A praga do fixo
Recebeu uma ligação indesejada no celular? Basta bloquear o número. Por isso, as centrais de telemarketing preferem ligar no fixo, já que, nesse meio, nem todos sabem como bloquear números indesejados (Vivo e Oi disponibilizam esse serviço)
Insistência é chave
Se o operador não consegue vender o produto ou falar com o cliente almejado, muitos sistemas de telemarketing são programados para continuar insistindo, e alguns chegam a ligar mais de uma vez por dia
O cliente ideal
As centrais de telemarketing e empresas têm bancos de dados para selecionar clientes com o perfil adequado. Aposentados, idosos e quem tem dinheiro sobrando no banco são alvos atraentes
U2 é passado; Trump é futuro - JOEL PINHEIRO DA FONSECA
FOLHA DE SP - 24/10
O U2, cujo show da turnê "The Joshua Tree" (álbum que completa 30 anos) tive o privilégio de assistir neste domingo, é mais do que uma banda de rock: é um manifesto por um mundo melhor. O líder Bono Vox é um missionário de todas as boas causas: a paz mundial, o empoderamento feminino, o fim da pobreza; todas devidamente afirmadas no show. O espírito do John Lennon estava no ar e o som era de primeira. Mas a catarse musical trouxe uma lembrança inquietante: aquilo era a bolha de um passado que não volta mais.
A banda chegou ao estrelato em meados dos anos 80. Era um mundo cansado do ódio e sedento de união. Com o fim da URSS, a paz mundial e o fim das fronteiras pareciam tão próximos. O que restava de guerra e intolerância nas periferias do mundo poderia ser superado com um valor fundamental: "love", o amor.
Pelo amor, as diferenças são atenuadas, a riqueza é distribuída, o poder é exercido em favor dos mais fracos. Faltava muito pouco para chegar lá: bastava os EUA deixarem de se impor pelo planeta e os países ricos fazerem mais filantropia —liderados por estrelas como o próprio Bono. Os povos do terceiro mundo —do qual a Irlanda deixava de fazer parte graças ao velho capitalismo— estavam prontos para coexistir. Era o mundo do U2, que fez sentido até inícios dos anos 2000, último auge da banda, com o álbum "How to Dismantle an Atomic Bomb".
Os tempos mudaram. O conflito está de volta e as bombas atômicas ficam. Nada de união global no caldo multiculturalista. Agora as identidades se afirmam. Cada um pensa primeiro em si: o meu país, o meu povo, a minha fé, a minha raça. Se não nos colocarmos em primeiro, quem o fará? Todos exigem o que é seu de direito. E quem, se não nós, definirá a extensão desse direito? Altruísmo é coisa de iludidos e ilusionistas.
Até o feminismo da banda parece deslocado: um grupo de homens prestando homenagem às nossas mães, filhas e esposas; a mulher como "the best thing about me". No telão, mulheres notáveis: Frida Kahlo, Rosa Parks, Michelle Bachelet, Angela Merkel, Hillary, Irmã Dulce, Taís Araújo. E a Dilma? E a Thatcher? E a Hebe?
Trump e sua muralha —os grandes inimigos— são nomeados. Infelizmente, apenas "amor" e o sentimento de superioridade moral não vencerão essa batalha. Trump hoje é visto como sincero, mais sincero do que o politicamente correto de Bono. O discurso da união global parece hipócrita. Mais do que ajudar os marginalizados da terra, ele serve para envaidecer e "empoderar" uma elite já inimaginavelmente poderosa e esmagar o povo —financeira e espiritualmente. Será?
Talvez seja por isso que essa banda tão igualitária tocou a primeira parte do show num pequeno palco dentro da "red zone", setor exclusivo da pista com ingressos a mais de R$ 1.000 (mas parte da renda vai para a fome na África!). Os telões estavam desligados, de modo que os reles mortais da pista comum não puderam vê-los tocar hits como "Pride (In the Name of Love)". Começaram os murmúrios. Nós também temos direito! Quem eles pensam que são? Durou pouco. Logo o U2 subiu ao palco principal, os telões mais incríveis que já se viu foram ligados e, por duas horas, fomos todos um só, acreditamos que o amor era o caminho e que roqueiros podiam salvar o mundo. Pena que acabou.
O U2, cujo show da turnê "The Joshua Tree" (álbum que completa 30 anos) tive o privilégio de assistir neste domingo, é mais do que uma banda de rock: é um manifesto por um mundo melhor. O líder Bono Vox é um missionário de todas as boas causas: a paz mundial, o empoderamento feminino, o fim da pobreza; todas devidamente afirmadas no show. O espírito do John Lennon estava no ar e o som era de primeira. Mas a catarse musical trouxe uma lembrança inquietante: aquilo era a bolha de um passado que não volta mais.
A banda chegou ao estrelato em meados dos anos 80. Era um mundo cansado do ódio e sedento de união. Com o fim da URSS, a paz mundial e o fim das fronteiras pareciam tão próximos. O que restava de guerra e intolerância nas periferias do mundo poderia ser superado com um valor fundamental: "love", o amor.
Pelo amor, as diferenças são atenuadas, a riqueza é distribuída, o poder é exercido em favor dos mais fracos. Faltava muito pouco para chegar lá: bastava os EUA deixarem de se impor pelo planeta e os países ricos fazerem mais filantropia —liderados por estrelas como o próprio Bono. Os povos do terceiro mundo —do qual a Irlanda deixava de fazer parte graças ao velho capitalismo— estavam prontos para coexistir. Era o mundo do U2, que fez sentido até inícios dos anos 2000, último auge da banda, com o álbum "How to Dismantle an Atomic Bomb".
Os tempos mudaram. O conflito está de volta e as bombas atômicas ficam. Nada de união global no caldo multiculturalista. Agora as identidades se afirmam. Cada um pensa primeiro em si: o meu país, o meu povo, a minha fé, a minha raça. Se não nos colocarmos em primeiro, quem o fará? Todos exigem o que é seu de direito. E quem, se não nós, definirá a extensão desse direito? Altruísmo é coisa de iludidos e ilusionistas.
Até o feminismo da banda parece deslocado: um grupo de homens prestando homenagem às nossas mães, filhas e esposas; a mulher como "the best thing about me". No telão, mulheres notáveis: Frida Kahlo, Rosa Parks, Michelle Bachelet, Angela Merkel, Hillary, Irmã Dulce, Taís Araújo. E a Dilma? E a Thatcher? E a Hebe?
Trump e sua muralha —os grandes inimigos— são nomeados. Infelizmente, apenas "amor" e o sentimento de superioridade moral não vencerão essa batalha. Trump hoje é visto como sincero, mais sincero do que o politicamente correto de Bono. O discurso da união global parece hipócrita. Mais do que ajudar os marginalizados da terra, ele serve para envaidecer e "empoderar" uma elite já inimaginavelmente poderosa e esmagar o povo —financeira e espiritualmente. Será?
Talvez seja por isso que essa banda tão igualitária tocou a primeira parte do show num pequeno palco dentro da "red zone", setor exclusivo da pista com ingressos a mais de R$ 1.000 (mas parte da renda vai para a fome na África!). Os telões estavam desligados, de modo que os reles mortais da pista comum não puderam vê-los tocar hits como "Pride (In the Name of Love)". Começaram os murmúrios. Nós também temos direito! Quem eles pensam que são? Durou pouco. Logo o U2 subiu ao palco principal, os telões mais incríveis que já se viu foram ligados e, por duas horas, fomos todos um só, acreditamos que o amor era o caminho e que roqueiros podiam salvar o mundo. Pena que acabou.
Lula e o populismo - HÉLIO SCHWARTSMAN
FOLHA DE SP - 24/10
SÃO PAULO - A entrevista que Luiz Inácio Lula da Silva deu ao jornal espanhol "El Mundo" não nos faz vislumbrar uma campanha eleitoral muito auspiciosa em 2018.
Nem tudo, porém, são más notícias. É positivo o fato de Lula admitir que o governo Dilma Rousseff cometeu erros. O maior deles, segundo o petista, foi ter "exagerado" nas desonerações dadas a empresas. Tal reconhecimento me pareceu um avanço, porque ainda vejo petistas que defendem a política econômica de Dilma, atribuindo o desastre ocorrido sob sua gestão só a fatores externos.
Lula, entretanto, se trai ao afirmar que o segundo maior erro de Dilma foi ter tentado, em 2015, promover o ajuste fiscal, contrariando tudo o que afirmara na campanha de 2014. O problema de Dilma não foi propor o ajuste (eu diria até que foi um de seus raros acertos), mas sim ter prometido o que ela sabia que não poderia entregar. Nesse particular, Lula errou junto com Dilma, pois ele também tinha conhecimento da encrenca fiscal e isso não o impediu de participar ativamente da campanha.
O que me preocupa, contudo, não é tanto o passado, mas o futuro. É especialmente inquietante que o petista tenha falado em "referendo revogatório" das medidas aprovadas por Michel Temer. A atual gestão é um horror. É impopular, fisiológica e patologicamente conservadora. Ainda assim, teve o mérito de começar a pôr ordem na barafunda econômica legada por Dilma. É justamente isso que o ex-presidente ameaça reverter.
A situação é estranha, pois, se Lula vencesse com esse discurso, ou cometeria estelionato eleitoral, como Dilma, ou cumpriria suas promessas, mas aí dificilmente conseguiria governar. Outra possibilidade é ele próprio achar que terá a candidatura cassada, hipótese em que flertes com o populismo se tornam mais compreensíveis, ainda que não justificáveis. Em qualquer caso, não teríamos, de novo, uma campanha eleitoral honesta, o que pode ser desastroso.
SÃO PAULO - A entrevista que Luiz Inácio Lula da Silva deu ao jornal espanhol "El Mundo" não nos faz vislumbrar uma campanha eleitoral muito auspiciosa em 2018.
Nem tudo, porém, são más notícias. É positivo o fato de Lula admitir que o governo Dilma Rousseff cometeu erros. O maior deles, segundo o petista, foi ter "exagerado" nas desonerações dadas a empresas. Tal reconhecimento me pareceu um avanço, porque ainda vejo petistas que defendem a política econômica de Dilma, atribuindo o desastre ocorrido sob sua gestão só a fatores externos.
Lula, entretanto, se trai ao afirmar que o segundo maior erro de Dilma foi ter tentado, em 2015, promover o ajuste fiscal, contrariando tudo o que afirmara na campanha de 2014. O problema de Dilma não foi propor o ajuste (eu diria até que foi um de seus raros acertos), mas sim ter prometido o que ela sabia que não poderia entregar. Nesse particular, Lula errou junto com Dilma, pois ele também tinha conhecimento da encrenca fiscal e isso não o impediu de participar ativamente da campanha.
O que me preocupa, contudo, não é tanto o passado, mas o futuro. É especialmente inquietante que o petista tenha falado em "referendo revogatório" das medidas aprovadas por Michel Temer. A atual gestão é um horror. É impopular, fisiológica e patologicamente conservadora. Ainda assim, teve o mérito de começar a pôr ordem na barafunda econômica legada por Dilma. É justamente isso que o ex-presidente ameaça reverter.
A situação é estranha, pois, se Lula vencesse com esse discurso, ou cometeria estelionato eleitoral, como Dilma, ou cumpriria suas promessas, mas aí dificilmente conseguiria governar. Outra possibilidade é ele próprio achar que terá a candidatura cassada, hipótese em que flertes com o populismo se tornam mais compreensíveis, ainda que não justificáveis. Em qualquer caso, não teríamos, de novo, uma campanha eleitoral honesta, o que pode ser desastroso.
Battisti e seus fantasmas - ELIANE CANTANHÊDE
ESTADÃO - 24/10
Em São Paulo, debate sobre Mãos Limpas e Lava Jato; em Brasília, o que fazer com Cesare Battisti
Vamos convir que o governo e a sociedade italianos têm razão: Cesare Battisti não é nenhum herói como Garibaldi e não tem a aura de um Che Guevara, apesar de posar com a gravura do revolucionário cubano “casualmente” ao fundo. Nos governos do PT, aqui no Brasil, ele foi tratado como um réu político. Em qualquer governo, lá na Itália, ele é considerado um criminoso comum, um assassino frio de ao menos quatro cidadãos.
Discretamente, os italianos ponderam que vivem uma democracia e, mesmo condenado à prisão perpétua, Battisti dificilmente morreria no cárcere caso extraditado. Seus companheiros já foram soltos, integrados à vida normal e há quem esteja muito bem de vida. Na Itália, a prisão perpétua só vale na teoria, assim como as penas no Brasil são reduzidas para 1/6. Sérgio Cabral já está condenado a 72 anos. Quanto vai cumprir?
A história de Battisti no Brasil é tortuosa. Ele chegou fugido, clandestinamente. Foi preso e iniciou-se um longo debate. Os pareceres técnicos e jurídicos do Itamaraty e do Ministério da Justiça eram favoráveis à extradição, mas o então ministro Tarso Genro, que é da área jurídica, preferiu o viés ideológico e liderou o processo de mantê-lo no Brasil.
O assunto foi parar no Supremo, que julgou a favor da extradição de Battisti, mas delegou para o presidente Lula a decisão de despachá-lo ou não para a Itália, sob argumento de que era questão de Estado. No último dia do mandato, Lula manteve condenado italiano em solo brasileiro.
As opiniões dividiram-se e isso só se intensificou quando a Itália prendeu, analisou e devolveu para o Brasil o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, que, condenado no mensalão, fugiu com um documento em nome do irmão morto havia anos. À época, pareceu uma gentileza diplomática, um tapa com luvas de pelica da Itália no Brasil.
Na verdade, foi uma decisão muito pragmática dos dois lados: imagine se a Itália mantivesse lá, livre, leve e solto, um condenado por crime de colarinho-branco com sobrenome italiano? Os demais iriam fazer fila para escapar por terra, mar e ar, a começar dos dois ex-ministros petistas Antonio Palocci e Guido Mantega. Nenhum deles, claro, com dificuldades financeiras para sobreviver na Europa.
Como a decisão de Lula não prescreve, o governo, a diplomacia e a justiça italianas esperaram calmamente. Com Dilma Rousseff, as chances eram zero, já que ela foi presa por resistir à ditadura e prefere a “versão romântica” de Battisti. Mas, com a posse do professor de Direito Constitucional Michel Temer, as negociações recomeçaram. Já se manifestaram a favor da extradição os ministros da Justiça, do Itamaraty e do entorno de Temer no Planalto. Mas a questão depende também do Supremo.
Hoje, enquanto os magistrados italianos Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo participam do Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato, em São Paulo, os cinco integrantes da Primeira Turma do STF julgam, em Brasília, um habeas corpus contra a extradição de Battisti. Davigo e Colombo são dois dos principais personagens da Operação Mãos Limpas na Itália e discutirão com o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol os pontos em comum nas duas fantásticas operações contra a corrupção e o futuro da Lava Jato.
E, na Primeira Turma, como o ministro Luís Roberto Barroso foi advogado de Battisti, é provável que se declare impedido e haja risco de empate, dois a dois, e Battisti vá parar no plenário carregando seus quatro fantasmas. E é assim, com debates e divergências e aprendendo com experiências anteriores, que nós, brasileiros, vamos vivendo e aprendendo. Dê o que dê no caso Battisti, o debate sobre ideologia e leis é fascinante. Como será também no Forum Estadão.
Em São Paulo, debate sobre Mãos Limpas e Lava Jato; em Brasília, o que fazer com Cesare Battisti
Vamos convir que o governo e a sociedade italianos têm razão: Cesare Battisti não é nenhum herói como Garibaldi e não tem a aura de um Che Guevara, apesar de posar com a gravura do revolucionário cubano “casualmente” ao fundo. Nos governos do PT, aqui no Brasil, ele foi tratado como um réu político. Em qualquer governo, lá na Itália, ele é considerado um criminoso comum, um assassino frio de ao menos quatro cidadãos.
Discretamente, os italianos ponderam que vivem uma democracia e, mesmo condenado à prisão perpétua, Battisti dificilmente morreria no cárcere caso extraditado. Seus companheiros já foram soltos, integrados à vida normal e há quem esteja muito bem de vida. Na Itália, a prisão perpétua só vale na teoria, assim como as penas no Brasil são reduzidas para 1/6. Sérgio Cabral já está condenado a 72 anos. Quanto vai cumprir?
A história de Battisti no Brasil é tortuosa. Ele chegou fugido, clandestinamente. Foi preso e iniciou-se um longo debate. Os pareceres técnicos e jurídicos do Itamaraty e do Ministério da Justiça eram favoráveis à extradição, mas o então ministro Tarso Genro, que é da área jurídica, preferiu o viés ideológico e liderou o processo de mantê-lo no Brasil.
O assunto foi parar no Supremo, que julgou a favor da extradição de Battisti, mas delegou para o presidente Lula a decisão de despachá-lo ou não para a Itália, sob argumento de que era questão de Estado. No último dia do mandato, Lula manteve condenado italiano em solo brasileiro.
As opiniões dividiram-se e isso só se intensificou quando a Itália prendeu, analisou e devolveu para o Brasil o ex-diretor do Banco do Brasil Henrique Pizzolato, que, condenado no mensalão, fugiu com um documento em nome do irmão morto havia anos. À época, pareceu uma gentileza diplomática, um tapa com luvas de pelica da Itália no Brasil.
Na verdade, foi uma decisão muito pragmática dos dois lados: imagine se a Itália mantivesse lá, livre, leve e solto, um condenado por crime de colarinho-branco com sobrenome italiano? Os demais iriam fazer fila para escapar por terra, mar e ar, a começar dos dois ex-ministros petistas Antonio Palocci e Guido Mantega. Nenhum deles, claro, com dificuldades financeiras para sobreviver na Europa.
Como a decisão de Lula não prescreve, o governo, a diplomacia e a justiça italianas esperaram calmamente. Com Dilma Rousseff, as chances eram zero, já que ela foi presa por resistir à ditadura e prefere a “versão romântica” de Battisti. Mas, com a posse do professor de Direito Constitucional Michel Temer, as negociações recomeçaram. Já se manifestaram a favor da extradição os ministros da Justiça, do Itamaraty e do entorno de Temer no Planalto. Mas a questão depende também do Supremo.
Hoje, enquanto os magistrados italianos Piercamillo Davigo e Gherardo Colombo participam do Fórum Estadão Mãos Limpas e Lava Jato, em São Paulo, os cinco integrantes da Primeira Turma do STF julgam, em Brasília, um habeas corpus contra a extradição de Battisti. Davigo e Colombo são dois dos principais personagens da Operação Mãos Limpas na Itália e discutirão com o juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol os pontos em comum nas duas fantásticas operações contra a corrupção e o futuro da Lava Jato.
E, na Primeira Turma, como o ministro Luís Roberto Barroso foi advogado de Battisti, é provável que se declare impedido e haja risco de empate, dois a dois, e Battisti vá parar no plenário carregando seus quatro fantasmas. E é assim, com debates e divergências e aprendendo com experiências anteriores, que nós, brasileiros, vamos vivendo e aprendendo. Dê o que dê no caso Battisti, o debate sobre ideologia e leis é fascinante. Como será também no Forum Estadão.
A Constituição de 1988 na visão de Roberto Campos - NEY PRADO
ESTADÃO - 24/10
Uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa de efêmero’
Neste centenário, em que Roberto, Por sua pátria é reverenciado, Tudo se torna presente, Mesmo o tempo que é passado
A esta altura, após 29 anos de vigência, o texto constitucional já recebeu abundantes apreciações de vários segmentos da sociedade brasileira e avaliações críticas dos setores político, econômico e jurídico, dando-nos um panorama razoavelmente diversificado de seus aspectos, tanto os positivos quanto negativos. Para atender a propósito do tema, julgo importante mencionar frases extraídas de algumas obras de Roberto Campos que retratam sua visão sobre a Carta de 1988.
“O problema brasileiro nunca foi fabricar Constituições, sempre foi cumpri-las. Já demonstramos à saciedade, ao longo de nossa história, suficiente talento juridicista – pois que produzimos sete Constituições, três outorgadas e quatro votadas – e suficiente indisciplina para descumpri-las rigorosamente todas!”
“A Constituição brasileira de 1988, triste imitação da Constituição portuguesa de 1976, oriunda da Revolução dos Cravos, levou ao paroxismo e mania das Constituições dirigentes ou intervencionistas. Esse tipo de Constituição, que se popularizou na Europa após a Carta Alemã de Weimar de 1919, representou, para usar a feliz expressão do professor Paulo Mercadante, um avanço do retrocesso.”
“Nossa Constituição é uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa de efêmero; é, ao mesmo tempo, um hino à preguiça e uma coleção de anedotas; é saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social; é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela.”
“No texto constitucional, muito do que é novo não é factível e muito do que é factível não é novo”.
“Da ordem social – exibem-se duas características fundamentais do socialismo: despotismo e utopia. (...) Exemplos de despotismos são os dispositivos relativos à educação e à previdência social. Quanto à educação, diz-se que ela é dever do Estado, com a colaboração da sociedade. É o contrário. Ela é dever da família, com a colaboração do Estado. (...) Outro exemplo de despotismo é a previdência estatal compulsória. Todos devem ser obrigados a filiar-se a algum sistema previdenciário, para não se tornarem intencionalmente gigolôs do Estado.”
“Na ordem econômica, nem é bom falar. Discrimina contra investimentos estrangeiros, marginalizando o Brasil na atração de capitais. Na Constituição de 1988, a lógica econômica entrou em férias.”
“A cultura antiempresarial subestima a importância fundamental do empresário na criação de riquezas. Para os constituintes, o trabalhador é um mártir; o empresário um ser antissocial, que tem de ser humanizado por imposição dos legisladores; o investidor estrangeiro, um inimigo disfarçado. Nada mais apropriado para distribuir a pobreza e desestimular a criação de riqueza. A Constituição promete solução indolor para a pobreza.”
“É difícil exagerar os malefícios desse misto de regulamentação trabalhista e dicionário de utopias em que se transformou nossa Carta Magna. Na Constituição, promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos. Esse país ideal é aquele onde é mais fácil divorciar-se de uma mulher do que despedir um empregado.”
“No plano político, há o hibrismo entre presidencialismo e parlamentarismo. No plano congressual, levou a um anárquico multipartidarismo.”
“Aos dois clássicos sistemas de governo – o presidencialista e o parlamentarista – o Brasil acaba, com originalidade, de acrescentar mais um – o promiscuísta.”
“A Constituição dos miseráveis, como diz o dr. Ulysses, é uma favela jurídica onde os três Poderes viverão em desconfortável promiscuidade.”
“Os estudiosos do Direito Constitucional aqui e alhures não buscarão no novo texto lições sobre a arquitetura institucional, sistema de governo ou balanço de Poderes. Em compensação, encontrarão abundante material anedótico.”
“Aliás, a preocupação dos Constituintes não foi facilitar a criação de novos empregos, e sim garantir mais direitos para os já empregados.”
“O modelo monopolista sindical que temos é fascista. Conseguimos combinar resíduos de corporativismo fascista com o mercantilismo colonial, e acabamos reduzidos à condição de súditos, não de cidadãos.”
“A palavra produtividade só aparece uma vez no texto constitucional; as palavras usuárioe eficiência figuram duas vezes; fala-se em garantias 44 vezes, em direito, 76 vezes, enquanto a palavra deveres é mencionada apenas quatro vezes.”
“Segundo a Constituição, os impostos são certos, mas há duvidas quanto à morte, pois o texto garante aos idosos o direito à vida. (...) “Diz-se também que a saúde é direito de todos. Os idosos, como eu, sabem que se trata de um capricho do Criador...”
“Que Constituição no mundo tabela juros, oficializa o calote, garante imortalidade aos idosos, nacionaliza a doença e dá ao jovem de 16 anos, ao mesmo tempo, o direito de votar e de ficar impune nos crimes eleitorais? Nosso título de originalidade será criarmos uma nova teoria constitucional: a do progressismo arcaico.”
“Essas rápidas pinceladas talvez nos deixem realmente convencidos de que o País tem pendente uma questão de urgência urgentíssima: reformar a Constituição e retirar o País do claustro, a fim de que os brasileiros respirem os ares do novo mundo em gestação.”
Em conclusão, gostaria de enfatizar minha plena identidade com o pensamento liberal de Roberto Campos por seus incontáveis méritos, de forma e conteúdo. Acrescento, todavia: nossa Constituição tem reconhecidamente vícios e virtudes. Mas, necessária ou não, progressista ou retrógrada, boa ou má, bem-vinda ou não, estamos diante de um fato jurídico inarredável, qualquer que seja a avaliação de seu conteúdo e a inclinação política do intérprete.
*Desembargador federal do trabalho aposentado, é presidente da Academia Internacional de Direito e Economia
Uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa de efêmero’
Neste centenário, em que Roberto, Por sua pátria é reverenciado, Tudo se torna presente, Mesmo o tempo que é passado
A esta altura, após 29 anos de vigência, o texto constitucional já recebeu abundantes apreciações de vários segmentos da sociedade brasileira e avaliações críticas dos setores político, econômico e jurídico, dando-nos um panorama razoavelmente diversificado de seus aspectos, tanto os positivos quanto negativos. Para atender a propósito do tema, julgo importante mencionar frases extraídas de algumas obras de Roberto Campos que retratam sua visão sobre a Carta de 1988.
“O problema brasileiro nunca foi fabricar Constituições, sempre foi cumpri-las. Já demonstramos à saciedade, ao longo de nossa história, suficiente talento juridicista – pois que produzimos sete Constituições, três outorgadas e quatro votadas – e suficiente indisciplina para descumpri-las rigorosamente todas!”
“A Constituição brasileira de 1988, triste imitação da Constituição portuguesa de 1976, oriunda da Revolução dos Cravos, levou ao paroxismo e mania das Constituições dirigentes ou intervencionistas. Esse tipo de Constituição, que se popularizou na Europa após a Carta Alemã de Weimar de 1919, representou, para usar a feliz expressão do professor Paulo Mercadante, um avanço do retrocesso.”
“Nossa Constituição é uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa de efêmero; é, ao mesmo tempo, um hino à preguiça e uma coleção de anedotas; é saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social; é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela.”
“No texto constitucional, muito do que é novo não é factível e muito do que é factível não é novo”.
“Da ordem social – exibem-se duas características fundamentais do socialismo: despotismo e utopia. (...) Exemplos de despotismos são os dispositivos relativos à educação e à previdência social. Quanto à educação, diz-se que ela é dever do Estado, com a colaboração da sociedade. É o contrário. Ela é dever da família, com a colaboração do Estado. (...) Outro exemplo de despotismo é a previdência estatal compulsória. Todos devem ser obrigados a filiar-se a algum sistema previdenciário, para não se tornarem intencionalmente gigolôs do Estado.”
“Na ordem econômica, nem é bom falar. Discrimina contra investimentos estrangeiros, marginalizando o Brasil na atração de capitais. Na Constituição de 1988, a lógica econômica entrou em férias.”
“A cultura antiempresarial subestima a importância fundamental do empresário na criação de riquezas. Para os constituintes, o trabalhador é um mártir; o empresário um ser antissocial, que tem de ser humanizado por imposição dos legisladores; o investidor estrangeiro, um inimigo disfarçado. Nada mais apropriado para distribuir a pobreza e desestimular a criação de riqueza. A Constituição promete solução indolor para a pobreza.”
“É difícil exagerar os malefícios desse misto de regulamentação trabalhista e dicionário de utopias em que se transformou nossa Carta Magna. Na Constituição, promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos. Esse país ideal é aquele onde é mais fácil divorciar-se de uma mulher do que despedir um empregado.”
“No plano político, há o hibrismo entre presidencialismo e parlamentarismo. No plano congressual, levou a um anárquico multipartidarismo.”
“Aos dois clássicos sistemas de governo – o presidencialista e o parlamentarista – o Brasil acaba, com originalidade, de acrescentar mais um – o promiscuísta.”
“A Constituição dos miseráveis, como diz o dr. Ulysses, é uma favela jurídica onde os três Poderes viverão em desconfortável promiscuidade.”
“Os estudiosos do Direito Constitucional aqui e alhures não buscarão no novo texto lições sobre a arquitetura institucional, sistema de governo ou balanço de Poderes. Em compensação, encontrarão abundante material anedótico.”
“Aliás, a preocupação dos Constituintes não foi facilitar a criação de novos empregos, e sim garantir mais direitos para os já empregados.”
“O modelo monopolista sindical que temos é fascista. Conseguimos combinar resíduos de corporativismo fascista com o mercantilismo colonial, e acabamos reduzidos à condição de súditos, não de cidadãos.”
“A palavra produtividade só aparece uma vez no texto constitucional; as palavras usuárioe eficiência figuram duas vezes; fala-se em garantias 44 vezes, em direito, 76 vezes, enquanto a palavra deveres é mencionada apenas quatro vezes.”
“Segundo a Constituição, os impostos são certos, mas há duvidas quanto à morte, pois o texto garante aos idosos o direito à vida. (...) “Diz-se também que a saúde é direito de todos. Os idosos, como eu, sabem que se trata de um capricho do Criador...”
“Que Constituição no mundo tabela juros, oficializa o calote, garante imortalidade aos idosos, nacionaliza a doença e dá ao jovem de 16 anos, ao mesmo tempo, o direito de votar e de ficar impune nos crimes eleitorais? Nosso título de originalidade será criarmos uma nova teoria constitucional: a do progressismo arcaico.”
“Essas rápidas pinceladas talvez nos deixem realmente convencidos de que o País tem pendente uma questão de urgência urgentíssima: reformar a Constituição e retirar o País do claustro, a fim de que os brasileiros respirem os ares do novo mundo em gestação.”
Em conclusão, gostaria de enfatizar minha plena identidade com o pensamento liberal de Roberto Campos por seus incontáveis méritos, de forma e conteúdo. Acrescento, todavia: nossa Constituição tem reconhecidamente vícios e virtudes. Mas, necessária ou não, progressista ou retrógrada, boa ou má, bem-vinda ou não, estamos diante de um fato jurídico inarredável, qualquer que seja a avaliação de seu conteúdo e a inclinação política do intérprete.
*Desembargador federal do trabalho aposentado, é presidente da Academia Internacional de Direito e Economia
Proliferação de cargos - EDITORIAL FOLHA DE SP
FOLHA DE SP - 24/10
A tabela de salários dos servidores do Executivo federal, listando as múltiplas situações funcionais existentes na máquina brasiliense, compõe hoje um calhamaço de 623 páginas —eram já copiosas 82 em 1998, quando o documento começou a ser divulgado.
De lá para cá, não aumentou somente o quadro de pessoal, atualmente de 635 mil civis; o que deu à publicação suas dimensões de Velho Testamento foi uma gestão caótica da força de trabalho.
Sob pressões corporativas, proliferaram novas categorias para acomodar o funcionalismo, em especial durante as administrações petistas. Contavam-se, no início da década passada, cerca de 30 carreiras e cem diferentes cargos. Estes foram triplicados; aquelas se tornaram difíceis de distinguir.
Há, ou deveria haver, sentido gerencial em tais classificações. A carreira de policial federal, por exemplo, inclui cargos como os de delegado, agente e escrivão. Cada um deles demanda habilidades específicas, a serem aprimoradas com treinamento e experiência.
Salvo casos pontuais, não faria sentido remanejar tais profissionais para outras funções no Executivo, tampouco substituí-los por servidores de formação diversa.
Não se pergunte, entretanto, por que um hospital público, o das Forças Armadas, dispõe de três carreiras exclusivas —uma delas, ao menos, é a de médico— e de seu próprio plano de cargos.
Situações como essa atendem à conveniência das corporações, não à condução das políticas de Estado. Os servidores se agrupam em compartimentos estanques, para melhor negociar salários e vantagens peculiares; ao governo resta gerir uma burocracia engessada.
Conforme o secretário de Gestão de Pessoas do Ministério do Planejamento, Augusto Chiba, o número de carreiras e cargos poderia ser reduzido a um décimo do atual.
Trata-se de constatação um tanto tardia —desde seu início, o governo Michel Temer (PMDB) ensaia uma reforma administrativa, até aqui limitada a medidas que mal avançam além do cosmético.
Prometeu-se em agosto uma revisão das estruturas salariais das carreiras, mas nem sequer se enviou tal proposta ao Congresso. É pouco, de todo modo: o crescimento do quadro de pessoal da União deveria ser estancado até que se procedesse a uma ampla reorganização de suas categorias.
A tabela de salários dos servidores do Executivo federal, listando as múltiplas situações funcionais existentes na máquina brasiliense, compõe hoje um calhamaço de 623 páginas —eram já copiosas 82 em 1998, quando o documento começou a ser divulgado.
De lá para cá, não aumentou somente o quadro de pessoal, atualmente de 635 mil civis; o que deu à publicação suas dimensões de Velho Testamento foi uma gestão caótica da força de trabalho.
Sob pressões corporativas, proliferaram novas categorias para acomodar o funcionalismo, em especial durante as administrações petistas. Contavam-se, no início da década passada, cerca de 30 carreiras e cem diferentes cargos. Estes foram triplicados; aquelas se tornaram difíceis de distinguir.
Há, ou deveria haver, sentido gerencial em tais classificações. A carreira de policial federal, por exemplo, inclui cargos como os de delegado, agente e escrivão. Cada um deles demanda habilidades específicas, a serem aprimoradas com treinamento e experiência.
Salvo casos pontuais, não faria sentido remanejar tais profissionais para outras funções no Executivo, tampouco substituí-los por servidores de formação diversa.
Não se pergunte, entretanto, por que um hospital público, o das Forças Armadas, dispõe de três carreiras exclusivas —uma delas, ao menos, é a de médico— e de seu próprio plano de cargos.
Situações como essa atendem à conveniência das corporações, não à condução das políticas de Estado. Os servidores se agrupam em compartimentos estanques, para melhor negociar salários e vantagens peculiares; ao governo resta gerir uma burocracia engessada.
Conforme o secretário de Gestão de Pessoas do Ministério do Planejamento, Augusto Chiba, o número de carreiras e cargos poderia ser reduzido a um décimo do atual.
Trata-se de constatação um tanto tardia —desde seu início, o governo Michel Temer (PMDB) ensaia uma reforma administrativa, até aqui limitada a medidas que mal avançam além do cosmético.
Prometeu-se em agosto uma revisão das estruturas salariais das carreiras, mas nem sequer se enviou tal proposta ao Congresso. É pouco, de todo modo: o crescimento do quadro de pessoal da União deveria ser estancado até que se procedesse a uma ampla reorganização de suas categorias.
Argentina à frente do Brasil na reconstrução - EDITORIAL O GLOBO
O GLOBO - 24/10
Vitória de Macri em eleições legislativas contra kirchnerismo e peronistas comprova a viabilidade nas urnas de uma plataforma de reformas liberais
Brasil e Argentina, por diversas circunstâncias históricas de formação, costumam cumprir ciclos semelhantes na política. É o que mostram as fases de autoritarismo e distensão. Assim como os surtos de populismo.
Se os brasileiros tiveram Getulio Vargas, os argentinos contaram com Juan Domingo Perón — para azar da Argentina, um caudilho que se enraizou de forma bem mais profunda no país do que o varguismo no Brasil.
A coincidência mais recente, e ainda em fase de desdobramentos, é o esgotamento, aqui e lá, de projetos populistas, conduzidos pelo casal Kirchner — Néstor e Cristina —, e pela dupla Lula e Dilma. Com algumas características peculiares a depender do lado da fronteira, ambas as experiências, como foi previsto, resultaram em euforia no povo e em alta popularidade dos governantes, no início, com um desastroso desfecho em meio à inflação alta, à recessão e ao desemprego.
Também os dois países buscam emergir dos escombros, e, como fica claro no resultados das eleições legislativas realizadas domingo, a Argentina está à frente do Brasil neste aspecto.
É inegável que o fato de, no país vizinho, Cristina Kirchner ter sido sucedida por Maurício Macri, com um projeto oposto ao do kirchnerismo, facilita a transição para a estabilidade. Diferente do Brasil, em que Michel Temer, eleito pelos mesmos votos dados a Dilma Roussef, a quem sucedeu de forma legal, recebe graves acusações de corrupção, e, para se salvar, precisa barganhar apoio no Congresso pela via do fisiologismo.
O Mudemos, de Macri, de centro-direita, ganhou dos nacionais-populistas do kirchnerismo no domingo, batendo o próprio peronismo. Derrotou o populismo nas cinco principais províncias argentinas. Das 23 províncias, ganhou em 13. Mesmo que não tenha obtido controle do Congresso, ganhou força para tocar reformas — outra similaridade com o Brasil, a necessidade de mudanças estruturais nas áreas fiscal e trabalhista, por exemplo.
A maior vitória política ocorreu no distrito de Buenos Aires, base de 40% do eleitorado nacional, e no qual o candidato de Mudemos ao Senado, Esteban Bullrich, ultrapassou os 40% dos votos, bem à frente de Cristina K, com pouco mais de 37%, segundo boletins divulgados na manhã de ontem. A ex-presidente, com este resultado, ganha assento no Senado, mas carrega a marca da derrota política.
Outra vantagem argentina em relação ao Brasil é que as vitórias de Macri nas eleições presidenciais e no domingo fortalecem junto ao povo uma proposta liberal de governo. Prova que é possível apoio eleitoral a uma plataforma de ajuste. O momento político argentino mostra, porém, que é necessário um líder político que tome a responsabilidade de dizer a verdade para o eleitorado e convencê-lo.
Brasil e Argentina, por diversas circunstâncias históricas de formação, costumam cumprir ciclos semelhantes na política. É o que mostram as fases de autoritarismo e distensão. Assim como os surtos de populismo.
Se os brasileiros tiveram Getulio Vargas, os argentinos contaram com Juan Domingo Perón — para azar da Argentina, um caudilho que se enraizou de forma bem mais profunda no país do que o varguismo no Brasil.
A coincidência mais recente, e ainda em fase de desdobramentos, é o esgotamento, aqui e lá, de projetos populistas, conduzidos pelo casal Kirchner — Néstor e Cristina —, e pela dupla Lula e Dilma. Com algumas características peculiares a depender do lado da fronteira, ambas as experiências, como foi previsto, resultaram em euforia no povo e em alta popularidade dos governantes, no início, com um desastroso desfecho em meio à inflação alta, à recessão e ao desemprego.
Também os dois países buscam emergir dos escombros, e, como fica claro no resultados das eleições legislativas realizadas domingo, a Argentina está à frente do Brasil neste aspecto.
É inegável que o fato de, no país vizinho, Cristina Kirchner ter sido sucedida por Maurício Macri, com um projeto oposto ao do kirchnerismo, facilita a transição para a estabilidade. Diferente do Brasil, em que Michel Temer, eleito pelos mesmos votos dados a Dilma Roussef, a quem sucedeu de forma legal, recebe graves acusações de corrupção, e, para se salvar, precisa barganhar apoio no Congresso pela via do fisiologismo.
O Mudemos, de Macri, de centro-direita, ganhou dos nacionais-populistas do kirchnerismo no domingo, batendo o próprio peronismo. Derrotou o populismo nas cinco principais províncias argentinas. Das 23 províncias, ganhou em 13. Mesmo que não tenha obtido controle do Congresso, ganhou força para tocar reformas — outra similaridade com o Brasil, a necessidade de mudanças estruturais nas áreas fiscal e trabalhista, por exemplo.
A maior vitória política ocorreu no distrito de Buenos Aires, base de 40% do eleitorado nacional, e no qual o candidato de Mudemos ao Senado, Esteban Bullrich, ultrapassou os 40% dos votos, bem à frente de Cristina K, com pouco mais de 37%, segundo boletins divulgados na manhã de ontem. A ex-presidente, com este resultado, ganha assento no Senado, mas carrega a marca da derrota política.
Outra vantagem argentina em relação ao Brasil é que as vitórias de Macri nas eleições presidenciais e no domingo fortalecem junto ao povo uma proposta liberal de governo. Prova que é possível apoio eleitoral a uma plataforma de ajuste. O momento político argentino mostra, porém, que é necessário um líder político que tome a responsabilidade de dizer a verdade para o eleitorado e convencê-lo.
O partido da Lava Jato - EDITORIAL O ESTADÃO
ESTADÃO - 24/10
Metamorfose começou a se manifestar quando alguns procuradores que integram a operação começaram a falar em 'saneamento' da política
Aos poucos, a Lava Jato, que caminha para seu quarto ano, vai deixando de ser uma operação contra um esquema de corrupção em estatais e organismos de governo para se transformar em partido político. Essa metamorfose começou a se manifestar quando alguns procuradores que integram a operação começaram a falar em “saneamento” da política como seu principal objetivo. Ou seja, ao se atribuírem uma tarefa que claramente extrapola o escopo de seu trabalho, imiscuindo-se em seara que, numa democracia, é exclusiva dos eleitores e de seus representantes no Legislativo, esses procuradores acabaram por se comportar como militantes de um partido – e, como tal, passaram a tratar todos os críticos de sua “plataforma” como adversários políticos.
Em recente entrevista ao Estado, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, deixou clara, de vez, essa disposição. Segundo Dallagnol, a Lava Jato não revelou apenas a corrupção de um político ou de um grupo, “mas de grande parte da classe política”. Por essa razão, “o objetivo da operação é colocar essas pessoas poderosas debaixo da lei”. Mas, segundo o procurador, “há um problema: elas fazem as leis”. Ou seja, a julgar pelo que diz o coordenador da Lava Jato, a operação só será considerada bem-sucedida se varrer do Congresso “grande parte da classe política”, gente que, em sua visão, faz leis exclusivamente para se proteger da Justiça.
Para atingir esse objetivo, prossegue o procurador Dallagnol, não basta simplesmente levar aos tribunais os políticos que a Lava Jato considera corruptos, pois “apenas punições não resolvem”. É preciso, segundo ele, “avançar para reformas anticorrupção no sistema político, no sistema de Justiça e em outras áreas”, razão pela qual a Lava Jato, a título de se proteger dos atuais políticos, que seriam seus inimigos, considera essencial eleger representantes “que tenham um compromisso claro com a causa anticorrupção”.
O nome disso é política partidária. Em lugar de se preocupar com a obtenção de provas para sustentar as muitas acusações feitas contra políticos, alguns integrantes da Lava Jato parecem mais empenhados em construir a imagem de que a operação veio para salvar o Brasil e que ela se transformou em “patrimônio nacional”, conforme as palavras do procurador Dallagnol. Tornou-se assim, segundo essa visão, não apenas inatacável, mas também única intérprete autorizada dos anseios nacionais.
O problema é que a sociedade dificilmente concordará com isso. “É impossível prever o que acontecerá porque depende de um fator que ninguém controla: como a sociedade vai se comportar no futuro”, reconhece Dallagnol, admitindo que os eleitores eventualmente podem discordar da “plataforma política” da Lava Jato. Se os parlamentares eleitos pelo voto direto – legítimos representantes dos cidadãos – decidirem que algumas das leis e reformas propostas pelo partido da Lava Jato não servem para o País, isso não significa uma vitória da corrupção nem uma derrota da operação, e sim uma rejeição ao que poderia ser desde uma ideia qualquer até uma agressão ao Estado de Direito. Foi o que aconteceu quando o Congresso se recusou a aprovar o pacote de medidas anticorrupção proposto pelos procuradores da Lava Jato e que incluíam barbaridades como a aceitação de provas obtidas ilicitamente, restrições ao habeas corpus e fim dos prazos de prescrição.
A Lava Jato alcançou grande sucesso – e mudou a percepção de que tudo o que envolve gente poderosa acaba em pizza – quando se limitou a investigar a trama de relações promíscuas instalada na máquina do Estado desde que o PT chegou ao poder. De forma inteligente e sofisticada, a operação mostrou do que é capaz uma ação bem coordenada entre Polícia Federal e Ministério Público, obtendo evidências suficientes para condenar gente muito graúda a vários anos de prisão e o ressarcimento de bilhões de reais aos cofres públicos.
Limitando-se a punir quem deve ser punido, a Lava Jato presta inestimável serviço ao País. Quando se comportam como candidatos em campanha, seus integrantes se arriscam a perder credibilidade.
Metamorfose começou a se manifestar quando alguns procuradores que integram a operação começaram a falar em 'saneamento' da política
Aos poucos, a Lava Jato, que caminha para seu quarto ano, vai deixando de ser uma operação contra um esquema de corrupção em estatais e organismos de governo para se transformar em partido político. Essa metamorfose começou a se manifestar quando alguns procuradores que integram a operação começaram a falar em “saneamento” da política como seu principal objetivo. Ou seja, ao se atribuírem uma tarefa que claramente extrapola o escopo de seu trabalho, imiscuindo-se em seara que, numa democracia, é exclusiva dos eleitores e de seus representantes no Legislativo, esses procuradores acabaram por se comportar como militantes de um partido – e, como tal, passaram a tratar todos os críticos de sua “plataforma” como adversários políticos.
Em recente entrevista ao Estado, o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, deixou clara, de vez, essa disposição. Segundo Dallagnol, a Lava Jato não revelou apenas a corrupção de um político ou de um grupo, “mas de grande parte da classe política”. Por essa razão, “o objetivo da operação é colocar essas pessoas poderosas debaixo da lei”. Mas, segundo o procurador, “há um problema: elas fazem as leis”. Ou seja, a julgar pelo que diz o coordenador da Lava Jato, a operação só será considerada bem-sucedida se varrer do Congresso “grande parte da classe política”, gente que, em sua visão, faz leis exclusivamente para se proteger da Justiça.
Para atingir esse objetivo, prossegue o procurador Dallagnol, não basta simplesmente levar aos tribunais os políticos que a Lava Jato considera corruptos, pois “apenas punições não resolvem”. É preciso, segundo ele, “avançar para reformas anticorrupção no sistema político, no sistema de Justiça e em outras áreas”, razão pela qual a Lava Jato, a título de se proteger dos atuais políticos, que seriam seus inimigos, considera essencial eleger representantes “que tenham um compromisso claro com a causa anticorrupção”.
O nome disso é política partidária. Em lugar de se preocupar com a obtenção de provas para sustentar as muitas acusações feitas contra políticos, alguns integrantes da Lava Jato parecem mais empenhados em construir a imagem de que a operação veio para salvar o Brasil e que ela se transformou em “patrimônio nacional”, conforme as palavras do procurador Dallagnol. Tornou-se assim, segundo essa visão, não apenas inatacável, mas também única intérprete autorizada dos anseios nacionais.
O problema é que a sociedade dificilmente concordará com isso. “É impossível prever o que acontecerá porque depende de um fator que ninguém controla: como a sociedade vai se comportar no futuro”, reconhece Dallagnol, admitindo que os eleitores eventualmente podem discordar da “plataforma política” da Lava Jato. Se os parlamentares eleitos pelo voto direto – legítimos representantes dos cidadãos – decidirem que algumas das leis e reformas propostas pelo partido da Lava Jato não servem para o País, isso não significa uma vitória da corrupção nem uma derrota da operação, e sim uma rejeição ao que poderia ser desde uma ideia qualquer até uma agressão ao Estado de Direito. Foi o que aconteceu quando o Congresso se recusou a aprovar o pacote de medidas anticorrupção proposto pelos procuradores da Lava Jato e que incluíam barbaridades como a aceitação de provas obtidas ilicitamente, restrições ao habeas corpus e fim dos prazos de prescrição.
A Lava Jato alcançou grande sucesso – e mudou a percepção de que tudo o que envolve gente poderosa acaba em pizza – quando se limitou a investigar a trama de relações promíscuas instalada na máquina do Estado desde que o PT chegou ao poder. De forma inteligente e sofisticada, a operação mostrou do que é capaz uma ação bem coordenada entre Polícia Federal e Ministério Público, obtendo evidências suficientes para condenar gente muito graúda a vários anos de prisão e o ressarcimento de bilhões de reais aos cofres públicos.
Limitando-se a punir quem deve ser punido, a Lava Jato presta inestimável serviço ao País. Quando se comportam como candidatos em campanha, seus integrantes se arriscam a perder credibilidade.