domingo, outubro 15, 2017

Os catadores de lixo ideológico - GUILHERME FIUZA

REVISTA ÉPOCA

O maior eleitor de Bolsonaro é Jean Wyllys, e o maior eleitor de Jean Wyllys é Bolsonaro


O Brasil está em perigo. A polêmica sobre o peladão do MAM vai bem, dando oportunidade a toda essa gente sofrida que batalha de sol a sol por um slogan progressista, mas surgiu o alerta: há sinais de que estão começando a desconfiar do debate – ou, mais precisamente, dos debatedores. Isso é grave.

O sobressalto deixou todo o pelotão da narrativa em alerta. Para o caso de acontecer o pior – isto é, a maioria distraída descobrir que a polêmica só serve aos polemistas de plantão – já há alternativas em estudo. Criar um evangelho trans pode ser uma boa. Descobrir algum brucutu que defenda a virgindade antes do casamento seria melhor ainda. Já pensaram? Toda a MPB de mãos dadas contra o celibato das solteiras? Viva a revolução!

Como se sabe, o maior eleitor de Bolsonaro é Jean Wyllys, e o maior eleitor de Jean Wyllys, coincidentemente, é Bolsonaro. Foram feitos um para o outro, e serão felizes para sempre em sua guerra particular cenográfica. Assim vão se formando as parcerias mais profícuas da vida moderna. Para cada Crivella há um Caetano, num sistema perfeito de retroalimentação demagógica que nos deixa boquiabertos com a exuberância e a simetria da criação. Um bocejo retórico de um multiplica imediatamente o rebanho do outro, tornando-os assim seres unidos para a eternidade pela gratidão mútua. Aleluia.

Há diversos outros casais perfeitos na natureza, como o militante do PSOL e o policial boçal, que rezam diariamente a Nossa Senhora das Causas Idiotas pela oportunidade de se encontrarem na rua. Esse amor lacrimogêneo rende audiências incríveis e faz bem a todo mundo que não tem mais o que fazer.

Por uma coincidência antropofágica, a rapaziada da vanguarda de museu é toda de viúvas petistas. Normal. Não pense que é fácil você chegar ao paraíso fantasiado de algoz da burguesia e te tirarem de lá porque seu guru esfolou o povo. Claro que tudo isso foi um golpe da elite invejosa, mas dói. Como defender ladrão não é propriamente um ato revolucionário (embora muitos ainda insistam que seja), você passa a precisar urgentemente de um esquete novo, algo que te permita chegar em casa e se orgulhar de ter chocado a burguesia, abraçado a seu ursinho de pelúcia.

No princípio era o Fome Zero para chocar a elite branca. Após mais de década de rapinagem soterrando o slogan esperto, surge o plano genial: ficar pelado para chocar a elite branca. É claro que a essa altura, no ano da graça de 2017, com tudo o que a TV já mostrou, tudo o que a internet já escancarou, tudo o que já foi exposto inteiro e do avesso para crianças, velhos, meninos, meninas, burgueses, favelados, crentes e ateus, ficar pelado não choca mais ninguém. Droga. Desde a Xuxa e o rebolado na boquinha da garrafa a erotização infantil já está aí, comendo solta, e até já foi temperada, e até a criançada já teve de aprender a escolher e filtrar o grau de sensualidade com que quer conviver. Absolutamente nada de novo no front. Então vamos convidar crianças para ir ao museu tocar num homem nu e ver o que acontece. Deu certo.

A vanguarda do anteontem ia ficar brincando sozinha de chocar ninguém, mas foi salva. A imagem circulou com aquele poder das redes antissociais de transformar o nada em tudo, tipo “menos a Luíza que está no Canadá”, e num instante estava montada a ficção científica sobre arte moderna e pedofilia, ou vice-versa, só importando ver quem grita mais e quem prevalece sobre quem – num universo onde só o que prevalece é o cultivo e a multiplicação dos mesmos e cegos rebanhos. Jair e Jean, amor eterno.

Junte-se tal fenômeno antifenomenal com a tal polêmica de laboratório em torno da “criança viada” e tem-se a ressurreição dos revolucionários lutando contra a censura! Na proa da nave fantasma, a turma daquele movimento obscuro que batalhou pela censura prévia a biografias não autorizadas por razões pecuniárias, que ninguém é de ferro. São os catadores de lixo ideológico: meu reino por um general fardado que me permita tirar do armário a fantasia de oprimido rebelde.

Todo poder advém do queixume e em seu nome deve ser exercido, enquanto os otários não sacarem a malandragem. Cazuza avisou: somos um museu de grandes novidades. Entre e veja, de graça, que o Brasil hipócrita está nu.

Indústria: causa do desenvolvimento? - SAMUEL PESSÔA

FOLHA DE SP - 15/10

Um tema recorrente no debate público brasileiro e na academia é a relação entre desenvolvimento econômico e especialização produtiva. Ou seja, um país é rico em função do que produz ou outros fatores são causa tanto do crescimento econômico como da especialização produtiva?

Recentemente meu colega José Luis Oreiro, professor da UnB (UNiversidade de Brasília), circulou um gráfico que indicava elevada correlação –por volta de 40%– entre renda per capita e sofisticação da produção.

Nota-se que a Austrália é um caso à parte: apesar de ser uma economia com baixa complexidade produtiva –segundo a base de dados do gráfico de Oreiro–, apresenta elevada renda per capita.

Será que Austrália é "a exceção que confirma a regra"? Nunca entendi essa expressão. Do ponto de vista lógico, se há uma única exceção, não há regra a ser confirmada.

O que há é confusão entre causalidade e correlação. Temos o famoso caso do biscoito Tostines: fresquinho porque vende muito ou vende muito porque é fresquinho?

O pensamento econômico latino-americano considera que a correlação observada –que está longe de ser tão elevada assim– entre complexidade produtiva e renda per capita significa causa.

Ou seja, políticas para subsidiar investimentos em setores complexos e que, portanto, alterem a especialização produtiva da economia produziriam crescimento.

Programas com a Lei de Informática na década de 1980, o programa de renovação da indústria naval e o programa Inovar-Auto, que subsidia uma indústria nascente há mais de 60 anos, têm como pressuposto essa lógica.

Todos são um rotundo fracasso.

É estranho que as mesmas pessoas que observam causa na correlação entre "complexidade produtiva" e renda per capita nunca enfatizam a correlação entre o desempenho do sistema público de educação dado pelo Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), por exemplo, e o crescimento futuro das economias.

É razoável supor que um sistema de educação de elevada qualidade seja capaz de causar ambos: crescimento econômico e complexidade produtiva. Fato esse que será ainda mais verdadeiro se o país não for muito dotado em recursos naturais –pois, se assim for dotado, como é o caso australiano, haverá outras oportunidades de desenvolvimento econômico.

Adicionalmente, esse fato deve ser ainda mais verdadeiro se o país, além de ter um excelente sistema público de educação e de ser pobre em recursos naturais, possuir um setor público que gaste pouco com seguridade social –sendo, portanto, um país em que a carga tributária é baixa e a poupança das famílias é muito elevada.

Se o leitor lembrou do caso asiático (Japão, Coreia, Taiwan e China) não foi mera coincidência. Muita educação de qualidade –reduzindo o custo do trabalho qualificado– e muita poupança –o que reduz o custo do capital– estão na origem da complexidade produtiva.

Evidentemente, falar de escola e de poupança não é muito charmoso. Mais fácil ficar discutindo longamente sobre complexidade tecnológica e como temos que nos defender da exploração dos países centrais, ou qualquer outra bobagem conspiratória desse tipo.

O maior complexo de vira-lata é achar que o subdesenvolvimento não é responsabilidade nossa, mas sim fruto de algum mecanismo perverso de exploração das nações ricas.

A força do eleitor ignorado invisível - MARIO VITOR RODRIGUES

REVISTA ISTO É

Recairá justamente sobre o cidadão comum — aquele que não devora política e/ou se envolve em debates sobre o tema nas redes sociais — o veredicto final

Não resta dúvida, gafes e episódios em quue políticos escorregam no tom durante o período eleitoral estão longe de ser incomuns. Tanto aqui quanto no exterior, já aconteceu de tudo: candidatos que ocupassem a cadeira de prefeito antes da hora, sujeitas com óbvia dificuldade cognitiva, sujeitos vangloriando-se de jamais terem lido um livro na vida e inclusive por terem molestado mulheres. Houve até quem chamasse os eleitores de deploráveis.

Por outro lado, é raro um cenário onde reina a histeria entre a quase totalidade dos candidatos, como acontece agora. Por outro lado, é raro um cenário onde reina a histeria entre a quase totalidade dos candidatos, como acontece agora.

Com méritos, quem recebe os holofotes no momento é João Doria. O vídeo em que responde aos ataques de Alberto Goldman (vice-presidente geral do PSDB), tachando-o de “fracassado”, apenas serviu para reforçar antipatias entre os críticos e dúvidas em potenciais aliados. Entretanto, o ruído não se encerra aí.

Lula e Ciro Gomes, por exemplo, à base de berros e bravatas, continuam tentando arrastar o eleitor para a costumeira retórica enfeitada de dicotomias. Uma arapuca bem sucedida desde a reabertura política até a primeira eleição de Dilma, mas que, em plena recuperação da maior crise da história do país, engendrada pelo petismo e seus partidos satélites, dificilmente vingará.

E, é claro, não se pode ignorar a inestimável contribuição de Jair Bolsonaro para o empobrecimento do debate. Nesse caso, porém, o dilema é cruel: assustam mais os despautérios que ele regurgita, a qualquer momento e sobre qualquer assunto, ou essa crença sem sentido de que o melhor a fazer é não confrontá-lo?

Não foram realizadas pesquisas para averiguar esse cenário e ainda falta bastante tempo para a eleição, mas é razoável supor que Geraldo Alckmin, desde sempre vítima de chacota por seu pouco carisma, seja hoje o candidato que mais amealhe bons juízos entre os eleitores moderados.

Vale ressaltar, em um ambiente cujos atores parecem mais empenhados em táticas de intimidação do que na apresentação de propostas, e com currais de votos tão bem definidos, que recairá justamente sobre o cidadão comum — aquele que não devora política e/ou se envolve em debates sobre o tema nas redes sociais — o veredicto final.

Não há tempo a perder - GUSTAVO FRANCO

ESTADÃO - 15/10

Adiamento das mudanças no regime previdenciário para depois das eleições de 2018 seria um grave erro


A recuperação da economia do Brasil parece assegurada, após a pior recessão das últimas décadas. Felizmente, com o impeachment de Dilma, foram criadas as condições para uma gestão econômica responsável, com orientação pró-mercado e comprometida com as reformas. Mas precipita-se quem acha que o País já teria entrado numa rota de crescimento econômico sustentável. Ainda há muito que fazer, notadamente no campo fiscal, em que a reforma da Previdência é urgentemente necessária para evitar o colapso das contas públicas em futuro próximo.

Como se sabe, o enfraquecimento político do governo Temer após a delação dos irmãos Batista descarrilou a tramitação da reforma da Previdência no Congresso Nacional, no que foi a pior consequência do episódio para o cenário econômico. No entanto, o adiamento das mudanças no regime previdenciário para depois das eleições de 2018 seria um grave erro.

Cálculos conservadores indicam que, na ausência da reforma previdenciária, o teto constitucional para o crescimento das despesas do governo tornar-se-á letra morta em pouco tempo. Nas projeções da Tendências Consultoria, o ritmo de corte das despesas discricionárias em termos reais teria de ser acelerado no biênio 2018-2019 para que o teto não seja estourado já no final de 2019. Mas isso parece algo de difícil consecução, tendo em vista as pressões crescentes por liberação de gastos discricionários (inclusive para investimentos) que se mantêm reprimidos desde 2016. Na realidade, a cada ano que passa, há um volume relativo menor de despesas discricionárias disponíveis para sofrer a ação da tesoura.

Contudo, pior que a violação do teto constitucional de crescimento dos gastos, a dívida pública seguiria subindo em trajetória que, em poucos anos, conduziria a uma crise fiscal de graves proporções. Projetando uma redução gradual do déficit primário nos próximos anos, que seria compatível com o cenário macroeconômico de recuperação da atividade e gestão austera das despesas discricionárias, somente a partir de 2021 o País voltaria a exibir um resultado primário positivo. Neste cenário, e com a premissa de taxas reais de juros em torno dos 4% ao ano, a dívida bruta ainda se manteria em crescimento, chegando a patamar acima dos 80% do PIB em 2021.

Vale lembrar que os países que se dão ao luxo de ter, sem maiores dificuldades, endividamento em níveis maiores do que 80% têm uma riqueza financeira privada como proporção do PIB bem acima da observada no Brasil. O ideal, portanto, seria reduzir gradualmente aquele porcentual nos anos seguintes, o que exigiria manter o superávit primário entre 2% e 3% do PIB ao longo da próxima década.

Porém, sem a reforma da Previdência, nem mesmo um cenário de modesta recuperação fiscal seria possível, haja vista a rigidez de grande parte das despesas – entre as quais se destacam os benefícios previdenciários – e o pouco espaço para aumento da carga tributária. Com isso, o endividamento público seguiria aumentado nos próximos anos, até configurar uma severa crise fiscal, cuja “solução” cobraria da sociedade brasileira custos elevadíssimos, provavelmente sob a forma de inflação e de prolongada recessão econômica.

Por tudo isso, o uso da crise política como pretexto para abandonar a proposta de reforma da Previdência seria um desserviço das lideranças políticas ao País. A pasteurização adicional da proposta inicial do governo para facilitar sua aprovação tampouco seria uma solução. Preocupa especialmente a intenção de alguns líderes de deixar de fora a previdência dos funcionários públicos. Se nada for feito neste campo, a maioria dos Estados se manterá em situação de falência crônica nas próximas décadas, sem a menor condição de atender às mínimas necessidades de sua população, como ocorre hoje no Rio de Janeiro.

Não há tempo a perder. A calmaria dos mercados é passageira. Logo as incertezas do processo eleitoral começarão a pesar mais fortemente nas decisões dos agentes econômicos. A aprovação da reforma da Previdência antes das eleições de 2018 seria a melhor maneira de ancorar as expectativas na travessia, ao tornar menos incerto o futuro.

* SÓCIO DA TENDÊNCIAS, FOI PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL

Federalismo ou secessão! - RODRIGO CONSTANTINO

REVISTA ISTO É

O casamento forçado pode ser pior do que uma separação amigável.
Um povo deve estar unido por valores minimamente comuns


O leitor deve ter acompanhado por alto os acontecimentos em Catalunha, com o plebiscito a favor de sua separação. No Brasil também tivemos um ensaio da mesma natureza com o movimento “O Sul é o meu país”. O que ocorre?

Há, como em todo fenômeno complexo, inúmeras causas. Tem muita gente oportunista que enxerga nisso uma chance de angariar poder ou fama. Mas há um lado legítimo, como aquele que esteve por trás da vitória do Brexit no Reino Unido: uma crise de representatividade na democracia.

Parcela cada vez maior da população simplesmente não se sente representada pelo establishment, especialmente em locais onde a concentração de poder na esfera federal foi grande demais, afastando os governantes dos governados.

Isso gera uma insatisfação crescente, e aquele pedaço do eleitorado não se reconhece nos políticos que supostamente o representam. As raízes de um povo, o que forma uma cultura local, acaba sendo diluído em meio ao “multiculturalismo”. A afinidade com o próximo, que compartilhava da mesma língua, dos mesmos hábitos e crenças, dá lugar a uma abstração — sociedade — pela qual o indivíduo não sente absolutamente nada especial.

O casamento forçado pode ser pior do que uma separação amigável. Um povo, uma sociedade, deve estar unido por valores minimamente comuns, por uma cultura. Caso contrário, é melhor cada um seguir mesmo o seu caminho.

Os “pais fundadores” dos EUA reconheciam o direito à secessão, e até hoje há uma forte crença na descentralização do poder. O nome disso é federalismo, e por trás dele está o princípio de subsidiariedade. Quanto mais local for o exercício do poder, melhor. Às esferas federais sobraria pouca coisa, básica e realmente nacional.

Não é isso que vemos mundo afora, especialmente no Brasil, onde Brasília concentra poder absurdo. E esse centralismo é responsável pela crescente sensação de abandono por parte das populações locais. Foi esse sentimento, em parte, que levou ao Brexit, um grito de soberania contra Bruxelas e seus distantes burocratas sem votos.

O conceito de nação é importante para os conservadores, assim como o patriotismo. Justamente por isso eles também devem pregar o federalismo. É o mecanismo que permite um convívio mais saudável entre as diferentes partes. A alternativa, que é impor uma união cada vez maior entre quem não fala a mesma língua, pode levar ao divórcio litigioso, ao fim da própria nação.

Não acho que o sul deveria se separar do restante do Brasil, e desconfio dos motivos das lideranças desse movimento separatista. Mas entendo a revolta: quem se sente, afinal, representado por Brasília? Ou o Brasil adota de fato o federalismo, ou teremos mais e mais grupos pregando a secessão.

Recuperação e sustentabilidade - JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS

ESTADÃO - 15/10

Vai prevalecer a tentativa de seguir uma agenda reformista ainda no governo atual


Os dados recentes da economia brasileira não deixam dúvidas de que estamos vivendo uma recuperação econômica que poderá ser significativa. Mesmo os analistas mais pessimistas já admitem que o PIB deste ano pode crescer algo como 0,5% a 0,7% e 1,8% a 2,0% no ano que vem.

Aqui na MB projetamos uma expansão entre 0,7% e 1% em 2017 e 3,0% a 3,5% em 2018. Esse resultado será puxado por exportações e consumo do lado da demanda e agricultura, extração mineral e parte da indústria do lado da oferta.

Entre os muitos dados que sustentam essa percepção chamo atenção para a robusta recuperação do setor automotivo. A produção de carros comerciais leves subiu 27% entre janeiro e setembro deste ano frente a igual período de 2016, enquanto que as exportações se elevaram 57% no mesmo período. O mercado interno caminha para crescer mais de 10%.

Cautelosamente, as famílias estão voltando a consumir e contrair crédito, algo que tenderá a se acelerar à medida em que outras características positivas do momento continuarem a evoluir. Falo aqui tanto da inflação baixa (projetamos 2,9% de IPCA para este ano e 3,9% para o ano que vem), quanto da elevação do poder de compra dos salários e da criação de novas vagas no mercado de trabalho. Falo também da redução da taxa básica de juros, a Selic, para 7% em dezembro. O que pouca gente comenta, e que reforça esse movimento, é que provavelmente os spreads bancários começarão a cair com mais vigor, tanto pela atuação do Banco Central (regulação e redução de compulsórios), como pela evidente elevação da concorrência no mercado de crédito de pessoas físicas, detonada e ampliada pela atuação de novas companhias, as “fintechs”.

Além de inflação e juros, também caracteriza o momento atual uma enorme folga cambial, que não pressiona o câmbio mesmo frente à elevada incerteza política. Assim, a recuperação será forte, pois decorre de fatores cíclicos e da consolidação sem precedentes de inflação e juros mais baixos e de câmbio bastante robusto.

Entretanto, otimistas e pessimistas concordam que essa retomada não será sustentável se outras coisas não ocorrerem, associadas à questão fiscal, à retomada de investimentos na infraestrutura e à sucessão presidencial.

Com relação à área fiscal, continua sendo verdadeiro que sem reforma da Previdência e algum controle sobre a folha salarial das corporações será impossível consolidar a trajetória da dívida pública. A questão central é se essas reformas poderão ser feitas ou não em duas etapas, uma primeira mais contida (por exemplo, alterando-se apenas a idade mínima para a aposentadoria e a regra de transição) e outra mais robusta após a eleição. Acredito que isso será possível porque o governo Temer deverá ficar menos pressionado após a rejeição da segunda denúncia do Procurador Janot, pela percepção mais generalizada quanto à solidez da recuperação (como está ocorrendo em São Paulo, Santa Catarina e outros lugares, ao contrário do Rio de Janeiro), pela aceitação quase universal da necessidade da reforma, pela melhora na arrecadação fiscal e, finalmente, pela redução da carga de juros no déficit nominal global. Embora esse argumento possa ser lido como uma redução da pressão pela mudança, acredito que prevalecerá a tentativa de continuar uma agenda de reformas ainda no governo atual.

O segundo fator a consolidar a recuperação terá de ser uma retomada de investimentos, especialmente, na infraestrutura. Acho que isso ocorrerá de forma significativa nas áreas de petróleo e energia elétrica e de forma menos intensa nas outras áreas, como logística e aeroportos. Também aqui, um avanço mais generalizado só poderá acontecer após as eleições.

Finalmente, a retomada só será consolidada se uma candidatura reformista e de centro for a vitoriosa em 2018. Muitos analistas de qualidade, como Bolívar Lamounier e Murilo Aragão acreditam nesse desenlace, a despeito do baixo nível da nossa política, da elevada incerteza na qual vivemos e de propostas salvacionistas que brotam de todos os lados, inclusive do novo ativismo judiciário.

O cenário esboçado não é fruto de torcida. Certamente pode acabar não prevalecendo e poderemos voltar para o pântano, com a prevalência de um último ato, que completaria a destruição decorrente do populismo prevalecente desde 2005.

Entretanto, acho que o sofrimento dos últimos anos nos ensinou que a retomada do crescimento tem de passar pela trajetória acima esboçada.

* ECONOMISTA E SÓCIO DA MB ASSOCIADOS.

Interesse público e regras de ouro - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 15/10

A mais importante regra de ouro das contas públicas seria mobilizar um número suficiente de parlamentares capazes de pensar nos interesses básicos do País


Descumprir a regra de ouro do Orçamento pode dar cadeia para a equipe econômica, lembrou o secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Mansueto Almeida, em evento da Moody's, uma das três maiores agências de classificação de risco. Ele se referiu, nessa passagem, à proibição de aumentar a dívida pública para pagar despesa corrente. Ser preso é certamente uma ocorrência dramática para qualquer membro de uma equipe econômica, especialmente se for inocente de corrupção ou de qualquer crime comum. Mas, se isso ocorrer, a situação terá ficado terrivelmente dramática também para o País, porque as condições de suas finanças públicas e, portanto, de operação do governo terão chegado a um desastre de dimensões assustadoras. A primeira hipótese – de prisão de membros da equipe econômica – pode causar pouco ou nenhum incômodo a muitos políticos. Pode ser até divertida. Mas quantos desses políticos, especialmente no Congresso, ficarão inquietos diante da debacle nas contas públicas?

A resposta a essa pergunta deve ser pouco animadora, a julgar pela experiência brasileira. Usos e costumes considerados normais em Brasília estabelecem uma interessante divisão de responsabilidades quanto às finanças oficiais. Segundo essa divisão, buscar o equilíbrio entre receita e despesa e velar pela saúde fiscal são atribuições do Tesouro, isto é, do Executivo, ou, no limite, da equipe econômica. Não cabe aos membros do Legislativo e do Judiciário preocupar-se com esses detalhes mesquinhos.

É fácil observar no dia a dia como se manifesta, na prática, essa concepção. As tentativas permanentes de encontrar exceções ao teto dos vencimentos são um exemplo fácil. A defesa acirrada de mordomias e do uso sem controle de verbas complementares aos salários também é assunto frequente do noticiário. Além disso, tem sido parte da rotina, há muitos anos, a revisão, sempre para cima, da receita estimada no projeto da lei orçamentária. Nem seria preciso mencionar aberrações como o fundo eleitoral e o próprio fundo partidário, existente há muito tempo.

Quem converte essas barbaridades em rotina e até em parte de um suposto ordenamento democrático chegará a se preocupar com uma distorção tão abstrata na aparência – o endividamento para cobertura de gastos de custeio? Haverá uma enorme surpresa se os fatos indicarem uma resposta positiva.

O próprio Mansueto Almeida tratou de atenuar a hipótese de violação da regra de ouro. Membros da equipe econômica, segundo ele, farão certamente o possível para evitar o risco de uma punição. Mas, para isso, é preciso acrescentar, poderão ser forçados a medidas muito duras para o País, ou, em termos mais concretos, para milhões de pessoas dependentes de certos serviços públicos.

Desastres financeiros podem ser produzidos por erros do Executivo, mas também podem resultar da omissão ou das perversões dos demais Poderes, especialmente do Legislativo. A dívida pública brasileira cresce de forma insustentável, lembrou Mansueto Almeida, e esse fenômeno está associado ao evidente descompasso entre despesas e receitas. Gastos incomprimíveis continuam crescendo mais rapidamente que a arrecadação e isso continuará mesmo se a reativação da economia gerar mais impostos e contribuições. Essa reativação poderá acelerar-se nos próximos dois anos, mas o ritmo do crescimento econômico será severamente limitado por fatores estruturais.

Um desses fatores é o dinamismo das despesas incomprimíveis, a começar pelos gastos previdenciários. Muito mais que iniciativa de um governo, essa reforma é um projeto de Estado, segundo o secretário de Acompanhamento Econômico. Ou, numa linguagem menos entusiasmada, assim deveriam entendê-lo. Se esse projeto ainda estiver em tramitação em 2019, o próximo governo, também de acordo com Mansueto Almeida, será forçado a trabalhar por sua aprovação. Não terá escolha. Mas o presidente da República terá, mesmo, consciência disso? Melhor, por muito mais de uma razão, é tentar garantir essa aprovação neste mandato, no menor prazo possível. Para isso, bastará mobilizar um número suficiente de parlamentares capazes de pensar nos interesses básicos do País, a mais importante regra de ouro. Tarefa simples?

Reforma tributária à brasileira - MARCOS CINTRA

O Globo - 15/10

Proposta de adotar o IVA é posicionamento que expõe de alguma forma uma condição de inferioridade do país frente a outras economias


Alguns políticos e economistas acreditam que, desde que o Brasil começou a debater uma reforma tributária ampla no início dos anos 90, o momento mais propício para ela avançar é agora. Nesse cenário, surgiram novamente os defensores do projeto que pretende criar um grande Imposto sobre Valor Agregado (IVA) federal no país, uma proposta burocrática que pode aperfeiçoar nosso obsoleto sistema de impostos e contribuições, como satirizou há quase 20 anos Roberto Campos quando a Câmara dos Deputados já ensaiava instituí-lo.

Os adeptos do IVA dizem com frequência que esse é o modelo a ser adotado pelo Brasil porque ele é usado pelos países mais “relevantes” do mundo. É algo como se dissessem que, se é bom para eles, também será para nós. É um posicionamento que expõe de alguma forma uma condição de inferioridade do país frente a outras economias. A situação nos remete ao chamado “complexo de vira-lata", expressão criada por Nelson Rodrigues.

Em relação à ideia de que o Brasil tem que sair copiando o que os outros fazem, cabe destacar o que disse o ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel no artigo “O equívoco da reforma tributária”, publicado em 5 de outubro último no “Estado de S.Paulo”. O autor afirma que “não se pode esquecer da nossa imorredoura vocação para copiar modelos de outros países construídos em circunstâncias peculiares e diferentes das nossas. É o servilismo cultural, polo oposto e igualmente medíocre da xenofobia no campo das ideias”. Seu raciocínio avança especificamente para o aspecto tributário quando complementa dizendo: “O mais grave é que buscamos copiar modelos em franca obsolescência, como o IVA”.

O artigo de Everardo Maciel segue destacando um ponto importante no debate a respeito da reforma tributária, que é a pouca ênfase que se dá à burocracia que reina no país. Ele a inclui entre os problemas mais graves dizendo: “...pouca ou nenhuma atenção se dá às nossas mais severas enfermidades tributárias: o burocratismo, a indeterminação conceitual e o processo tributário”. Considerando a questão burocrática, que dá margem a fraudes que só no ICMS, um IVA estadual, ultrapassam os R$ 110 bilhões, conforme estima o Sindicato dos Procuradores da Fazenda Nacional, é difícil imaginar que o IVA federal, cuja alíquota se aproximaria de 25%, seja a solução para uma das nossas anomalias mais gritantes, que é a evasão de arrecadação. Oportunamente, Maciel finaliza seu texto recorrendo a Albert Einstein, que dizia: “É insanidade continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes”.

A ideia de que países “relevantes” adotam o IVA, e o Brasil tem que fazer o mesmo, não pode deixar de ser confrontada com fatos observados nas duas principais economias do planeta. Nos Estados Unidos, esse imposto não existe. Eles jamais se aventuraram nessa forma de tributação. O outro caso se refere à Europa, onde esse tributo se tornou um problema por conta de sua característica marcante, que é a burocracia, abrindo brechas para fraudes de toda ordem. No fim de setembro deste ano, a Comissão Europeia divulgou um comunicado à imprensa dizendo que o IVA gerou perdas de 152 bilhões de euros para os países-membros daquela comunidade em 2015.

A cultura nacional e a nossa estrutura econômica nos impõem um modelo tributário próprio. Insistir no IVA fará com que, num prazo não muito distante, o tema reforma tributária esteja novamente na agenda do país. Marcos Cintra é professor da Fundação Getulio Vargas e presidente da Finep.

A economia convencional prefere as anomalias - MARCOS LISBOA

FOLHA DE SP - 15/10

As escolhas individuais dependem da forma como as opções são apresentadas. Um exemplo é a adesão a um plano de aposentadoria. Uma empresa pergunta ao seu empregado se ele deseja participar. Outra declara que ele irá contribuir a menos que diga que não o queira. Trata-se do mesmo plano, com idênticos benefícios e custos. Ainda assim, muitos empregados fazem escolhas diferentes nos dois casos.

O modelo padrão em economia supõe que as pessoas utilizam a informação disponível para fazer as escolhas que sejam mais do seu agrado. Os indolentes optam pelo descanso, outros pelos exercícios. Uma versão simplificada desse modelo permitiu notáveis avanços em diversas áreas. Essa versão, porém, fracassa em explicar o exemplo do plano de aposentadoria ou por que as pessoas tomam decisões mesmo sabendo que se arrependerão posteriormente, como fumar.

Richard Thaler, prêmio Nobel deste ano, achou tempo em meio a sua produção acadêmica para sistematizar diversos desses exemplos na deliciosa coluna "Anomalias", publicada no "Journal of Economic Perspectives".

Desde 1950, a pesquisa sobre teoria da escolha combinou economia e matemática e, mais recentemente, psicologia. Os experimentos sobre como as pessoas se comportam em situações específicas e os casos de fracasso da versão simplificada resultaram em novos modelos de decisão.

Thaler utilizou alguns desses resultados para analisar comportamentos surpreendentes, como as pessoas valorizarem mais um bem que já possuem do que caso ele tenha que ser comprado. Seu paternalismo libertário não interfere na liberdade de escolha, mas apenas propõe pequenas intervenções para corrigir as inconsistências observadas, como na forma como as opções são apresentadas. Há controvérsia sobre a sua eficácia e a maioria dos economistas ainda prefere o modelo simplificado que, com pequenos ajustes, dá conta de muitas anomalias.

Essa controvérsia revela o equívoco de qualificar a economia convencional como ortodoxa. Afinal, ela se caracteriza por um método de análise, não pela defesa de uma visão de mundo em que os mercados são sempre eficientes. Nessa abordagem, os argumentos devem ser precisos sobre as suas implicações, de modo a serem avaliados pela aderência aos dados disponíveis, como Thaler enfatiza. Os fracassos, por sua vez, induzem novos modelos que, caso bem-sucedidos, tornam-se o novo normal.

A primeira coluna da série "Anomalias" descreveu o viés de confirmação, quando as pessoas destacam apenas as evidências que corroboram os seus preconceitos. A economia convencional, por outro lado, beneficia-se do debate construtivo provocado pelas anomalias que revelam os seus fracassos.

Parem de brigar e julguem! - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 15/10

Como STF não faz sua parte na Lava Jato, tenta inventar penas a não condenados


Todo esse dramalhão envolvendo Supremo, Senado, Câmara, PSDB, PT, PMDB e redes sociais em torno do senador Aécio Neves tem uma origem clara: a demora do STF em julgar o tucano, alvo de nove investigações e uma denúncia, agravados pelas gravações entre ele e Joesley Batista e pela bolada que, ato contínuo, foi parar com o primo dele.

Se o Supremo tivesse pego esse touro a unha há tempos, não precisaríamos assistir a esse show de empurra-empurra. Aécio teria sido inocentado ou condenado e as instituições não estariam expondo suas vísceras ao vivo para escapar do problema, com o STF tentando até aplicar penas a quem nunca foi condenado!

A PF, a PGR e a Justiça não dão conta de tantos inquéritos (como no caso também de Renan Calheiros) e o fantasma fica pairando sobre Brasília. Como não se pune pela Constituição, a Primeira Turma do STF buscou aplicar o Código do Processo Penal, com o afastamento das funções e o tal recolhimento noturno – ambas soluções, digamos, heterodoxas. O plenário interveio, lembrando que não se afasta parlamentar sem aval dos plenários do Congresso e o problema voltou para o Senado. Se no Supremo não há solução, imagine-se no Senado, um dos templos do corporativismo na República.

A expectativa para a próxima terça-feira é que os senadores não deem aval para as medidas contra Aécio, mas o resultado vai ficar mais apertado a cada dia que passa. No plenário do STF, foram cinco a cinco, que viraram seis a cinco com o voto confuso da presidente Cármen Lúcia. No do Senado, caminha para um racha equivalente a partir da ameaça do PT de rever sua posição.

Na primeira sessão, os petistas foram contra a Primeira Turma e, portanto, a favor de Aécio. Mas estão mudando de ideia, daí porque os aliados do presidente afastado do PSDB tentaram um outro jeitinho brasileiro: o voto secreto, não previsto no artigo 53 da Constituição e derrubado, por exemplo, na sessão que autorizou a prisão do então senador Delcídio do Amaral.

Aécio, portanto, escapou do Supremo e tende a escapar do plenário do Senado, com seus pares fazendo a mise-em-scène de enviar o caso para o Conselho de Ética. E daí? Criado em 1993, o conselho só cassou um senador até hoje, Luiz Estêvão, que, aliás, foi parar na Papuda após o STF aprovar a prisão de condenados em segunda instância. Seu presidente pela sexta vez, senador João Alberto (PMDB-MA), é sempre posto ali pelo padrinho José Sarney justamente para garantir a impunidade de todos os seus pares.

Por falar nisso, Aécio Neves está por trás da escolha dos relatores na CCJ da Câmara para a primeira e a segunda denúncia da PGR contra o presidente Michel Temer, Paulo Abi-Ackel e Bonifácio de Andrada, ambos, não por coincidência, do PSDB de Minas. A equação é simples: Aécio articulou a salvação de Temer, Temer articula a salvação de Aécio, enquanto o lobo não vem e o STF não julga de fato.

O fato é que, enquanto o Supremo não começar a fazer sua parte na Lava Jato, condenando quem tem de condenar e inocentando quem merece, as assombrações vão continuar soltas por aí. Ninguém vai ter sossego, nem réus, nem julgadores, e o script vai se repetir, com o STF tentando aplicar penas a não-condenados, a Câmara e o Senado salvando os seus e a opinião pública querendo explodir as instituições. Meretíssimos, parem de brigar e julguem!

PS 1: Cármen Lúcia deixou de ler seu voto de mais de 30 páginas porque três ministros tinham voos para Miami. Ai, se arrependimento matasse!

PS 2: Depois da crise com o Legislativo, vem aí a crise do Judiciário com o Executivo. Planalto e Ministério da Justiça querem extraditar o italiano Cesare Batisti, mas STF está... dividido.

Os riscos no projeto do novo Código Comercial - EDITORIAL O GLOBO

O Globo - 15/10


Proposta, que avança na Câmara dos Deputados, tem potencial para aumentar custos e ampliar a insegurança jurídica, em especial para investidores estrangeiros


Avança na Câmara dos Deputados o projeto de lei de um novo Código Comercial. O objetivo seria atualizar o conjunto de regras que balizam as relações empresariais no país.

Argumenta-se que o Código Civil de 2002 revogou uma série de dispositivos relativos aos direitos societário, contratual e obrigações que estavam em vigor desde a edição do Código Comercial em 1850, portanto há 167 anos. Seria, em tese, uma iniciativa para adequação técnica, como forma de facilitar a vida vida dos operadores do Direito.

O problema, como sempre, está nos detalhes. Formulada em centros acadêmicos, parte da proposta do novo Código apresenta desconexão com a vida das empresas e das pessoas.

Entidades empresariais, representativas da indústria, comércio e do mercado de capitais alertam para risco de aumento do custo operacional das empresas, estímulo ao crescimento da judicialização no relacionamento entre sócios, com financiadores, fornecedores e consumidores. Em síntese, tem potencial para ampliar a insegurança jurídica, especialmente para investidores estrangeiros.

O Brasil, como é sabido, apresenta um dos mais conturbados ambientes para negócios. Nos últimos 29 anos, por exemplo, a vida das pessoas e das empresas foi pautada pela média de 798 novas normas legais a cada dia útil, contabiliza o Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação. Desde a Constituição de 1988, segundo o IBPT, editaram-se quase 5,7 milhões de regras sobre as atividades negociais. Na área tributária, exclusivamente, foram 377.566 medidas nesse período, pouco mais de uma nova a cada hora nos dias úteis.

Outro estudo recente, elaborado pelo governo federal, mostra como a vida dos cidadãos e empresas é mais fácil em outros países. É de no máximo seis o número de documentos e cadastros oficialmente requisitados a uma pessoa para exercício de seus direitos e deveres nos Estados Unidos, Chile, Portugal e Estônia. No Brasil chegou-se a 21 em 2014, dos quais oito instituídos neste início de milênio.

Para criar empresas, o número de procedimentos burocráticos é o dobro (12) da média mundial e com espera de 102 dias no padrão nacional — vinte vezes mais tempo que na maioria dos países ocidentais.

Não faz sentido, portanto, que a Câmara produza um novo conjunto de normas que, em lugar de contribuir para simplificar, complique ainda mais a vida econômica das pessoas e das empresas, os processos de registro, o acesso ao mercado de capitais, a escrituração contábil, a inovação e o comércio eletrônico.

E mais: que amplie o poder do Estado, abrindo a possibilidade de intervenção na gestão de empresas privadas quando a burocracia “suspeitar” de “descumprimento" de sua função social. É, no mínimo, um absurdo.

Comício judicial - EDITORIAL O ESTADÃO

ESTADÃO - 15/10

O respeito à Constituição invocado por magistrados da Justiça do Trabalho para tentar impedir a entrada em vigor da reforma trabalhista não passa de mero pretexto para justificar a pretensão de governar o País e ditar normas à sociedade

Encontro patrocinado pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) em Brasília, com o objetivo de “discutir os horizontes hermenêuticos da reforma trabalhista”, acabou sendo convertido em novo comício contra uma das mais importantes reformas estruturais promovidas pelo governo do presidente Michel Temer. Introduzida pela Lei n.º 13.467/17, a reforma trabalhista entrará em vigor no dia 11 de novembro.

Além de juízes, desembargadores e ministros da Justiça do Trabalho, participaram do evento contra essa lei integrantes da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho, do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho e da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas. Com raras exceções, os oradores fizeram duras críticas às inovações na legislação trabalhista, como as novas regras do trabalho terceirizado, a equiparação da dispensa coletiva a demissões isoladas e a vinculação do cálculo da indenização por danos morais ao salário. Também reafirmaram que, ao interpretar as novas regras, arguirão sua inconstitucionalidade e adotarão medidas protelatórias para evitar que esses questionamentos cheguem às instâncias superiores, tentando assim inviabilizar a aplicação da nova legislação trabalhista. Disseram, ainda, que vários dispositivos da Lei n.° 13.467/17 desrespeitam convenções das quais o Brasil é signatário.

“Não houve Constituinte no País e não houve processo revolucionário que tenha suplantado a Constituição Federal. A Constituição é a grande matriz que vai iluminar o processo interpretativo da reforma trabalhista”, disse o ministro Mauricio Godinho Delgado, do Tribunal Superior do Trabalho. “A norma não é o texto. A norma é o que se extrai do texto. Na livre convicção motivada de cada juiz do Trabalho, a partir de 11 de novembro, reside a indelével garantia do cidadão. A garantia de que seu litígio será concretamente apreciado por um juiz natural, imparcial e tecnicamente apto para, à luz das balizas constitucionais, convencionais e legais, dizer a vontade concreta da lei. Negar ao juiz sua independência técnica é fazer claudicar o sistema constitucional de freios e contrapesos. É ferir de morte a democracia e, no limite, negar um dos fundamentos da República”, afirmou o presidente da Anamatra, Guilherme Feliciano.

Essa manifestação de apreço à Constituição revela uma contradição lógica e desconhecimento histórico. Quando criticam a Lei n.º 13.467/17, na prática esses magistrados não querem alterar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – um conjunto de leis de origem fascista imposto por decreto pela ditadura de Getúlio Vargas durante o Estado Novo, quando havia uma Constituição outorgada no curso de um golpe de Estado. Já a reforma que os magistrados trabalhistas criticam foi proposta pelo Executivo e votada por um Congresso democraticamente eleito, e ambos os Poderes seguiram rigorosamente os trâmites da Constituição em vigor.

Além disso, a CLT desrespeitou um dos pilares da democracia e do Estado de Direito, a separação entre os Três Poderes, quando conferiu à Justiça do Trabalho a prerrogativa não só de aplicar a lei, mas, também, de editar normas – o chamado poder normativo. Ao limitar esse poder, em nome da segurança do direito nas relações entre patrões e empregados, a Lei n.º 13.467/17 reduziu parte da discricionariedade da magistratura trabalhista, restabelecendo desse modo o equilíbrio entre os Poderes. E foi isso, justamente, que provocou a reação de magistrados trabalhistas, com apoio de procuradores e auditores trabalhistas.

O respeito à Constituição por eles invocado para tentar impedir a entrada em vigor da reforma trabalhista, por meio de artimanhas hermenêuticas, não passa de mero pretexto para justificar a pretensão de governar o País e ditar normas à sociedade. É preciso lembrar que as pessoas que querem sabotar uma reforma aprovada democraticamente são apenas bacharéis aprovados em concurso público. Não têm mandato eleitoral, único instrumento legítimo para legislar. O que fazem portanto, é afrontar o Estado de Direito.