Passei o mês de julho na Europa, visitando lugares do meu passado.
Cheguei no aeroporto de Veneza e de lá fui direto para Pádua. Fiquei no hotel Donatello, cujos quartos da frente têm uma vista impagável para a basílica de Santo Antônio.
Deixei o carro e fui caminhando pela via del Santo. Não passei de cem metros, e um homem de 50 anos me importunou (eu estava a fim de ficar na minha, só pensando): "Io sono di Aleppo" (eu sou de Aleppo), ele disse em italiano, numa entonação quase perfeita.
Antes que ele formulasse o previsível pedido de ajuda, passaram pela minha cabeça ideias e visões, que vou tentar enumerar, embora não sejam todas lisonjeiras para mim. Talvez o exercício me ajude a compreender o que acontece hoje com parentes, amigos e conhecidos europeus, que são generosos por princípio, mas não aguentam mais as "hordas" dos refugiados.
Conheço mal Aleppo, mas não esqueci o charme do hotel Baron, famoso por ser o lugar onde Agatha Christie escreveu "Crime no Expresso do Oriente". Para desmascarar um eventual impostor, disse que conhecia Aleppo e comecei a descrever a esquina da Baron com a Zaki al-Arsuzi, como era 50 anos atrás.
O sujeito ou era um impostor mesmo e fugiu ou então era um aleppino que me achou bizarro demais para continuar a conversa.
Antes que meus bons sentimentos tomassem conta de mim, tive tempo para pensar: se for um aleppino, por que esse cara presume que a gente lhe deva assistência e ajuda?
Lembrei-me de conversas com meus sobrinhos milaneses: o desastre da Síria, por exemplo, será que é consequência hodierna da colonização? Então os problemas da Itália do Norte são consequência da ocupação austríaca? Ou da espanhola, que foi antes?
De qualquer forma, por que ele foi embora de Aleppo? É um refugiado econômico ou político? Ou seja, está tentando se dar bem ou lutou contra o desastre de seu país? E subentende-se que o refugiado econômico seria um aproveitador sem moral e sem caráter.
Engraçado, pensei mais tarde, nas grandes migrações do fim do século 19 e começo do 20, os italianos, alemães, escandinavos, irlandeses etc. que emigravam para os EUA, o Canadá ou a Austrália eram imigrantes econômicos, que iam "fazer América". Ninguém queria barrar os "imigrantes econômicos"; ao contrário: ao enriquecerem-se a si mesmos, eles enriqueceriam ao país que os acolhia.
A distinção entre econômicos e políticos parece também supor que os imigrantes econômicos não tenham nenhuma simpatia cultural pelo país ocidental que os acolhe e só estejam atrás de uma vida mais confortável. Ouvido em Turim: "Eles não querem renunciar à cultura deles, só querem uma grana".
A distância cultural é um preconceito dos europeus? Ou é um preconceito dos imigrantes, que desprezariam a cultura à qual pedem assistência?
Nas praças de Bassano, Milão, Turim e Munique, em italiano e em alemão, fui interpelado por refugiados que, para introduzir seu pedido, me chamaram quase sempre de "irmão" ou de "chefe".
"Irmão", aprendido, imagino, nas igrejas que assistem refugiados, me irritava pela chantagem: você acredita em fraternidade, e não vai me ajudar? "Chefe" me irritava porque supunha que eu seria seduzido por eles reconhecerem minha "superioridade" hierárquica.
Participei de intermináveis conversas com conhecidos incomodados pelo valor dos subsídios alocados aos refugiados (junto com celular para chamadas internacionais, comida etc).
Mas, para mim, se não para todos, a dificuldade maior talvez seja a aparição (nova na Europa) de um exército de pedintes e a consequente impossibilidade de ser deixado em paz.
Feliz de estar sozinho, sentei num restaurante de via Lagrange, em Turim. O terceiro refugiado do dia se aproximou, e eu antecipei a sua fala de um jeito que me envergonha um pouco: "Per favore, non mi rompere", por favor, não me encha É impossível dizer qual será o destino e o efeito desse cansaço.
Neste mês, Matteo Renzi, o antigo primeiro-ministro italiano, escreveu que temos, sim, o dever moral de ajudar os refugiados, mas na casa deles.
Nota. Vários leitores estranharam uma frase quase final da coluna da semana passada: "Numa cultura e numa época tão oposta ao prazer quanto a nossa". Como assim? Não somos monstros de hedonismo, todos em busca de prazeres imediatos?
Faz tempo que penso e constato o contrário. Uma coluna do ano passado: folha.com/no1813289.