Há lojas que desprezam o cliente, mas aquilo era ódio por eu estar vivo
Preciso de ajuda. Urgente. O problema é a misantropia. Não falo da minha. Falo da dela. Explico.
Mudei de casa recentemente e resolvi flanar pelo bairro. Passeio de reconhecimento: as farmácias (primeiro que tudo), os restaurantes, os cinemas, as livrarias. E a lavanderia para as camisas. Tudo aconteceu na lavanderia.
Entrei, as camisas sujas no saco. A funcionária aproximou-se para me atender. É difícil explicar o que aconteceu a seguir. Literatura, ajuda-me: senti no corpo o que Jonathan Harker deve ter sentido na Transilvânia, quando o conde Drácula o recebeu no seu castelo.
O meu sangue virou gelo e o coração falhou dois batimentos, antes de começar uma galopada insana. O rosto da mulher não era antipático. Era uma máscara imóvel iluminada pelas trevas. A voz não era hostil. Era mecânica e mórbida e abissal. Há lojas que desprezam o cliente. Aquilo era ódio ao simples fato de eu estar vivo.
Retirei as camisas do saco, a senhora contou-as lentamente, como se fosse uma torturadora a contar os dedos de um suspeito, e informou: "Sexta-feira". Paguei, tentei um "obrigado" mas uma ventania interior arrastou-me para fora. Estava calor em Lisboa e eu sentia-me perdido na Sibéria.
Não sou facilmente impressionável. Já experimentei de tudo. Da antipatia natural à boçalidade extrema.
O antipático natural é ainda um ser humano. E a antipatia revela, em princípio, um sofrimento interior qualquer. Para usar a letra da canção, no peito de um antipático também bate um coração.
O mesmo para os boçais. Revelam falta de maneiras, dificilmente de caráter. A uma certa distância, e com prudência antropológica, podem ser divertidos e instrutivos. A prova viva de que Darwin estava certo.
Na lavanderia, o meu mundo entrou em colapso com aquele medonho e fascinante iceberg. Na série "Seinfeld", existe um nazista das sopas que serve os seus caldos como se fosse um Hitler gastronômico: gritando, ordenando, punindo. Eu tinha encontrado a nazista das roupas. Silenciosa como a morte.
Não dormi nessa noite. A minha senhora, preocupada com o meu estado, implorava uma confissão. Para não a torturar mais, cedi nas primeiras horas da madrugada: "É a mulher da lavanderia. Perdoa-me".
Então contei: em 40 anos de vida, e em 35 de leitura, nunca avistara misantropia assim. Nem na ficção (pobre Mr. Scrooge) nem na realidade (pobre J.P. Coutinho). Ela escutou-me com ternura e murmurou palavras de amor: "Vamos ultrapassar isso juntos. Estou do teu lado".
E esteve. Nos dias seguintes, era preciso recolher informação sobre aquele caso. Fizemos expedições a vizinhos, padarias, mercados. E, claro, à agência funerária. O quebra-cabeça compunha-se. Mas que miserável quebra-cabeça! A criatura não tinha nada de excepcional. Saudável, casada, com prole. E um negócio de sucesso. Pasmei. De sucesso? Mas como?
Os vizinhos sorriam maliciosamente, como quem partilha o código de uma fraternidade secreta. "Mas você julga que é o único viciado no produto?" Não era. Também eles tinham olhado para o abismo e, fascinados, só queriam lá voltar.
Partilhei a experiência com amigos. Organizaram-se expedições. Eles chegavam com as suas camisas sujas e, minutos depois, saíam da lavanderia transformados. "Prefiro não comentar", disse-me um, em lágrimas.
Mas houve comentários. Melhor dizendo: simpósios. Nenhuma conclusão definitiva. Em setembro, pensamos organizar um congresso internacional com o título provisório: "Roupa suja tirada a limpo: misantropia, anedonia ou psicopatia?" Ainda aceitamos inscrições.
E para o leitor impaciente que não quer perder a festa, um pouco de paciência: em breve, será possível fazer turismo em Lisboa e visitar todos os lugares típicos da capital. A Torre de Belém. O Mosteiro dos Jerônimos. A baixa pombalina. A lavanderia.
E eu? Estou melhor, obrigado. Mas sei que ainda existe um longo caminho a percorrer. De vez em quando, abro a porta de casa em surdina e a voz doce da minha senhora pergunta: "Onde vais?"
Sinto a tristeza funda de um derrotado e respondo, com vergonha e sem convicção: "Vou dar um passeio. Comprar o jornal".
Mas ela sabe. Sim, ela sabe que eu levo camisas sujas para lavar.
Preciso de ajuda. Urgente. O problema é a misantropia. Não falo da minha. Falo da dela. Explico.
Mudei de casa recentemente e resolvi flanar pelo bairro. Passeio de reconhecimento: as farmácias (primeiro que tudo), os restaurantes, os cinemas, as livrarias. E a lavanderia para as camisas. Tudo aconteceu na lavanderia.
Entrei, as camisas sujas no saco. A funcionária aproximou-se para me atender. É difícil explicar o que aconteceu a seguir. Literatura, ajuda-me: senti no corpo o que Jonathan Harker deve ter sentido na Transilvânia, quando o conde Drácula o recebeu no seu castelo.
O meu sangue virou gelo e o coração falhou dois batimentos, antes de começar uma galopada insana. O rosto da mulher não era antipático. Era uma máscara imóvel iluminada pelas trevas. A voz não era hostil. Era mecânica e mórbida e abissal. Há lojas que desprezam o cliente. Aquilo era ódio ao simples fato de eu estar vivo.
Retirei as camisas do saco, a senhora contou-as lentamente, como se fosse uma torturadora a contar os dedos de um suspeito, e informou: "Sexta-feira". Paguei, tentei um "obrigado" mas uma ventania interior arrastou-me para fora. Estava calor em Lisboa e eu sentia-me perdido na Sibéria.
Não sou facilmente impressionável. Já experimentei de tudo. Da antipatia natural à boçalidade extrema.
O antipático natural é ainda um ser humano. E a antipatia revela, em princípio, um sofrimento interior qualquer. Para usar a letra da canção, no peito de um antipático também bate um coração.
O mesmo para os boçais. Revelam falta de maneiras, dificilmente de caráter. A uma certa distância, e com prudência antropológica, podem ser divertidos e instrutivos. A prova viva de que Darwin estava certo.
Na lavanderia, o meu mundo entrou em colapso com aquele medonho e fascinante iceberg. Na série "Seinfeld", existe um nazista das sopas que serve os seus caldos como se fosse um Hitler gastronômico: gritando, ordenando, punindo. Eu tinha encontrado a nazista das roupas. Silenciosa como a morte.
Não dormi nessa noite. A minha senhora, preocupada com o meu estado, implorava uma confissão. Para não a torturar mais, cedi nas primeiras horas da madrugada: "É a mulher da lavanderia. Perdoa-me".
Então contei: em 40 anos de vida, e em 35 de leitura, nunca avistara misantropia assim. Nem na ficção (pobre Mr. Scrooge) nem na realidade (pobre J.P. Coutinho). Ela escutou-me com ternura e murmurou palavras de amor: "Vamos ultrapassar isso juntos. Estou do teu lado".
E esteve. Nos dias seguintes, era preciso recolher informação sobre aquele caso. Fizemos expedições a vizinhos, padarias, mercados. E, claro, à agência funerária. O quebra-cabeça compunha-se. Mas que miserável quebra-cabeça! A criatura não tinha nada de excepcional. Saudável, casada, com prole. E um negócio de sucesso. Pasmei. De sucesso? Mas como?
Os vizinhos sorriam maliciosamente, como quem partilha o código de uma fraternidade secreta. "Mas você julga que é o único viciado no produto?" Não era. Também eles tinham olhado para o abismo e, fascinados, só queriam lá voltar.
Partilhei a experiência com amigos. Organizaram-se expedições. Eles chegavam com as suas camisas sujas e, minutos depois, saíam da lavanderia transformados. "Prefiro não comentar", disse-me um, em lágrimas.
Mas houve comentários. Melhor dizendo: simpósios. Nenhuma conclusão definitiva. Em setembro, pensamos organizar um congresso internacional com o título provisório: "Roupa suja tirada a limpo: misantropia, anedonia ou psicopatia?" Ainda aceitamos inscrições.
E para o leitor impaciente que não quer perder a festa, um pouco de paciência: em breve, será possível fazer turismo em Lisboa e visitar todos os lugares típicos da capital. A Torre de Belém. O Mosteiro dos Jerônimos. A baixa pombalina. A lavanderia.
E eu? Estou melhor, obrigado. Mas sei que ainda existe um longo caminho a percorrer. De vez em quando, abro a porta de casa em surdina e a voz doce da minha senhora pergunta: "Onde vais?"
Sinto a tristeza funda de um derrotado e respondo, com vergonha e sem convicção: "Vou dar um passeio. Comprar o jornal".
Mas ela sabe. Sim, ela sabe que eu levo camisas sujas para lavar.