FOLHA DE SP -11/12
A criatividade dos mecanismos para atender às corporações em prejuízo das contas públicas parece não ter fim.
Nas últimas décadas, grupos de interesse procuraram vincular recursos arrecadados da sociedade para viabilizar alguma atividade. Recursos vinculados deixam de estar subordinados à deliberação orçamentária anual.
O projeto de lei complementar 36, proposto recentemente pelo governo do Rio de Janeiro, propõe desvincular parte dos recursos dos fundos para pagar despesas com pessoal do Estado. O projeto discrimina 13 fundos, criados nas últimas décadas, como o Funperj, para o custeio e investimento da Procuradoria Geral, o Fundperj, para a Defensoria Pública, o Fesp Alerj, para a Assembleia Legislativa, o FEM/TCE, para o Tribunal de Contas, entre outros.
Essas vinculações exemplificam a causa do aparente paradoxo de Estados com superavit apesar da dificuldade em pagar as despesas correntes.
Muitos fundos proíbem que os recursos sejam gastos com pessoal. Esse é o caso do Fundo para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (FETJ).
No começo do ano, o governador havia proposto que o FETJ emprestasse seus recursos para o governo, para auxiliar o pagamento dos servidores do Estado.
O tribunal recusou com razão. Além de contrária à lei, a proposta exemplifica a prática de pagar despesas correntes com novos empréstimos ou antecipando receita, o que apenas agrava a crise, pois os gastos correntes não são reduzidos enquanto aumenta o deficit futuro.
Resolver a crise fiscal requer enfrentar o difícil problema dos compromissos insustentáveis assumidos com folha de pagamento, benefícios fiscais para empresas e despesas vinculadas.
O governo do Rio de Janeiro tem atrasado, sistematicamente, o pagamento dos servidores. No caso do Judiciário estadual, entretanto, liminares garantiram que seus salários fossem pagos em dia, ao contrário dos demais servidores.
Recentemente, o STF declarou inválida essa discriminação. Na última semana, porém, um ministro do STF autorizou um acordo para que os recursos do FETJ fossem utilizados para pagar os salários dos servidores do TJ-RJ, seus magistrados e pensionistas.
O Estado deverá restituir os recursos ao FETJ em 12 parcelas mensais. Trata-se, portanto, de um novo empréstimo para um governo em crise fiscal, aumentando as despesas para 2017.
A lei vale para todos. Menos para o próprio tribunal.
Não seria mais justo que fosse proposta uma nova lei que extinguisse os fundos e incorporasse as suas receitas aos demais recursos de um Estado em crise fiscal, sem privilegiar alguns servidores em detrimento dos demais?
domingo, dezembro 11, 2016
Na educação, a síntese dos fiascos brasileiros - ROLF KUNTZ
ESTADÃO - 11/12
As más classificações em educação e em competitividade são itens do mesmo quadro
O fracasso na educação pode ser a síntese de todos os fracassos do Brasil neste começo de século, refletidos na maior recessão em muitas décadas, no baixo potencial de crescimento, na estagnação da produtividade, no escasso poder de competição internacional, no retorno humilhante à armadilha da crise fiscal e na corrupção como componente da rotina política. A ilusão do avanço e a queda na realidade foram marcadas em duas capas famosas da revista The Economist – na primeira, o Cristo Redentor subindo como um foguete, na segunda, despencando de cabeça para baixo. Uma fantasia permanece, no entanto, em alguns discursos políticos e, talvez, na mente das pessoas mais crédulas. Ainda se fala sobre o resgate de dezenas de milhões de pessoas da pobreza.
De fato, milhões ingressaram no mercado de consumo graças a transferências de dinheiro por mecanismo fiscal e à elevação real do salário mínimo por decisão política. Quantos desses pobres, ou ex-pobres, segundo os mais otimistas, se tornaram mais capazes de ganhar a vida no mercado, em condições normais, apenas com suas habilidades e seu esforço? Ninguém respondeu ainda a essa pergunta, mas, além disso, poucos a têm formulado de modo explícito. O Brasil ainda é conhecido por seus indicadores de pobreza e desigualdade, mesmo depois das alardeadas façanhas do populismo e da melhora de alguns números. Mas houve mesmo tanta melhora?
Uma boa pista sobre essa questão foi apresentada há mais de 200 anos, na França, pelo marquês de Condorcet, filósofo, matemático, membro da Assembleia revolucionária e, como tantos outros líderes, vítima da própria Revolução. A instrução, escreveu Condorcet, é “um meio de tornar real a igualdade de direitos”. É inútil, segundo ele, proclamar essa igualdade quando a ignorância mantém um homem na dependência do saber de outros. Por isso, “a instrução pública é um dever da sociedade em relação aos cidadãos”. As ideias do marquês sobre educação aparecem nas suas Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, editadas em 1791, e no Relatório sobre a Instrução Pública, lançado no ano seguinte. São propostos programas de acordo com a idade, com o tipo de ocupação procurado e com a vocação científica ou profissional do estudante.
A educação geral inclui uma etapa básica e, em seguida, como objetos de instrução comum, “um curso muito elementar de matemáticas, de história natural e de física, absolutamente dirigido para as partes dessas ciências que podem ser úteis na vida comum”. A esses ensinamentos devem acrescentar-se elementos da Constituição nacional, noções fundamentais de gramática e de metafísica, primeiros princípios de lógica e noções de história e de geografia. O objetivo ultrapassa a formação de competências para a vida produtiva: a ideia é formar cidadãos, pessoas capazes de participar conscientemente da vida social. A ideia da instrução como promotora da igualdade tem um amplo significado.
A mesma preocupação aparece, mais de 200 anos depois, no texto de apresentação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, conhecido pela sigla Pisa: que conhecimentos e capacidades são importantes para os cidadãos? Essa pergunta abre o relatório do exame aplicado em 2015 a 540 mil estudantes de 72 países, jovens de 15 anos, no final, portanto, da fase de educação obrigatória. Trata-se de saber, segundo o texto, se eles obtiveram os conhecimentos e competências essenciais “à plena participação em sociedades modernas”. Não se trata somente de economias modernas, embora esse ponto seja importantíssimo, mas de sociedades, algo mais amplo.
O teste incluiu, como sempre, questões de ciência, leitura e matemática. Mas neste ano o objetivo principal foi medir a qualificação para o exame de questões científicas e a capacidade de achar soluções para problemas novos. Além disso, os estudantes preencheram questionários sobre sua origem e suas condições de vida.
Os estudantes brasileiros, como sempre, foram muito mal. Conseguiram em ciências 401 pontos, muito abaixo da média geral (493) dos alunos dos países da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O grupo é formado majoritariamente por países desenvolvidos, mas com participação relevante de emergentes, incluídos México e Chile. Em leitura os brasileiros obtiveram 407 pontos. Em matemática, 377. As médias da OCDE nessas disciplinas foram 493 e 490. Acima do Brasil ficaram, entre dezenas de outros, Chile, Bulgária e Costa Rica. Além disso, Colômbia, México e Uruguai gastam menos que o Brasil por aluno e conseguem resultados melhores. O Chile, com despesa média praticamente igual, obteve 477 pontos em ciência. Enquanto isso, o debate brasileiro continua centrado no tamanho do gasto em educação.
Dois meses antes do novo relatório do Pisa, saiu o ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial. O Brasil ficou em 81.º lugar entre 138 países. Foi a pior classificação na lista publicada a partir de 1997. No relatório anterior o País estava na 75.ª posição. A 48.ª colocação, a melhor, havia sido alcançada em 2012. A recessão pode ter afetado as duas últimas notas, mas o declínio começou bem antes. Além disso, o Brasil tem sido regularmente mal classificado em questões estruturais, como tributação, infraestrutura, educação e formação de mão de obra. Houve até um avanço no item “educação superior e treinamento”, mas da 93.ª para a 84.ª posição. Seria um dado animador num conjunto de mil países. Mas são apenas 138.
As más classificações no Pisa e no quadro de competitividade são mais que uma casualidade. Além disso, o Brasil, embora seja uma das dez maiores economias, continua em 25.º entre os exportadores. Todos esses dados se completam e, é claro, remetem a Condorcet. É séria, no Brasil, a conversa sobre igualdade e cidadania?
*Jornalista
As más classificações em educação e em competitividade são itens do mesmo quadro
O fracasso na educação pode ser a síntese de todos os fracassos do Brasil neste começo de século, refletidos na maior recessão em muitas décadas, no baixo potencial de crescimento, na estagnação da produtividade, no escasso poder de competição internacional, no retorno humilhante à armadilha da crise fiscal e na corrupção como componente da rotina política. A ilusão do avanço e a queda na realidade foram marcadas em duas capas famosas da revista The Economist – na primeira, o Cristo Redentor subindo como um foguete, na segunda, despencando de cabeça para baixo. Uma fantasia permanece, no entanto, em alguns discursos políticos e, talvez, na mente das pessoas mais crédulas. Ainda se fala sobre o resgate de dezenas de milhões de pessoas da pobreza.
De fato, milhões ingressaram no mercado de consumo graças a transferências de dinheiro por mecanismo fiscal e à elevação real do salário mínimo por decisão política. Quantos desses pobres, ou ex-pobres, segundo os mais otimistas, se tornaram mais capazes de ganhar a vida no mercado, em condições normais, apenas com suas habilidades e seu esforço? Ninguém respondeu ainda a essa pergunta, mas, além disso, poucos a têm formulado de modo explícito. O Brasil ainda é conhecido por seus indicadores de pobreza e desigualdade, mesmo depois das alardeadas façanhas do populismo e da melhora de alguns números. Mas houve mesmo tanta melhora?
Uma boa pista sobre essa questão foi apresentada há mais de 200 anos, na França, pelo marquês de Condorcet, filósofo, matemático, membro da Assembleia revolucionária e, como tantos outros líderes, vítima da própria Revolução. A instrução, escreveu Condorcet, é “um meio de tornar real a igualdade de direitos”. É inútil, segundo ele, proclamar essa igualdade quando a ignorância mantém um homem na dependência do saber de outros. Por isso, “a instrução pública é um dever da sociedade em relação aos cidadãos”. As ideias do marquês sobre educação aparecem nas suas Cinco Memórias sobre a Instrução Pública, editadas em 1791, e no Relatório sobre a Instrução Pública, lançado no ano seguinte. São propostos programas de acordo com a idade, com o tipo de ocupação procurado e com a vocação científica ou profissional do estudante.
A educação geral inclui uma etapa básica e, em seguida, como objetos de instrução comum, “um curso muito elementar de matemáticas, de história natural e de física, absolutamente dirigido para as partes dessas ciências que podem ser úteis na vida comum”. A esses ensinamentos devem acrescentar-se elementos da Constituição nacional, noções fundamentais de gramática e de metafísica, primeiros princípios de lógica e noções de história e de geografia. O objetivo ultrapassa a formação de competências para a vida produtiva: a ideia é formar cidadãos, pessoas capazes de participar conscientemente da vida social. A ideia da instrução como promotora da igualdade tem um amplo significado.
A mesma preocupação aparece, mais de 200 anos depois, no texto de apresentação do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, conhecido pela sigla Pisa: que conhecimentos e capacidades são importantes para os cidadãos? Essa pergunta abre o relatório do exame aplicado em 2015 a 540 mil estudantes de 72 países, jovens de 15 anos, no final, portanto, da fase de educação obrigatória. Trata-se de saber, segundo o texto, se eles obtiveram os conhecimentos e competências essenciais “à plena participação em sociedades modernas”. Não se trata somente de economias modernas, embora esse ponto seja importantíssimo, mas de sociedades, algo mais amplo.
O teste incluiu, como sempre, questões de ciência, leitura e matemática. Mas neste ano o objetivo principal foi medir a qualificação para o exame de questões científicas e a capacidade de achar soluções para problemas novos. Além disso, os estudantes preencheram questionários sobre sua origem e suas condições de vida.
Os estudantes brasileiros, como sempre, foram muito mal. Conseguiram em ciências 401 pontos, muito abaixo da média geral (493) dos alunos dos países da OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico. O grupo é formado majoritariamente por países desenvolvidos, mas com participação relevante de emergentes, incluídos México e Chile. Em leitura os brasileiros obtiveram 407 pontos. Em matemática, 377. As médias da OCDE nessas disciplinas foram 493 e 490. Acima do Brasil ficaram, entre dezenas de outros, Chile, Bulgária e Costa Rica. Além disso, Colômbia, México e Uruguai gastam menos que o Brasil por aluno e conseguem resultados melhores. O Chile, com despesa média praticamente igual, obteve 477 pontos em ciência. Enquanto isso, o debate brasileiro continua centrado no tamanho do gasto em educação.
Dois meses antes do novo relatório do Pisa, saiu o ranking de competitividade do Fórum Econômico Mundial. O Brasil ficou em 81.º lugar entre 138 países. Foi a pior classificação na lista publicada a partir de 1997. No relatório anterior o País estava na 75.ª posição. A 48.ª colocação, a melhor, havia sido alcançada em 2012. A recessão pode ter afetado as duas últimas notas, mas o declínio começou bem antes. Além disso, o Brasil tem sido regularmente mal classificado em questões estruturais, como tributação, infraestrutura, educação e formação de mão de obra. Houve até um avanço no item “educação superior e treinamento”, mas da 93.ª para a 84.ª posição. Seria um dado animador num conjunto de mil países. Mas são apenas 138.
As más classificações no Pisa e no quadro de competitividade são mais que uma casualidade. Além disso, o Brasil, embora seja uma das dez maiores economias, continua em 25.º entre os exportadores. Todos esses dados se completam e, é claro, remetem a Condorcet. É séria, no Brasil, a conversa sobre igualdade e cidadania?
*Jornalista
Remédios para a economia são amargos, mas estão fazendo efeito - SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 11/12
A economia surpreendeu para pior no quarto trimestre. A previsão do Ibre de crescimento de 0,6% para 2017 será revista para 0,3%.
Todo o novo cenário do Ibre será divulgado no seminário de conjuntura de fechamento do ano, nesta segunda-feira (12), na FGV-Rio.
O governo Temer vive momento difícil. A lentidão da recuperação deve-se ao desastre que foi construído entre 2009 e 2014 no setor real da economia. Uma série de programas estimulou excesso de investimento em setores com baixa rentabilidade, sob a hipótese de que a capacidade financeira do setor público -Tesouro Nacional, estatais e bancos públicos- fosse ilimitada.
A realidade obrigou a forte redução dos investimentos nos setores naval, petrolífero, automobilístico, sucroalcooleiro, de construção civil (em razão das revisões do Minha Casa, Minha Vida) e em muitos outros.
Além da revisão de um extenso programa de investimento, que foi mal desenhado, regulado e executado, o problema fiscal estrutural contribui para gerar incertezas e reduzir o horizonte do cálculo empresarial.
Combinando-se a esses dois problemas estruturais, que não serão solucionados rapidamente, há a dificuldade com o ajustamento cíclico da economia. O processo de desinflação avança, mas a custo muito elevado.
Diversos fatores contribuíram para aumentar o custo do ajuste desinflacionário. A partida do processo, no final de 2014, foi com taxa de desemprego abaixo da taxa natural, que é aquela que estabiliza a inflação. Ou seja, ao longo de todo o ano de 2015, aproximadamente, o mercado de trabalho ainda contribuiu para aumentar a inflação, mesmo com a forte queda do PIB.
Adicionalmente, no início de 2015, a inflação média nos últimos cinco anos havia sido de 6,1%. Tínhamos inflação mais de 1,5 ponto percentual acima da meta, com elevadíssima inércia. Para piorar, havia inflação corretiva de preços administrados na casa de 18% e necessidade de correção do câmbio: em 2014, o deficit externo havia sido de US$ 104 bilhões.
Há sinais de que o Banco Central vai ganhando a luta contra a inflação. Provavelmente no fim do ano que vem a inflação estará rodando na meta e poderemos, em 2018, ter Selic abaixo de 10%. Diante das dificuldades com a atividade, o impulso é fazer alguma coisa para a economia pegar no tranco. Nessa hora, é necessário sangue-frio e calma.
Há muito espaço para queda da taxa de juros nos próximos 12 meses e, com isso, para termos a economia crescendo bem em 2018. Nossos números sugerem que, no quarto trimestre de 2017, estaremos rodando a 2,5%-3% ao ano de expansão do PIB.
É necessário evitar pirotecnias.
O que faríamos para animar a economia? Aumentar os subsídios do BNDES? Desonerar IPI da linha branca e dos automóveis? Aumentar o requerimento de conteúdo nacional na cadeia de petróleo? Aumentar as barreiras às importações de bens para estimular a indústria? Liberar compulsórios para empréstimos de veículos? Sugestões?
Toda essa lista foi tentada à exaustão no primeiro mandato de Dilma Rousseff, com resultados conhecidos. Não faz sentido repetir os erros.
As dificuldades de Michel Temer resultam da herança maldita da nova matriz econômica e da irresponsabilidade fiscal, além da enorme leniência do governo petista com a inflação. Os remédios são amargos, mas estão fazendo efeito.
Calma e sangue-frio.
A economia surpreendeu para pior no quarto trimestre. A previsão do Ibre de crescimento de 0,6% para 2017 será revista para 0,3%.
Todo o novo cenário do Ibre será divulgado no seminário de conjuntura de fechamento do ano, nesta segunda-feira (12), na FGV-Rio.
O governo Temer vive momento difícil. A lentidão da recuperação deve-se ao desastre que foi construído entre 2009 e 2014 no setor real da economia. Uma série de programas estimulou excesso de investimento em setores com baixa rentabilidade, sob a hipótese de que a capacidade financeira do setor público -Tesouro Nacional, estatais e bancos públicos- fosse ilimitada.
A realidade obrigou a forte redução dos investimentos nos setores naval, petrolífero, automobilístico, sucroalcooleiro, de construção civil (em razão das revisões do Minha Casa, Minha Vida) e em muitos outros.
Além da revisão de um extenso programa de investimento, que foi mal desenhado, regulado e executado, o problema fiscal estrutural contribui para gerar incertezas e reduzir o horizonte do cálculo empresarial.
Combinando-se a esses dois problemas estruturais, que não serão solucionados rapidamente, há a dificuldade com o ajustamento cíclico da economia. O processo de desinflação avança, mas a custo muito elevado.
Diversos fatores contribuíram para aumentar o custo do ajuste desinflacionário. A partida do processo, no final de 2014, foi com taxa de desemprego abaixo da taxa natural, que é aquela que estabiliza a inflação. Ou seja, ao longo de todo o ano de 2015, aproximadamente, o mercado de trabalho ainda contribuiu para aumentar a inflação, mesmo com a forte queda do PIB.
Adicionalmente, no início de 2015, a inflação média nos últimos cinco anos havia sido de 6,1%. Tínhamos inflação mais de 1,5 ponto percentual acima da meta, com elevadíssima inércia. Para piorar, havia inflação corretiva de preços administrados na casa de 18% e necessidade de correção do câmbio: em 2014, o deficit externo havia sido de US$ 104 bilhões.
Há sinais de que o Banco Central vai ganhando a luta contra a inflação. Provavelmente no fim do ano que vem a inflação estará rodando na meta e poderemos, em 2018, ter Selic abaixo de 10%. Diante das dificuldades com a atividade, o impulso é fazer alguma coisa para a economia pegar no tranco. Nessa hora, é necessário sangue-frio e calma.
Há muito espaço para queda da taxa de juros nos próximos 12 meses e, com isso, para termos a economia crescendo bem em 2018. Nossos números sugerem que, no quarto trimestre de 2017, estaremos rodando a 2,5%-3% ao ano de expansão do PIB.
É necessário evitar pirotecnias.
O que faríamos para animar a economia? Aumentar os subsídios do BNDES? Desonerar IPI da linha branca e dos automóveis? Aumentar o requerimento de conteúdo nacional na cadeia de petróleo? Aumentar as barreiras às importações de bens para estimular a indústria? Liberar compulsórios para empréstimos de veículos? Sugestões?
Toda essa lista foi tentada à exaustão no primeiro mandato de Dilma Rousseff, com resultados conhecidos. Não faz sentido repetir os erros.
As dificuldades de Michel Temer resultam da herança maldita da nova matriz econômica e da irresponsabilidade fiscal, além da enorme leniência do governo petista com a inflação. Os remédios são amargos, mas estão fazendo efeito.
Calma e sangue-frio.
O ano da encruzilhada - FERNANDO GABEIRA
O GLOBO - 11/12
E se nunca pudermos sair de 2016?
E se nunca pudermos sair de 2016? Esta pergunta me impressionou, embora fosse apenas uma piada. O ano foi tão intenso que parece um longo pesadelo. Talvez tenha sido intenso para todos, mas aqui no Brasil, com a profunda crise econômica e um toque de realismo fantástico, 2016 foi mais assustador. Às vezes penso que toda essa intensidade não se deve apenas ao ano que termina. Num mundo conectado, muitos de nós consultam a internet de 15 em 15 minutos e ficam desapontados quando não acontece nada.
Nossa demanda por fatos novos parece ter aumentado. O Brasil tem sido generoso, embora os fatos sejam quase sempre negativos e não nos levem, necessariamente, a lugar nenhum. Ferreira Gullar dizia que a vida não basta, daí a importância da arte. Goethe, por sua vez, dizia que a arte é um esforço dos vivos para criar um sistema de ilusões que nos protege da realidade cruel. Dentro de um universo mais amplo, a política também deveria ser um sistema de ilusões que nos ampara da brutalidade do real. Carmem Lúcia, de uma certa maneira, expressou isto quando disse ou democracia ou guerra, referindo-se a uma possível falência do estado, o que nos jogaria numa batalha de todos contra todos.
Navegamos em águas tempestuosas. O processo político que era destinado a melhorar nossa convivência tornou-se, ele mesmo, uma expressão da realidade mais tosca e brutal. Renan Calheiros foi para a cama com sua amante e até hoje estamos tentando tirá-lo do cargo, não por suas aventuras amorosas, mas por um enlace mais perigoso entre empreiteiros e políticos. Ele não cai por uma paixão proibida, mas sim porque defende o vínculo com os financiadores das campanhas, riqueza pessoal e até dos seus momentos românticos. Renan é um general da luta contra a Lava-Jato, embora Lula reclame esse posto e ninguém lhe dê muita atenção no momento. O papel histórico de Renan foi coordenar uma reação às investigações, usando como pretexto a lei de abuso de autoridade. Mesmo se um general cair, e nada mais sustenta Renan exceto gente correndo da polícia, a batalha final entre um sistema de corrupção estabelecido e as forças que querem destruí-lo ainda não chegará ao final.
E é essa batalha, com a nitidez às vezes perturbada pelas peripécias individuais, que está em jogo. Na verdade, ela está, nesse momento, apontando para uma vitória popular. Quando digo vitória, digo apenas tomada de consciência. O sistema de corrupção que a Lava-Jato enfrenta, com apoio da sociedade, é muito antigo e poderoso. E essa batalha vai lançar luz na antiguidade e no poder da corrupção no Brasil. O próprio STF é um órgão do velho Brasil, organizado burocraticamente para proteger os políticos envolvidos. Jornalistas que combateram o governo petista agora hesitam diante da manifestação popular. “Vocês estão fortalecendo o PT”, dizem eles. Como se a ascensão de um presidente do PT, um partido arrasado nas urnas, conseguisse deter um projeto de recuperação econômica, já votado pela maioria. Se 60 senadores que votaram no primeiro turno não se impõem sobre Jorge Viana é porque são uns bundões ineficazes e não mereciam estar onde estão. Infelizmente, a coisa é mais complicada. Usaram de tudo para combater a Lava-Jato. Agora dissociam a luta contra a corrupção da luta para soerguer a economia. E dizem que uma prejudica a outra. Coisas do Planalto. Não importa muito se Renan fica alguns dias, se Jorge Viana vai enfrentar os senadores e a realidade nacional. O que importa mesmo é o fato de que a sociedade está atenta, acompanha cada movimento, e não se deixa mais enganar com facilidade.
Um personagem do realismo fantástico, Roberto Requião, disse que os manifestantes deveriam comer alfafa. Os que não gostam de ver povo na rua argumentam sempre com mais cuidado. Requião foi ao ponto, pisando sem a elegância de um manga larga ou um quarto de milha. As manifestações incomodam. Revelam uma sociedade atenta, registrando cada detalhe das covardes traições dos seus representantes. Ela teve força para derrubar uma presidente. Claro que precisará de uma força maior para derrubar todo o sistema de corrupção que move a política brasileira. Um sistema muito forte. Um STF encardido, incapaz de se sintonizar com o Brasil moderno; um tipo de imprensa que atribui o desemprego e a crise econômica à Lava-Jato e não aos equívocos e roubalheira do governo deposto; e, finalmente, os guardiões de direitos humanos dos empreiteiros e senadores, incapazes de se comover com a vida mesmo e as pessoas que são esmagadas pelas autoridades.
Está tudo ficando cristalino e esta é uma das grandes qualidades de crises profundas. Se o Congresso quiser marchar contra a vontade popular, que marche. Se o Supremo continuar essa enganação para proteger políticos, que continue. Importante é a sociedade compreender isto com clareza. E convenhamos: se quiser tolerar tudo, que tolere. A chance de dar uma virada e construir instituições democráticas está ao alcance das mãos. Com um décimo da audácia dos bandidos, as pessoas bem-intencionadas resolvem essa parada.
Para a plateia - MÍRIAM LEITÃO
O Globo - 11/12
Estamos em plena temporada da dissimulação. O PT chegou a propor teto para os gastos em duas ocasiões, hoje prefere exibir sua cômoda amnésia. Também reduziu pensões de viúvos e viúvas, e a ex-presidente Dilma estava preparando um projeto de reforma da Previdência. Portanto, o repúdio dos petistas às propostas é mais um dos vários atos de hipocrisia política.
O projeto de reforma se propõe a reduzir desigualdades dentro do sistema de aposentadoria, apesar de manter várias delas. A Previdência sempre foi muito desigual, mas agora é que alguns políticos e sindicalistas criticam os tratamentos diferenciados. As últimas semanas têm sido de declarações feitas para ludibriar o público. Uma delas foi do deputado Henrique Fontana (PT-RS). Segundo ele, a reforma, ao estabelecer a idade de 65 anos, pune o trabalhador mais pobre, sem qualificação, que começa a trabalhar cedo. Quem usufruiu todos estes anos da aposentadoria precoce foi o trabalhador de maior renda, que tem qualificação e que trabalhou no setor formal. Para o pobre e sem qualificação, sempre valeu a idade mínima de 60 anos.
Muitas das desigualdades no sistema de aposentadorias e pensões permanecem com a reforma. Antes, as injustiças eram maiores e não incomodavam as centrais sindicais porque elas representam o trabalhador qualificado do setor formal. Paulinho da Força, do Solidariedade, sugeriu que as novas regras da Previdência só valessem para quem nasceu em 2001, que tem hoje 15 anos, e vai se aposentar em meados da década de 2060. Isso é demagogia. Ele conhece os números e sabe que a Previdência está quebrada e exige mudanças imediatas. Mas está jogando para a plateia.
Este governo tem muitos defeitos, já errou bastante nestes meses em que conduz o país. Porém, o poço em que estamos foi provocado por Dilma, e as mais ferozes críticas a Temer são de quem votou nele. Temer era o segundo nome na mesma chapa. A PEC do teto de gastos não vai nos tirar da crise, mas o que está tramitando no Congresso tem o objetivo de evitar o crescimento insustentável das despesas. A oposição ataca todas as medidas de ajuste, mas apoiou o governo que produziu o maior rombo da história, a maior recessão e levou a dívida pública de 52% do PIB para 70%. Não fazer nada sobre isso é correr um enorme risco.
A educação está em crise, mas os dados que saíram recentemente são de 2015. O sucateamento das universidades e o atraso na educação básica não ocorreram em seis meses. O PT aumentou os gastos com educação nos 13 anos em que governou, mas isso não se refletiu em melhoria de qualidade. Entre outras coisas, porque gastou errado. Um deles foi o inchaço que levou a R$ 20 bilhões a despesa com o Fies para aumentar o faturamento dos grandes grupos educacionais.
Os senadores do PT estão na confortável situação de condenar as medidas que se tornaram inevitáveis por causa da sua má condução dos negócios do Estado brasileiro. Nenhuma crise nasce ou desaparece da noite para o dia. Deveriam, os políticos petistas, já que governaram o Brasil, explicar como se sai do buraco em que eles nos colocaram. Um rombo fiscal desse tamanho pode provocar descontrole inflacionário e crise de confiança na dívida pública. Como a dívida é a soma de todas as aplicações financeiras das famílias e das empresas, o risco não é pequeno. O que sugere a oposição diante desse problema concreto criado pela administração petista?
O governo Temer tem vários defeitos e está imerso em contradição. Um deles: com seu exército de aposentados precoces, comanda a reforma que vai mudar a vida de tantos milhões. Seria mais fácil encontrar a saída se cada grupo político admitisse os dados da realidade e tivesse uma receita concreta de sair da crise.
Muitos sindicalistas e políticos não têm demonstrado estar à altura da necessidade do país. Esse é um momento grave da vida brasileira em que a economia sangra, os empregos somem e a dívida pode escalar. A economia precisa de um mínimo de horizonte e não tem. Os números falam por si. E atrás dos números há pessoas vivendo dramas pessoais cada vez mais agudos e uma vasta desesperança. Deveríamos, pelo menos, ser poupados da demagogia.
Estamos em plena temporada da dissimulação. O PT chegou a propor teto para os gastos em duas ocasiões, hoje prefere exibir sua cômoda amnésia. Também reduziu pensões de viúvos e viúvas, e a ex-presidente Dilma estava preparando um projeto de reforma da Previdência. Portanto, o repúdio dos petistas às propostas é mais um dos vários atos de hipocrisia política.
O projeto de reforma se propõe a reduzir desigualdades dentro do sistema de aposentadoria, apesar de manter várias delas. A Previdência sempre foi muito desigual, mas agora é que alguns políticos e sindicalistas criticam os tratamentos diferenciados. As últimas semanas têm sido de declarações feitas para ludibriar o público. Uma delas foi do deputado Henrique Fontana (PT-RS). Segundo ele, a reforma, ao estabelecer a idade de 65 anos, pune o trabalhador mais pobre, sem qualificação, que começa a trabalhar cedo. Quem usufruiu todos estes anos da aposentadoria precoce foi o trabalhador de maior renda, que tem qualificação e que trabalhou no setor formal. Para o pobre e sem qualificação, sempre valeu a idade mínima de 60 anos.
Muitas das desigualdades no sistema de aposentadorias e pensões permanecem com a reforma. Antes, as injustiças eram maiores e não incomodavam as centrais sindicais porque elas representam o trabalhador qualificado do setor formal. Paulinho da Força, do Solidariedade, sugeriu que as novas regras da Previdência só valessem para quem nasceu em 2001, que tem hoje 15 anos, e vai se aposentar em meados da década de 2060. Isso é demagogia. Ele conhece os números e sabe que a Previdência está quebrada e exige mudanças imediatas. Mas está jogando para a plateia.
Este governo tem muitos defeitos, já errou bastante nestes meses em que conduz o país. Porém, o poço em que estamos foi provocado por Dilma, e as mais ferozes críticas a Temer são de quem votou nele. Temer era o segundo nome na mesma chapa. A PEC do teto de gastos não vai nos tirar da crise, mas o que está tramitando no Congresso tem o objetivo de evitar o crescimento insustentável das despesas. A oposição ataca todas as medidas de ajuste, mas apoiou o governo que produziu o maior rombo da história, a maior recessão e levou a dívida pública de 52% do PIB para 70%. Não fazer nada sobre isso é correr um enorme risco.
A educação está em crise, mas os dados que saíram recentemente são de 2015. O sucateamento das universidades e o atraso na educação básica não ocorreram em seis meses. O PT aumentou os gastos com educação nos 13 anos em que governou, mas isso não se refletiu em melhoria de qualidade. Entre outras coisas, porque gastou errado. Um deles foi o inchaço que levou a R$ 20 bilhões a despesa com o Fies para aumentar o faturamento dos grandes grupos educacionais.
Os senadores do PT estão na confortável situação de condenar as medidas que se tornaram inevitáveis por causa da sua má condução dos negócios do Estado brasileiro. Nenhuma crise nasce ou desaparece da noite para o dia. Deveriam, os políticos petistas, já que governaram o Brasil, explicar como se sai do buraco em que eles nos colocaram. Um rombo fiscal desse tamanho pode provocar descontrole inflacionário e crise de confiança na dívida pública. Como a dívida é a soma de todas as aplicações financeiras das famílias e das empresas, o risco não é pequeno. O que sugere a oposição diante desse problema concreto criado pela administração petista?
O governo Temer tem vários defeitos e está imerso em contradição. Um deles: com seu exército de aposentados precoces, comanda a reforma que vai mudar a vida de tantos milhões. Seria mais fácil encontrar a saída se cada grupo político admitisse os dados da realidade e tivesse uma receita concreta de sair da crise.
Muitos sindicalistas e políticos não têm demonstrado estar à altura da necessidade do país. Esse é um momento grave da vida brasileira em que a economia sangra, os empregos somem e a dívida pode escalar. A economia precisa de um mínimo de horizonte e não tem. Os números falam por si. E atrás dos números há pessoas vivendo dramas pessoais cada vez mais agudos e uma vasta desesperança. Deveríamos, pelo menos, ser poupados da demagogia.
Não custa nada imaginar que uma nova arte está para nascer - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 11/12
Se eu tentasse entender o que hoje se chama de arte contemporânea -que, aliás, tem um número indeterminado de definições-, teria que me ater a dois fatores fundamentais: a arte e a técnica.
Aliás, esses são os fatores inevitavelmente presentes em todas as manifestações artísticas, quaisquer que tenham sido os rumos que elas tenham tomado.
Para me fazer entender melhor, devo me referir a alguns movimentos altamente significantes da arte ocidental que marcaram época e definiram o futuro dessa arte.
Um dos exemplos do que digo foi a fase da arte constituída pela pintura mural, quando a expressão criativa se confundia com o próprio processo de elaboração da superfície pintada, no muro.
Nessa etapa da pintura, tanto a matéria pictórica quanto a cor nasciam no mesmo material que constituía a parede. Como o próprio nome está dizendo, essa arte era própria do muro, ela nascia no muro, da terra, dos detritos, do pó colorido, enfim, de tudo aquilo que constituiria a parede de uma capela, do mural de um convento. Uma coisa dependia da outra. Não havia, consequentemente, a expressão pictórica autônoma, fora da parede.
Surgiu então a tela, o que significou por si só uma revolução da parte pictórica que duraria por séculos. Se você levar em conta que, para realizar a pintura mural, era necessário o muro, imagine o que significou a descoberta da pintura a óleo, que, por sua vez, possibilitou pintar sobre superfícies autônomas, pintura que não dependia da parede, dando nascimento ao que se passou a chamar tela.
Como a tela não tem que estar inevitavelmente pendurada na parede, surgiu a possibilidade de o pintor realizar tantas telas quanto quisesse, onde lhe fosse permitido. Isso deu origem aos colecionadores de arte e aos museus, que passaram a exibir e a manter em seus acervos dezenas e até mesmo centenas de obras pictóricas. Como se não bastasse, esse fato fez nascer o mercado de arte, que deu um impulso extraordinário às realizações pictóricas.
Além do mais, a pintura a óleo possibilitou o aperfeiçoamento técnico da pintura, emprestando-lhe o caráter realista nunca obtido antes. Não posso dizer se foi esse caráter realista que deu origem à fotografia -a verdade, porém, é que a capacidade que a fotografia possibilitava, não de imitar a imagem real, mas de captá-la, determinou uma verdadeira revolução na arte da pintura. De certo modo é daí que nasce a pintura impressionista, que determinaria uma mudança radical na história da pintura.
A partir de então, em vez de pretender copiar fielmente a realidade exterior, a pintura, por assim dizer, passa a inventá-la. De fato, uma paisagem de Monet não tem qualquer propósito de retratar o mundo objetivo tal como ele se apresenta à lente fotográfica, pelo contrário, os recursos pictóricos passam a ser usados para exprimir a experiência subjetiva no mundo real.
Nasce uma nova pintura que quer ser, ela mesma, uma expressão outra do mundo objetivo. Não por acaso Cézanne afirmava que "a maçã que eu pinto não é maçã, é pintura". Mas o impressionismo foi apenas o início de uma transformação que mudou drasticamente a arte do século 20. Aquela frase de Cézanne trazia nela embutida uma mudança radical que começa com o cubismo de Picasso e Braque.
Como tudo o que estivesse no quadro se tornaria pintura -isto é, arte-, introduziram na tela tudo o que se poderia imaginar: envelope de carta, recorte de jornal, areia, arame e o que mais lhes desse na telha. Pouco depois, Marcel Duchamp afirmava: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". E, então, expôs em Nova York um urinol produzido industrialmente assinado com o pseudônimo de R.Mutt. Estava aberto o caminho para o vale-tudo. Por isso mesmo as Bienais internacionais expõem tudo o que se possa imaginar. A conclusão inevitável é que o que até aqui se chamou de arte já não o é.
Mas, assim como no Renascimento, surgiu uma nova linguagem artística que mudou a história da arte. Assim, não custa nada imaginar que, em função das novas tecnologias, uma nova arte esteja para nascer.
NOTA DA EDIÇÃO
Ferreira Gullar, morto aos 86, de pneumonia, no domingo (5), ditou esta última coluna para a neta Celeste na cama do hospital.
Com pouco fôlego, teve de fazer pausas para descansar. "Quando eu perguntei se preferia terminar outro dia, ele disse que não, porque não sabia o que poderia acontecer", afirmou Celeste.
"Ele me falou uma vez: 'Eu adivinho as coisas'. Acredito que sim. Então ficamos aguardando essa nova arte que nascerá da tecnologia. Qual será?"
Se eu tentasse entender o que hoje se chama de arte contemporânea -que, aliás, tem um número indeterminado de definições-, teria que me ater a dois fatores fundamentais: a arte e a técnica.
Aliás, esses são os fatores inevitavelmente presentes em todas as manifestações artísticas, quaisquer que tenham sido os rumos que elas tenham tomado.
Para me fazer entender melhor, devo me referir a alguns movimentos altamente significantes da arte ocidental que marcaram época e definiram o futuro dessa arte.
Um dos exemplos do que digo foi a fase da arte constituída pela pintura mural, quando a expressão criativa se confundia com o próprio processo de elaboração da superfície pintada, no muro.
Nessa etapa da pintura, tanto a matéria pictórica quanto a cor nasciam no mesmo material que constituía a parede. Como o próprio nome está dizendo, essa arte era própria do muro, ela nascia no muro, da terra, dos detritos, do pó colorido, enfim, de tudo aquilo que constituiria a parede de uma capela, do mural de um convento. Uma coisa dependia da outra. Não havia, consequentemente, a expressão pictórica autônoma, fora da parede.
Surgiu então a tela, o que significou por si só uma revolução da parte pictórica que duraria por séculos. Se você levar em conta que, para realizar a pintura mural, era necessário o muro, imagine o que significou a descoberta da pintura a óleo, que, por sua vez, possibilitou pintar sobre superfícies autônomas, pintura que não dependia da parede, dando nascimento ao que se passou a chamar tela.
Como a tela não tem que estar inevitavelmente pendurada na parede, surgiu a possibilidade de o pintor realizar tantas telas quanto quisesse, onde lhe fosse permitido. Isso deu origem aos colecionadores de arte e aos museus, que passaram a exibir e a manter em seus acervos dezenas e até mesmo centenas de obras pictóricas. Como se não bastasse, esse fato fez nascer o mercado de arte, que deu um impulso extraordinário às realizações pictóricas.
Além do mais, a pintura a óleo possibilitou o aperfeiçoamento técnico da pintura, emprestando-lhe o caráter realista nunca obtido antes. Não posso dizer se foi esse caráter realista que deu origem à fotografia -a verdade, porém, é que a capacidade que a fotografia possibilitava, não de imitar a imagem real, mas de captá-la, determinou uma verdadeira revolução na arte da pintura. De certo modo é daí que nasce a pintura impressionista, que determinaria uma mudança radical na história da pintura.
A partir de então, em vez de pretender copiar fielmente a realidade exterior, a pintura, por assim dizer, passa a inventá-la. De fato, uma paisagem de Monet não tem qualquer propósito de retratar o mundo objetivo tal como ele se apresenta à lente fotográfica, pelo contrário, os recursos pictóricos passam a ser usados para exprimir a experiência subjetiva no mundo real.
Nasce uma nova pintura que quer ser, ela mesma, uma expressão outra do mundo objetivo. Não por acaso Cézanne afirmava que "a maçã que eu pinto não é maçã, é pintura". Mas o impressionismo foi apenas o início de uma transformação que mudou drasticamente a arte do século 20. Aquela frase de Cézanne trazia nela embutida uma mudança radical que começa com o cubismo de Picasso e Braque.
Como tudo o que estivesse no quadro se tornaria pintura -isto é, arte-, introduziram na tela tudo o que se poderia imaginar: envelope de carta, recorte de jornal, areia, arame e o que mais lhes desse na telha. Pouco depois, Marcel Duchamp afirmava: "Será arte tudo o que eu disser que é arte". E, então, expôs em Nova York um urinol produzido industrialmente assinado com o pseudônimo de R.Mutt. Estava aberto o caminho para o vale-tudo. Por isso mesmo as Bienais internacionais expõem tudo o que se possa imaginar. A conclusão inevitável é que o que até aqui se chamou de arte já não o é.
Mas, assim como no Renascimento, surgiu uma nova linguagem artística que mudou a história da arte. Assim, não custa nada imaginar que, em função das novas tecnologias, uma nova arte esteja para nascer.
NOTA DA EDIÇÃO
Ferreira Gullar, morto aos 86, de pneumonia, no domingo (5), ditou esta última coluna para a neta Celeste na cama do hospital.
Com pouco fôlego, teve de fazer pausas para descansar. "Quando eu perguntei se preferia terminar outro dia, ele disse que não, porque não sabia o que poderia acontecer", afirmou Celeste.
"Ele me falou uma vez: 'Eu adivinho as coisas'. Acredito que sim. Então ficamos aguardando essa nova arte que nascerá da tecnologia. Qual será?"
O quadro trágico da educação - EDITORIAL ESTADÃO
ESTADÃO - 11/12
Brasil não consegue formar capital humano para passar a níveis mais sofisticados de produção
A educação brasileira voltou a sair-se mal no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês), um levantamento que vem sendo promovido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desde 2000, com o objetivo de medir e comparar o quanto e como os países participantes prepararam seus jovens para ingressar no mercado do trabalho e ter uma vida adulta produtiva. Na prova que foi aplicada em 70 países, no ano passado, o País ficou na 63.ª posição em ciências, na 59.ª colocação em leitura e no 66.º lugar em matemática. Na prova de 2012, havia ficado na 55.ª posição em ciências, em 55.ª em leitura e em 58.ª em matemática.
Realizada a cada três anos, a prova apresenta um perfil básico de conhecimentos e habilidades e oferece indicadores de monitoramento dos sistemas de ensino ao longo dos anos. Em cada edição, o Pisa enfatiza uma das três disciplinas. Em 2015, o foco foi em ciências. No Brasil, a prova é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e foi aplicada a 33 mil alunos, na faixa etária de 15 anos, matriculados no final do ensino fundamental e início do ensino médio.
Nas três disciplinas avaliadas, o país cujos estudantes tiveram o melhor desempenho foi Cingapura. Nas colocações seguintes, destacaram-se os estudantes do Japão, Hong Kong, Taipé chinesa, Finlândia, Canadá e Estônia. Esses estudantes conseguiram ir além das informações apreendidas em sala de aula, usando o conhecimento com criatividade para lidar com problemas cotidianos. O nível considerado básico pela OCDE é o relativo à “aprendizagem e participação na vida social, econômica e cívica das sociedades modernas num mundo globalizado”.
A maioria dos estudantes brasileiros ficou abaixo desse nível nas três disciplinas. Os resultados da prova mostraram que eles têm dificuldades de interpretar, compreender e analisar o que leem. Em matemática, disciplina em que o Brasil teve a pontuação mais baixa nas últimas cinco edições do Pisa, eles não sabem solucionar problemas com um mínimo de complexidade. E, em ciências, carecem de informações mínimas que lhes permitam resolver as questões mais simples do dia a dia. Ou seja, não sabem explicar fenômenos cientificamente nem planejar e avaliar experiências científicas. Na prática isso revela que, por causa da má qualidade do ensino fundamental e médio brasileiro, as novas gerações não estão aprendendo conhecimentos fundamentais para que possam exercer sua cidadania e realizar seus projetos de vida e o Brasil não está conseguindo formar o capital humano de que precisa para passar a níveis mais sofisticados de produção.
O que vem levando os países asiáticos a liderar o ranking das últimas edições do Pisa é a consistência de suas políticas educacionais. As prioridades são definidas sem enviesamentos ideológicos, as metas são definidas com base em critérios técnicos e não políticos, o desempenho docente e discente é cobrado, os melhores professores são indicados para as salas de aula mais desafiadoras e os diretores mais competentes são enviados para as escolas mais problemáticas. É o oposto do que tem acontecido no Brasil, onde a política educacional dos 13 anos e meio de lulopetismo adotou prioridades equivocadas conjugadas com modismos pedagógicos, interesses eleiçoeiros e concessões corporativas a sindicatos de professores e entidades estudantis, o que travou a modernização do nosso sistema de ensino.
O resultado inexorável é que, enquanto os estudantes asiáticos se destacam nos rankings comparativos e as economias da região aumentam sua capacidade de inovação tecnológica, disputando com os Estados Unidos e a Alemanha a liderança mundial no campo científico, os estudantes brasileiros são estimulados a ocupar escolas e a brincar de democracia direta, agitando bandeiras tão vistosas quanto inconsequentes. Os números da edição de 2015 do Pisa mostram o preço dessa irresponsabilidade.
Brasil não consegue formar capital humano para passar a níveis mais sofisticados de produção
A educação brasileira voltou a sair-se mal no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, em inglês), um levantamento que vem sendo promovido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) desde 2000, com o objetivo de medir e comparar o quanto e como os países participantes prepararam seus jovens para ingressar no mercado do trabalho e ter uma vida adulta produtiva. Na prova que foi aplicada em 70 países, no ano passado, o País ficou na 63.ª posição em ciências, na 59.ª colocação em leitura e no 66.º lugar em matemática. Na prova de 2012, havia ficado na 55.ª posição em ciências, em 55.ª em leitura e em 58.ª em matemática.
Realizada a cada três anos, a prova apresenta um perfil básico de conhecimentos e habilidades e oferece indicadores de monitoramento dos sistemas de ensino ao longo dos anos. Em cada edição, o Pisa enfatiza uma das três disciplinas. Em 2015, o foco foi em ciências. No Brasil, a prova é de responsabilidade do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e foi aplicada a 33 mil alunos, na faixa etária de 15 anos, matriculados no final do ensino fundamental e início do ensino médio.
Nas três disciplinas avaliadas, o país cujos estudantes tiveram o melhor desempenho foi Cingapura. Nas colocações seguintes, destacaram-se os estudantes do Japão, Hong Kong, Taipé chinesa, Finlândia, Canadá e Estônia. Esses estudantes conseguiram ir além das informações apreendidas em sala de aula, usando o conhecimento com criatividade para lidar com problemas cotidianos. O nível considerado básico pela OCDE é o relativo à “aprendizagem e participação na vida social, econômica e cívica das sociedades modernas num mundo globalizado”.
A maioria dos estudantes brasileiros ficou abaixo desse nível nas três disciplinas. Os resultados da prova mostraram que eles têm dificuldades de interpretar, compreender e analisar o que leem. Em matemática, disciplina em que o Brasil teve a pontuação mais baixa nas últimas cinco edições do Pisa, eles não sabem solucionar problemas com um mínimo de complexidade. E, em ciências, carecem de informações mínimas que lhes permitam resolver as questões mais simples do dia a dia. Ou seja, não sabem explicar fenômenos cientificamente nem planejar e avaliar experiências científicas. Na prática isso revela que, por causa da má qualidade do ensino fundamental e médio brasileiro, as novas gerações não estão aprendendo conhecimentos fundamentais para que possam exercer sua cidadania e realizar seus projetos de vida e o Brasil não está conseguindo formar o capital humano de que precisa para passar a níveis mais sofisticados de produção.
O que vem levando os países asiáticos a liderar o ranking das últimas edições do Pisa é a consistência de suas políticas educacionais. As prioridades são definidas sem enviesamentos ideológicos, as metas são definidas com base em critérios técnicos e não políticos, o desempenho docente e discente é cobrado, os melhores professores são indicados para as salas de aula mais desafiadoras e os diretores mais competentes são enviados para as escolas mais problemáticas. É o oposto do que tem acontecido no Brasil, onde a política educacional dos 13 anos e meio de lulopetismo adotou prioridades equivocadas conjugadas com modismos pedagógicos, interesses eleiçoeiros e concessões corporativas a sindicatos de professores e entidades estudantis, o que travou a modernização do nosso sistema de ensino.
O resultado inexorável é que, enquanto os estudantes asiáticos se destacam nos rankings comparativos e as economias da região aumentam sua capacidade de inovação tecnológica, disputando com os Estados Unidos e a Alemanha a liderança mundial no campo científico, os estudantes brasileiros são estimulados a ocupar escolas e a brincar de democracia direta, agitando bandeiras tão vistosas quanto inconsequentes. Os números da edição de 2015 do Pisa mostram o preço dessa irresponsabilidade.
O Impa oferece uma aula de má aritmética - ELIO GASPARI
FOLHA DE SP - 11/12
Diante dos resultados desastrosos da educação brasileira, o ministro Mendonça Filho reconheceu que se vive uma "tragédia" e ensinou: "Não basta só investir mais, tem que investir com qualidade". Até aí tudo bem, mas seria o caso de ele estudar um caso em que, tendo investido em qualidade, o governo desmontou um sucesso. (Em tempo: não foi o governo dele, mas o da doutora Dilma.)
Em 2015 o país soube da emocionante história das trigêmeas Fábia, Fabiele e Fabíola Loterio, de 15 anos, que viviam em Santa Leopoldina, município de 12 mil habitantes da zona rural do Espírito Santo. Morando numa casa sem internet, inscreveram-se na Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas e duas empataram no primeiro lugar entre os concorrentes capixabas, levando medalhas de ouro. A terceira ficou em segundo com a prata.
A garotada da cidade fez um pedágio e arrecadou dinheiro para custear a viagem das três ao Rio, onde receberiam suas medalhas no Teatro Municipal. Foi a primeira vez que entraram num avião.
A cereja desse bolo era o acesso de todos os medalhistas ao Programa de Iniciação Científica. Dez vezes por ano elas iam a Vitória, onde durante um dia assistiam a aulas dadas por professores da Federal do Espírito Santo.
Havia um detalhe meio girafa nessa iniciativa. Ela nascera de uma ideia da Sociedade Brasileira de Matemática, mas tanto a Olimpíada como o PIC foram anexados ao Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, um dos centros de excelência da academia brasileira. O que uma coisa tinha a ver com a outra nunca se soube. Em 2016, o orçamento da Olimpíada (R$ 53 milhões) ultrapassou de muito o do Impa (R$ 36,5 milhões). O rabo ficou maior que o cachorro.
Num passe de mágica, os educatecas sumiram com a alma do PIC, substituindo-o por um programa de incentivo a professores. Pode ser a melhor ideia do mundo, mas não tem nada a ver com o objetivo inicial do PIC. Uma das explicações diz que o programa era caro (R$ 12 milhões), e a ida dos medalhistas às universidades foi substituída por aulas em escolas locais. Além disso, criou-se um sistema de ensino a distância. Esse PIC 2.0 custa R$ 9 milhões.
Neste ano as trigêmeas de Santa Leopoldina, hoje matriculadas num instituto federal, não tiveram aulas presenciais e o gatilho da internet não ficou à altura do programa anterior. Mesmo assim, na Olimpíada deste ano Fabiele ganhou mais um ouro, Fabíola teve prata e Fábia, bronze.
Sem o PIC, a Olimpíada de Matemática é apenas um evento, tão ao gosto da marquetagem.
Toda essa história chega a um grande final quando a coordenação do programa informa que no ano que vem, com a verba de R$ 9 milhões, o PIC 1.0 será restabelecido (sem o custeio do transporte, típica malvadeza de burocrata), convivendo com o 2.0.
Daqui a alguns meses o Instituto de Matemática informará como R$ 12 milhões caberão em R$ 9 milhões. Caso único em que o todo será menor que a soma das partes.
PISCOU
Durante a crise dos mísseis russos colocados em Cuba, o mundo esteve com um pé na Terceira Guerra Mundial, e quando Moscou deu meia-volta diante do bloqueio naval imposto pelo presidente John Kennedy, o secretário de Estado Dean Rusk disse:
–Eles piscaram.
Por seis votos a três, o Supremo piscou.
DE PIRRO@EDU
Senador Renan.
Sou o rei Pirro e ganhei uma grande batalha contra os romanos em 279 a.C. Depois, ferrei-me.
Sua vitória deu-me inveja. Fiquei a pensar no que o Supremo Tribunal Federal fará com o senhor quando chegar a hora do julgamento de seus processos.
Seu amigo solidário,
Pirro, rei de Épiro e da Macedônia.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e mora ao lado da Borracharia São Jorge, de seu amigo Geraldão.
Ele acha que Geraldão vai em cana se passar um dia inteiro recusando-se a assinar uma documento trazido por um oficial de Justiça.
BODE
O piso de 65 anos como idade mínima para a aposentadoria das mulheres, equiparando-as aos homens, é um bode. Está lá para sair da sala.
Quando o ministro Henrique Meirelles afirmou que "nada é inegociável" no projeto, não quis dizer que tudo é negociável, mas a idade das mulheres foi posta lá para ser cavalheirescamente retirada.
REGISTRO
O presidente Michel Temer não militou na articulação da anistia do caixa dois.
Discutia a possibilidade de vetá-la, caso chegasse à sua mesa.
EUA X CHINA
Donald Trump ainda não tomou posse e já deu duas encrencadas com a China. Pelo andar da carruagem, as relações entre os dois países vão azedar.
Fora da Ásia, milhões de pessoas que seguem o caso do Brexit não sabem coisas simples sobre a China. Exemplo: a cidade de Guangzhou é aquela que os livros de História chamavam de Cantão. Os antecessores do presidente francês François Hollande foram Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac. E os antecessores de Xi Jinping? (Hu Jintao e Jiang Zemin.)
A China é a segunda maior economia do mundo e o maior parceiro comercial do Brasil. Por parecer impenetrável, olha-se para ela como se fosse a Lua. A encrenca de Trump veio para ficar, por isso vale uma sugestão. É o livro "Sobre a China" do ex-secretário de Estado Henry Kissinger, articulador da reaproximação de Washington com Pequim.
Sua primeira parte, sobre a maneira de pensar dos chineses, é chata. A segunda, sobre suas negociações com o Império do Meio, é uma aula. No epílogo, publicado em 2012, ele cautelosamente sugere que a China e os Estados Unidos estavam construindo uma rivalidade semelhante à que separou a Inglaterra da Alemanha na primeira década do século passado. (Em 1914 começou a Primeira Guerra Mundial.) Kissinger não faz previsões catastrofistas, apenas aponta fatos, com notável grau de erudição.
VERDE BANGU
Um gaiato acredita que vai ganhar algum dinheiro vendendo camisetas verdes na orla do Rio durante o verão.
Será o Vert Bangu.
O marechal Floriano e o doutor Renan
Muita gente não gosta de Floriano Peixoto, o "Marechal de Ferro". Em 1892 um senador-almirante e políticos sediciosos desafiaram-no. Ele avisara: "Vão discutindo, que eu vou mandando prender". Encheu a cadeia, e o advogado Rui Barbosa bateu às portas do Supremo Tribunal Federal para soltá-los. Floriano avisou: "Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão".
Patrioticamente, como diria Renan Calheiros, o Supremo negou o habeas corpus por dez votos a um.
Renan, como Floriano, é alagoano e prevaleceu sem comandar um único soldado fardado.
Diante dos resultados desastrosos da educação brasileira, o ministro Mendonça Filho reconheceu que se vive uma "tragédia" e ensinou: "Não basta só investir mais, tem que investir com qualidade". Até aí tudo bem, mas seria o caso de ele estudar um caso em que, tendo investido em qualidade, o governo desmontou um sucesso. (Em tempo: não foi o governo dele, mas o da doutora Dilma.)
Em 2015 o país soube da emocionante história das trigêmeas Fábia, Fabiele e Fabíola Loterio, de 15 anos, que viviam em Santa Leopoldina, município de 12 mil habitantes da zona rural do Espírito Santo. Morando numa casa sem internet, inscreveram-se na Olimpíada de Matemática das Escolas Públicas e duas empataram no primeiro lugar entre os concorrentes capixabas, levando medalhas de ouro. A terceira ficou em segundo com a prata.
A garotada da cidade fez um pedágio e arrecadou dinheiro para custear a viagem das três ao Rio, onde receberiam suas medalhas no Teatro Municipal. Foi a primeira vez que entraram num avião.
A cereja desse bolo era o acesso de todos os medalhistas ao Programa de Iniciação Científica. Dez vezes por ano elas iam a Vitória, onde durante um dia assistiam a aulas dadas por professores da Federal do Espírito Santo.
Havia um detalhe meio girafa nessa iniciativa. Ela nascera de uma ideia da Sociedade Brasileira de Matemática, mas tanto a Olimpíada como o PIC foram anexados ao Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, um dos centros de excelência da academia brasileira. O que uma coisa tinha a ver com a outra nunca se soube. Em 2016, o orçamento da Olimpíada (R$ 53 milhões) ultrapassou de muito o do Impa (R$ 36,5 milhões). O rabo ficou maior que o cachorro.
Num passe de mágica, os educatecas sumiram com a alma do PIC, substituindo-o por um programa de incentivo a professores. Pode ser a melhor ideia do mundo, mas não tem nada a ver com o objetivo inicial do PIC. Uma das explicações diz que o programa era caro (R$ 12 milhões), e a ida dos medalhistas às universidades foi substituída por aulas em escolas locais. Além disso, criou-se um sistema de ensino a distância. Esse PIC 2.0 custa R$ 9 milhões.
Neste ano as trigêmeas de Santa Leopoldina, hoje matriculadas num instituto federal, não tiveram aulas presenciais e o gatilho da internet não ficou à altura do programa anterior. Mesmo assim, na Olimpíada deste ano Fabiele ganhou mais um ouro, Fabíola teve prata e Fábia, bronze.
Sem o PIC, a Olimpíada de Matemática é apenas um evento, tão ao gosto da marquetagem.
Toda essa história chega a um grande final quando a coordenação do programa informa que no ano que vem, com a verba de R$ 9 milhões, o PIC 1.0 será restabelecido (sem o custeio do transporte, típica malvadeza de burocrata), convivendo com o 2.0.
Daqui a alguns meses o Instituto de Matemática informará como R$ 12 milhões caberão em R$ 9 milhões. Caso único em que o todo será menor que a soma das partes.
PISCOU
Durante a crise dos mísseis russos colocados em Cuba, o mundo esteve com um pé na Terceira Guerra Mundial, e quando Moscou deu meia-volta diante do bloqueio naval imposto pelo presidente John Kennedy, o secretário de Estado Dean Rusk disse:
–Eles piscaram.
Por seis votos a três, o Supremo piscou.
DE PIRRO@EDU
Senador Renan.
Sou o rei Pirro e ganhei uma grande batalha contra os romanos em 279 a.C. Depois, ferrei-me.
Sua vitória deu-me inveja. Fiquei a pensar no que o Supremo Tribunal Federal fará com o senhor quando chegar a hora do julgamento de seus processos.
Seu amigo solidário,
Pirro, rei de Épiro e da Macedônia.
EREMILDO, O IDIOTA
Eremildo é um idiota e mora ao lado da Borracharia São Jorge, de seu amigo Geraldão.
Ele acha que Geraldão vai em cana se passar um dia inteiro recusando-se a assinar uma documento trazido por um oficial de Justiça.
BODE
O piso de 65 anos como idade mínima para a aposentadoria das mulheres, equiparando-as aos homens, é um bode. Está lá para sair da sala.
Quando o ministro Henrique Meirelles afirmou que "nada é inegociável" no projeto, não quis dizer que tudo é negociável, mas a idade das mulheres foi posta lá para ser cavalheirescamente retirada.
REGISTRO
O presidente Michel Temer não militou na articulação da anistia do caixa dois.
Discutia a possibilidade de vetá-la, caso chegasse à sua mesa.
EUA X CHINA
Donald Trump ainda não tomou posse e já deu duas encrencadas com a China. Pelo andar da carruagem, as relações entre os dois países vão azedar.
Fora da Ásia, milhões de pessoas que seguem o caso do Brexit não sabem coisas simples sobre a China. Exemplo: a cidade de Guangzhou é aquela que os livros de História chamavam de Cantão. Os antecessores do presidente francês François Hollande foram Nicolas Sarkozy e Jacques Chirac. E os antecessores de Xi Jinping? (Hu Jintao e Jiang Zemin.)
A China é a segunda maior economia do mundo e o maior parceiro comercial do Brasil. Por parecer impenetrável, olha-se para ela como se fosse a Lua. A encrenca de Trump veio para ficar, por isso vale uma sugestão. É o livro "Sobre a China" do ex-secretário de Estado Henry Kissinger, articulador da reaproximação de Washington com Pequim.
Sua primeira parte, sobre a maneira de pensar dos chineses, é chata. A segunda, sobre suas negociações com o Império do Meio, é uma aula. No epílogo, publicado em 2012, ele cautelosamente sugere que a China e os Estados Unidos estavam construindo uma rivalidade semelhante à que separou a Inglaterra da Alemanha na primeira década do século passado. (Em 1914 começou a Primeira Guerra Mundial.) Kissinger não faz previsões catastrofistas, apenas aponta fatos, com notável grau de erudição.
VERDE BANGU
Um gaiato acredita que vai ganhar algum dinheiro vendendo camisetas verdes na orla do Rio durante o verão.
Será o Vert Bangu.
O marechal Floriano e o doutor Renan
Muita gente não gosta de Floriano Peixoto, o "Marechal de Ferro". Em 1892 um senador-almirante e políticos sediciosos desafiaram-no. Ele avisara: "Vão discutindo, que eu vou mandando prender". Encheu a cadeia, e o advogado Rui Barbosa bateu às portas do Supremo Tribunal Federal para soltá-los. Floriano avisou: "Se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, eu não sei quem amanhã lhes dará o habeas corpus de que, por sua vez, necessitarão".
Patrioticamente, como diria Renan Calheiros, o Supremo negou o habeas corpus por dez votos a um.
Renan, como Floriano, é alagoano e prevaleceu sem comandar um único soldado fardado.
Mundo paralelo ilegal - MERVAL PEREIRA
O Globo - 11/12
É impressionante tomar conhecimento das negociações por baixo dos panos entre parlamentares os mais diversos, dos vários partidos, e diretores da empreiteira Odebrecht, uma empresa que se organizou na clandestinidade para tratar de maneira profissional as demandas dos políticos, que por sua vez organizaram suas carreiras com base no financiamento ilegal de campanhas eleitorais, muitos sabendo que na maior parte tratava-se pura e simplesmente de propina.
Criaram um mundo paralelo ilegal que todos compartilhavam, uma dark web política, que em vez de vender drogas e armas vendia prestígio e corrupção.
As duas corporações, empreiteiras e políticos, desmontaram ao longo dos anos o sentido de seus papéis sociais para transformarem-se em braços de uma mesma estrutura corrompida, que baseava no toma-lá-dá-cá a razão de existir, sem que tivessem a menor importância os partidos que representavam, os programas que apoiavam, as obras que idealizavam ou construíam.
Obras inúteis como refinarias em locais inapropriados eram apenas pretextos para drenar dinheiro do contribuinte para bolsos próprios ou, na menos ruim das hipóteses, campanhas eleitorais que prolongariam o círculo vicioso.
No primeiro relato vazado de um dos 77 delatores da Odebrecht, está lá uma verdade crua: interessava à empreiteira o prosseguimento da carreira deste ou daquele parlamentar, independente do partido a que pertencessem, pois eram colaboradores fiéis que a qualquer momento poderiam ajudar a empreiteira a conseguir obras.
O relato da argumentação de Geddel Vieira Lima, vendendo-se como um importante ativo da empreiteira que não era recompensado como deveria, é tragicômico. Os apelidos muitas vezes demonstravam o desprezo dos corruptores pelos corrompidos: Paes Landim (Decrépito), Lídice da Mata (Feia), Jutahy Magalhães (Moleza), Francisco Dornelles (Velhinho), Eduardo Paes (Nervosinho).
Outros, apenas identificavam os participantes da lista de propinas ou caixa 2, que acabaram integrando uma miscelânea de políticos que estão todos no mesmo saco, moral homogênea que forjou uma classe política desmoralizada pelos fatos que comprovam os relatos.
As CPIs que não davam em nada, assim terminavam não por incompetência de seus membros, mas por competência excessiva em criar dificuldades para vender facilidades. Receber dinheiro por fora virou uma norma na carreira política, e os que ficaram de fora das delações premiadas são verdadeiros heróis por permanecerem na política, resistirem às tentações e ainda competir em desigualdade de condições com os que faziam campanhas eleitorais turbinadas por dinheiro sem controle, quando não oriundo de propinas.
Todo dinheiro proveniente de caixa 2 das empresas, que entrava por isso mesmo no caixa 2 dos candidatos, é dinheiro ilegal, que não foi declarado, e por isso precisa ser gasto clandestinamente. Muita gente acha que não é crime penal, apenas eleitoral. Mas muitos aguardam que seja aprovado o projeto de medidas contra a corrupção que criminaliza o caixa 2, dando margem a um argumento jurídico nos tribunais de que não era crime anteriormente.
O primeiro relato dos abusos com o dinheiro público da maior das empreiteiras transforma em realidade uma antiga piada sobre corrupção, que mostra um político prosperando economicamente à custa de obras que nunca foram realizadas. A piada dá contornos de verdade ao conselho do economista Mario Henrique Simonsen, que aconselhava pagar a comissão ao político e não fazer a obra, que sairia muito mais barato.
Sabemos agora que, no Brasil, as obras são feitas, às vezes necessárias, outras desnecessárias, mas rentáveis, outras ainda em locais inadequados. Mas todas têm seu sobrepreço a pagar. O presidente Michel Temer não pode ser processado por fatos acontecidos anteriormente ao seu mandato, mas os R$ 10 milhões que é acusado de ter recebido para a campanha presidencial de 2014 podem pesar na balança do Tribunal Superior Eleitoral.
Caso fique comprovada a doação ilegal, não será mais possível separar suas contas das da ex-presidente Dilma.
É impressionante tomar conhecimento das negociações por baixo dos panos entre parlamentares os mais diversos, dos vários partidos, e diretores da empreiteira Odebrecht, uma empresa que se organizou na clandestinidade para tratar de maneira profissional as demandas dos políticos, que por sua vez organizaram suas carreiras com base no financiamento ilegal de campanhas eleitorais, muitos sabendo que na maior parte tratava-se pura e simplesmente de propina.
Criaram um mundo paralelo ilegal que todos compartilhavam, uma dark web política, que em vez de vender drogas e armas vendia prestígio e corrupção.
As duas corporações, empreiteiras e políticos, desmontaram ao longo dos anos o sentido de seus papéis sociais para transformarem-se em braços de uma mesma estrutura corrompida, que baseava no toma-lá-dá-cá a razão de existir, sem que tivessem a menor importância os partidos que representavam, os programas que apoiavam, as obras que idealizavam ou construíam.
Obras inúteis como refinarias em locais inapropriados eram apenas pretextos para drenar dinheiro do contribuinte para bolsos próprios ou, na menos ruim das hipóteses, campanhas eleitorais que prolongariam o círculo vicioso.
No primeiro relato vazado de um dos 77 delatores da Odebrecht, está lá uma verdade crua: interessava à empreiteira o prosseguimento da carreira deste ou daquele parlamentar, independente do partido a que pertencessem, pois eram colaboradores fiéis que a qualquer momento poderiam ajudar a empreiteira a conseguir obras.
O relato da argumentação de Geddel Vieira Lima, vendendo-se como um importante ativo da empreiteira que não era recompensado como deveria, é tragicômico. Os apelidos muitas vezes demonstravam o desprezo dos corruptores pelos corrompidos: Paes Landim (Decrépito), Lídice da Mata (Feia), Jutahy Magalhães (Moleza), Francisco Dornelles (Velhinho), Eduardo Paes (Nervosinho).
Outros, apenas identificavam os participantes da lista de propinas ou caixa 2, que acabaram integrando uma miscelânea de políticos que estão todos no mesmo saco, moral homogênea que forjou uma classe política desmoralizada pelos fatos que comprovam os relatos.
As CPIs que não davam em nada, assim terminavam não por incompetência de seus membros, mas por competência excessiva em criar dificuldades para vender facilidades. Receber dinheiro por fora virou uma norma na carreira política, e os que ficaram de fora das delações premiadas são verdadeiros heróis por permanecerem na política, resistirem às tentações e ainda competir em desigualdade de condições com os que faziam campanhas eleitorais turbinadas por dinheiro sem controle, quando não oriundo de propinas.
Todo dinheiro proveniente de caixa 2 das empresas, que entrava por isso mesmo no caixa 2 dos candidatos, é dinheiro ilegal, que não foi declarado, e por isso precisa ser gasto clandestinamente. Muita gente acha que não é crime penal, apenas eleitoral. Mas muitos aguardam que seja aprovado o projeto de medidas contra a corrupção que criminaliza o caixa 2, dando margem a um argumento jurídico nos tribunais de que não era crime anteriormente.
O primeiro relato dos abusos com o dinheiro público da maior das empreiteiras transforma em realidade uma antiga piada sobre corrupção, que mostra um político prosperando economicamente à custa de obras que nunca foram realizadas. A piada dá contornos de verdade ao conselho do economista Mario Henrique Simonsen, que aconselhava pagar a comissão ao político e não fazer a obra, que sairia muito mais barato.
Sabemos agora que, no Brasil, as obras são feitas, às vezes necessárias, outras desnecessárias, mas rentáveis, outras ainda em locais inadequados. Mas todas têm seu sobrepreço a pagar. O presidente Michel Temer não pode ser processado por fatos acontecidos anteriormente ao seu mandato, mas os R$ 10 milhões que é acusado de ter recebido para a campanha presidencial de 2014 podem pesar na balança do Tribunal Superior Eleitoral.
Caso fique comprovada a doação ilegal, não será mais possível separar suas contas das da ex-presidente Dilma.
Alvoroço – mundo e Brasil - PEDRO MALAN
ESTADÃO - 11/12
Aumento dos graus de incerteza na política, na economia e na interação de ambas é assustador
“Não existe nada estável no mundo: o alvoroço é a nossa única música”, escreveu o poeta John Keats a seu irmão, em 1818. A frase faz sentido, a julgar pela experiência dos últimos 200 anos, e segue relevante, hoje, para o mundo e para o Brasil neste final do surpreendente ano de 2016. Afinal, não é todo ano que temos a eleição de um Trump, um Brexit, nacional-populismos e tiranias em ascensão no mundo e, no Brasil, o fim do ciclo do “projeto” petista.
O alvoroço (uproar no original inglês) não é a nossa única música (existem as boas), mas os graus de incerteza na política, na economia e, particularmente, na interação de ambas – nos âmbitos nacional, regional e global – vêm aumentando de forma assustadora. E não foi algo que aconteceu de repente, não mais que de repente. Não se trata apenas de um fenômeno cíclico, passageiro. Não existe esse tal de “novo normal” à frente, que alguns procuram – em vão – identificar. André Lara Resende está correto ao insistir na observação de que tanto no Brasil como no mundo “nunca a conjuntura foi tão pouco conjuntural”.
Segue um breve comentário sobre o contexto global e sobre o Brasil de hoje e os desafios à frente, em particular para o crucial biênio 2017-2018, no qual definiremos boa parte da próxima década.
Sobre o mundo: o rearranjo de placas tectônicas no início dos anos 1990, após a queda do Muro de Berlin, a reunificação alemã, o colapso do império soviético, a emergência da China como potência econômica, a decisão europeia de lançar o euro e os déficits externos crescentes dos EUA, permitiu que o mundo experimentasse o que Rogoff chamou de o mais longo, o mais intenso e o mais amplamente disseminado ciclo de expressão da história moderna, que se estendeu do início dos anos 90 até a crise de 2008-2009. Segundo o FMI, cerca de 600 milhões de pessoas se integraram à economia global como trabalhadores e consumidores urbanos entre 1990 e 2007. Desde então o mundo experimentou tanto as consequências da crise quanto das necessárias respostas a ela.
Mas os eleitores, em particular na Europa, vinham expressando insatisfação com o que consideravam relativa perda de soberania nacional, há muito, tanto em plebiscitos como em eleições regulares. Na raiz do problema, indivíduos sentindo-se inseguros, ameaçados, prejudicados ou mesmo já vitimados pelos efeitos sobre empregos domésticos, derivados de importações de bens e serviços, de imigrações e, não menos importante, com os efeitos da rapidez avassaladora das mudanças tecnológicas e da globalização sobre a demanda por mão de obra.
A frase de Keats que abre este artigo é uma das epígrafes de um belíssimo livro de Thomas K. McCraw:O Profeta da Inovação – Joseph Schumpeter e a Destruição Criativa. A destruição criadora era, segundo Schumpeter, o “elemento essencial” do funcionamento do que chamava de “a máquina capitalista”. Imbatível na geração de renda e riqueza, mas, como os ventos e as águas, sujeita a inconstâncias, instabilidades e disrupções, o que pode gerar – e gera – mal-estar e descontentes.
Tão ou mais importante, a máquina capitalista, se imbatível na geração de renda e riqueza, não o é na distribuição da renda e da riqueza, o que levou à intervenção de governos no processo e às hoje chamadas economias sociais de mercado, das quais existem inúmeras variedades, com os mais distintos graus de eficácia na tentativa de preservar a inovação e limitar os experimentos que se podem mostrar, como bem o sabemos, verdadeiras “criações destrutivas”, de emprego, renda, riqueza, crescimento – e de solvência fiscal.
O Brasil, sempre sujeito aos ventos do mundo, encontra-se hoje, como raras vezes em nossa História, num desses angustiantes momentos – definidores de sua trajetória futura. É obvio que não há soluções simples. E as que parecem sê-lo estão erradas, na economia como na política. Não haverá uma grande batalha que tudo definirá. Não há uma panaceia nem haverá um dia D. Não há um(a) salvador(a) da pátria, como o Brasil, espero, terá aprendido.
Mas é imperativo procurar acelerar o processo de ampliação do espaço das convergências possíveis. Para tal é preciso um sério esforço por evitar que a polarização atual se agrave com a intolerância daqueles que consideram qualquer interlocutor potencial ou como um cúmplice de suas ilusões, ou como um inimigo a ser abatido.
Concluo com meu comentário sobre uma observação de Jared Diamond. “Mesmo quando uma sociedade foi capaz de antecipar, perceber e tentar resolver um problema, ela pode ainda fracassar em fazê-lo, por óbvias razões possíveis: o problema pode estar além das suas capacidades; a solução pode existir, mas ser proibitivamente custosa: os esforços podem ser do tipo muito pouco e muito tarde, e algumas soluções tentadas podem agravar o problema.”
É verdade, mas, a meu ver, por mais difíceis que sejam, os problemas do Brasil não estão além de nossas capacidades, as soluções podem ter custos, mas com definição de prioridades eles podem ser mitigados, e não tornados proibitivos pela procrastinação e pelo too little too late. E por último, algumas soluções tentadas podem agravar o problema, como também o sabemos, mas é sempre possível aprender com a experiência e não incorrer em velhos erros, como no nosso passado recente.
Vem daí a minha esperançosa confiança no futuro. Por que há hoje, talvez devida à crise, maior consciência da natureza dos desafios a enfrentar. Na macroeconomia, em especial na área fiscal (nos três níveis de governo), na promoção do investimento privado em infraestrutura, nos setores de óleo, gás e energia elétrica, na fundamental área de educação, na previdência, na saúde, na busca de igualdade de oportunidades – e perante a lei. Mas alvoroço, algazarra e algaravia continuarão conosco – e com o mundo – pelos próximos anos.
Feliz Natal!
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
Aumento dos graus de incerteza na política, na economia e na interação de ambas é assustador
“Não existe nada estável no mundo: o alvoroço é a nossa única música”, escreveu o poeta John Keats a seu irmão, em 1818. A frase faz sentido, a julgar pela experiência dos últimos 200 anos, e segue relevante, hoje, para o mundo e para o Brasil neste final do surpreendente ano de 2016. Afinal, não é todo ano que temos a eleição de um Trump, um Brexit, nacional-populismos e tiranias em ascensão no mundo e, no Brasil, o fim do ciclo do “projeto” petista.
O alvoroço (uproar no original inglês) não é a nossa única música (existem as boas), mas os graus de incerteza na política, na economia e, particularmente, na interação de ambas – nos âmbitos nacional, regional e global – vêm aumentando de forma assustadora. E não foi algo que aconteceu de repente, não mais que de repente. Não se trata apenas de um fenômeno cíclico, passageiro. Não existe esse tal de “novo normal” à frente, que alguns procuram – em vão – identificar. André Lara Resende está correto ao insistir na observação de que tanto no Brasil como no mundo “nunca a conjuntura foi tão pouco conjuntural”.
Segue um breve comentário sobre o contexto global e sobre o Brasil de hoje e os desafios à frente, em particular para o crucial biênio 2017-2018, no qual definiremos boa parte da próxima década.
Sobre o mundo: o rearranjo de placas tectônicas no início dos anos 1990, após a queda do Muro de Berlin, a reunificação alemã, o colapso do império soviético, a emergência da China como potência econômica, a decisão europeia de lançar o euro e os déficits externos crescentes dos EUA, permitiu que o mundo experimentasse o que Rogoff chamou de o mais longo, o mais intenso e o mais amplamente disseminado ciclo de expressão da história moderna, que se estendeu do início dos anos 90 até a crise de 2008-2009. Segundo o FMI, cerca de 600 milhões de pessoas se integraram à economia global como trabalhadores e consumidores urbanos entre 1990 e 2007. Desde então o mundo experimentou tanto as consequências da crise quanto das necessárias respostas a ela.
Mas os eleitores, em particular na Europa, vinham expressando insatisfação com o que consideravam relativa perda de soberania nacional, há muito, tanto em plebiscitos como em eleições regulares. Na raiz do problema, indivíduos sentindo-se inseguros, ameaçados, prejudicados ou mesmo já vitimados pelos efeitos sobre empregos domésticos, derivados de importações de bens e serviços, de imigrações e, não menos importante, com os efeitos da rapidez avassaladora das mudanças tecnológicas e da globalização sobre a demanda por mão de obra.
A frase de Keats que abre este artigo é uma das epígrafes de um belíssimo livro de Thomas K. McCraw:O Profeta da Inovação – Joseph Schumpeter e a Destruição Criativa. A destruição criadora era, segundo Schumpeter, o “elemento essencial” do funcionamento do que chamava de “a máquina capitalista”. Imbatível na geração de renda e riqueza, mas, como os ventos e as águas, sujeita a inconstâncias, instabilidades e disrupções, o que pode gerar – e gera – mal-estar e descontentes.
Tão ou mais importante, a máquina capitalista, se imbatível na geração de renda e riqueza, não o é na distribuição da renda e da riqueza, o que levou à intervenção de governos no processo e às hoje chamadas economias sociais de mercado, das quais existem inúmeras variedades, com os mais distintos graus de eficácia na tentativa de preservar a inovação e limitar os experimentos que se podem mostrar, como bem o sabemos, verdadeiras “criações destrutivas”, de emprego, renda, riqueza, crescimento – e de solvência fiscal.
O Brasil, sempre sujeito aos ventos do mundo, encontra-se hoje, como raras vezes em nossa História, num desses angustiantes momentos – definidores de sua trajetória futura. É obvio que não há soluções simples. E as que parecem sê-lo estão erradas, na economia como na política. Não haverá uma grande batalha que tudo definirá. Não há uma panaceia nem haverá um dia D. Não há um(a) salvador(a) da pátria, como o Brasil, espero, terá aprendido.
Mas é imperativo procurar acelerar o processo de ampliação do espaço das convergências possíveis. Para tal é preciso um sério esforço por evitar que a polarização atual se agrave com a intolerância daqueles que consideram qualquer interlocutor potencial ou como um cúmplice de suas ilusões, ou como um inimigo a ser abatido.
Concluo com meu comentário sobre uma observação de Jared Diamond. “Mesmo quando uma sociedade foi capaz de antecipar, perceber e tentar resolver um problema, ela pode ainda fracassar em fazê-lo, por óbvias razões possíveis: o problema pode estar além das suas capacidades; a solução pode existir, mas ser proibitivamente custosa: os esforços podem ser do tipo muito pouco e muito tarde, e algumas soluções tentadas podem agravar o problema.”
É verdade, mas, a meu ver, por mais difíceis que sejam, os problemas do Brasil não estão além de nossas capacidades, as soluções podem ter custos, mas com definição de prioridades eles podem ser mitigados, e não tornados proibitivos pela procrastinação e pelo too little too late. E por último, algumas soluções tentadas podem agravar o problema, como também o sabemos, mas é sempre possível aprender com a experiência e não incorrer em velhos erros, como no nosso passado recente.
Vem daí a minha esperançosa confiança no futuro. Por que há hoje, talvez devida à crise, maior consciência da natureza dos desafios a enfrentar. Na macroeconomia, em especial na área fiscal (nos três níveis de governo), na promoção do investimento privado em infraestrutura, nos setores de óleo, gás e energia elétrica, na fundamental área de educação, na previdência, na saúde, na busca de igualdade de oportunidades – e perante a lei. Mas alvoroço, algazarra e algaravia continuarão conosco – e com o mundo – pelos próximos anos.
Feliz Natal!
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC