FOLHA DE SP - 23/10
A Secretaria do Tesouro Nacional divulgou, nesta semana, um relatório que revela a gravidade da crise fiscal nos Estados.
As despesas com pessoal, ativos e inativos, correspondem a mais de 50% da receita corrente líquida em todos os Estados e chegam a 78% no caso de Minas Gerais.
A Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece que essas despesas não podem superar 60% da receita. Segundo o trabalho do Tesouro, porém, oito Estados estão acima do limite e a maioria está acima de 55%.
A crise fiscal não deve surpreender. Nos últimos anos, os gastos estaduais cresceram significativamente.
As despesas com pessoal, por exemplo, cresceram mais de 40% acima da inflação em dez Estados, entre 2009 e 2016. Esses aumentos foram em parte financiados com receitas temporárias, como royalties de petróleo e novos empréstimos concedidos com apoio do governo federal.
Os dados reportados pelo Tesouro divergem, em alguns casos significativamente, dos apresentados pelos Estados. A divergência decorre das metodologias adotadas.
Em muitos Estados, o cálculo das despesas com pessoal não inclui gastos com terceirizados, os auxílios pagos aos servidores (como para moradia), o deficit da Previdência e, em alguns casos, até mesmo o imposto de renda pago pelos servidores.
A criatividade na contabilidade não foi exclusiva do governo federal nos últimos anos e resultou na subestimação das despesas com pessoal, permitindo expandir o gasto sem, formalmente, descumprir o limite previsto pela LRF.
O Rio de Janeiro, por exemplo, reporta que os gastos com pessoal, em 2015, corresponderam a 41,77% da receita líquida. Segundo a metodologia do Tesouro, que inclui todas as despesas com pessoal, o percentual correto é 62,84%.
Alguns Estados mais pobres do que o Rio de Janeiro têm enfrentado o desafio fiscal, caso de Alagoas, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso, Paraná e Pernambuco.
Outros optaram pela contabilidade criativa e medidas oportunistas, como utilizar depósitos judiciais para financiar os seus gastos.
Espera-se do setor público a prestação transparente das suas contas, demonstrando a sustentabilidade das obrigações assumidas, como as despesas com pessoal e aposentados.
Os critérios adotados por diversos Estados, com o aval dos Tribunais de Contas, tornaram opacas as contas públicas, permitindo um forte aumento da despesa sem a contrapartida de receitas permanentes para financiá-las.
O resultado é uma crise que está apenas no começo e vai comprometer serviços públicos essenciais.
Para que mesmo servem os Tribunais de Contas estaduais?
ESTADÃO - 23/10
Orçamento e PEC 241 são a receita do bolo. Falta ver se o governo saberá cozinhar
Governar será o próximo desafio para o presidente Michel Temer e seus ministros, se o Congresso trabalhar direitinho, sem muitos truques, e aprovar para o próximo ano um Orçamento parecido com aquele proposto pelo Executivo, com despesa corrigida apenas pela inflação e déficit primário, isto é, sem juros, de até R$ 139 bilhões. A primeira condição para a mudança fiscal, a aprovação do limite para o aumento de gastos, vem sendo cumprida. A Proposta de Emenda Constitucional 241, a PEC do Teto, passou pela primeira votação na Câmara. A segunda deve ocorrer em poucos dias. Se der tudo certo, o assunto estará resolvido no Senado antes do fim do ano. É um cenário positivo, mas ainda é preciso algum otimismo para imaginar uma tramitação normal da proposta de lei orçamentária, sem mágicas e sem distorções. Será complicado, já se sabe, acomodar as despesas no limite previsto. Cortes serão necessários para compensar um espaço maior para saúde. O truque de aumentar a previsão de receita, usado habitualmente pelos parlamentares há muitos anos, está fora da pauta. Nem teria sentido, porque a restrição, agora, está no lado da despesa.
E se o governo gastar, neste fim de ano, mais que o previsto na última revisão das contas? Nesse caso, a base de cálculo será aumentada. A ideia já circulou no Parlamento. A receita de impostos e multas da repatriação de recursos – há quem fale em R$ 80 bilhões – poderia, quem sabe, permitir um dispêndio maior em novembro e dezembro. Se a correção for feita sobre essa base, a programação para 2017 poderá ser menos severa, com uma folga um pouco maior para emendas apresentadas por deputados e senadores. Mas o governo, segundo também se especula, poderá aproveitar aquele dinheiro extra para uma limpeza mais ampla de restos a pagar. É difícil imaginar uma escolha mais prudente que essa.
De toda forma, dois pontos parecem claros. Primeiro, a seriedade fiscal continua longe de ser uma obsessão dos políticos brasileiros, ou da maior parte deles. Segundo, usar qualquer despesa extra para ampliar a base de cálculo será uma irresponsabilidade, se essa despesa tiver sido coberta por uma receita excepcional. A mera consideração dessa hipótese, noticiada nos últimos dias, deveria bastar para mostrar a distância entre os velhos costumes, ainda muito vivos, e as propostas de maior responsabilidade na administração das finanças oficiais.
Se o Orçamento sair de acordo com o melhor figurino, os maiores problemas de 2017 ainda nem terão começado. Para manter no limite de R$ 139 bilhões o déficit primário do governo central, será preciso garantir a receita de R$ 1,41 trilhão, ou 20,66% do PIB projetado para o ano. Controlar as despesas será fundamental, é claro, mas a contenção será complicada. O resultado final dependerá provavelmente mais da arrecadação que do freio nos gastos.
Nada garante a receita projetada. O governo estima para o próximo ano um crescimento econômico de 1,60%, depois de uma contração de 3% em 2016. Os números são muito parecidos com aqueles coletados entre instituições financeiras e consultorias na pesquisa Focus, do Banco Central (BC). As medianas das projeções apontavam recuo de 3,19% neste ano e expansão de 1,30% no próximo. Bem menos otimistas, os técnicos do Fundo Monetário Internacional (FMI) calculam para 2017 um crescimento de 0,5%. Esse resultado, em todo caso, é melhor que a estimativa anterior, divulgada em julho, de expansão zero.
Mesmo um crescimento modesto, de apenas 1,60%, dependerá de um impulso inicial difícil de prever neste momento. Nos três meses terminados em agosto o Brasil abrigou 12 milhões de desempregados e, além disso, mais de 4 milhões de pessoas subocupadas, isto é, com trabalho considerado insuficiente. Qualquer melhora do consumo será quase certamente muito limitada, nos primeiros tempos. A exportação poderá dar alguma ajuda, mas com certeza limitada, porque a indústria continua com baixo poder de competição. O investimento industrial deverá continuar deprimido, porque o setor opera com um terço de capacidade ociosa.
O governo terá dois motivos muito fortes, nesse quadro, para negociar concessões na infraestrutura e na exploração de petróleo e gás. O primeiro, e mais óbvio, será o interesse em movimentar grandes investimentos em áreas de utilidade pública. Pelo tamanho, esses empreendimentos poderão criar empregos e movimentar negócios em vários setores – material de construção e máquinas, por exemplo. O segundo motivo será de ordem fiscal. A proposta de Orçamento inclui uma previsão de R$ 24 bilhões de receita proveniente dessas licitações.
Não se pode, é claro, descartar a hipótese de uma história diferente, com o estímulo inicial derivado em boa parte de uma inesperada reativação do consumo. Vários fatores poderão combinar-se, mas, a julgar pelos dados hoje disponíveis, o empurrão mais importante dependerá da atração de capitais para a infraestrutura. Para isso o governo terá de provar, na condução dessa política, um realismo e uma competência quase nunca exibidos pela administração anterior. Se essas qualidades serão mostradas de fato pelo presidente e por sua equipe ministerial só se saberá nos próximos meses.
Se o ajuste avançar e as pressões inflacionárias cederem de fato, o BC poderá continuar cortando os juros e criando condições de crédito mais favoráveis à retomada. Os bons efeitos serão passageiros, no entanto, assim como a confiança na autoridade monetária, se o afrouxamento da política depender do voluntarismo.
Mas o desafio de governar deverá ir muito além da gestão fiscal do próximo ano e da reativação inicial da economia. Será preciso muito empenho para racionalizar a gestão e torná-la eficiente. Os maiores obstáculos serão políticos.
FOLHA DE SP - 23/10
O Banco Central reduziu a taxa básica de juros, Selic, de 14,25% ao ano, nível que perdurava desde julho de 2015, para 14%. Redução mínima de 0,25 ponto percentual. A última vez que houve queda da taxa básica foi em outubro de 2012, há quatro anos.
Nesses quatro anos em que o BC foi obrigado a realizar esse longo ciclo de aumento de juro, a inflação média foi de 7,5% ao ano, três pontos percentuais acima da meta inflacionária.
De 2007 até 2014, a inflação acumulada de administrados foi de 30% aproximadamente, ante inflação de preços livres de mais de 60%. Houve forte controle dos preços da gasolina e de tarifas no período.
Ou seja, boa parcela da inflação que tivemos nos últimos dois anos foi devolução dos preços administrados que estiveram artificialmente contidos por causa de equívoco de política econômica.
É comum a heterodoxia criticar a política monetária de juros elevados, uma vez que em boa medida a inflação é de bens administrados: a recomposição das tarifas no ano passado produziu inflação de 18%, o que explica 4,5 pontos percentuais da inflação de 10,7% de 2015.
Evidentemente, os técnicos do BC não são tão limitados quanto sugerem os heterodoxos. Eles sabem que não se combate choque de oferta com elevação dos juros. Mas eles sabem que se combate com elevação dos juros os efeitos secundários do choque de oferta. O que é isso?
Suponha que haja recomposição das tarifas que eleve a inflação do ano em 4,5 pontos percentuais. Este aumento da carestia será repassado para os demais preços. Se não houver um combate duro e direto ao repasse, a inflação ganhará dinâmica própria, a inércia aumentará e a inflação se estabilizará em um novo patamar.
Ao longo do final dos anos 70 e da primeira metade dos anos 80, esse fenômeno ocorreu a cada desvalorização do câmbio: a inflação sempre se estabilizava, em seguida à desvalorização, em um patamar superior ao precedente.
É exatamente pela facilidade com que a inflação adquire inércia que não se pode brincar com o dragão. E é exatamente por esse motivo "que uma inflaçãozinha de 15% ao ano", como defendia uma ministra da Casa Civil da década passada, faz muito mal para a economia, para a sociedade e principalmente para os mais pobres.
Há sinais de que a inflação vem cedendo. No entanto, como apontou o comunicado do Banco Central, há sinais também de que a desinflação de serviços, que vinha bem até junho, arrefeceu no terceiro trimestre. Trimestre horroroso para a economia: a recuperação da atividade rateia e a desinflação de serviços arrefece.
Assim, frente a todos os riscos de surgir forte resistência dos serviços, penso que o Banco Central continuará com atitude mais cautelosa até o primeiro trimestre de 2017, quando teremos melhor noção da extensão do processo de desinflação dos serviços.
O passado recente nos ensinou mais uma vez que o experimento tentado a partir de meados de 2011, de baixar a taxa básica de juros na marra, sob a hipótese de que o juro elevado representa equilíbrio ruim e conspiração da Faria Lima com o Leblon, não se sustenta.
Os juros básicos de nossa economia são muito elevados porque nos últimos 20 anos a taxa de crescimento do gasto primário do setor público foi o dobro da taxa de crescimento do PIB real. Resultado da baixíssima capacidade de poupança pública, o que pressiona os recursos e, portanto, a inflação.
ESTADÃO - 23/10
Força demolidora de Cunha é uma suposição que contradiz o resultado da cassação
Eduardo Cunha não foi o primeiro nem será o último político de destaque a ser preso pela operação Lava Jato. Sequer pode ser apontado como aquele que maior poder e/ou volume de informações reuniu na República. As presenças de José Dirceu e Antônio Palocci em Curitiba - chefões da era em que o PT mandava (e principalmente desmandava) no País - dão por si tal testemunho.
Pode ser que ele venha a fazer uma delação devastadora que comprometa do baronato ao cardinalato da política? Pode ser que haja vida em Marte. No terreno das possibilidades criam-se, entre outras coisas, fantasmas. Tudo é possível embora nem tudo seja provável. Para dirimir quaisquer dúvidas, o melhor método é o exame das condições objetivas.
A principal delas esteve registrada no placar eletrônico da Câmara no dia 12 de setembro último, quando o então deputado afastado de suas funções legislativas pelo Supremo Tribunal Federal teve o mandato cassado por 450 votos a favor e 10 contra.
No início, quando o processo foi aberto no Conselho de Ética, a avaliação preponderante era a de que Eduardo Cunha sairia ileso. Segundo essa versão, teria poderes ilimitados para impedir o andamento dos trabalhos e um embornal de informações a respeito de seus pares tóxico o suficiente para garantir votos a favor da manutenção de seu mandato.
No campo da suposição, isso parecia fazer sentido. Mas a realidade tem componentes menos esquemáticos. No caso, a opinião pública, a revelação de novas e cada vez mais contundentes acusações, o comportamento excessivamente ousado de Cunha, a decisão do STF de afastá-lo do cargo, a impossibilidade de contar com ajuda do governo, o instinto de sobrevivência eleitoral dos deputados, uma série de fatores que desmontou a presunção inicial e produziu um resultado surpreendentemente desfavorável a ele.
A prisão menos de quarenta dias depois provocou alvoroço, não obstante fosse algo esperado, líquido e certo. Fez-se o silêncio em Brasília. Pudera, dizer o quê? Lamentar, comemorar? O governo e mundo político em geral não poderiam fazer uma coisa nem outra. Até o PT se manteve discreto, dada sua impossibilidade de falar de corda em casa de enforcado.
Enquanto na capital federal a palavra de ordem era não passar recibo, no restante do País estabeleceu-se a gritaria em torno dos presumidos efeitos de uma delação premiada. Por ora apenas um fantasma nessa ópera composta pela operação Lava Jato. Não que seja um equívoco supor que Cunha faça delação e provoque com ela uma devastação em massa. Mas é preciso medir e pesar as circunstâncias. E estas não lhe são necessariamente favoráveis.
Não é ele quem dita as regras muito menos o rumo dos acontecimentos como, de resto, já ficou demonstrado. A faca e o queijo estão nas mãos do Ministério Público e da Justiça. Ainda que o ex-deputado tenha disposição de delatar não significa que os procuradores se interessem pela contrapartida ou que as condições estabelecidas em lei para a obtenção de benefícios se apliquem a Eduardo Cunha.
A força tarefa da Lava Jato trabalha há mais de dois anos, período em que reuniu uma montanha de informações a respeito das quais seguramente o País ainda não sabe da missa a metade. De onde é possível que o ex-deputado não tenha dados que os investigadores considerem novos e/ou necessários ao esclarecimento dos fatos. Se não pôde controlar seu destino quando presidente da Câmara nem se utilizar do arsenal intimidador de maneira eficiente, não será preso que Eduardo Cunha terá êxito no manejo da figura de assombração.
Ademais, terá de ter muito cuidado com o que disser para não piorar sua já sofrível situação.
ESTADÃO - 23/10
Uma coisa é a Polícia Legislativa fazer varredura contra grampos ilegais de inimigos ou até de criminosos; outra, bem diferente, é agir para desarmar investigações legais em residências privadas
A ação da Polícia Federal contra a Polícia Legislativa não apenas evolui para um mal-estar entre Executivo e Legislativo como assume ares de literatura barata ou filme de espionagem bom de público e péssimo de crítica. Rocambolesca, a história tem o mérito de expor à opinião pública um aparato caro, inchado e pouco conhecido, mas deixa muitas dúvidas no ar. Num momento como este, dúvidas só aumentam a boataria e o nível de tensão.
A Polícia Federal não agiu no Senado por sua conta e risco, numa guerrinha de vaidades, mas sim por uma ordem judicial para apurar delações de “contraespionagem”. Quer dizer que a Polícia Federal espiona Suas Excelências e a Polícia Legislativa corre atrás para desarmar a espionagem? De filme policial, desanda para pastelão.
É fato que a PF, como parte da força-tarefa da Lava Jato, investiga políticos a torto e a direito, inclusive do Senado. É fato também que a Polícia Legislativa existe exatamente para proteger os parlamentares de invasões, ameaças, grampos e chantagens, inclusive com varredura de gabinetes e de apartamentos funcionais – ou seja, de propriedade do próprio Congresso.
Há uns 20 anos, o então senador José Roberto Arruda, depois governador cassado do DF, suspeitou que seu gabinete estava grampeado pelo adversário Luiz Estevão, que dispunha de uma tropa particular de policiais. O que Arruda fez? Pediu uma varredura à Polícia Legislativa. Afora o detalhe de que Arruda e Estêvão se merecem, como a história iria mostrar, ninguém questionou a ação da polícia interna. Logo, essa prática vem de longe.
O que o distinto público não sabia até a última sexta-feira era que a tal Polícia Legislativa é um poder dentro do poder, com quase 160 homens, equipamentos sofisticadíssimos, cursos até na Swat americana, direito a salários altos, viagens e diárias e uma desenvoltura surpreendente. Nem que seu diretor, Pedro Ricardo Araújo, manda e desmanda.
O que torna diferente a varredura no gabinete de Arruda e a realizada em casas de José Sarney e Edison Lobão Filho (PMDB), Fernando Collor (PTC) e Gleisi Hoffman (PT)? Resposta simples: três são investigados e o quarto, Lobão Filho, é filho e suplente (o que já é estranho) do ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão, alvo de quatro inquéritos no Supremo.
Uma coisa é a Polícia Legislativa fazer varredura contra grampos ilegais de inimigos ou até de criminosos. Outra, bem diferente, é agir para desarmar investigações legais em residências privadas até no Maranhão e no Paraná – em diligências, aliás, pagas com dinheiro público. É exatamente para separar o joio do trigo que a PF prendeu o diretor e três policiais legislativos.
Uma certeza a PF já tem: a Polícia Legislativa dispõe de dez “maletas” de alta sofisticação, suspeitas de serem capazes não só de detectar grampos, mas também de fazer grampos. Mas há dúvidas, por exemplo, quanto à versão de que o presidente Renan Calheiros afastou “Pedrão” da direção e o recolocou dias depois. Se verdadeira, por que Renan voltaria atrás? Qual o “poder de persuasão” de “Pedrão”? A Polícia Legislativa está a mando do Senado, ou o Senado está nas mãos dela?
Enquanto Renan cobrava “independência entre os Poderes”, o ministro Alexandre de Moraes e o diretor-geral da PF, Leandro Daiello, defendiam a legalidade da operação. De quebra, Moraes avaliou que os policiais legislativos “extrapolaram o que seria de sua competência”. A questão, porém, é saber se quem extrapolou competências foi a Polícia Legislativa, que fez varreduras a favor dos senadores, ou a PF, que prendeu policiais legislativos por contraespionagem. Se há alguma conclusão, é que essa história continua muito confusa e ainda vai longe.
FOLHA DE SP - 23/10
O que Luiz Inácio Lula da Silva e Donald Trump têm em comum? Além de serem ambos homens brancos, eles são autênticos representantes do que a imprensa já chama de era pós-verdade que não hesitam em colocar seus projetos pessoais acima das instituições.
Acossado pela Justiça e sem conseguir explicar seu relacionamento com empreiteiras, Lula elabora uma sofisticada narrativa, com toques de surrealismo, segundo a qual foi montado um enorme complô conservador para bani-lo da política e eliminar um projeto de governo popular.
O problema é que, para essa versão parar em pé, é preciso que Polícia Federal, Ministério Público e Justiça, além da imprensa, tenham se mancomunado com o intuito de persegui-lo, o que parece pouco plausível, em especial quando se considera que foram governantes do PT que indicaram os nomes que hoje compõem a cúpula dessas instituições.
Já Trump, com a campanha atravessando uma crise e em queda livre nas pesquisas, recusa-se a assegurar que aceitará o resultado do pleito de novembro, caso seja derrotado por Hillary Clinton. O que ele coloca em questão é a própria legitimidade do processo eleitoral dos EUA. Nem Al Gore, que perdeu a Casa Branca para George W. Bush na ultracontrovertida disputa de 2000, decidida por pouco mais de 500 votos na Flórida, se negou a reconhecer a derrota.
É verdade que nem Lula, nem Trump chegaram a dizer com todas as letras que se consideram acima das instituições, mas o simples fato de seus discursos apontarem nessa direção já preocupa. Nem a democracia, nem as instituições de Estado são perfeitas. Ao contrário, padecem de graves problemas. Mas não é absurdo afirmar que boa parte do que deu certo no Ocidente nos últimos dois séculos se deve ao fato de que aprendemos a respeitar processos institucionais, mesmo admitindo que possam conter erros. É essa virtude que a improvável dupla ameaça.
O Globo - 23/10
O episódio da prisão de membros da Polícia Legislativa do Senado acusados de estarem agindo para obstruir as investigações sobre senadores envolvidos na Lava-Jato é a explicitação de uma disputa entre o Ministério Público, a Polícia Federal e o Poder Legislativo, empenhado em aprovar uma legislação que limite as investigações.
Esses limites, segundo os parlamentares, são os da lei, que consideram estar sendo ultrapassada em muitos casos. Já o Ministério Público e o próprio juiz Sérgio Moro acham que os políticos querem colocar obstáculos ao combate à corrupção.
É provável que o presidente do Senado, Renan Calheiros, que responde a 9 processos no Supremo, a maioria ligada à Lava-Jato, faça reclamação ao STF pelo que teria sido invasão do Senado pela Polícia Federal.
A alegação oficial é que a ação da PF foi contra funcionários do Senado, que não têm foro privilegiado, e por isso ela tem validade apenas com a autorização de um juiz de primeira instância. Como, porém, diversos computadores e outros instrumentos eletrônicos foram apreendidos, é provável que informações sobre senadores venham a ser reveladas.
Nesse caso, a Polícia Federal pode alegar que é uma “prova achada”, isto é, que surgiu indiretamente de outra investigação, não devendo ser anulada, mas o Supremo certamente será chamado a decidir a disputa. Há rumores no Senado de que os integrantes da Polícia Legislativa faziam trabalhos paralelos que podiam incluir a vigilância de senadores por seus adversários políticos no próprio Senado.
Episódios recentes mostram como a disputa entre polícia do Senado e PF vem se agravando. Além do caso do apartamento da senadora Gleisi Hoffmann, que integrantes da Polícia Legislativa tentaram proteger impedindo a ação da PF, houve outro caso, mais grave.
Quando a Polícia Federal chegou à Casa da Dinda, onde reside o senador Fernando Collor, a Polícia Legislativa foi acionada e enviou para lá um batalhão de homens armados que tentaram impedir que computadores e outros documentos fossem retirados da residência, inclusive a frota de carros importados. Por pouco não houve confronto físico.
A ação da PF no Senado reforçou a iniciativa de aprovar lei contra o abuso de autoridade, que o MP considera um atentado à magistratura, comprometendo o combate à corrupção. O procurador Carlos Fernando dos Santos Lima disse ao “Estadão” que a lei sobre o abuso de autoridade representa um golpe contra a Lava-Jato: “A aprovação da lei de abuso de autoridade pode significar o fim da Lava-Jato; inclusive eu pessoalmente, se essa lei for aprovada, não vou continuar”.
Ele considera que o projeto pretende criar constrangimentos para quem investiga situações envolvendo pessoas poderosas, especialmente empresários e políticos. Com a aprovação da lei, Carlos Fernando diz que os investigadores serão ameaçados “por corruptos e bandidos em geral, porque vão estar expostos a todo tipo de retaliação”.
A atuação da Polícia Legislativa foi considerada a de uma “organização criminosa armada”, e os agentes presos estarão sujeitos às penas da lei 12.850, de 2 de agosto de 2013. As investigações indicam que ela atuava como uma “guarda pretoriana” ou, como registrei ontem na coluna, uma milícia a serviço da proteção dos senadores.
Por enquanto não há denúncia direta de que esse grupo obedecia a Renan, mas as investigações caminham nessa direção. Nesse caso, as malhas do § 2º do art. 2º da lei que trata da organização criminosa se abateriam sobre Renan, agravando ainda mais sua situação: “A pena é agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução”.
O artigo 2º, § 5º, esclarece: “Se houver indícios suficientes de que o funcionário público integra organização criminosa, poderá o juiz determinar seu afastamento cautelar do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à investigação ou instrução processual”.
“Indícios”, diz o texto legal, e não provas. “Investigação”, e não ação penal. Se a Procuradoria-Geral da República, em resposta a uma provável reclamação do Senado, encaminhar ao STF pedido de afastamento de Renan da presidência da Casa, a crise institucional ganhará proporções perigosas.
ESTADÃO - 23/10
O governo de Michel Temer tem-se mostrado disposto a desmontar o tratamento privilegiado que os governos petistas deram a alguns movimentos sociais. Foram anunciadas, por exemplo, mudanças no programa de reforma agrária. É preciso, porém, que tal esforço não se restrinja ao campo. Semelhante situação ocorre nas cidades, em especial com o programa Minha Casa, Minha Vida (MCMV) Entidades.
Entre as alterações prometidas pelo governo federal no programa de reforma agrária está a exclusão de intermediários no processo de seleção das famílias a serem beneficiadas pelo programa social. Mais do que simplesmente estabelecer um novo procedimento burocrático, a medida interrompe a prática, muito estendida nos governos petistas, de dar a alguns movimentos sociais o controle do acesso a políticas sociais e, assim, fortalecê-los.
Quase todas essas organizações têm claro viés político-ideológico, o que, além de pôr em dúvida seu caráter social, as desqualifica para o trabalho de seleção de possíveis beneficiários da reforma agrária. Em muitos casos, para usufruir do benefício público, a família interessada precisava, por exemplo, associar-se ao MST.
A atuação dos movimentos sociais no programa de reforma agrária também serviu de instrumento para repassar verbas públicas a essas organizações. Ou seja, era um sistema que desrespeita princípios da administração pública definidos na Constituição, ao utilizar um programa social para conferir privilégios a grupos amigos do lulopetismo.
Distorção semelhante ocorre nas políticas habitacionais. E de forma ainda mais institucionalizada, já que, em 2009, o governo Lula criou a modalidade Entidades dentro do MCMV, com o objetivo de “tornar a moradia acessível às famílias organizadas por meio de cooperativas habitacionais, associações e demais entidades privadas sem fins lucrativos”.
Da mesma forma como anunciou que irá fazer com a reforma agrária, é preciso que o atual governo desmonte o sistema de custeio e fortalecimento de movimentos sociais por meio das políticas de habitação. Num Estado Democrático de Direito, não cabem privilégios a determinados grupos. Não cabe, portanto, um programa com o feitio do MCMV Entidades.
Deve-se reconhecer que o novo governo já tomou algumas medidas de contenção de danos na área habitacional. Por exemplo, em junho passado, o Ministério das Cidades publicou a Portaria 258, dando à Caixa Econômica Federal a incumbência de selecionar e contratar as propostas de financiamento feitas por associações e movimentos para a construção de conjuntos habitacionais. Com isso, tem-se maior garantia de que os projetos serão selecionados com base em critérios técnicos, e não político-ideológicos. Segundo o ministro das Cidades, Bruno Araújo, “mudamos a portaria para democratizar o atendimento, para que não ficasse restrito a entidades ligadas a A ou a B”.
Além de representar uma apropriação das políticas sociais por alguns grupos e movimentos – o que por si só já aconselharia o fechamento do programa –, o MCMV Entidades é altamente ineficiente.
Na primeira fase, de 2009 a 2011, o programa habitacional na modalidade Entidades entregou menos da metade das casas contratadas. De acordo com o Ministério das Cidades, foram contratadas 8.024 casas em todo o País, mas somente 3.454 unidades (43%) foram entregues. No período, o governo transferiu R$ 76,8 milhões às entidades e movimentos sociais para a construção das moradias populares.
Na segunda fase do programa, o porcentual de entrega foi ainda menor. As entidades e movimentos sociais entregaram apenas 8,9% das moradias. Foram contratadas 45.858 moradias, mas apenas 4.094 unidades foram entregues. No período, o governo federal desembolsou R$ 1,083 bilhão para as entidades.
Tanto pela ineficiência, como pelo tratamento privilegiado que comporta, o MCMV Entidades não merece sobrevida.
O GLOBO - 23/10
Grupos organizados que vivem do dinheiro público rejeitam qualquer sistema de avaliação da qualidade das despesas e se opõem a que governos revejam prioridades
Seja ou não a medida econômica mais importante desde a instituição do Plano Real, em 1994, a PEC 241, proposta de emenda à Constituição que estabelece um teto ao crescimento dos gastos públicos, ao menos deflagou debates e atraiu um certo tipo de crítica de grupos organizados que ajudam a entender como o Orçamento tem sido manipulado por pressões de corporações. É uma PEC também pedagógica.
Grupos sindicalizados ou não, com representantes no Congresso, atuam para retalhar o Orçamento, sempre em nome da grande massa da população, dos mais pobres. Uma deslavada balela. Trabalham para interesses próprios — servidores públicos em geral, em especial funcionários da Justiça, do MP, da Saúde, policiais, militares e assim por diante.
Foi preciso que o Estado quebrasse virtualmente — o crescimento da dívida em relação ao PIB aponta na direção da insolvência — para a tomada de uma decisão forte: aprovada a PEC, os gastos primários do governo central (exceto juros) aumentarão até o limite da inflação do ano anterior. Simples, mas eficaz — se acompanhado de medidas subsequentes, como a reforma da Previdência — para estancar um processo suicida pelo qual as despesas aumentam mais que o PIB, mais que a própria arrecadação e acima da inflação.
Frear esta corrida rumo ao precipício interessa à sociedade, mas contraria grupos que se beneficiaram dessa anarquia fiscal. Daí a grita . A PEC não é da “morte”, porque não congela quaisquer gastos, apenas não os deixa subir, no seu total, mais que a inflação — o que vinha acontecendo anos a fio, até chegar-se a esta crise histórica, com 12 milhões de desempregados. Por enquanto.
Saúde e Educação, setores vitais, dependentes de forma direta do Estado, não sofrerão corte de recursos. Suas verbas passarão, apenas, a crescer ao ritmo da inflação. Na Educação, os estados e municípios são as maiores fontes de recursos, ficando com o governo federal apenas 23% da despesa total. E, na Saúde, a PEC aumenta os gastos, em vez de cortá-los: ficou acertado que, este ano, a União destinará 13,2% da receita corrente líquida ao setor e, em 2017, 15%, índice que seria atingido apenas em 2020. E a partir do ano que vem, começarão as correções anuais pela inflação.
Há uma mistura de ignorância e má-fé nas denúncias de que o teto de gastos inviabilizará políticas sociais. É o contrário, porque, como explicou o secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, Mansueto Almeida, em artigo no “Valor Econômico”, o ajuste fiscal evitará o baixo crescimento e a inflação crescente, estes, sim, fatores de desestabilização do financiamento dos gastos na Saúde, Educação, no Bolsa Família, e de tudo o mais. A criação do teto dos gastos — corrigido pela inflação, insista-se — não significa que certas despesas não possam ter crescimento real, acima da inflação. Basta compensar com reduções em outros gastos. A regra força os políticos a fazer escolhas, pois são eles que aprovam o Orçamento. Como em qualquer país maduro, e onde as despesas são avaliadas depois de feitas, para futuras correções.
Mas isso não interessa às corporações. Avaliar gastos e depois definir novas prioridades vai contra a atuação corporativista de segmentos da burocracia pública, que anos a fio pressionaram para ter salários e benefícios cada vez mais elevados.
Agora, o estouro das finanças estaduais mostra que será impossível ajustá-las se aposentadorias pagas a juízes, promotores, policiais, por exemplo, também não forem incluídas em reformas já em andamento no plano federal. A PEC do teto tem desvendado este jogo de corporações na defesa de privilégios, disfarçadas de representantes do povo. Longe disso, falam em nome de castas e de estamentos que operam nas sombras como efetivos donos do Estado. A PEC projeta luz sobre eles.
FOLHA DE SP - 23/10
A recuperação do crescimento econômico perdido desde 2014 depende muito de um plano de aumento de investimentos incentivados pelo setor público.
A aceleração das obras em infraestrutura, porém, não poderá contar com recursos do governo federal. Na melhor das hipóteses, o montante reservado para investimento será igual ao deste ano.
É necessário, pois, apressar o programa de concessões de obras de infraestrutura e de privatizações em geral. Dado o cronograma de leilões, apenas com muito otimismo algumas das obras em aeroportos, rodovias e ferrovias começarão antes do final de 2017 -e mesmo esse calendário corre risco.
Não é tarefa fácil reavivar a confiança de investidores, reorganizar a regulação e encontrar fontes de financiamento, grande obstáculo para o momento. Tudo é terra arrasada depois da administração de Dilma Rousseff (PT).
O problema é que não há alternativa a dedicar-se de modo emergencial; são raros os meios de recolocar a economia em movimento.
Primeira tarefa, o governo de Michel Temer (PMDB) tem de resolver logo o problema das concessões que fracassaram por falta de crédito ou por envolvimento de atores centrais em escândalos.
Segundo, é preciso criar forças-tarefas a fim de acelerar a elaboração de projetos e editais, além de uma espécie de comitê de crise para repensar o financiamento, com envolvimento do BNDES.
Terceiro, é preciso estipular um prazo de solução dos nós regulatórios que impedem investimentos em, por exemplo, telecomunicações e mineração, tarefa que depende também do Congresso.
Quarto, é preciso dar celeridade a leilões nas áreas de energia e petróleo, fracassados ou paralisados por anos de desgoverno.
O mesmo empenho que se viu no encaminhamento do problema macroeconômico central -o deficit- deveria ser observado nos ministérios e agências responsáveis pela infraestrutura.
Trata-se o assunto, porém, como se este fosse um país organizado, em crescimento estável. Falta competência técnica e sentido de urgência para lidar com a crise.
Do mesmo modo que o governo estabeleceu metas de elaboração de projetos de lei e de tramitação de projetos no Parlamento para o problema fiscal, é preciso estipular prazos para a aprovação de nova ou reformada regulação.
Verdade que leis importantes foram aprovadas nos últimos meses. Ocorre que o descalabro exige atitude mais enérgica, um plano em várias frentes para antecipar investimentos e indicar um horizonte de planejamento e oportunidades para as empresas.