O cidadão não percebe que quem está se aposentando sem ter contribuído o suficiente está comendo fatias do seu bolo
Falando sobre a reforma da Previdência que está sendo proposta, o ministro Geddel Vieira Lima referiu-se a “essa bagunça que herdamos do governo anterior”. Um tanto injusto. Essa bagunça que herdamos vem de muito mais longe, e é uma herança multiplicada pelos herdeiros, a cada novo momento.
Nem vale a pena perder tempo com sua origem nos velhos institutos de aposentadorias e pensões. Para ficarmos só nos antecedentes próximos, podemos nos fixar na porção “carta de Papai Noel” da Constituição de 1988 que, com a boa intenção de assegurar direitos a todos, criou benefícios custosos, esquecendo que tudo tem preço e não existe almoço grátis. E não disse de onde devia vir o dinheiro. Então, para garantir as aposentadorias de quem jamais contribuíra mas não deveria ser tratado como cidadão de segunda classe, os recursos acumulados por quem vinha contribuindo há anos precisaram ser divididos com os recém-chegados, num gesto generoso e solidário, mas obrigatório e pouco claro. Quem descontava de seu salário mensal não teve escolha e talvez nem tenha percebido de onde sairia a grana das novas e justas benesses.
Não foi só isso. Também faltou clareza quando os reajustes das aposentadorias passaram a ser indexados ao salário mínimo, enquanto o que já fora recolhido não rendia o equivalente. Mais uma vez não se explicou essa aritmética ao contribuinte, e o cidadão nem notou que a conta não fechava. Na hora de pagar, seu recolhimento crescia. Na hora de receber, em teoria tinha direito crescente. Mas o que estava guardado para um dia lhe pagar não crescia da mesma forma. Era preciso então recorrer ao fundo comum, englobando as contribuições alheias, daqueles que só receberiam depois. Ou seja: os que receberão no futuro têm cada vez menos dinheiro à disposição. Vai se tirar de onde?
Mas nem toda a bagunça que herdamos se explica apenas por novos direitos criados sem que se previsse de onde sairia o dinheiro devido.
Ninguém explicou também que o sistema é diferente da aposentadoria privada, em que o sujeito tem uma conta em seu nome num banco, deposita, tem rendimento todos os meses, e pode sempre saber quanto tem. É isso o que a maioria das pessoas acha que ocorre quando desconta para o INSS, e se assusta quando constata que é muito diferente: recolheu por muito tempo, mas não há fundos suficientes para cobrir o que imagina ter “poupado”. E o cidadão não percebe, por exemplo, que quem está se aposentando sem ter contribuído o suficiente está comendo fatias desse seu bolo.
No governo tucano, houve um começo de reforma. Entre outras coisas, a ideia era exigir idade mínima de 60 anos para o homem e 55 para a mulher requerer a aposentadoria pelo INSS. Criticando os casos precoces, na casa dos 40, Fernando Henrique declarou que propunha a reforma “para que aqueles que se locupletam da Previdência não se locupletem mais, não se aposentem com menos de 50 anos, não sejam vagabundos em um país de pobres e miseráveis”. Distorcido, virou “FHC chama aposentado de vagabundo”. Apanhou feito boi ladrão e até hoje é acusado pelo que nunca disse.
Mesmo assim, quando o projeto foi à votação no Congresso, o destaque da idade foi derrotado por um único voto. Com nome e sobrenome, dessas coisas que só acontecem no Brasil. Nelson Rodrigues talvez atribuísse ao Sobrenatural de Almeida. Na prática, o espírito da bagunça baixou no deputado Antonio Kandir, ex-ministro do Planejamento e favorável à reforma. No momento de votar, apertou a tecla errada e, em vez de dar um “sim”, se absteve. O suficiente para o destaque não passar, embora ele sempre garantisse que apertou a tecla certa e uma pane confundiu os votos.
Para conter os gastos do sistema e ganhar tempo, já que a matemática não perdoa, em 1999 instituiu-se o fator previdenciário, considerando idade do trabalhador, tempo de contribuição e expectativa de vida do segurado na data da aposentadoria conforme tabela do IBGE. Só que isso já não resolve mais e qualquer pessoa com um mínimo de sensatez sabe disso. Se não for feita a reforma da Previdência, o país quebra. Já devia ter sido feita há muito tempo. O exemplo da Grécia está aí, bem vivo diante de todos.
E nem esqueçamos fraude e áreas afins: aparelhamento e quadrilhas como vem revelando a operação Greenfield nos fundos de pensão. Ou desvio nos empréstimos consignados aos aposentados. Crimes praticados por quem finge defender “os velhinhos”.
Temos mesmo de dar um jeito na bagunça que herdamos. Só em parte, do governo anterior. Também a herdamos da incompetência numérica geral. E de oposições anteriores. E do Sobrenatural de Almeida, que em nossa história não se limitou a remover Tancredo Neves no dia da posse, após 21 anos de governo militar, e entregar a Presidência a quem meses antes era um prócer do partido que apoiava os generais.
A bagunça que herdamos vem de longe. Não é urgente ver quem legou. A questão toda é saber se queremos dar jeito nela ou, irresponsáveis, vamos continuar de olhos fechados para a matemática.
Ana Maria Machado é escritora
Falando sobre a reforma da Previdência que está sendo proposta, o ministro Geddel Vieira Lima referiu-se a “essa bagunça que herdamos do governo anterior”. Um tanto injusto. Essa bagunça que herdamos vem de muito mais longe, e é uma herança multiplicada pelos herdeiros, a cada novo momento.
Nem vale a pena perder tempo com sua origem nos velhos institutos de aposentadorias e pensões. Para ficarmos só nos antecedentes próximos, podemos nos fixar na porção “carta de Papai Noel” da Constituição de 1988 que, com a boa intenção de assegurar direitos a todos, criou benefícios custosos, esquecendo que tudo tem preço e não existe almoço grátis. E não disse de onde devia vir o dinheiro. Então, para garantir as aposentadorias de quem jamais contribuíra mas não deveria ser tratado como cidadão de segunda classe, os recursos acumulados por quem vinha contribuindo há anos precisaram ser divididos com os recém-chegados, num gesto generoso e solidário, mas obrigatório e pouco claro. Quem descontava de seu salário mensal não teve escolha e talvez nem tenha percebido de onde sairia a grana das novas e justas benesses.
Não foi só isso. Também faltou clareza quando os reajustes das aposentadorias passaram a ser indexados ao salário mínimo, enquanto o que já fora recolhido não rendia o equivalente. Mais uma vez não se explicou essa aritmética ao contribuinte, e o cidadão nem notou que a conta não fechava. Na hora de pagar, seu recolhimento crescia. Na hora de receber, em teoria tinha direito crescente. Mas o que estava guardado para um dia lhe pagar não crescia da mesma forma. Era preciso então recorrer ao fundo comum, englobando as contribuições alheias, daqueles que só receberiam depois. Ou seja: os que receberão no futuro têm cada vez menos dinheiro à disposição. Vai se tirar de onde?
Mas nem toda a bagunça que herdamos se explica apenas por novos direitos criados sem que se previsse de onde sairia o dinheiro devido.
Ninguém explicou também que o sistema é diferente da aposentadoria privada, em que o sujeito tem uma conta em seu nome num banco, deposita, tem rendimento todos os meses, e pode sempre saber quanto tem. É isso o que a maioria das pessoas acha que ocorre quando desconta para o INSS, e se assusta quando constata que é muito diferente: recolheu por muito tempo, mas não há fundos suficientes para cobrir o que imagina ter “poupado”. E o cidadão não percebe, por exemplo, que quem está se aposentando sem ter contribuído o suficiente está comendo fatias desse seu bolo.
No governo tucano, houve um começo de reforma. Entre outras coisas, a ideia era exigir idade mínima de 60 anos para o homem e 55 para a mulher requerer a aposentadoria pelo INSS. Criticando os casos precoces, na casa dos 40, Fernando Henrique declarou que propunha a reforma “para que aqueles que se locupletam da Previdência não se locupletem mais, não se aposentem com menos de 50 anos, não sejam vagabundos em um país de pobres e miseráveis”. Distorcido, virou “FHC chama aposentado de vagabundo”. Apanhou feito boi ladrão e até hoje é acusado pelo que nunca disse.
Mesmo assim, quando o projeto foi à votação no Congresso, o destaque da idade foi derrotado por um único voto. Com nome e sobrenome, dessas coisas que só acontecem no Brasil. Nelson Rodrigues talvez atribuísse ao Sobrenatural de Almeida. Na prática, o espírito da bagunça baixou no deputado Antonio Kandir, ex-ministro do Planejamento e favorável à reforma. No momento de votar, apertou a tecla errada e, em vez de dar um “sim”, se absteve. O suficiente para o destaque não passar, embora ele sempre garantisse que apertou a tecla certa e uma pane confundiu os votos.
Para conter os gastos do sistema e ganhar tempo, já que a matemática não perdoa, em 1999 instituiu-se o fator previdenciário, considerando idade do trabalhador, tempo de contribuição e expectativa de vida do segurado na data da aposentadoria conforme tabela do IBGE. Só que isso já não resolve mais e qualquer pessoa com um mínimo de sensatez sabe disso. Se não for feita a reforma da Previdência, o país quebra. Já devia ter sido feita há muito tempo. O exemplo da Grécia está aí, bem vivo diante de todos.
E nem esqueçamos fraude e áreas afins: aparelhamento e quadrilhas como vem revelando a operação Greenfield nos fundos de pensão. Ou desvio nos empréstimos consignados aos aposentados. Crimes praticados por quem finge defender “os velhinhos”.
Temos mesmo de dar um jeito na bagunça que herdamos. Só em parte, do governo anterior. Também a herdamos da incompetência numérica geral. E de oposições anteriores. E do Sobrenatural de Almeida, que em nossa história não se limitou a remover Tancredo Neves no dia da posse, após 21 anos de governo militar, e entregar a Presidência a quem meses antes era um prócer do partido que apoiava os generais.
A bagunça que herdamos vem de longe. Não é urgente ver quem legou. A questão toda é saber se queremos dar jeito nela ou, irresponsáveis, vamos continuar de olhos fechados para a matemática.
Ana Maria Machado é escritora