sexta-feira, setembro 09, 2016

Vitória e derrota - RUY CASTRO

FOLHA DE SP - 09/09

Um traço do caráter dos black blocs é a coragem. Ela se manifesta na valentia com que dão aquelas voadoras e se atiram contra as portas das lojas. E no destemor com que quebram vidraças indefesas, ateiam fogo em sacos de lixo que não reagem e vandalizam pontos de ônibus que se atrevem a estar no seu caminho. Sempre em grupo, destroem caixas automáticos, viram carros e assaltam estabelecimentos. Por fim, sacam os sprays e assinam a lambança, pichando paredes, fachadas e monumentos com suas palavras de ordem. Imagino o orgasmo coletivo que tudo isso lhes dá.

As camisetas, máscaras e os óculos com que se disfarçam fazem parte dessa coragem. Destinam-se a impedir que as mães deles os reconheçam pela televisão e lhes cortem a mesada. Ou que os vizinhos os identifiquem e não queiram mais papo com eles. O conteúdo de suas mochilas também obedece a um plano: paus, pedras, estilingues, bolas de gude, máscaras contra gases e, principalmente, celulares — para filmar a violência policial ou chamar os advogados que virão defendê-los em caso de detenção.

Detenção esta que é chamada de cerceamento da liberdade de expressão e, daí, revogada por juízes. O saldo de tal expressão é visível na manhã seguinte: cidades em ruínas, cidadãos consternados e uma sensação de impotência diante da boçalidade em nome da ideologia.

Enquanto isso, no Rio, 4.350 atletas de 176 países começaram nesta quinta (8) a disputa de 528 provas de 23 modalidades esportivas. A esses atletas faltam mãos, braços, pernas, a mobilidade ou a visão, mas sobra-lhes tudo mais. É a Paraolimpíada. Cada uma de suas provas será uma vitória, não do corpo, mas do espírito humano.

Em contrapartida, no pior dos pesadelos futuros, os black blocs podem até tomar o poder. Mas o ser humano terá irremediavelmente perdido.


Governar é agir e comunicar - MURILLO DE ARAGÃO

O BLOG DO NOBLAT - O GLOBO - 09/09

Como na velha piada, “se hay gobierno, soy contra”. A imprensa já está cumprindo o seu papel de pressionar o governo Temer. Nada de novo. Tem gente nas redações que acha que para a ex-presidente Dilma Rousseff caber no caixão do crime de responsabilidade foi preciso quebrar seu pescoço e serrar os pés! A solução do impeachment não foi a que gostariam.

Daí existir certa tendência de valorizar as manifestações contra o impeachment como se fossem uma expressão de cidadania. Como sempre, fato e factoide no cotidiano brasileiro brigam uma luta de gato e rato.

Existem, porém, outros aspectos que interferem no cenário inicial da administração Temer. Por exemplo, a comunicação do governo não é boa. Em pouco mais de cem dias, o presidente fez muita coisa. Só que não tem uma estratégia de comunicação à altura dos desafios postos.

Falta direção e estratégia para lidar com a narrativa da nova oposição. A favor do governo existe o fato de que trabalha com instrumentos que eram de Dilma. Mas isso terá que mudar em breve de forma dramática. Comunicar é tão importante quanto governar. O governo Temer terá que se dar conta disso.

Era natural que os incomodados, aqueles que perdem as posições, sinecuras e as mamatas, fossem para as ruas reclamar. Afinal, perderam verbas e empregos. Além de terem perdido a narrativa com o fracasso ético e fiscal do projeto do PT.

De forma mais do que óbvia, vão misturar interesses corporativos com resistência política. Será um jogo de paciência. Mas o governo deve reagir e mostrar por que reclamam. E aí voltamos à necessidade de se ter estratégia de comunicação.

Mesmo sem morrer de amores pelo novo governo, a imensa maioria da população quer que o Brasil vá para a frente. Assim, existe um crédito de confiança dado a Temer. Cabe ao governo responder com iniciativas objetivas que melhorem o ambiente econômico. Inclusive criando uma agenda que sature o cenário com notícias de um governo em ação. Enfim, governar é agir e comunicar.

Grandes empresas superendividadas – CLAUDIA SAFATLE

Valor Econômico - 09/09

Geração de caixa não dá para pagar as despesas financeiras



O processo de endividamento crescente a partir de 2010 levou um conjunto relevante de grandes empresas a uma situação dramática: a geração de caixa dessas companhias não está cobrindo sequer as despesas financeiras. Esse é o resultado de uma combinação perversa da recessão com a desvalorização da taxa de câmbio, juros elevados e queda das vendas.

A constatação é de um minucioso trabalho feito pelo Cemec (Centro de Estudos do Instituto Ibmec), cujo título - "Endividamento das Empresas Brasileiras: Metade das Empresas não Gera Caixa para Cobrir Despesas Financeiras em 2015/2016"- já mostra o retrato da situação.

O universo pesquisado envolve 605 empresas não financeiras, sendo 256 de capital aberto e 349 fechadas. A grande maioria teve receita operacional líquida superior a R$ 400 milhões em 2015. As empresas são responsáveis por uma dívida bruta de R$ 1,91 trilhão, ou seja, por 56,2% do total da dívida de todas as empresas não financeiras do país que, em 2015, era de R$ 3,4 trilhões. Do grupo analisado, R$ 1,44 trilhão corresponde a dívida das empresas abertas e R$ 470,00 bilhões das fechadas.

Os números mostram grande concentração do endividamento em um pequeno número de empresas da amostra: 77 companhias respondem por 80% da dívida bruta, tanto em crédito bancário, quanto em dívidas corporativas do mercado de capitais e externa.

Dos vários indicadores construídos no trabalho, o mais utilizado foi feito com base em dados de balanço e estabelece relação entre um indicador contábil de geração de caixa (dado pelo Ebtida) e as despesas financeiras, ambos apurados pelo critério de competência. A Petrobras, por seu tamanho e elevado nível de endividamento, foi isolada para não afetar a realidade das contas das demais companhias, explicou o economista Carlos Antônio Rocca, diretor do Cemec.

Em 2010, 22,6% das empresas avaliadas estavam com fluxo de caixa menor do que as despesas financeiras. Em 2015 esse número mais do que dobrou e praticamente metade (49%) das companhias da amostragem chegou a essa situação, sendo que no dado agregado, a geração de caixa era suficiente para cobrir apenas 58% dos gastos com o endividamento.

O fluxo de caixa das 605 empresas abertas e fechadas correspondia, em 2010, a 20% da receita operacional líquida e, em 2015, caiu para apenas 10%. Ao mesmo tempo, a dívida financeira que em 2010 era de 30% da receita operacional líquida, em 2015 subiu para 44%, abrindo uma "boca de jacaré".

Para as empresas de capital aberto, o quadro no primeiro semestre de 2016 piorou. A proporção de empresas em que a geração de caixa era insuficiente para pagar dívidas aumentou de 50,2% em 2015 para 54,9% nos doze meses encerrados em junho deste ano. Rocca acredita que, no caso das companhias fechadas, que não divulgam balanços trimestrais. As condições também não se reverteram.

A dívida das empresas em que a geração de caixa é inferior aos encargos financeiros representa 54,4% da dívida total da amostra. Nas companhias de capital aberto a porcentagem aumentou de 59,7% em 2015 para 67,7% nos doze meses encerrados em junho de 2016.

O cruzamento de dados dos balanços com informações do Banco Central revelam um acentuando aumento do volume de créditos renegociados por prazos mais longos e carência, na expectativa de que a economia se recupere.

Como salienta Rocca, não é possível vislumbrar a superação desses problemas sem a retomada do crescimento das vendas e redução da taxa de juros, com a consequente recuperação de margens de geração de caixa. Do lado da taxa de câmbio, houve um certo alívio com a cotação do dólar frente ao real que caiu de R$ 3,90 em 2015 para R$ 3,21 no fim do primeiro semestre de 2016.

Diante desses dados, uma coisa é certa: não virá desse universo de grandes empresas privadas o primeiro impulso para a tão necessária expansão dos investimentos. Ao contrário, com baixo retorno, elevado nível de endividamento e ampla capacidade ociosa, não se pode esperar nem novos investimentos nem geração de empregos por esse conjunto de companhias no curto prazo.

Ao contrário, o que fica evidente é a dependência, para a recuperação dessas empresas, do sucesso da política econômica, em particular da política fiscal, para que se crie um ambiente em que a taxa de juros possa cair e a retomada do crescimento econômico seja sustentável.

A situação coloca em realce, também, a extraordinária importância do programa de concessões de obras de infraestrutura, que o governo prepara para divulgar no próximo dia 13, para retirar a atividade econômica da anemia em que se encontra, abrindo um leque de possibilidades de novos investimentos na expansão da oferta.

O necessário pente-fino - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 09/09

Precisando urgentemente diminuir despesas, o governo de Michel Temer esperava economizar R$ 6 bilhões com a suspensão de benefícios previdenciários por incapacidade concedidos irregularmente. Um projeto-piloto realizado em Jundiaí revela, porém, que a estimativa talvez seja muito conservadora e haja a possibilidade de economizar muito mais. Os resultados da experiência no interior de São Paulo indicam uma alta frequência de irregularidades – bem maior que a inicialmente prevista – nos benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Dessa forma, confirma-se uma vez mais que o caminho do reequilíbrio das contas públicas passa também por uma maior eficiência administrativa.

Implementado na cidade de Jundiaí há cinco anos, o programa de revisão dos auxílios previdenciários por doença e invalidez resultou na suspensão de metade dos benefícios pagos. Trata-se de uma taxa bem maior do que previa o governo federal, cujos parâmetros de reversão eram de 20% dos auxílios-doença acima de dois anos e de 5% das aposentadorias por invalidez.

Agora, em setembro, se inicia a primeira fase do pente-fino em âmbito nacional e o governo já começou a convocar os segurados do INSS que deverão passar pela revisão dos benefícios. A primeira leva é de 534 mil pessoas que recebem o auxílio-doença, sendo 530 mil decorrentes de decisões judiciais. Depois, no segundo grupo, será convocado o 1,1 milhão de aposentados por invalidez com menos de 60 anos. A estimativa inicial era de que a economia com o primeiro público fosse de R$ 1,5 bilhão aos cofres públicos por ano, mas a experiência de Jundiaí mostrou que esse valor pode ser bem maior.

“É um efeito colateral muito positivo ter uma reversão de benefícios que vinham sendo pagos de maneira imprópria”, disse Leonardo Gadelha, presidente do INSS, ao Estado. O objetivo da revisão, segundo Gadelha, é dar segurança ao grande número de beneficiários que fazem jus ao auxílio previdenciário.

Longe de ser uma simples medida de corte de gastos, a revisão da concessão dos benefícios é um imperativo do bom uso dos recursos públicos, que deve se ater estritamente às condições previstas na legislação. Além de ser uma flagrante irregularidade, a concessão de benefício a quem não tem direito abre perigoso espaço para a discricionariedade. O abandono – ou, ao menos, o abandono parcial, como foi detectado em Jundiaí – dos critérios definidos em lei para a avaliação sobre a concessão dos benefícios previdenciários significa que outros critérios são usados na decisão sobre os auxílios por doença e invalidez. O afrouxamento das condições na hora de avaliar a concessão do benefício pode ter, por exemplo, uma perigosa finalidade eleitoral.

Como era previsível, a anunciada revisão de benefícios vem gerando críticas. Há quem sustente, por exemplo, que ela provocará uma multiplicação de processos judiciais questionando a suspensão dos auxílios. Obviamente, quem se sentir prejudicado pode recorrer da decisão, seja nas instâncias administrativas, seja na esfera judicial. O que não pode acontecer é que, temeroso com eventuais reações contrárias, o poder público se omita. É sua responsabilidade zelar pelo uso dos recursos públicos dentro da mais estrita observância da lei. Aqui, não cabe qualquer tipo de transigência.

É preocupante, sem dúvida, a descoberta feita em Jundiaí, de frequência tão alta de irregularidades em benefícios previdenciários, especialmente num país ainda em desenvolvimento, com baixa produtividade e grandes desafios sociais, que exigem uma ação estatal mais extensa. Basta pensar nos investimentos necessários em saúde e educação. A economia que agora se apregoa é, na verdade, dinheiro que nunca deveria ter sido gasto no pagamento de benefícios irregulares. De todo modo, deve-se reconhecer o aspecto positivo da ineficiência constatada em Jundiaí – há espaço para uma melhora fiscal imediata.

"É tudo ou nada" - FERNANDO DANTAS

ESTADÃO - 09/09

'Previdência será batalha de comunicação e não podemos ser mal-entendidos'



“Não tem essa coisa de ajuste moderado, é tudo ou nada”, diz Mansueto Almeida, secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda. O seu comentário se dirige àqueles que acham que medidas paliativas seriam suficientes para reordenar as contas públicas e tirar o Brasil de uma das maiores crises econômicas da sua história.

Segundo Mansueto, há um intenso e cotidiano trabalho da equipe econômica de Henrique Meirelles de justificar e explicar aos congressistas a necessidade imperiosa de que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do limite de gastos seja aprovada essencialmente como foi enviada pelo Executivo. Na equipe, a avaliação sobre a receptividade dos parlamentares à PEC é sobriamente otimista.

Na verdade, como explica o secretário, há uma divisão clara de tarefas e responsabilidades no governo. Os contatos entre os auxiliares de Meirelles e o Congresso são basicamente para esclarecimentos técnicos e de redação da PEC, resposta a dúvidas e para tomar conhecimento de eventuais sugestões dos parlamentares. Mas não há negociação, que está sob a responsabilidade da área política do governo. A área política, por sua vez, garante Mansueto, consultará a equipe econômica sobre qualquer mudança que o governo estiver disposto a aceitar no processo de negociação.

O passo seguinte, a reforma da Previdência, será mais difícil que o limite de gastos porque, na visão do secretário, é mais fácil vender a ideia do ajuste fiscal no atacado do que praticar os cortes necessários para implantá-lo. Mudar a Previdência, especialmente, esbarra na percepção de muitos brasileiros de que aposentadorias com menos de 60 anos ou com 25 a 30 anos de contribuição são características normais de sistemas previdenciários.

“Na Previdência, será uma batalha de comunicação, em que temos que tomar cuidado para não sermos mal-entendidos”, diz Mansueto. É importante, ele continua, explicar como o sistema de aposentadorias funciona em outros países e destacar o que é anômalo no Brasil, principalmente em relação à evolução da demografia. O governo planeja uma longa campanha de marketing, que se valerá de análises qualitativas de opinião pública e de mapeamento de percepções e críticas em redes sociais.

Concessões
. Mansueto observa ainda que, apesar da enorme ênfase no ajuste fiscal, há também em andamento toda uma agenda na área regulatória, de concessões e licitações e relativa a setores como energia e petróleo e gás. Tomou-se a decisão, por exemplo, de vender até o final do próximo ano seis distribuidoras de energia na região Norte que em conjunto tem patrimônio líquido negativo e cujas concessões irão vencendo.

Na legislação das agências reguladoras, estão tramitando mudanças para acelerar nomeações e evitar a falta de quórum, e eliminar a dependência orçamentária em relação aos ministérios setoriais. Nas licitações, algumas medidas são o aumento do prazo entre os editais e o leilão, cuja exiguidade favorece as empresas já atuantes no setor, e a consolidação do seguro garantia, para evitar prejuízos com atrasos e paralisações de obras.

Finalmente, na política comercial e industrial, Mansueto diz que a intenção na Fazenda é de reduzir a exigência de conteúdo nacional nos próximos leilões do pré-sal. Ele também chama a atenção para distorções atuais das medidas antidumping no Brasil, que na sua grande maioria beneficiam setores com monopólio, duopólio ou oligopólio e protegem produtos como alho, cadeados, ventiladores, lápis de madeira, imãs e garrafas térmicas.

O secretário também está tentando levantar todos os regimes especiais de tributação no Brasil, mas o número é tão grande que até agora não conseguiu. Mapear, diagnosticar e reformar o arcabouço tributário e regulatório e o ambiente de negócios no Brasil, para Mansueto, é um complemento fundamental ao ajuste fiscal.

O fundo do poço - MÍRIAM LEITÃO

O Globo - 09/09

O Brasil piorou onde não pode, de maneira alguma, piorar: na educação. Retrocedeu em matemática, não cumpriu a meta, não melhora há quatro anos. Os resultados divulgados ontem tiram todo o país da zona de conforto, se é que alguém estava confortável nesse tema. “No ensino médio, chegamos ao fundo do poço”, diz o educador Mozart Neves Ramos, do Instituto Ayrton Senna.

A recessão é grave, a crise fiscal é grave, o conflito político é grave. Nada é tão perigoso quanto o risco de continuar perdendo na educação e deixar escapar uma geração inteira. Mozart, que foi secretário de Educação de Pernambuco, um dos destaques positivos no ensino médio, dá números a essa tragédia:

— Por ano, 700 mil alunos abandonam o ensino médio. Como o custo por aluno é R$ 5,5 mil por ano, o Brasil está perdendo R$ 3,7 bilhões por ano, mas o pior é perder uma geração. Nosso bônus demográfico está acabando e se não educarmos esses jovens vamos perder a batalha. Espero que esses dados deem ao Brasil o senso de urgência.

O país tem exemplos de que as medidas certas têm resultados em pouco tempo. No Rio de Janeiro, o ex-secretário Wilson Risolia conseguiu em quatro anos levar o estado do 26º lugar para 4º no Ideb. Ontem, foi para o 5º lugar, mas a nota não melhorou, e o estado não atingiu a meta. O Rio tem que analisar o que andou perdendo depois do grande salto recente. Minas Gerais, que tem tido bom resultado, teve queda da nota. No Sudeste, os únicos a melhorar foram Espírito Santo e São Paulo:

— A notícia é muito ruim, três ciclos seguidos com resultados negativos. Quando os dados são abertos, há surpresas boas. Política consistente leva a avanços. Mas o que os números contam é que nos primeiros anos do fundamental o país tem tido bons resultados. O desempenho piora nos últimos anos do fundamental. No ensino médio, a situação fica terrível. É uma seleção adversa, os alunos vão se perdendo. À medida que crescem, o resultado cai — diz Wilson Risolia, hoje no Instituto Falconi.

Os casos de sucesso mostram que há um caminho se o país decidir replicar as experiências bem sucedidas. Pernambuco se saiu muito bem atingindo sua meta e ficando em primeiro lugar junto com São Paulo. E isso porque o estado tem feito investimento constante em educação, ampliando a instalação de escolas de regime integral.

— Em Pernambuco, em 2004, começamos a migrar para escola em tempo integral. Hoje elas são metade das escolas. Por 40% a mais de custo, se consegue um resultado extraordinário — diz Mozart.

Um consenso entre especialistas é que o Brasil precisa de mais do que apenas quatro horas em sala de aula. Como ainda tem que descontar tempo de atraso, recreio, esse horário escolar é insuficiente para as necessidades do tempo atual. O ponto que recebe críticas quase unânimes é a grade escolar do ensino médio com 13 disciplinas obrigatórias. Todo ensino é necessário, mas estamos recuando em português e matemática que são a base de todo o conhecimento. Portanto, essas têm que ser as prioridades.

— É fundamental passar para o horário integral e precisamos de uma grade mais concentrada em algumas disciplinas. Além disso, o ensino médio precisa ser interessante. Se a escola não fizer sentido para o aluno, ele sai — diz Wilson Risolia.

Há dados assustadores de retrocesso nos últimos anos. A matrícula está caindo em todos os níveis. Em alguns estados, aumentou o percentual de analfabetos. Piorou até um indicador que não é educacional, mas tem relação: a Pnad mostrou recentemente que em 2014 aumentou o trabalho infantil.

Os bons exemplos, mesmo localizados, mostram que é preciso encontrar o caminho e persistir nele. Há sempre um padrão nos estados que têm melhora: boa gestão, o foco em desempenho, educação como prioridade de governo. Em Pernambuco, o grande esforço foi feito no ensino médio. Ele é o primeiro no ensino médio, mas é o 19º na 5ª série. O Ceará vai muito bem e tem cidades que são referência, como Sobral, mas o desempenho cai no ensino médio. É preciso ter uma política para todos os níveis do ensino básico. Os dados do Ideb divulgados ontem, do ano de 2015, mostram que o Brasil é uma pátria que não está educando.

Fim da recessão sem fim - VINICIUS TORRES FREIRE

FOLHA DE SP - 09/09

Então é Natal. Antes de começar a primavera, a gente passa a ler que o fim da recessão está próximo. Pelo menos, que a economia volta a crescer neste trimestre final do ano.

Ainda que venha a ser verdade, tomara, nenhuma comissão econômica que se ocupe de declarar fins e começos de ruínas dirá que a recessão teria terminado neste último trimestre do ano.

Menos ainda os trabalhadores, pelos mesmos motivos.

O medo e o fato terrível de ficar sem trabalho ainda vão perdurar. O desemprego talvez pare de crescer em meados do ano que vem.

"No terceiro trimestre, ainda esperamos nova retração do PIB. Para o quarto trimestre, os indicadores antecedentes e fundamentos sugerem uma alta, marcando o fim da recessão", escreviam nesta quinta (8) economistas do Itaú, em relatório de revisão de estimativas.

Estimaram que o PIB encolha algo menos neste 2016 (3,2% em vez de 3,5%) e cresça mais em 2017 (2%, em vez de 1% da projeção anterior). A taxa de desemprego seria menor que em dezembro deste ano, embora ainda em horrendos 12,2% ao final de 2017 (está em 11,6%).

Os economistas dos dois maiores bancos privados do país, Bradesco e Itaú, faz tempo estão entre os mais otimistas da praça. O Bradesco prevê crescimento de 1,5% em 2017 e de 3% tanto em 2018 quanto em 2019. O Itaú prevê 4% em 2018 e 2019.

As favas, porém, terão de ser descontadas caso não se aprove o plano de contenção de gastos federais, bidu. Ou seja, pelo menos: 1) Despesas congeladas por quase uma década; 2) Mudanças na Previdência do setor privado: idade mínima de 65 anos e piso previdenciário desvinculado do salário mínimo.

O que será aprovado é mistério, ainda mais que o governo engorda seu pacote com uma "reforma trabalhista e sua coalizão desconversa: quer dar jeitinho. Além do mais, o programa econômico foi proposto sem plano de redistribuição de perdas.

Dilma Rousseff quebrou o governo federal também por subsidiar grandes empresas com capital barato e por baixar impostos. Cobrar menos impostos de empresas em tese é boa coisa. Melhor tributar renda e patrimônio, o que Dilma não fez. Fez dívida, enriquecendo os ricos.

Michel Temer chegou ao poder com o programa de não bulir nos impostos. A conta do ajuste econômico vai sendo paga na base de redução de salários reais, como de costume e em parte inevitável, mas sem contrapartidas. Ao contrário. Espera-se que o povo fique quieto.

Mudança nas leis do trabalho são muito necessárias. Quais, porém? A reforma pode ser um avanço ou mera rapina de trabalhadores sem poder de organização ou barganha individual. Politicamente, de resto, podem embolar o meio de campo, das "ruas" ao Congresso.

Parlamentares, a maioria de regiões mais pobres, tendem a ser muito sensíveis ao corte direto de benefícios de seus eleitorados: Previdência, assistência social, saúde. Querem, pois, emendar e diluir o "teto" de gastos federais. Mas podem deixar passar uma reforma trabalhista mal pensada ou até abutre. Ou trocar uma reforma pela outra.

O essencial, porém, para conter o desastre econômico é o pacote fiscal, de gastos. Disso dependem a sobrevivência dos brotos de otimismo, o corte de juro, a perspectiva de contenção do desemprego: o fim da recessão.


#ForaForo - NELSON MOTTA

O Globo - 09/09

Eles vão fazer o diabo para beneficiar quem cometeu crimes e se acha acima da lei... ou ao longo da lei



Não é preciso ser um jurista, ou sequer um advogado, bastam um pouco de informação e senso comum, porque o problema não é jurídico, mas administrativo, com efeitos nefastos na vida do país. A Suprema Corte americana julga cerca de cem processos por ano, é um tribunal constitucional, que cria jurisprudência interpretando a Constituição. O nosso Supremo Tribunal julga mais de 15 mil, qualquer ladrão de galinha vai acabar no Supremo, que também é o último refúgio dos que pagam a bons advogados para protelar ao infinito os recursos e comprar sua impunidade.

Ouvem-se ministros do Supremo reclamando de leis bizarras, dos políticos, do governo, dos chicaneiros, até de reajustes salariais, mas não se ouve ninguém propondo uma revisão constitucional da competência do STF, para que se usem os preciosos tempo e saber dos ministros para julgar o que é mesmo importante para o país, a democracia e a Constituição. Com a presidência da ministra Cármen Lúcia, há esperanças de que essas reformas sejam propostas e tirem o STF e o país do atraso institucional.

Com o apodrecimento do Congresso, que tem cerca de um terço dos parlamentares envolvidos, em diversos graus, nos mais variados processos, o Judiciário tomou decisões, certas ou erradas, mas indispensáveis, em momentos cruciais do país, e os políticos reclamaram da “judicialização da política”... O justo é que eles sejam julgados como qualquer cidadão. #BoraMoro!

Eles vão fazer o diabo para manter o foro privilegiado, ou que nome tenha, para beneficiar quem cometeu crimes e se acha acima da lei... ou ao longo da lei. E têm no Supremo superlotado um aliado na impunidade. Mas se o STF confirmar a prisão depois de condenação em segunda instância, como nos Estados Unidos e na Inglaterra, a história do país vai mudar.

Quem vai esperar que deputados e senadores, os maiores interessados, por puro espirito democrático, abram mão dos privilégios que eles mesmos votaram?

Mas o Judiciário e o Executivo podem obrigá-los a discutir o tema, com apoio maciço da opinião pública e de alguns parlamentares honestos e democráticos de todos os partidos. #ForaForo!

Tunga no bolso alheio - ELIANE CANTANHÊDE

ESTADÃO - 09/09

O Planalto torce, ou reza, para que a ministra Cármen Lúcia aproveite o seu discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal, segunda-feira, para dar alguma sinalização contrária ao aumento dos salários dela própria e de seus dez colegas na mais alta corte. Tida e havida como austera, poderia dizer, por exemplo, que não é hora de aumentar salários já altos, e pagos por toda a sociedade brasileira, enquanto 12 milhões de desempregados estão na rua da amargura.

E por que contar com Cármen Lúcia? Porque o Planalto acha que se esperar pelo atual presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, e pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, está perdido. Ou melhor, estamos perdidos todos os que sustentamos o setor público, porque o salário dos ministros da corte é o teto do funcionalismo e tem efeito cascata em todos os três poderes e em todos os Estados.

Aliás, outros aliados do Planalto na guerra contra essa nova farra salarial, além de Cármen Lúcia, são os governadores, que têm grande influência sobre suas bancadas e estão aflitos diante de uma pressão de mais R$ 4 milhões ao ano caso o aumento dos ministros do Supremo passe e arraste para cima os salários dos servidores estaduais.

Os Estados já estão na pindaíba, depois de anos de uma visão estatizante que inflou dramaticamente a folha de pagamentos. Hoje, Rio e Rio Grande do Sul, por exemplo, têm multidões de funcionários, mas não têm como pagá-los. E ainda convivem com categorias querendo mais. Lindo, não é? Alguns governadores lamentam: “Não governamos de fato, viramos gestores de folhas de pagamento”.

Bem, Cármen Lúcia e Renan se encontraram ontem, mas juram que ninguém falou e ninguém ouviu nada sobre salários. A ministra foi apenas convidar o senador para sua posse e acha que até lá, ou seja, nestes três dias, quem cuida disso é Lewandowski – que, dizem, anda doido para deixar esse presentão para todo o funcionalismo, à custa das contas públicas.

Quanto a Renan: ao reservar para o último ato do impeachment o fatiamento da Constituição para manter os direitos políticos de Dilma, ele mandou um recado para o PT e para o Planalto do correligionário Michel Temer: “Eu posso ser um aliado muito útil (como foi para o PT), ou posso fazer muito mal (como fez ao governo)”.

O novo “mal” que Renan poderia fazer, depois de viajar à China com Temer, seria permitir ou, pior, estimular o aumento do STF. E era exatamente o que ele parecia fazer ontem, dizendo que incluiria a urgência do projeto na pauta e, na sequência, poria em votação o próprio projeto. E ainda sugeria separar os subsídios dos ministros do STF das demais carreiras para diminuir o estrago. Só no fim do dia recuou e retirou o texto. Estaria ele se divertindo com coisa séria? A dívida da União é de R$ 4,3 trilhões, com desembolso de R$ 500 bilhões neste ano. É preciso cortar, não aumentar gastos.

“Fora Temer” 1. O Planalto comemorou a reunião de três horas entre cinco ministros e representantes do MST, na segunda-feira, e decidiu: o “Fora Temer” e o enfrentamento político ficam por conta dos partidos; o governo se concentra na pauta, quando pauta houver.

“Fora Temer” 2. Na versão palaciana, os protestos contra o presidente numa arquibancada do 7 de Setembro em Brasília partiram de 120 convidados da USP. O convite à universidade é tradicional, mas o governo mudou, esqueceu de atualizar a lista de convites e instalou o inimigo ao lado da tribuna de honra – onde estavam Temer e Marcela.

“Fora Cunha”. De um expoente governista, sobre as chances de Eduardo Cunha na segunda-feira: “Se tiver quórum, ninguém sai vivo daquele plenário”. Adeus, querido!

A reforma quase esquecida - HÉLIO SCHWARTSMAN

FOLHA DE SP - 09/09

Não há muita dúvida de que o Congresso deve dar prioridade à agenda econômica. É preciso centrar esforços na aprovação de projetos de lei que que favoreçam a retomada. Foi, afinal, o desastre econômico a causa última da queda de Dilma Rousseff, e uma eventual piora da situação pode custar a cadeira presidencial a quem quer que a ocupe. Tal constatação, porém, não isenta nossos solertes representantes de dedicar parte de suas atenções à reforma política.

O segundo ingrediente mais importante para o colapso do governo Dilma foi um sistema político —o chamado presidencialismo de coalizão— que, embora tenha conseguido nos trazer de 1988 para cá, não lida bem com situações de instabilidade. Os partidos —35 no total, dos quais 27 com representação na Câmara— são tantos e tão inconsistentes em termos de programa que as maiorias a sustentar o presidente tendem a ser sempre precárias e prontas a praticar vários tipos de chantagem.

Quando as coisas vão bem, isto é, quando a economia está crescendo, o presidente goza de popularidade e tem recursos para distribuir por sua base parlamentar, é relativamente fácil aprovar um projeto. Basta, porém, que esse cenário mais idílico se desfaça para que cada votação relevante para o Planalto se torne uma nova negociação, em que é preciso acertar não só o preço mas também as condições de entrega da mercadoria. É feio, mas é o jogo. Quem não sabe jogá-lo acaba levando a pior.

Não é realista imaginar que o Congresso, que fica de certa forma fortalecido com essa barafunda, vá promover uma reforma política dos sonhos na qual abra mão de poder. Melhor apostar em soluções gradualistas, que consigam, em médio prazo, reduzir o número de legendas com representação no Congresso. O fim das coligações partidárias em eleições proporcionais e a introdução de uma modesta cláusula de barreira seriam um bom começo.


Contagem regressiva - ROGÉRIO FURQUIM WERNECK

O Globo - 09/09


Logo após o impeachment, Temer já parecia propenso a ceder às pressões e deixar o anúncio da reforma para depois das eleições


Com o desfecho do impeachment, começa a se abrir ao governo Temer a janela de oportunidade com que contava para aprovar no Congresso medidas que tornem crível uma mudança paulatina do regime fiscal. Sem que tal mudança possa ser vislumbrada, não haverá como tirar a economia do atoleiro em que se encontra. Para que tenha sucesso nesse desafio, Temer não poderá alimentar ilusões sobre quão exíguo é o tempo com que efetivamente conta e quão graves serão as consequências se, aos poucos, ficar claro que ele não terá condições de aprovar as medidas que contempla.

É preciso ter em mente que a janela de oportunidade promete ser bem mais curta do que os 28 meses de mandato que o presidente ainda tem pela frente. Sem ir mais longe, basta perceber que, com a mobilização dos parlamentares com as eleições municipais, o Congresso entrou em “recesso branco”. E que a perspectiva de disputa em segundo turno em boa parte das maiores cidades do país sugere que tal mobilização pode se estender até o fim de outubro. Só então, estará de fato aberta a janela com que contará o Planalto para aprovar as medidas requeridas. Mas não por muito tempo. Serão 12 meses ou pouco mais.

Já em outubro de 2017 essa janela começará a se fechar. O encerramento do prazo legal de filiação partidária deflagrará o início da fragmentação da nova base aliada, com o reposicionamento das forças políticas que hoje a compõem, para a disputa das eleições de 2018. Poucos meses depois, com a plena mobilização do Congresso com a campanha eleitoral, a janela estará definitivamente fechada.

Por exíguo que seja o tempo com que de fato conta, o governo não parecia estar com muita pressa. Há algumas semanas havia anunciado que, em meados de setembro, divulgaria sua proposta de reforma previdenciária. Mas, há poucos dias, logo após o impeachment, Temer já parecia propenso a ceder às pressões de parte da base aliada e deixar o anúncio da reforma para depois das eleições municipais.

No início desta semana, contudo, o Planalto voltou atrás. E decidiu que, sim, a proposta de reforma previdenciária deverá ser anunciada até o fim de setembro. Convenceu-se de que, mesmo com o Congresso em “recesso branco”, é importante que o país conheça desde já o exato teor da proposta de reforma contemplada pelo governo. Tratando-se de matéria tão controvertida, é crucial que sua discussão na sociedade seja desencadeada tão logo quanto possível, para que a construção do apoio parlamentar possa se beneficiar desse debate prévio mais amplo.

A preocupação do Planalto terá de ser não só com o tempo exíguo de que dispõe. Mas também com o processo de desestabilização que terá de enfrentar, se não tiver condições de aprovar medidas concretas que permitam vislumbrar que o crescimento explosivo do endividamento público poderá ser sustado em prazo razoável.

Ainda como presidente interino, Michel Temer teve o bom senso de nomear uma equipe econômica de excelente nível, condizente com os enormes desafios que seu governo terá de enfrentar. Graças à nomeação dessa equipe e da mudança de discurso econômico que se seguiu, Temer ampliou em grande medida o prazo de carência inicial com que contava, conquistando precioso bônus de credibilidade, que lhe vem ajudando a manter sob relativo controle o processo de desestabilização que a gravidade da crise fiscal poderia deflagrar.

Será um grave erro, contudo, se Temer ficar tentado a acreditar que a simples excelência da equipe econômica será suficiente para manter esse processo de desestabilização ao largo. E que a equipe é o salvo-conduto que lhe basta para uma travessia segura até o fim do mandato.

O presidente precisa ter em mente que, finda sua interinidade, foi disparada uma contagem regressiva do prazo com que conta para que seu esforço de mudança de regime fiscal se traduza em resultados convincentes. E que a demora em apresentar tais resultados implicará inexorável aceleração dessa contagem regressiva. 
Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio

À moda Elio Gaspari, um e-mail do além: de Pasolini para Duvivier - REINALDO AZEVEDO

FOLHA DE SP - 09/09

O humorista Gregório Duvivier, o filósofo Vladimir Safatle e o baderneiro Guilherme Boulos são esquerdistas bastante desiguais na formação, mas idênticos no desassombro com que afrontam os fatos. Eles me contam da decrepitude do pensamento de esquerda. Até a desconstrução do que escrevem cheiraria a naftalina. Mas isso tem história.

Em junho de 1968, o cineasta e polemista italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) publicou um texto descendo o sarrafo nos estudantes que haviam entrado em confronto com a Polícia em Roma. Pasolini era um esquerdista, mas um homem de cultura, como era o direitista Raymond Aron, na França. Em muitos aspectos, a crítica que faziam àquele espírito era idêntica. Basicamente, repudiavam na revolta estudantil a ignorância, a arrogância, o niilismo agressivo e a ausência de economia política.

Na Internet, vocês encontram o original em italiano. Também há uma versão em espanhol. Destaco trechos nesta coluna. Foi escrito em verso, mas segue uma tradução em prosa. Abaixo, o autor faz um perfil psicológico dos estudantes, rebeldes à orientação do Partido Comunista Italiano, que não apoiava os protestos.

"Sinto muito. A polêmica contra o PCI já tinha sido feita na primeira metade da década passada. Vocês estão atrasados, queridos. Pouco importa se vocês ainda não haviam nascido. Pior para vocês. Agora os jornalistas do mundo todo (inclusive os dos canais da televisão) ficam lambendo (como se diz na linguagem do baixo clero universitário) a bunda de vocês. Eu não, queridos! Vocês têm cara de filhinhos de papai. Eu os odeio como odeio seus pais (...). Vocês têm o mesmo olhar maligno. São medrosos, hesitantes, desesperados, mas sabem também ser prepotentes, chantagistas, convencidos, descarados – prerrogativas estas pequeno-burguesas, meus amigos".

No trecho a seguir, Pasolini se refere ao confronto havido em Valle Giulia, na área central de Roma, no dia 1º de março de 1968, entre os estudantes e a polícia. E diz por que se identificava com os policiais.

"Ontem, quando vocês lutavam com os policiais em Valle Giulia, eu me identificava com os policiais. Porque os policiais são filhos de gente pobre. Eles vêm das periferias rurais ou urbanas. Eu conheço muito bem o modo como foram meninos e rapazes, seus minguados tostões. Conheço o pai deles, que também nunca foi senhor de si, mas por causa da miséria, não da falta de altivez. Conheço a mãe, calejada como um carregador, ou magra como um passarinho por causa de alguma doença. E tantos irmãos; o casebre entre as árvores, em áreas invadidas; casa de cômodos onde há esgoto a céu aberto, ou apartamentos em grandes habitações populares."

"(...)Em Valle Giulia, ontem, houve um fragmento de luta de classes: e vocês, queridos (ainda que do lado certo), eram os ricos, enquanto os policiais (que estavam do lado errado) eram os pobres. Bela vitória, pois, a de vocês! Nesses casos, é aos policiais que se entregam as flores, meus caros. La Stampa, Corriere della Sera, Newsweek e Le Monde estão lambendo a bunda de vocês. Vocês são os filhos deles. (...)"

O texto é imenso e complexo. Os links estão à disposição. Pasolini era um comunista, e é certo que divirjo profundamente de sua leitura, mas não desse retrato que ele faz da militância obscurantista. Também vejo em Gregórios, Safatles e Guilhermes não mais do que os burguesotes mimados que odeiam na Polícia não o seu suposto papel, digamos, contrarrevolucionário. O rancor que secretam é bem mais profundo: é de classe. É, com efeito, uma luta de classes.


O poder do STF - MERVAL PEREIRA

O Globo - 09/09

Ontem foi um dia em que o poder do Supremo Tribunal Federal foi explicitado à larga, com diversas decisões que terão repercussão política importante. A começar pelas dos ministros Teori Zavascki, Rosa Weber e Edson Fachin, que recusaram diversas ações sobre o julgamento do impeachment de Dilma Rousseff por razões puramente técnicas ou por não concordarem com o mérito do pedido, seja a favor da destituída ou de seus adversários.

Oque demonstra que o Supremo, em princípio, não está disposto nem a anular o processo, como pediu a defesa, nem a cancelar o polêmico fatiamento da pena, que permitiu à presidente destituída permanecer com seus direitos políticos intactos.

Embora todas essas decisões sejam preliminares e ainda dependam de uma palavra final, alguns conceitos emitidos pelos ministros indicam uma tendência. Como quando o ministro Teori Zavascki não aceitou o pedido do advogado José Eduardo Cardozo para anular o impeachment, alegando que no relatório do senador Antonio Anastasia foram feitas referências a atos praticados em anos anteriores, quando a acusação formal só poderia se referir a atos praticados em 2015.

O ministro Zavascki disse que “(...) Essas considerações, contudo, foram formuladas para demonstrar que os atos praticados pela impetrante não representaram mera reprodução de uma prática administrativa tolerável, mas como o clímax negativo de um modelo de subvencionamento, já questionável desde 2008, que tornou-se completamente insustentável e temerário para o Estado brasileiro”.

Mas houve também ontem a divulgação da decisão do ministro Teori Zavascki de recusar mais um pedido da defesa do ex-presidente Lula para que ele não seja julgado pelo juiz Sérgio Moro na primeira instância de Curitiba. Relator no Supremo das ações referentes à Operação Lava-Jato, o ministro Zavascki foi direto na sua decisão, afirmando que os advogados de Lula queriam “embaraçar” o processo.

Isso porque alegaram que Moro estaria usurpando competências do tribunal, pois já existem processos no Supremo sobre o mesmo tema. O curioso é que, para conseguirem escapar de Moro, os advogados se referiram a uma frase sua em que afirma que Lula seria “o arquiteto do esquema criminoso que vitimou a Petrobras”, sem contestá-la, mas apenas indicando que esse tema já estava sendo objeto de análise no STF.

De fato, no Supremo há um pedido de investigação contra Lula por formação de quadrilha feito pelo procuradorgeral da República, Rodrigo Janot, que o acusa de ser o chefe do grupo. Zavascki diz que num caso investiga-se o recebimento de favores indevidos, e no outro a questão da quadrilha. Por enquanto, as investigações devem seguir separadamente, em Curitiba e em Brasília.

Também o ministro Edson Fachin mandou arquivar um habeas corpus apresentado com o objetivo de suspender o processo de impeachment contra a ex-presidente Dilma. A ministra Rosa Weber também negou cinco ações que contestam o fatiamento do julgamento de Dilma, e mandou que em outras a presidente cassada seja incluída como parte interessada, e só depois dará o seu parecer, que deve ser no mesmo sentido de rejeição.

Por último, mas não menos importante, o Supremo decidiu por goleada de 10 a 1 que não havia razão para cancelar a sessão de julgamento da cassação do ex-presidente da Câmara, deputado afastado Eduardo Cunha. O relator, ministro Luís Roberto Barroso não encontrou motivos para tanto, pois não considerou as alegações da defesa consistentes: o número de membros da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara na sessão final era o exigido, segundo relato da própria CCJ, e o fato de deputados terem adiantado seus votos não prejudicou o acusado, pois esse tipo de declaração faz parte da atividade política.

Às vésperas de seu julgamento, Cunha tentou a última cartada e perdeu no Supremo que, apesar de toda força revelada com essa judicialização da política, não discute as votações internas da Câmara ou do Senado. Será por isso, e não por uma ação corporativa de defesa do presidente que ontem deixou o cargo, Ricardo Lewandowski, que o plenário não deve se meter no processo decisório que culminou com o fatiamento do artigo 52 da Constituição.

Pode ser uma decisão insuficiente diante da violação constitucional e gramatical praticada, mas o perigo seria anular toda a sessão, colocando o país em uma situação absurda que só aumentaria o caos.

O despertar dos mágicos - FERNANDO GABEIRA

ESTADÃO - 09/09

Reforma é mesmo para proteger aposentados ou apenas um pretexto para desviar milhões?



Lá se foi o impeachment de Dilma. Em poucos dias a Câmara se livra de Eduardo Cunha. Começou uma nova fase, mesmo para aqueles que não a desejavam.

Os defensores do governo caído também mudaram de palavra de ordem. Volta Dilma saiu de cartaz e no lugar entrou o slogan Diretas Já.

Em tese, deveria começar logo o tempo de mudanças que recuperem a economia, a grande prioridade do momento. Mas por mais que deseje a melhora, novos horizontes, retomada das contratações, o governo Temer ainda não inspira a confiança necessária.

Ele nem se preocupou em enterrar a velha fase. Na China, Temer fez comentários sobre os protestos e Meirelles, que é ministro da Fazenda, também tentou analisá-los. São dois trapalhões com estilo diferente. Temer subestimou o movimento. Meirelles superestimou-o, afirmando que era um protesto substancial com 100 mil pessoas. Os comunicadores do governo não ganham o mesmo que João Santana cobrava do PT. Mas precisam ao menos ensinar uma fórmula de o governo tratar manifestações.

Não é complicado. Basta dizer que manifestações pacíficas são legítimas e as violentas, condenáveis. Não precisa analisar, comparar, tornar-se um comentarista de TV.

Já tendem a dizer bobagem no Brasil. Com o fuso horário trocado, entre uma e outra reunião na China, dormindo durante discursos, a tendência a cometer erros é exponencial. Eles estão se achando. Mas se esquecem de que são apenas a parte que ainda escapou da polícia e, pelas circunstâncias legais, tornou-se a detentora do governo.

Nesta semana foi aberta uma nova frente de investigações policiais: os fundos de pensão. Isso bate direto no PT, que dominava esses fundos.

Mas não deixará de lado o parceiro PMDB. O ex-ministro Edison Lobão já tem seu nome envolvido. O próprio Henrique Meirelles era um dos diretores do Grupo JBS. Ele diz agora que era apenas consultor do grupo. Mas quando entrou para o grupo os rumores sobre a JBS já eram muito intensos. Já se falou de tudo sobre ela. Era tão próxima do governo que se espalhou o boato de que o Lulinha era um dos seus sócios.

O que há de verdade, comprovável pelos fatos, é que a JBS tomava grandes empréstimos do BNDES e injetava muito dinheiro nas campanhas políticas. Dos R$ 2,5 bilhões que pegou do governo, repassou 18,5% da grana em doações. Mas o grupo tinha uma sede enorme de recursos públicos. Não lhe bastava o financiamento, a juros amigos, do BNDES. Era preciso entrar nos fundos de pensão.

O JBS floresceu no governo do PT e era um de seus principais financiadores. Meirelles era do governo anterior e acabou se integrando nessa máquina de captação de dinheiro público. Para mim, soa como um canastrão em suas entrevistas. O mercado o aprova, Temer o escolheu para a retomada, resta esperar que faça a coisa certa.

Quando a Polícia Federal anunciou o tamanho das dívidas dos fundos de pensão, algo como R$ 54 bilhões, a grande pergunta que ficou no ar: como foi possível um rombo dessa dimensão sem que o País se desse conta?

Os boatos sobre aparelhamento datam de 2003. Porém não compartilho a ideia de que a imprensa se tenha omitido e seja a culpada. Os dirigentes dos fundos trabalharam muito para proteger a caixa-preta.

As investigações que resultaram na Operação Greenfield nasceram de reportagens em alguns dos maiores jornais do País. O próprio Ministério Público reconhece que esse foi o ponto de partida.

Demorou, reconheço. Congresso, oposição e autoridades, que deveriam controlar o processo, falharam.

No momento em que se discute a reforma da Previdência, a esquerda, certamente, vai combater as mudanças, mesmo pressentindo que a estrutura atual é insustentável.

É legítimo e necessário que os interesses dos aposentados sejam defendidos num modelo renovado. Mas a base para essa defesa é enfraquecida não só diante da manipulação dos fundos e do golpe nos empréstimos consignados. Os aposentados, afinal, são “os nossos velhinhos que queremos proteger” ou apenas um pretexto para desviar milhões para os cofres do partido ou mesmo para a fortuna pessoal dos dirigentes?

Com o impeachment realizado, esperava uma ligeira queda na temperatura política. Compreendo que as pessoas queiram discutir ainda se houve golpe ou se foi legal. Mas é necessário também olhar para a frente. A mediocridade do governo é o que temos disponível para realizar a transição até 2018.

Durante algum tempo Temer acenou para algo melhor depois do impeachment. Prometeu que mudaria o Ministério, etc. e tal. Aparentemente, é só conversa. As tarefas de recuperação da economia e da política são bastante claras. Temer está feliz com a Presidência, que não alcançaria em outras circunstâncias.

Será preciso um grande impulso para que o País saia da crise. Se o governo, pelo menos, não atrapalhar, há uma esperança de que se chegue a 2018 com alguns problemas resolvidos. Isso numa visão francamente otimista. A tendência a buscar soluções fáceis para problemas complexos continua sendo, na forma do populismo de direita ou de esquerda, uma grande força eleitoral.

Dentro de dois meses teremos eleições nos EUA. A trajetória de Donald Trump sugere muitas análises. Tanto lá como aqui, ampliou-se a estrada da aventura política. É um novo despertar dos mágicos, dos construtores de muros, à direita, aos multiplicadores dos pães, à esquerda.

Enganado por uma falsa renovação ética, saqueado pela corrupção que arruinou grandes empresas, a tendência do eleitorado brasileiro, imagino, será de sobriedade. O que virá em 2018 dependerá muito do que a sociedade construir agora, nesse período de transição. Tempo também para os que querem dedicar sua vida a melhorar a vida do povo reflitam se querem mudanças sustentáveis ou preferem só acalmar sua consciência.

*Jornalista

A advertência de Teori - EDITORIAL ESTADÃO

ESTADÃO - 09/09

A defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem todo o direito de utilizar qualquer recurso previsto em lei para assegurar que seu cliente tenha o mais amplo direito ao contraditório e que a presunção da inocência seja preservada. Só assim, esgotadas todas as possibilidades de defesa, uma eventual condenação do petista poderá ser considerada legítima. Mas não é isso o que acontece quando os advogados de Lula se empenham, como vêm fazendo, em desmoralizar o Judiciário, construindo a versão de que os juízes e promotores envolvidos nos processos que lhe dizem respeito se dedicam a perseguir seu cliente por razões políticas. Ou quando dizem que o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem tomado as devidas providências para reverter tal situação, razão pela qual foi necessário encaminhar denúncia a entidades internacionais.

Contra essa atitude de desrespeito institucional – que, mais do que um arroubo retórico, é uma estratégia de defesa muito bem pensada – reagiu de forma enérgica o ministro Teori Zavascki, relator da Operação Lava Jato no Supremo.

Teori se pronunciou acerca de uma reclamação dos advogados de Lula segundo a qual o juiz federal Sérgio Moro, responsável pela Lava Jato, havia usurpado a competência do STF ao permitir a abertura de inquéritos contra o ex-presidente. Para a defesa, esses inquéritos deveriam tramitar no Supremo, já que tratariam do mesmo objeto – o esquema de corrupção na Petrobrás.

Não é a primeira vez que os advogados do ex-presidente fazem esse tipo de reclamação contra Moro. Em outro caso, eles alegaram que aquele juiz usurpou a competência do STF ao manter sob sua jurisdição a interceptação de diálogos de Lula com autoridades com foro privilegiado, entre as quais a então presidente Dilma Rousseff, flagrada oferecendo a Lula um cargo de ministro, o que lhe conferiria o necessário foro privilegiado para blindá-lo contra Moro.

Em sua resposta, Teori lembrou dessa reclamação da defesa de Lula para enfatizar sua contrariedade com a “insistência do reclamante em dar aos procedimentos investigatórios contornos de ilegalidade, como se isso fosse a regra”.

Para Teori, o objetivo dos advogados de Lula é simplesmente atrapalhar as investigações, levantando questões sem sentido apenas para lançar dúvidas sobre a atuação de Moro e sobre o próprio Supremo. “Nesse contexto, é importante destacar que esta Corte possui amplo conhecimento dos processos que buscam investigar supostos crimes praticados no âmbito da Petrobrás, com seus contornos e limitações, de modo que os argumentos agora trazidos nesta reclamação constituem mais uma das diversas tentativas da defesa de embaraçar as apurações”, escreveu o ministro. Teori acrescentou que Moro “agiu conforme expressamente autorizado”.

A defesa de Lula não se deu por vencida. Pelo contrário: reafirmou sua estratégia de desacreditar o Judiciário. Em resposta a Teori, declarou que Lula, “como qualquer cidadão”, tem “o direito de usar dos instrumentos legais para impugnar decisões judiciais que estão sendo proferidas no âmbito de procedimentos investigatórios que ostentam clara perseguição pessoal e política”. E disse que a decisão do ministro Teori Zavascki de rejeitar a reclamação do ex-presidente contra as “graves ilegalidades praticadas pelo juiz Sérgio Moro” apenas “reforça o cabimento do comunicado feito à ONU em julho, diante da ausência de um remédio eficaz para corrigi-las”, numa referência à petição encaminhada ao Comitê de Direitos Humanos da ONU contra supostos abusos da força-tarefa da Lava Jato e do juiz Moro.

Ou seja, a defesa de Lula considera que todo o Judiciário brasileiro persegue o ex-presidente – por ação, no caso de Moro, ou por omissão, no caso do Supremo. Segundo esse raciocínio, o Judiciário tem de provar que é isento, e a única forma de fazê-lo seria rejeitar liminarmente todas as acusações contra o petista, dado que sua inocência é tão evidente quanto a luz do dia.

Fica claro, assim, mais uma vez, que o objetivo dos advogados de Lula é constranger as instituições que podem vir a condená-lo. Essa atitude só reforça o notável histórico petista de desrespeito pela democracia.

Vaias, aplausos e silêncio - EDITORIAL ZERO HORA - RS

ZERO HORA -09/09


Três tipos de reações do público podem ser percebidas cada vez que o presidente Michel Temer participa de alguma cerimônia em local aberto, como ocorreu na inauguração dos Jogos Olímpicos do Rio, quando ele ainda era interino, e como voltou a ocorrer no desfile da Independência, em Brasília, e na abertura dos Jogos Paraolímpicos, no Rio, ambos na última quinta-feira. A primeira e mais contundente dessas reações é a vaia, manifestada por parte das pessoas inconformadas com o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e convencidas de que o atual governo é ilegítimo. Os aplausos e os gritos de apoio ao atual chefe da nação aparecem como resposta ao apupo, protagonizados predominantemente por integrantes do governo e por pessoas que rejeitam o Partido dos Trabalhadores. Mas parte expressiva do público, tanto nas raras aparições do presidente quanto na assistência desses episódios pela mídia, permanece em silêncio, observando o embate político-ideológico pelo poder.

Os silenciosos, que provavelmente são a maioria, aguardam as consequências da troca de governo para se manifestar. Os brasileiros inconformados com a corrupção e com a crise econômica acompanham com ansiedade e interesse a movimentação dos políticos, esperando por medidas que permitam a retomada das atividades econômicas e estanquem a onda de desemprego. Mais: exigem também que políticos, empresários, servidores públicos e outras pessoas comprovadamente envolvidas em malfeitorias sejam exemplarmente punidos, tanto no âmbito da Operação Lava-Jato quanto de outras investigações em andamento.

A maioria até pode estar quieta, mas não está conformada com o país degradado pela última administração e ainda não consertado pela atual. Pelo contrário, os brasileiros mais conscientes estão preocupados com a manutenção de práticas políticas reconhecidamente perniciosas, tais como o apadrinhamento político, a troca de cargos públicos por apoio e o descontrole de gastos. Também estão apreensivos com a violência de algumas manifestações, que deturpam o verdadeiro sentido de uma democracia que deve, sim, ter espaço para vaias e aplausos, mas sem ignorar a eloquência dos silenciosos.

A agonia do Mercosul - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

Gazeta do Povo - 09/09

Apesar dos obstáculos, o Mercosul é uma ideia que não deve ser abandonada como objetivo de longo prazo



O Mercosul nasceu como bloco de integração regional entre Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, com o objetivo de ser um “mercado comum”, tipo de bloco no qual, além do livre comércio, há outras práticas negociadas, como as imposições tributárias sobre o comércio exterior entre os países-membros, as barreiras não tarifárias (fiscalização sanitária de produtos alimentícios, por exemplo), o livre movimento de trabalhadores e o compromisso de adotar práticas econômicas e políticas comuns, entre elas a democracia política.

O Mercosul foi a tentativa de colocar de pé um bloco regional nos termos de um mercado comum, mas, desde seu nascimento, é um ente vacilante e incapaz de funcionar nos termos previstos e combinados nos diversos acordos firmados por seus membros. Dois eventos políticos quase simultâneos marcaram a trajetória do Mercosul nos últimos tempos e o fizeram retroceder: a suspensão temporária do Paraguai quando da destituição do presidente Fernando Lugo pelo parlamento e a aprovação da entrada da Venezuela no bloco. A Argentina governada pelo casal Kirchner, com o apoio de Dilma Rousseff e do uruguaio Pepe Mujica, rechaçou com veemência a destituição do presidente paraguaio sob a alegação de que não foi um ato democrático. Como o Paraguai era o único país que bloqueava a adesão venezuelana, a suspensão do país permitiu que a Venezuela chavista finalmente entrasse no Mercosul.

A existência de democracia é uma das exigências para um país fazer parte do bloco e soa irônico que a Venezuela, governada por um regime que nada tem de democrático, tenha levantado a voz contra a destituição do presidente Lugo sob a alegação de falta de democracia. É essa mesma Venezuela de Nicolás Maduro – um arremedo de ditador latino-americano – que vem agora censurar o Brasil pela queda da presidente Dilma Rousseff, sob a alegação de que o impeachment aprovado pelo Senado brasileiro foi um golpe parlamentar não democrático.

Esses três episódios são pregos no caixão funeral do Mercosul, projeto que nasceu com grandes chances de fracasso por tentar integrar países com enormes diferenças em inflação, políticas tributárias, regras sobre investimentos estrangeiros e política cambial. Em alguns momentos, os integrantes do bloco protagonizaram confrontos, como foi o caso da postura da Argentina contra importações de produtos brasileiros, e as diferenças entre esse vizinho e o Brasil nas votações da Rodada de Doha que discutiam subsídios agrícolas e industriais concedidos por países ricos e emergentes a determinados setores internos.

Apesar desses obstáculos, o Mercosul é uma ideia que não deve ser abandonada como objetivo de longo prazo; as expectativas sobre o futuro do bloco dependem do que vai ocorrer daqui para a frente em relação à política internacional dos países-membros. Se por um lado há melhores ventos políticos no Brasil e na Argentina, por outro o acirramento dos ânimos protagonizado por Venezuela, Bolívia e Equador, que chamaram seus embaixadores de volta após o Senado brasileiro destituir a presidente Dilma, cria problemas para o Mercosul, sobretudo porque a Venezuela é membro do bloco e o repúdio de Maduro ao impeachment inviabiliza as negociações no âmbito do mercado comum.

O Mercosul vem agonizando há muito tempo e os últimos episódios prenunciam que, se nada de relevante for feito por seus membros, o bloco poderá se transformar em um ente vegetativo condenado ao fim ou à existência sem os efeitos práticos mínimos típicos de um mercado comum. É a velha América Latina de sempre, condenada à pobreza por não conseguir se libertar de seus fantasmas regionais e sempre culpando os outros por seu fracassos.