O que motiva e dá ânimo a um populista é, sem dúvida, o povo. É em nome deste que aquele propõe mudanças, se desdobra em projetos e, quando é o caso, justifica seus malfeitos. Como sói a um populista, ele joga para plateia, e ator que se preza - seja na política, seja na vida - não teme o ridículo. Até porque um populista sabe quase sempre como arrancar aplausos ou em vez de ser alvo de tomates. E não existe enredo feio para quem sobe na ribalta. Feio é apenas não agradar o povo.
Mas a coisa desanda quando o dito povo insiste em deixar de ser mera categoria abstrata e passa a destoar do papel que lhe foi proposto pelo populista em questão. Eriberto França era mero representante desse tal povo no início dos anos 1990 quando então sua condição de motorista que sabia demais o permitiu revelar alguns dos escândalos que precipitaram o impeachment de Collor. Já Francenildo Costa era um pobre caseiro de uma mansão onde se arquitetavam negociatas em Brasília quando as idas frequentes do então ministro da Fazenda Antônio Palocci deram a ele a chance de revelar ao país o que sabia. As negativas do petista vieram acompanhadas de quebra de sigilo bancário do caseiro, por meio da Caixa Econômica Federal, em tentativa de mostrar ao povo qual é o seu lugar. Mas o ministro - que depois ainda sairia do governo Dilma com novas suspeitas de corrupção - foi obrigado a pedir as contas em 2006.
Não como farsa, mas como prova de modus operandi partidário, a história começa a se repetir dessa vez com Lula, aquele que parecia ser inquestionável na sua maneira de lidar com o povo. O zelador José Pinheiro e a porteira Letícia Rosa confirmam ter visto Lula e Marisa no tríplex do Guarujá, que está em nome de uma offshore e que o casal presidencial jura não ser seu. Segundo os investigadores da Lava-Jato, vistorias no apartamento teriam motivado a ida do casal, já que uma reforma que beira R$ 1 milhão foi feita no imóvel pela OAS. Tudo bastante condizente, aliás, com o zelo decorativo que dona Marisa exibia quando achou por bem colocar uma estrela vermelha gigante no jardim do Palácio da Alvorada.
Políticos, como Lula, sempre tão voluntariosos quando se trata de aparecer como defensores da plebe, têm grande dificuldade, contudo, de admitir como verdade o que a voz do povo, a dita representação da voz de Deus, insiste em dizer. É que não é sempre que a voz do povo sopra maviosa ao ouvido do populista. Ela sabe entoar verdades que incomodam e muito a tranquilidade de quem só pretende desfrutar da segurança financeira extraída das amizades cevadas pelo poder político. Para esses casos, sobra o estratagema de trajar as vestes de perseguido e injustiçado com que Lula hoje sobe ao palco. Mesmo para quem se reconheceu no volume morto em termos de popularidade resta ainda esbravejar por meio da imprensa discursos que são cada vez mais como bombas de efeito moral, causando algum estrondo, mas com frisson contido e sem nenhum potencial explosivo. Já foi inclusive acionado no último recurso, o do pastel de vento retórico, em que o encurralado ataca os adversários reais e imaginários, e delirando ao se dizer alma "mais honesta deste país".
O que Lula não pode fazer é se queixar do enredo dessa peça da qual tem sido ator involuntário. Afinal de contas, nos depoimentos e revelações de motoristas, caseiros, porteiros e zeladores é que o socialismo dos seus antigos sonhos de sindicalista têm mostrado sua melhor versão. Tem sido pela voz desses lídimos representantes do povo que a República aos trancos e barrancos avança contra a vontade dos poderosos. Numa trama em que comunista nenhum pode botar defeito, o povo sai das coxias para dizer aos protagonistas e barões da política e dos negócios o que Lula tanto teme ouvir: a lição de que a lei, Vossa Excelência, é para todos.