domingo, janeiro 10, 2016

A sociedade e as instituições - SACHA CALMON

CORREIO BRAZILIENSE - 10/01
Em meio a nossa pior crise, acostumou-se o país a dizer - e vai nisso uma ingenuidade - que as instituições estão funcionando. Estão de fato funcionando, porém muito mal, na medida em que não resolvem a crise e se digladiam os Poderes da República.

Na cúpula do poder central, os poderes políticos (Executivo e Legislativo) estão abaixo da crítica e os Tribunais Superiores, que por sua natureza são passivos (só agem quando provocados, como em qualquer lugar do mundo civilizado), começam a gerar desconfianças pelo ativismo político. O perigo é serem partidarizados, pois seus membros são indicados pelo presidente da República e aprovados pelo Senado, de acordo com o modelo de organização dos Poderes dos Estados Unidos da América. Seria adequado rever esse ponto.

O Brasil ostenta três peculiaridades no continente sul-americano. (a) Fomos o único a ter um século monárquico num país agrário, avesso à industrialização (século 19). (b) A República se fez olhando o Tio Sam, embora o nosso direito descendesse do Direito Continental europeu, o direito romano-germânico, diverso do Cannon-Law Inglês e, de algum modo, do direito norte-americano, apegado ao inglês. Mas o modelo republicano e federativo que adotamos não foi o europeu, sempre parlamentarista ou semiparlamentar (França e Portugal).

Copiamos os EUA na organização política da nação, mas não praticamos o presidencialismo americano. Muito pelo contrário. Nem o nosso Congresso é como o americano. Nem o nosso Supremo tem o recato firme da Suprema Corte de lá, nem a Federação confere aos estados membros a autonomia que gozam na América. Aqui, às vezes, o Judiciário se politiza e serve ao Poder Executivo, ao seu chefe, por livre e espontânea vontade, apesar de vitalícios e irredutíveis os vencimentos dos ministros. (c) Por último, sem guerras e sem conquistas, em parte pelo gênio português, nos tornamos metade da América do Sul, com grande população, falante do mesmo idioma, ao passo que a América espanhola fragmentou-se desde o México em mais de dúzia e meia de nações, considerando-se a América Central e o Caribe, enquanto os EUA, em princípio 13 colônias pequenas e diversas, rentes ao Atlântico, expandiram-se a ferro e fogo, tomando terras dos índios, espanhóis, mexicanos e franceses, (além de comprar territórios) transbordando para além do Canadá (Alasca) e da costa oeste (Havaí).

E, apesar dos pesares, se não tivemos os azares da América espanhola nem a sorte da América inglesa, sendo o último país do continente a libertar os escravos e a iniciar a industrialização, já no século 20, nos tornamos a 7ª economia do mundo entre mais de 190 nações independentes: EUA, China, Japão, Alemanha, França, Reino Unido e Brasil. Essa é a lista das sete primeiras. Falta-nos infraestrutura, educação, senso de organização e razão política, sobram miséria e desigualdade. Até certo ponto, o Brasil é um ambíguo sucesso, difícil de explicar.

Seremos em 2015/16 o país do fracasso, com perda de 6% do PIB, o que não é pouco, outra coisa difícil de explicar. Dizer que a crise é arrastada e progressiva desde 2014, mas (que orgulho besta) estão funcionando as instituições é uma irrisão. Como funcionam bem se não resolvem a crise? O mínimo a dizer é que não funcionam, caso contrário já teríamos soluções. Há descolamento entre a sociedade e as instituições. A uma, porque não funcionam. A duas, porque as pessoas encarregadas de fazê-las funcionar não prestam.

É trágica a situação em que nos encontramos. Mesmo não sendo parlamentarista o regime, a solução reside em desfazer os poderes Executivo e Legislativo reformar o Estado e a Federação, convocando uma constituinte exclusiva e novas eleições. O impedimento está nas mãos do Tribunal Superior Eleitoral e nas togas do Supremo Tribunal Federal, sem ferir a Constituição. O Brasil precisa urgentemente inaugurar a quinta República, refundar partidos capazes de criar correntes de opinião.

O que temos são partidos divorciados das correntes de pensamento e incapazes de gerá-las, ao contrário do que ocorre no mundo mais desenvolvido, quer falemos de Europa, quer falemos de Ásia. A América do Norte é o que vemos todos os dias. O Partido Republicano, radical e belicoso, e o Partido Democrata, mais ameno. Os EUA são um mundo peculiar, ao mesmo tempo puritano e pervertido, universalista e avesso aos migrantes, contrariando seu passado. O presidencialismo que deles herdamos só deu relativamente certo lá, jamais no restante da América Latina (ou latrina?)

Deveríamos ter seguido a Europa parlamentarista. Mas a história é que determina os fatos. Somos essa geleia geral, para desconforto de todos nós, quando pensamos em nossos filhos e netos. Alea jacta est. Temos que atravessar, como César fez, o nosso rubicão. E que seja logo. Que a sorte nos sorria e possamos ver, antes de morrer, um país em crescimento econômico com justiça social.

Paraiso perdido - J. R. GUZZO

REVISTA VEJA

Onde foi parar neste começo de 2016 o "carrinho novo" que, segundo o ex-presidente Lula, o operário brasileiro finalmente teve dinheiro e crédito para comprar, por conta das virtudes de seu governo? Onde andariam todos os trabalhadores humildes que deixaram "a elite inconformada" por começarem a viajar de avião, pela primeira vez na história deste país? Onde poderia estar circulando neste momento o "Trem-Bala" que, segundo Lula garantiu mais de uma vez, seria inaugurado dali a pouquinho e calaria a boca dos que "torcem contra" o governo? Alguém já conseguiu tirar uma caneca de água da transposição do Rio São Francisco? O que aconteceu com a conta de luz barata e com a lição de economia que a presidente Dilma Rousseff deu ao planeta em 2013? O Brasil, assegurou ela, acabava de provar que era possível, sim, crescer, distribuir renda, baratear a vida para os pobres e ter finanças sadias, tudo ao mesmo tempo, "em meio a um mundo cheio de dificuldades". Não só isso. Seu governo acabava de colocar o Brasil numa "situação privilegiada" perante a comunidade das nações, com "energia cada vez melhor e mais barata, mais que suficiente para o presente e o futuro". Os "pessimistas" tinham sido derrotados, informou Dilma.

E os juros? Na mesma ocasião, a presidente comunicou que "os juros estão caindo como nunca" — e hoje? Outra coisa: sabe-se da existência de algum posto onde seria possível comprar gasolina barata, feito de que o governo tanto se orgulhava até o encerramento da eleição presidencial de 2014? O Brasil entrou, afinal, na Opep, como Lula previa diante da nossa transformação em potência na produção de petróleo? Aliás, por falar" nisso, quando foi a última festa para comemorar mais uma descoberta do "pré-sal", com Lula e Dilma fazendo aquelas marcas pretas de óleo nos uniformes cor de laranja com que eram fantasiados? Procuram-se notícias, também, do real forte — tão forte que iria dispensar o dólar nas transações internacionais do Brasil, pelas altas análises do Itamaraty. Seria interessante saber onde foi parar o investment grade que as grandes agências mundiais de avaliação de risco deram ao Brasil pouco tempo atrás — prova definitiva, segundo o governo, de que o mundo capitalista enfim se curvava diante da gestão econômica de Lula, Dilma, PT e de suas "políticas sociais". O mesmo se pode perguntar em relação ao "gostinho" declarado pelo ex-presidente em ver o Primeiro Mundo em "crise" e o Brasil correndo para o abraço. Onde está "o pleno emprego"? Onde está a "Pátria Educadora"? Onde está o maior programa de distribuição de renda já visto na história da humanidade?

Nada disso se encontra disponível no presente momento. Carrinho novo? A indústria automobilística acaba de ter, em 2015, o pior desempenho em quase trinta anos — isso mesmo, desde 1987, nas remotas profundezas do governo José Sarney. As companhias de aviação estão de joelhos; se estão perdendo até os passageiros ricos, imagine-se os pobres. A energia barata virou uma piada: as contas de luz subiram 50% em 2015, e vão subir de novo neste ano. Os juros andam perto de 15% — um paraíso mundial para os "rentistas" com os quais a esquerda brasileira tanto se horroriza nos discursos e a quem tanto favorece na vida real. No assunto petróleo, o que se tem, acima de tudo, é uma Petrobras que o governo quebrou, por ladroagem e incompetência, e hoje não tem dinheiro para investir nada; na verdade, ela jamais deveu tanto. O real perdeu 50% do seu valor no ano passado, e voltou, após mais de vinte anos, à sua condição de moeda bananeira. O governo presidiu uma recessão de 3,5% em 2015 — isso em cima de crescimento zero em 2014 — e prepara-se para socar na economia outro recuo neste ano, de 2,5% ou mais. Há 10 milhões de desempregados neste país, no corrente mês de janeiro. O último IDH, uma das medidas mundiais mais respeitadas para avaliar o bem-estar dos países, deixou o Brasil em 75º lugar—e quem pode achar que está bem, em qualquer coisa, se fica no 75º lugar? O investment grade sumiu: como o Senhor, na Bíblia, a Moody"s, a S&P e a Fitch dão, a Moody"s, a S&P e a Fitch tiram.

É este o país que resultou, na prática, dos treze anos de Lula, Dilma e PT. Ninguém no governo tem a menor ideia de como sair disso — nem poderia ter, quando o seu único objetivo, hoje em dia, é ficar de bem com o senador Renan Calheiros e traficar no Congresso um jeito para escapar do impeachment. Daí só se pode esperar que as coisas continuem piorando, piorando, piorando — até que chega um dia em que continuam a piorar.

Revogar a "lei de Gerson" - CLAÚDIO DE MOURA CASTRO

REVISTA VEJA

Quando se quebrou o código secreto da Enigma, Churchill poderia evitar que submarinos alemães trucidassem um enorme comboio de navios. Mas criaria suspeitas nos alemães, impedindo um uso futuro que talvez salvasse ainda mais vidas. Ele estava diante de um dilema moral.

Para Fernando Henrique Cardoso, "a virtude do político não é pessoal, é a virtude de colocar um objetivo que seja aceito democraticamente e fazer com que aconteça. Isso tem um preço, e esse preço muitas vezes contraria o que você gostaria de fazer".

No nosso pequeno cotidiano, ao sermos abordados por um menino que alega fome e pede dinheiro, vivemos também um dilema. Dar a esmola pode mitigar a fome, mas reforça o hábito precoce da mendicância.

Esses dilemas, confrontando duas alternativas ruins, são o cerne das tragédias gregas e da grande literatura. E quanto nos ofendem os escândalos recentes! Mas fica no limbo uma multidão de decisões e comportamentos claramente errados. Somos complacentes com a Lei de Gerson — aquela que diz ser preciso levar vantagem.

Vejamos os escorregões do nosso cotidiano. Pregar mentira? Errar no troco? Vender gato por lebre? Roubar? Subornar o guarda? "Vai que cola"? Chegar atrasado? Não cumprir o prometido? Só trabalhar quando vigiado? Não pagar as dívidas? Atrapalhar a vida dos outros? Bloquear o trânsito para dar um recado? Dirigir depois de um uisquinho? Jogar lixo na rua? Ser grosseiro por quase nada?

Nos verdadeiros dilemas, é o ruim ou o ruim. Aqui, é a decisão de fazer ou não alguma coisa que sabemos ser errada, em prol da nossa conveniência, preguiça ou benefício pessoal às expensas de outrem.

Porém, deveríamos saber que são menos prósperas as sociedades em que muitos não são contidos pelo sentimento do certo e do errado. Esvai-se o tempo de todos, uns se protegendo contra os outros, vigiando para não serem roubados ou assegurando que o serviço será feito. Deixa-se de fazer bons negócios, por medo de ser passado para trás. Para se defender dos pilantras, há a metástase do papelório. Tudo tem de ser assinado e carimbado. O descumprimento dos horários e compromissos gera incalculável perda de tempo. O somatório dos lixinhos gera uma horrenda imundice.

A filosofia tem uma longa tradição de caracterizar determinados comportamentos como certos ou éticos, em contraste com outros. Para alguns, eles viriam como uma imposição divina. Outros afirmam serem um sentimento com o qual já nascemos. Mais próximo do mundo real, Kant nos legou o princípio da universalidade, que oferece um critério prático para decidir.

Contudo, podemos ver o assunto de outro ângulo e revisitar a trajetória dos países que conseguem oferecer níveis altos de renda e qualidade de vida. Como as pessoas comuns se comportam?

Em todos esses países, é instrutivo verificar a ubiquidade do comportamento ético. Na prática, o certo vira hábito, vem espontaneamente, entra no piloto automático. Mas será que agir para o bem não seria apenas mais um luxo de rico? Não é assim, pois nesses lugares o hábito do comportamento ético vem de longa data.

Tais tradições se consolidaram quando esses países eram ainda muito pobres, até vitimados por fomes que ceifaram milhões de vidas. E, como mostram as pesquisas, esses bons comportamentos tiveram um papel preponderante no avanço econômico e social dessas nações. Quando um pode confiar no outro, tudo fica mais simples, a cooperação se multiplica e a sociedade prospera.

Lamentavelmente, a sociedade brasileira torna-se cada vez mais desleixada nesse ponto tão crítico para o nosso futuro. E isso acontece em todas as classes sociais. Talvez os mais prósperos pequem menos. Contudo, pela sua posição mais confortável no mundo, seus deslizes são mais imperdoáveis. O descaso generalizado fica sugerido pela noção de que esse bom comportamento do cotidiano é uma "moral careta" ou, pior, uma "moral burguesa".

Revogar a "Lei de Gerson" não é tão simples, pois carece mudar hábitos arraigados em todos os estamentos da sociedade. Se alguma coisa vai acontecer, terá de começar com a percepção candente da falta que fazem o comportamento moral e lideranças que contribuam para essa tomada de consciência.