ZERO HORA - 11/08
A última vez que entrei numa sala de aula foi no último dia da faculdade, e lá se vão muitas luas, parece que foi em outra vida. Fazia tanto tempo que eu não era estudante que fiquei apreensiva ao me matricular na The London School of English, de onde retornei semana passada. Haveria quantos alunos por sala? Ainda existe giz e quadro-negro? E sendo eu uma analfabeta digital, passaria vergonha levando um caderno e uma caneta para anotações?
Éramos poucos em cada sala – no máximo oito, entre tchecos, russos, japoneses, italianos, espanhóis e brasileiros. O quadro-negro agora é um quadro branco onde se escreve com marcadores coloridos (para os saudosistas, vale uma visita à Saatchi Gallery, que expõe antigos quadros-negros das mais famosas universidades do mundo – Cambridge, Harvard, Oxford – extraindo de nós um novo olhar para o efeito das frases, fórmulas e gráficos rabiscados a giz).
E a analfabeta digital não passou vergonha com seu caderno e caneta, mesmo cercada por colegas equipados com tablets e laptops. Não conheço recurso mais eficiente para reter e decorar informações do que escrevê-las à mão. Fiquei impressionada ao ver que alguns alunos fotografam o quadro antes de o professor apagá-lo. Não copiam, simplesmente fotografam com seus celulares. Eu sempre aprendi mais escrevendo, sublinhando, fazendo círculos em torno das palavras, enchendo a página de flechas e asteriscos. Meu caderno ainda vai acabar sendo exposto numa mostra de design.
O mais valioso da experiência foi resgatar o prazer inocente de aprender. Cada nova palavra, cada nova expressão era uma vitória particular que eu assimilava com humildade. A minha vergonha em falar um idioma que não domino, e ao mesmo tempo a disposição em me divertir com os próprios erros, me tornavam uma aprendiz de mim mesma e da vida, essa venerável mestre.
Algumas pessoas se satisfazem com o que já sabem, é como se seu conhecimento coubesse numa piscina. Dão algumas braçadas para um lado, outras braçadas para o outro, agarram-se às bordas e tocam o fundo com os pés: sentem-se seguras nessa amplitude restrita. Mas nada como mergulhar num mar do conhecimento sem fim, onde não há limites, a profundidade é oceânica e a ideia é nadar sem chegar à terra firme, simplesmente manter-se em movimento. Cansa, mas também revitaliza. Uma pena que nossa preguiça impeça a grandeza de se descobrir algo novo todos os dias.
Eu, que além de apegada aos instrumentos rudimentares da escrita, tenho certo receio de procedimentos estéticos em geral, descobri uma maneira de me manter jovem para sempre, mesmo que, olhando, ninguém diga: não vou mais parar de estudar e assim realizarei a utopia de me sentir com 20 anos até os 100 – depois disso, aí sim, recreio.
domingo, agosto 11, 2013
Visita - ADRIANA CALCANHOTTO
O GLOBO - 11/08
Meu pai e eu fomos ficando mais iguais à medida que nos tornamos cada vez mais diferentes?
Acompanho o movimento das mãos, elegantes, másculas, de unhas bem lixadas, redondas nos cantos. Não são mais as mesmas, têm marcas que não conhecia e parece que agora se movem com menos precisão. Arriscaria dizer que tremeram levemente quando folheando as páginas dos cadernos, que eu não sabia que existiam. São oito ou dez cadernos pequenos, empilhados na mesa de centro da sala. Ele aponta e me diz “se quiser saber quem sou, está tudo aqui”.
Nunca soube que ele tivesse cadernos, nunca vi cadernos antes, em nenhuma das casas onde morou, ou moramos. Nos escritórios, no meio das baquetas, dos papéis de desenho, dos instrumentos musicais, das revistas de arquitetura, nunca vi cadernos. Mas achei engraçado, diz que está tudo ali, embora não encontre o que quer que seja que procura, caderno por caderno, folha por folha. Engraçado porque também tenho uns dez cadernos, que comprei ou ganhei, empilhados, na bancada. Mas nos meus não há nada escrito. Não escrevi. Por não saber o que dizer, com certeza. Ou como. Ou talvez por saber o que dizer e preferir não dizê-lo. O silêncio sempre é menos precário. Com o que encher dez cadernos pequenos? Com pontos de interrogação no final de períodos curtos? Dez cadernos vazios não seriam mais úteis do que cheios?
Ele não parece ter essas dúvidas, o meu pai. Sabe que está nos cadernos, conforme anunciou. Só não encontra o que procura. Exatamente o que aconteceria comigo, caso tivesse escrito. Por isso é que não me dei ao trabalho de escrever, imagino. Espero, paciente e curiosa. Ganho tempo enquanto ele folheia tudo novamente, agora de trás pra frente. Tempo para assimilar a surpresa de saber que ele tem cadernos. E que anota coisas, diferentemente de mim, que tenho a mesma pilha de cadernos, em branco.
Como podemos continuar tão iguais e tão diferentes? Fomos ficando mais iguais à medida que nos tornamos cada vez mais diferentes? Ou não faz diferença se escrevemos ou não, já que na hora de ler não se vai encontrar nada mesmo? Nisso somos idênticos. Quem sabe ele não escreveu aquilo que está procurando? Isto é o mais provável. Está, se me conheço, porque o conheço, procurando o que não há, independentemente de quem o tenha escrito, se é que foi escrito. Se é que seria possível escrever isso que ele procura, e não encontra.
Finalmente as mãos me passam um dos cadernos, aberto, com a caligrafia que não é igual ao que era, mas que eu reconheceria a centenas de milhas daqui, e diz: “olha isso”. A letra de um samba. Não foi ele quem escreveu, apenas copiou ou anotou pra não esquecer. Um samba-enredo que tem uma letra ridícula porque precisa enfiar o tema à força nos versos, por causa de patrocínio para o desfile da escola. O que talvez pudéssemos chamar de o samba-enredo menos inspirado do mundo.
Obviamente não era isso que ele procurava, mas rimos mesmo assim. Fica claro que não encontrou o que queria me mostrar, o mesmo que aconteceria comigo. Desconfio que só quisesse, afinal, me fazer saber que tem cadernos e que ali se encontra, embora não pareça, assim, à primeira vista. Tem cadernos, caso eu queira saber quem ele é. Nos abraçamos, o tempo está fechando, vai chover, e preciso pegar a estrada de volta.
Meu pai e eu fomos ficando mais iguais à medida que nos tornamos cada vez mais diferentes?
Acompanho o movimento das mãos, elegantes, másculas, de unhas bem lixadas, redondas nos cantos. Não são mais as mesmas, têm marcas que não conhecia e parece que agora se movem com menos precisão. Arriscaria dizer que tremeram levemente quando folheando as páginas dos cadernos, que eu não sabia que existiam. São oito ou dez cadernos pequenos, empilhados na mesa de centro da sala. Ele aponta e me diz “se quiser saber quem sou, está tudo aqui”.
Nunca soube que ele tivesse cadernos, nunca vi cadernos antes, em nenhuma das casas onde morou, ou moramos. Nos escritórios, no meio das baquetas, dos papéis de desenho, dos instrumentos musicais, das revistas de arquitetura, nunca vi cadernos. Mas achei engraçado, diz que está tudo ali, embora não encontre o que quer que seja que procura, caderno por caderno, folha por folha. Engraçado porque também tenho uns dez cadernos, que comprei ou ganhei, empilhados, na bancada. Mas nos meus não há nada escrito. Não escrevi. Por não saber o que dizer, com certeza. Ou como. Ou talvez por saber o que dizer e preferir não dizê-lo. O silêncio sempre é menos precário. Com o que encher dez cadernos pequenos? Com pontos de interrogação no final de períodos curtos? Dez cadernos vazios não seriam mais úteis do que cheios?
Ele não parece ter essas dúvidas, o meu pai. Sabe que está nos cadernos, conforme anunciou. Só não encontra o que procura. Exatamente o que aconteceria comigo, caso tivesse escrito. Por isso é que não me dei ao trabalho de escrever, imagino. Espero, paciente e curiosa. Ganho tempo enquanto ele folheia tudo novamente, agora de trás pra frente. Tempo para assimilar a surpresa de saber que ele tem cadernos. E que anota coisas, diferentemente de mim, que tenho a mesma pilha de cadernos, em branco.
Como podemos continuar tão iguais e tão diferentes? Fomos ficando mais iguais à medida que nos tornamos cada vez mais diferentes? Ou não faz diferença se escrevemos ou não, já que na hora de ler não se vai encontrar nada mesmo? Nisso somos idênticos. Quem sabe ele não escreveu aquilo que está procurando? Isto é o mais provável. Está, se me conheço, porque o conheço, procurando o que não há, independentemente de quem o tenha escrito, se é que foi escrito. Se é que seria possível escrever isso que ele procura, e não encontra.
Finalmente as mãos me passam um dos cadernos, aberto, com a caligrafia que não é igual ao que era, mas que eu reconheceria a centenas de milhas daqui, e diz: “olha isso”. A letra de um samba. Não foi ele quem escreveu, apenas copiou ou anotou pra não esquecer. Um samba-enredo que tem uma letra ridícula porque precisa enfiar o tema à força nos versos, por causa de patrocínio para o desfile da escola. O que talvez pudéssemos chamar de o samba-enredo menos inspirado do mundo.
Obviamente não era isso que ele procurava, mas rimos mesmo assim. Fica claro que não encontrou o que queria me mostrar, o mesmo que aconteceria comigo. Desconfio que só quisesse, afinal, me fazer saber que tem cadernos e que ali se encontra, embora não pareça, assim, à primeira vista. Tem cadernos, caso eu queira saber quem ele é. Nos abraçamos, o tempo está fechando, vai chover, e preciso pegar a estrada de volta.
Lá e cá - ANCELMO GOIS
O GLOBO - 11/08
FH, sexta no Rio, numa palestra sobre política de drogas, contou que, no passado, era comum na Colômbia o narcotráfico financiar campanhas eleitorais. Mais ou menos como ocorre aqui hoje com os empreiteiros:
—É difícil escapar deles durante a campanha. As confusões vêm depois.
Verde e amarelo
Empresas mamutes nacionais, como Vale, Gerdau, CSN e Usiminas, conversam para formar um consórcio A ideia é comprar o Porto de Açu, de Eike Batista. BNDES, Itaú e Bradesco acompanham as negociações.
Jogo jogado
O banqueiro André Esteves, 44 anos xodó do mundo das finanças, será recebido amanhã por Guido Mantega.
Em recente entrevista à “Veja” com o título “Estamos perdendo o jogo”, ele criticou a política econômica.
Massacre de índios nos EUA
Pelas últimas projeções de Ana Amélia Camarano, do Ipea, a população brasileira vai crescer em ritmo menor até aproximadamente 2030, quando começará a diminuir.
Para ela, nesta época, o contingente estará em torno de 208 milhões.
Segue...
Camarano lembra que o declínio da população por envelhecimento, com redução da fecundidade, é um fato novo.
— No último milênio, tivemos dois períodos de prolongado declínio populacional, mas por aumento da mortalidade. Um afetou a Europa (peste negra) e o outro, as Américas (extermínio da população indígena).
Viva Lygia!
A Universidade de Salamanca, na Espanha, vai fazer, em outubro, conferências sobre Lygia Fagundes Telles, que comemorou 90 anos.
O show de Vinicius
Haroldo Costa, 83 anos, amigo de Vinicius de Moraes, que o convidou em 1956 a protagonizar a peça “Orfeu da Conceição”, trava nova batalha.
Ele está às voltas com “Viva Vinicius Vive”, supershow em homenagem ao centenário do Poetinha, que deverá ser realizado no Teatro Municipal, em 30 de outubro.
Só que...
Costa conseguiu autorização para captar R$ 1.256.870 pela Lei Rouanet. Mas os patrocinadores estão ariscos.
Na verdade...
Há uma enorme distância entre conseguir autorização e o dinheiro de fato entrar na conta.
Em 2012, os produtores poderiam captar até R$ 5.368.853.171. Mas apenas R$ 1.270.945.070,44 foram arrecadados.
Quebra de protocolo
Filho de D. Joãozinho de Orleans e Bragança, D. João Felipe casou-se com Yasmine Paranaguá, em Paraty.
O pai do noivo não quis comunicar o casamento ao chefe da Casa Imperial do Brasil, D. Luiz de Orleans. Achou ultrapassado. Com isso, a noiva ficou sem o título de princesa.
No tempo de Noel
Fora das prateleiras há mais de 30 anos, o livro “No tempo de Noel Rosa”, escrito por Almirante, pesquisador pioneiro de
música brasileira nos anos de 1920 e amigo do compositor, vai voltar ao mercado esta semana.
A Sonora Editora teve a autorização das herdeiras para reeditar a obra.
Aliás...
Só falta as herdeiras liberarem o outro grande livro sobre o compositor de Vila Isabel, “Noel Rosa, uma biografia”, de João Máximo e Carlos Didier, lançado em 1990, pela Editora UnB.
Invasão de privacidade
O Care, salão chique em Ipanema, não se limitou a pôr câmeras de segurança pela sala. O que se diz é que espalhou também gravadores que têm captado as conversas entre funcionários e clientes. Será?
Eu apoio
A Comissão de Viação e Transportes da Câmara aprovou o projeto de lei 173/2011, que cria a Lei Seca no mar. O relator é o deputado Hugo Leal, autor da primeira Lei Seca.
Agora, antes de ir ao plenário, só falta ser analisado pela CCJC.
Indigestão
Dona Gramática foi fazer uma reserva no Olympe, restaurante chique do chef Claude Troisgros, no Jardim Botânico, e levou um susto. O e-mail padrão de confirmação diz que “avendo (ai!) necessidade de cancelar...”.
Melhor seria que, “havendo” interesse, a casa contratasse um professor de português.
—É difícil escapar deles durante a campanha. As confusões vêm depois.
Verde e amarelo
Empresas mamutes nacionais, como Vale, Gerdau, CSN e Usiminas, conversam para formar um consórcio A ideia é comprar o Porto de Açu, de Eike Batista. BNDES, Itaú e Bradesco acompanham as negociações.
Jogo jogado
O banqueiro André Esteves, 44 anos xodó do mundo das finanças, será recebido amanhã por Guido Mantega.
Em recente entrevista à “Veja” com o título “Estamos perdendo o jogo”, ele criticou a política econômica.
Massacre de índios nos EUA
Pelas últimas projeções de Ana Amélia Camarano, do Ipea, a população brasileira vai crescer em ritmo menor até aproximadamente 2030, quando começará a diminuir.
Para ela, nesta época, o contingente estará em torno de 208 milhões.
Segue...
Camarano lembra que o declínio da população por envelhecimento, com redução da fecundidade, é um fato novo.
— No último milênio, tivemos dois períodos de prolongado declínio populacional, mas por aumento da mortalidade. Um afetou a Europa (peste negra) e o outro, as Américas (extermínio da população indígena).
Viva Lygia!
A Universidade de Salamanca, na Espanha, vai fazer, em outubro, conferências sobre Lygia Fagundes Telles, que comemorou 90 anos.
O show de Vinicius
Haroldo Costa, 83 anos, amigo de Vinicius de Moraes, que o convidou em 1956 a protagonizar a peça “Orfeu da Conceição”, trava nova batalha.
Ele está às voltas com “Viva Vinicius Vive”, supershow em homenagem ao centenário do Poetinha, que deverá ser realizado no Teatro Municipal, em 30 de outubro.
Só que...
Costa conseguiu autorização para captar R$ 1.256.870 pela Lei Rouanet. Mas os patrocinadores estão ariscos.
Na verdade...
Há uma enorme distância entre conseguir autorização e o dinheiro de fato entrar na conta.
Em 2012, os produtores poderiam captar até R$ 5.368.853.171. Mas apenas R$ 1.270.945.070,44 foram arrecadados.
Quebra de protocolo
Filho de D. Joãozinho de Orleans e Bragança, D. João Felipe casou-se com Yasmine Paranaguá, em Paraty.
O pai do noivo não quis comunicar o casamento ao chefe da Casa Imperial do Brasil, D. Luiz de Orleans. Achou ultrapassado. Com isso, a noiva ficou sem o título de princesa.
No tempo de Noel
Fora das prateleiras há mais de 30 anos, o livro “No tempo de Noel Rosa”, escrito por Almirante, pesquisador pioneiro de
música brasileira nos anos de 1920 e amigo do compositor, vai voltar ao mercado esta semana.
A Sonora Editora teve a autorização das herdeiras para reeditar a obra.
Aliás...
Só falta as herdeiras liberarem o outro grande livro sobre o compositor de Vila Isabel, “Noel Rosa, uma biografia”, de João Máximo e Carlos Didier, lançado em 1990, pela Editora UnB.
Invasão de privacidade
O Care, salão chique em Ipanema, não se limitou a pôr câmeras de segurança pela sala. O que se diz é que espalhou também gravadores que têm captado as conversas entre funcionários e clientes. Será?
Eu apoio
A Comissão de Viação e Transportes da Câmara aprovou o projeto de lei 173/2011, que cria a Lei Seca no mar. O relator é o deputado Hugo Leal, autor da primeira Lei Seca.
Agora, antes de ir ao plenário, só falta ser analisado pela CCJC.
Indigestão
Dona Gramática foi fazer uma reserva no Olympe, restaurante chique do chef Claude Troisgros, no Jardim Botânico, e levou um susto. O e-mail padrão de confirmação diz que “avendo (ai!) necessidade de cancelar...”.
Melhor seria que, “havendo” interesse, a casa contratasse um professor de português.
A magia da figura - FERREIRA GULLAR
FOLHA DE SP - 11/08
A figura quase desapareceu da arte, porque virou mancha ou foi substituída pela própria coisa
Já no começo do começo, a arte tinha duas faces: uma figurativa e outra não figurativa ou decorativa, sendo que a primeira expressava nosso fascínio pela imagem da coisa real que, para o homem do paleolítico, não era simples imagem e, sim, um outro modo de ela existir.
Tanto pensava assim que, ao desenhar um bisão na parede da caverna, crava-o de setas, certo de que, com isso, magicamente, atingiria o bisão real e facilitaria caçá-lo.
Naturalmente, com a evolução do conhecimento objetivo da realidade, essa identificação da imagem com o ser real se desfez; não obstante, até hoje aquele fascínio se mantém, tendo atravessado as mais diversas civilizações e conceitos de realidade e cultura.
É isso que explica a presença da expressão figurativa nas pinturas murais, nos relevos e nas esculturas, representando o mundo imaginário dos mitos e dos deuses.
Já bem mais perto de nós, no renascimento, a representação da figura humana tenta ultrapassar a fantasia para captar a realidade mesma em sua materialidade. Disso resultou, na verdade, outro tipo de fantasia, pelo simples fato de que a representação da coisa não é a coisa.
Data daí o que se entende por arte da pintura no mundo ocidental e que ampliou a representação das formas e coisas para criar cenas, paisagens e representação de fatos mitológicos, históricos e cotidianos.
Nesse processo, elaborou-se uma linguagem que, além de representar seres e cenas, criou uma espécie de espaço fictício, que emprestou tridimensionalidade à superfície bidimensional da tela.
Esse universo pictórico é implodido no começo do século 20, quando, ao desintegrar-se a linguagem figurativa, ocorreu uma descoberta revolucionária: a de que todas as formas têm expressão, mesmo que nada representem; por exemplo, um pedaço de papel amassado é uma expressão e, conforme a cor que tenha, será uma expressão diferente.
Essa descoberta teve consequências importantes no campo das artes plásticas. Dela advieram as tendências expressionistas, cubistas e, como consequência extrema, a pintura tachista que, como diz o nome, é feita de manchas.
De todo esse processo --que descrevo de maneira simplificada-- surgiria o que se conhece como arte conceitual ou arte contemporânea, cuja característica principal é usar as próprias coisas, não a imagem delas, como expressão.
Claro que as coisas --seja uma pessoa, um animal, um objeto-- são em si mesmos expressões. Isso vale tanto para um objeto natural --um animal, uma pedra-- como para um produto industrial. Tal é o caso do famoso urinol que Marcel Duchamp enviou para a exposição de Nova York, em 1917, tendo-lhe posto um nome ("Fontaine") e uma assinatura fictícia (R. Mutt).
Sucede que, por isso mesmo, essa "obra" não tem a magia do objeto de arte ou, se a tem, está oculta por sua condição natural ou por sua finalidade utilitária que, no exemplo citado, nada tem de mágico ou poético, muito pelo contrário. Para lhe devolver o significado mágico, há que deslocá-lo da situação habitual, da sua funcionalidade. Quem descobriu isso foi Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, ao escrever em "Les Chants de Maldoror", o seguinte: "belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura ou um guarda-chuva sobre uma mesa de necrotério".
Claro, se ponho um objeto qualquer numa situação inusitada, torno-o "desconhecido" e, por isso, mostro-lhe a forma que se apresenta estranha. Sucede que esse é um efeito circunstancial e fugaz, já que, em seguida, a surpresa se desfaz e o guarda-chuva volta a ser mero guarda-chuva, como o urinol de Duchamp de há muito voltou a ser mero urinol, enquanto que a magia da imagem pictórica é permanente, porque inata, essencial.
Uma natureza morta de Morandi, por exemplo, mantém essa magia, esteja o quadro onde estiver. Transformadas em pintura, suas garrafas jamais voltarão a ser meras garrafas.
Enfim, só nos resta constatar que a figura quase que desapareceu da linguagem da arte, ou porque virou mancha ou porque foi substituída pela própria coisa. Não obstante, a imagem figurativa, que nasceu com o ser humano nas cavernas, não morreu: renasceu, faz pouco, nos muros das cidades, à revelia do mercado de arte e graça ao talento dos jovens grafiteiros.
A figura quase desapareceu da arte, porque virou mancha ou foi substituída pela própria coisa
Já no começo do começo, a arte tinha duas faces: uma figurativa e outra não figurativa ou decorativa, sendo que a primeira expressava nosso fascínio pela imagem da coisa real que, para o homem do paleolítico, não era simples imagem e, sim, um outro modo de ela existir.
Tanto pensava assim que, ao desenhar um bisão na parede da caverna, crava-o de setas, certo de que, com isso, magicamente, atingiria o bisão real e facilitaria caçá-lo.
Naturalmente, com a evolução do conhecimento objetivo da realidade, essa identificação da imagem com o ser real se desfez; não obstante, até hoje aquele fascínio se mantém, tendo atravessado as mais diversas civilizações e conceitos de realidade e cultura.
É isso que explica a presença da expressão figurativa nas pinturas murais, nos relevos e nas esculturas, representando o mundo imaginário dos mitos e dos deuses.
Já bem mais perto de nós, no renascimento, a representação da figura humana tenta ultrapassar a fantasia para captar a realidade mesma em sua materialidade. Disso resultou, na verdade, outro tipo de fantasia, pelo simples fato de que a representação da coisa não é a coisa.
Data daí o que se entende por arte da pintura no mundo ocidental e que ampliou a representação das formas e coisas para criar cenas, paisagens e representação de fatos mitológicos, históricos e cotidianos.
Nesse processo, elaborou-se uma linguagem que, além de representar seres e cenas, criou uma espécie de espaço fictício, que emprestou tridimensionalidade à superfície bidimensional da tela.
Esse universo pictórico é implodido no começo do século 20, quando, ao desintegrar-se a linguagem figurativa, ocorreu uma descoberta revolucionária: a de que todas as formas têm expressão, mesmo que nada representem; por exemplo, um pedaço de papel amassado é uma expressão e, conforme a cor que tenha, será uma expressão diferente.
Essa descoberta teve consequências importantes no campo das artes plásticas. Dela advieram as tendências expressionistas, cubistas e, como consequência extrema, a pintura tachista que, como diz o nome, é feita de manchas.
De todo esse processo --que descrevo de maneira simplificada-- surgiria o que se conhece como arte conceitual ou arte contemporânea, cuja característica principal é usar as próprias coisas, não a imagem delas, como expressão.
Claro que as coisas --seja uma pessoa, um animal, um objeto-- são em si mesmos expressões. Isso vale tanto para um objeto natural --um animal, uma pedra-- como para um produto industrial. Tal é o caso do famoso urinol que Marcel Duchamp enviou para a exposição de Nova York, em 1917, tendo-lhe posto um nome ("Fontaine") e uma assinatura fictícia (R. Mutt).
Sucede que, por isso mesmo, essa "obra" não tem a magia do objeto de arte ou, se a tem, está oculta por sua condição natural ou por sua finalidade utilitária que, no exemplo citado, nada tem de mágico ou poético, muito pelo contrário. Para lhe devolver o significado mágico, há que deslocá-lo da situação habitual, da sua funcionalidade. Quem descobriu isso foi Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont, ao escrever em "Les Chants de Maldoror", o seguinte: "belo como o encontro fortuito de uma máquina de costura ou um guarda-chuva sobre uma mesa de necrotério".
Claro, se ponho um objeto qualquer numa situação inusitada, torno-o "desconhecido" e, por isso, mostro-lhe a forma que se apresenta estranha. Sucede que esse é um efeito circunstancial e fugaz, já que, em seguida, a surpresa se desfaz e o guarda-chuva volta a ser mero guarda-chuva, como o urinol de Duchamp de há muito voltou a ser mero urinol, enquanto que a magia da imagem pictórica é permanente, porque inata, essencial.
Uma natureza morta de Morandi, por exemplo, mantém essa magia, esteja o quadro onde estiver. Transformadas em pintura, suas garrafas jamais voltarão a ser meras garrafas.
Enfim, só nos resta constatar que a figura quase que desapareceu da linguagem da arte, ou porque virou mancha ou porque foi substituída pela própria coisa. Não obstante, a imagem figurativa, que nasceu com o ser humano nas cavernas, não morreu: renasceu, faz pouco, nos muros das cidades, à revelia do mercado de arte e graça ao talento dos jovens grafiteiros.
Cataploft no panteão - ALDIR BLANC
O GLOBO - 11/08
Cataploft! Desmoronou um dos últimos ídolos de meu modesto panteão: Mário Covas. Segundo denúncias da Siemens, Covas favorecia um cartel para fraudes em licitações em várias obras. Geraldo Alckmin está metido na lama até os óculos, e também o severo José Serra. Que tucanagem! O Ministério Público reabriu 45 inquéritos em que há suspeita de fraude, só a fimose do iceberg. Fala-se em milhões de dólares pra lá e pra cá, jogadas com offshores, o escambau. Sempre surge um nome nas reportagens: Alstom, que, como Mamalufes e Horrorizes, não está nem aí.
Viremos o disco, um LP bem arranhado: advogadinho de notório plano de doença ganhou a presidência da Agência Nacional de Saúde, um escândalo monstruoso. A iminência marrom por trás dessa armação já havia, em conluio com o PCdoB, transformado o Cremerj em cobertura de suas jogadas. Ele apronta, o Conselhos varre pra baixo do tapete. Sobrou também para o presidente do Fluminense, Peter Siem Sen-Calças, que proibira a contratação do técnico Luxa.
No dia seguinte, Luxa era alçado ao cargo, por ordem do verdadeiro patrão de Sen-Calças.
Manda quem pode, obedece quem não tem balls. Aconteceu ainda a farsa que aprovou a "reforma" do Ecad, depois de um piquenique cheio de colaboracionistas, quintas-colunas, a tradicional flora & fauna se divertindo. Houve antes uma CPIsca, pautada pelo Creative Commons, presidida por dois senadôs: Randolph, do PSCURO, e Lindberg, da facção PTraste. Randolph declarou a um jornal ter conversado comigo sobre o assunto. Mentira. Nunca falei com ele, nem o vi mais sórdido.
Queixei-me ao amigo de juventude, Chico Alencar. Chico achava que Randolph se desculparia. Nunca o fez - ou o fezes, tanto faz. Lindberg, vulgo Lindinho, procurou a então ministra da Cultura, Ana de Hollanda, para "acesso a dados". Ana o ajudou e notou o desplante com que Lindinho argumentava na CPI de forma diametralmente oposta ao que dissera para a ministra. Vendo-o, depois, passar no corredor, a ministra o chamou - e o garotão correu. Isso mesmo: fugiu da raia. Findo o festivo convescote, tivemos a aprovação da reforma, em caráter urgente- urgentíssimo, obra de uma parlamentável do - olha ele aí de novo! - PCdoB, figura nefanda que já assestara uma tremenda rasteira em Ivan Cosenza, filho do Henfil, quando Ivan tentou levar o Instituto com o nome de seu pai para o antigo Castelinho. Com esquerda assim, cacetada, quem é que precisa de direita? Vão se fifar! Em resumo: como disse a socialite, amásia de um figurão do COB, "entrei na manifestação e pedi a meu chauffeur norugo-cearense, Raimundsson, que jogasse minha bolsa Prada numa vitrine e roubasse uns lenços lindíssimos.
Fiquei tão feliz que nem fui para a aula com meu personal amasso, o Dr.
Peg-Ypow, mestre em orgasmos simultâneos, o Tai-Xot-Uau!" Só dói etc. Qualquer movimento que alije do cenário político um elemento rico, inepto, falso, como Geraldo Alckmin, terá prestado um favor ao país.
Fui, junto com o "Washington Post": Bezos y frio en el alma.
Viremos o disco, um LP bem arranhado: advogadinho de notório plano de doença ganhou a presidência da Agência Nacional de Saúde, um escândalo monstruoso. A iminência marrom por trás dessa armação já havia, em conluio com o PCdoB, transformado o Cremerj em cobertura de suas jogadas. Ele apronta, o Conselhos varre pra baixo do tapete. Sobrou também para o presidente do Fluminense, Peter Siem Sen-Calças, que proibira a contratação do técnico Luxa.
No dia seguinte, Luxa era alçado ao cargo, por ordem do verdadeiro patrão de Sen-Calças.
Manda quem pode, obedece quem não tem balls. Aconteceu ainda a farsa que aprovou a "reforma" do Ecad, depois de um piquenique cheio de colaboracionistas, quintas-colunas, a tradicional flora & fauna se divertindo. Houve antes uma CPIsca, pautada pelo Creative Commons, presidida por dois senadôs: Randolph, do PSCURO, e Lindberg, da facção PTraste. Randolph declarou a um jornal ter conversado comigo sobre o assunto. Mentira. Nunca falei com ele, nem o vi mais sórdido.
Queixei-me ao amigo de juventude, Chico Alencar. Chico achava que Randolph se desculparia. Nunca o fez - ou o fezes, tanto faz. Lindberg, vulgo Lindinho, procurou a então ministra da Cultura, Ana de Hollanda, para "acesso a dados". Ana o ajudou e notou o desplante com que Lindinho argumentava na CPI de forma diametralmente oposta ao que dissera para a ministra. Vendo-o, depois, passar no corredor, a ministra o chamou - e o garotão correu. Isso mesmo: fugiu da raia. Findo o festivo convescote, tivemos a aprovação da reforma, em caráter urgente- urgentíssimo, obra de uma parlamentável do - olha ele aí de novo! - PCdoB, figura nefanda que já assestara uma tremenda rasteira em Ivan Cosenza, filho do Henfil, quando Ivan tentou levar o Instituto com o nome de seu pai para o antigo Castelinho. Com esquerda assim, cacetada, quem é que precisa de direita? Vão se fifar! Em resumo: como disse a socialite, amásia de um figurão do COB, "entrei na manifestação e pedi a meu chauffeur norugo-cearense, Raimundsson, que jogasse minha bolsa Prada numa vitrine e roubasse uns lenços lindíssimos.
Fiquei tão feliz que nem fui para a aula com meu personal amasso, o Dr.
Peg-Ypow, mestre em orgasmos simultâneos, o Tai-Xot-Uau!" Só dói etc. Qualquer movimento que alije do cenário político um elemento rico, inepto, falso, como Geraldo Alckmin, terá prestado um favor ao país.
Fui, junto com o "Washington Post": Bezos y frio en el alma.
Lady Fernanda - MÔNICA BERGAMO
FOLHA DE SP - 11/08
Com audiência alta na série de yoga do canal GNT e baixa num seriado da TV Globo, Fernanda Young diz que "o ibope é uma burrice" e afirma que, como "as pessoas mentem", toda pesquisa acaba sendo "cretina"
É na rua Rego Freitas, no centro de São Paulo, com alguns travestis por perto ao cair da tarde, que a escritora, atriz e apresentadora Fernanda Young, 43, recebe o repórter Morris Kachani. "Aqui eu me sinto segura", vai logo dizendo, para emendar, desculpando-se pelo atraso de cerca de 20 minutos: "É que eu me perdi. Sou disléxica, e isso não é charme".
O encontro se dá em frente ao prédio onde ela mantém seu aconchegante estúdio de trabalho. As referências à pintora mexicana Frida Kahlo são várias. Há uma cama, a mesa de trabalho, e acima de sua cabeceira um retrato de Ernest Hemingway autografado pelo escritor. Young diz ter lido a obra completa de Freud e Schopenhauer.
Este parecia ser um ano promissor para ela e Alexandre Machado, 53, seu marido e parceiro, com quem cria roteiros para a TV Globo e o GNT. Sucessos como "Os Normais" são de sua lavra.
"O Dentista Mascarado", roteiro do casal que marcaria a estreia de Marcelo Adnet, foi a grande aposta da emissora carioca no primeiro semestre. Mas a audiência deixou a desejar. O seriado se manteve inicialmente na média de 17 pontos do ibope, e depois caiu para 12.
As críticas também não ajudaram. O humorístico foi qualificado de vulgar, sem graça, hierarquizado e com o talento de improvisação de Adnet subjugado pelo script.
"Não foi um fracasso. Me nego", afirma Young. Ela elogia Adnet: "Um gênio, da categoria de Jô ou Chico Anysio". Reclama da "sobrecarga enorme de virulência e inveja". E diz que "o ibope é uma burrice. Hoje só temos essa medida, que infelizmente é financeira. Toda pesquisa é cretina, porque as pessoas mentem".
"O programa não tinha o tom do texto. TV não se faz individualmente, você não tem autoria nenhuma."
Um dia depois, Alexandre Machado receberia a reportagem no apartamento dúplex do casal, em Higienópolis. "Obviamente foi decepcionante", afirmou. "Não foi a primeira vez que fizemos algo estranho." Ele cita as séries "Os Aspones" e "O Sistema". "Não acredito que houve erro. Houve talvez uma mistura de gêneros de humor, da baixaria à piada esperta, que pode ter confundido."
Alexandre e Fernanda trabalham em horários diferentes, em lugares diferentes, e até em camas diferentes eles dormem. Em geral, quem finaliza os textos é ele. "Sou mais ligado na matemática dos roteiros, ela não tem muita paciência para isso."
Fernanda "sempre foi esquisita", diz. "Hoje em dia é uma lady, comparada com quando a conheci, há 20 anos. O pessoal tinha medo dela". O primeiro encontro foi na boate Crepúsculo de Cubatão, de Ronald Biggs. Alexandre costumava lhe atribuir notas --no jeito de se vestir, em alguma atuação etc.
Ela diz ter "obras de arte" no guarda-roupa, como um vestido de Alexandre McQueen. "Não visto nada que seja descartável, não sigo tendências." No corpo, a escritora tem 46 imagens tatuadas.
"Por que sou controversa e não símbolo sexual?", pergunta. "Quero fazer os outros rirem, debochando de minha própria cara", responde.
Ela e Alexandre têm duas filhas gêmeas, Cecilia Madonna e Estela Max, e os caçulas John Gopala e Catarina Lakshimi, que são adotados. Os nomes dos quatro são homenagens a Santa Cecília, Paul McCartney, Lennon, Santa Catarina e "divindades hinduístas". Ser mãe, comenta, é duro. "Exijo indenização. Por que não me avisaram?" Preocupações recentes fizeram seu "botox despencar".
"Escutar o barulho da máquina de lavar acaba com minha poesia", diz. "Patati Patatá", que uma das gêmeas pediu para ser tema de festa de aniversário, "é a ausência máxima de um verso".
Ela conta que, no espelho do seu banheiro, escreveu "autoestima". "Sou tão sem estima que posso ganhar o Oscar." A casa está repleta de fotos dela superproduzida.
Fernanda não participou dos protestos de junho "porque votei certo --não no PT". Acha que "o brasileiro deveria ser punido com quatro anos sem carnaval, para refletir". E elogia SP. "O paulista sabe ser educado com o diferente; no Rio, não, o branco por lá sofre racismo."
O primeiro semestre também foi marcado pela estreia da série "Surtadas na Yoga", no GNT. Num episódio, a personagem interpretada por ela leva cerveja em uma garrafa de plástico para a aula. Em outro, há uma ereção durante os exercícios. A audiência no horário cresceu 66%.
Nas redes sociais, as críticas se multiplicaram. "É muito baixo nível, não é engraçado nem inteligente", afirma Anderson Allegro, diretor da escola de yoga Aruna. "Aquilo podia ser no cabeleireiro."
Fernanda se defende: "Misturamos tudo para fazer piada. Quem se aborrece é bobo". Para Alexandre, que costuma meditar diariamente, "as pessoas sabem que o ser humano pode estar pensando um monte de besteira enquanto entoa o [mantra] OM'". A escritora, que se diz seguidora do hinduísmo, afirma que "yoga não foi feita para mim, me dá uma vontade danada de rir. Tenho esse espírito de porco".
Ela agora prepara para estrear um programa de rádio diário, "Na Fossa com Fernanda", pela Eldorado, "uma espécie de consultório sentimental com muito blues".
Durante a entrevista com a Folha, ela tomou quatro garrafas de cerveja long neck. Saiu atrasada para uma reunião de condomínio em que discutiria a construção de novas garagens em seu prédio. Chegou ao encontro e disse: "Eu não tenho dinheiro". Os vizinhos ficaram "atônitos", segundo ela. "E eu subi, estava com vontade de fazer xixi! kkkkk", contou um dia depois, numa mensagem enviada pelo celular.
É na rua Rego Freitas, no centro de São Paulo, com alguns travestis por perto ao cair da tarde, que a escritora, atriz e apresentadora Fernanda Young, 43, recebe o repórter Morris Kachani. "Aqui eu me sinto segura", vai logo dizendo, para emendar, desculpando-se pelo atraso de cerca de 20 minutos: "É que eu me perdi. Sou disléxica, e isso não é charme".
O encontro se dá em frente ao prédio onde ela mantém seu aconchegante estúdio de trabalho. As referências à pintora mexicana Frida Kahlo são várias. Há uma cama, a mesa de trabalho, e acima de sua cabeceira um retrato de Ernest Hemingway autografado pelo escritor. Young diz ter lido a obra completa de Freud e Schopenhauer.
Este parecia ser um ano promissor para ela e Alexandre Machado, 53, seu marido e parceiro, com quem cria roteiros para a TV Globo e o GNT. Sucessos como "Os Normais" são de sua lavra.
"O Dentista Mascarado", roteiro do casal que marcaria a estreia de Marcelo Adnet, foi a grande aposta da emissora carioca no primeiro semestre. Mas a audiência deixou a desejar. O seriado se manteve inicialmente na média de 17 pontos do ibope, e depois caiu para 12.
As críticas também não ajudaram. O humorístico foi qualificado de vulgar, sem graça, hierarquizado e com o talento de improvisação de Adnet subjugado pelo script.
"Não foi um fracasso. Me nego", afirma Young. Ela elogia Adnet: "Um gênio, da categoria de Jô ou Chico Anysio". Reclama da "sobrecarga enorme de virulência e inveja". E diz que "o ibope é uma burrice. Hoje só temos essa medida, que infelizmente é financeira. Toda pesquisa é cretina, porque as pessoas mentem".
"O programa não tinha o tom do texto. TV não se faz individualmente, você não tem autoria nenhuma."
Um dia depois, Alexandre Machado receberia a reportagem no apartamento dúplex do casal, em Higienópolis. "Obviamente foi decepcionante", afirmou. "Não foi a primeira vez que fizemos algo estranho." Ele cita as séries "Os Aspones" e "O Sistema". "Não acredito que houve erro. Houve talvez uma mistura de gêneros de humor, da baixaria à piada esperta, que pode ter confundido."
Alexandre e Fernanda trabalham em horários diferentes, em lugares diferentes, e até em camas diferentes eles dormem. Em geral, quem finaliza os textos é ele. "Sou mais ligado na matemática dos roteiros, ela não tem muita paciência para isso."
Fernanda "sempre foi esquisita", diz. "Hoje em dia é uma lady, comparada com quando a conheci, há 20 anos. O pessoal tinha medo dela". O primeiro encontro foi na boate Crepúsculo de Cubatão, de Ronald Biggs. Alexandre costumava lhe atribuir notas --no jeito de se vestir, em alguma atuação etc.
Ela diz ter "obras de arte" no guarda-roupa, como um vestido de Alexandre McQueen. "Não visto nada que seja descartável, não sigo tendências." No corpo, a escritora tem 46 imagens tatuadas.
"Por que sou controversa e não símbolo sexual?", pergunta. "Quero fazer os outros rirem, debochando de minha própria cara", responde.
Ela e Alexandre têm duas filhas gêmeas, Cecilia Madonna e Estela Max, e os caçulas John Gopala e Catarina Lakshimi, que são adotados. Os nomes dos quatro são homenagens a Santa Cecília, Paul McCartney, Lennon, Santa Catarina e "divindades hinduístas". Ser mãe, comenta, é duro. "Exijo indenização. Por que não me avisaram?" Preocupações recentes fizeram seu "botox despencar".
"Escutar o barulho da máquina de lavar acaba com minha poesia", diz. "Patati Patatá", que uma das gêmeas pediu para ser tema de festa de aniversário, "é a ausência máxima de um verso".
Ela conta que, no espelho do seu banheiro, escreveu "autoestima". "Sou tão sem estima que posso ganhar o Oscar." A casa está repleta de fotos dela superproduzida.
Fernanda não participou dos protestos de junho "porque votei certo --não no PT". Acha que "o brasileiro deveria ser punido com quatro anos sem carnaval, para refletir". E elogia SP. "O paulista sabe ser educado com o diferente; no Rio, não, o branco por lá sofre racismo."
O primeiro semestre também foi marcado pela estreia da série "Surtadas na Yoga", no GNT. Num episódio, a personagem interpretada por ela leva cerveja em uma garrafa de plástico para a aula. Em outro, há uma ereção durante os exercícios. A audiência no horário cresceu 66%.
Nas redes sociais, as críticas se multiplicaram. "É muito baixo nível, não é engraçado nem inteligente", afirma Anderson Allegro, diretor da escola de yoga Aruna. "Aquilo podia ser no cabeleireiro."
Fernanda se defende: "Misturamos tudo para fazer piada. Quem se aborrece é bobo". Para Alexandre, que costuma meditar diariamente, "as pessoas sabem que o ser humano pode estar pensando um monte de besteira enquanto entoa o [mantra] OM'". A escritora, que se diz seguidora do hinduísmo, afirma que "yoga não foi feita para mim, me dá uma vontade danada de rir. Tenho esse espírito de porco".
Ela agora prepara para estrear um programa de rádio diário, "Na Fossa com Fernanda", pela Eldorado, "uma espécie de consultório sentimental com muito blues".
Durante a entrevista com a Folha, ela tomou quatro garrafas de cerveja long neck. Saiu atrasada para uma reunião de condomínio em que discutiria a construção de novas garagens em seu prédio. Chegou ao encontro e disse: "Eu não tenho dinheiro". Os vizinhos ficaram "atônitos", segundo ela. "E eu subi, estava com vontade de fazer xixi! kkkkk", contou um dia depois, numa mensagem enviada pelo celular.
Pai - CAETANO VELOSO
O GLOBO - 11/08
O desaparecimento de Amarildo Dias de Souza, depois de ter sido levado à UPP da Rocinha, é o acontecimento mais impactante nesse período de eventos marcantes na cidade. É, na verdade, dilacerante saber que um pai de família sumiu sem que autoridades que o levaram tenham apresentado explicações para o fato, apenas porque isso seria tido como natural no ambiente onde ele vivia. Quando multidões de jovens saem às ruas para exigir responsabilidade de seus governantes, ter a polícia admitindo ocorrência tão terrível é sinal de que as partes da nossa sociedade vinham mesmo se comunicando muito insatisfatoriamente entre si. O cuidado extremo deveria pautar as ações policiais. Mas não. Além dos abusos exibidos na repressão às passeatas, o desrespeito à vida dessa família grita que a brutalidade contra os cidadãos pobres não quer nem mesmo fingir que se envergonha de perpetuar-se.
Quando eu estava num xadrez da Polícia do Exército, durante o governo militar, no quartel de Deodoro, ouvi diversas vezes, à noite, gritos e gemidos estarrecedores, não raro seguidos de comandos de emergência, “traz a padiola”, os urros da vítima dando lugar, depois de uns segundos de silêncio terrível, à azáfama dos algozes. Eu estava entre presos políticos (Gil, Ferreira Gullar, Antonio Callado, Paulo Francis, Perfeito Fortuna eram alguns deles) e havia uma ordem de não nos molestar, agredir ou ferir. Os companheiros de xadrez (estávamos divididos em dois grupos, cada um numa cela) diziam que aqueles gritos podiam ser de outros presos políticos, trazidos de diferentes quartéis, os quais não seriam, como nós, meros artistas, intelectuais e estudantes acusados de subversão, mas ativistas ligados à luta armada. No entanto, a hipótese mais resistente (talvez contando com coisas entreouvidas aos carcereiros) era a de que fossem “criminosos comuns”, gente pobre dos subúrbios e das favelas a sofrerem aqueles maus tratos (alguns pareciam perder a vida nessas sessões).
Desde então fiquei com uma ideia da sociedade brasileira que eu não seria capaz de conceber antes. Estivera sempre entre pessoas que queriam lutar contra a desigualdade. Mas eu vinha de uma cidade pequena e calma, sem ninguém muito rico nem muito pobre. Numa região úmida e fértil, na saída de um rio, não se viam pessoas passando fome. Havia os loucos de rua: eram achincalhados pelas crianças e tratados com condescendência pelos adultos. Na cadeia municipal às vezes ia parar um ladrão, um suspeito de crime passional cometido na área rural, uns moleques que brigavam embriagados. Pertencendo a uma baixa classe média de uma cidade em que os extremos não eram evidentes, concebíamos a disparidade social quase abstratamente. Meu pai tinha amigos de esquerda, a maioria vivendo em Salvador e todos com formação intelectual sólida. Havia um comunista que me comovia: era um barbeiro, mulato claro, alto, de origem claramente popular. Na verdade, era o único, em minha cidade, de quem se dizia pertencer ao Partido Comunista Brasileiro. Drogas, só em filmes americanos e em lendas que rodeavam a fama de grandes músicos de jazz não brasileiros e, entre os nossos, a de Orlando Silva e Lúcio Alves. A possibilidade de que, no quartel da PE, gente pobre pudesse estar sendo espancada me levou à sensação amarga quase traduzível pelo “odeio o Brasil” que, dolorosamente, nomeou um artigo de Francisco Bosco não faz muito tempo.
Mas o Brasil da violência cruel contra cidadãos indefesos é mesmo digno de ser odiado. Sem alguma fúria e certa gravidade não estaremos nem mesmo pensando sobre o Brasil. Essa lição que aprendi em Deodoro, em 1968, nunca foi esquecida. E seu sentido vem à tona diante de um caso como o de Amarildo, um ajudante de pedreiro, conhecido pelos vizinhos como homem muito trabalhador, pai de seis filhos, que sumiu, repito, ao ser levado para a UPP da Rocinha. E justo nesse julho. E logo numa UPP. É doloroso que os mínimos movimentos que sugerem ação eficaz do estado na sociedade se exponham assim como que a clamar por revolta. Há umas quase injustiças históricas na situação densa que estamos vivendo. Mas trata-se de outra coisa. Trata-se de termos carregado desde sempre males muito profundos, e quando eles esboçam se expressar formam zonas de desacertos, sensação de desperdício, incômodo dobrado.
As lojas, a mídia, o povo, todos celebram neste domingo o Dia dos Pais. Que todo o país pense nesse pai de seis como o representante do Pai que dá à pátria o nome de pátria.
Temos de encarar o problema da injustiça. O Brasil luminoso só surgirá se superarmos o que somos. É o nome de Amarildo que devemos repetir para todos e para cada um de nós mesmos.
Receita de meditação - CARLOS AYRES BRITTO
ZERO HORA - 11/08
Basta juntar três ingredientes. Apenas três, cujos nomes são: isolamento, quietude, silêncio
Depois de exercitar a meditação oriental por 20 anos, chego à conclusão de que ela ajuda muito a ler os movimentos labiais do tempo. A tocar na pele das cores com dedos de cetim. A fisgar o silêncio e a deixar-se deglutir por ele. A engatar na subida do êxtase uma recidiva azul. Mas não é só. A meditação auxilia a compreender que a silhueta da verdade só assenta em vestidos transparentes. Que sem o eclipse do ego ninguém se ilumina. Que as nossas rugas aumentam para que as nossas rusgas diminuam. Que somente os súditos do amor é que são soberanos na vida, porque o único espantalho de Deus que funciona é um coração fechado.
Num esforço ainda maior de síntese, afirmo que a meditação é a melhor amiga do nosso equilíbrio psicofísico e crescimento espiritual. Um dos mais aplainados caminhos para nos devolver à condição de gente. Ser humano. Mas ser humano por sentir e pensar, nessa ordem, em grau de refinamento superior ao de qualquer outro espécime animal. E que bem pode conciliar essas duas elementares dimensões do ser para, num salto quântico ou de superlativa qualidade, partejar o rebento da consciência. O que já significa o alcance de um estado tão maduro de formação subjetiva que nos dá a quase antecipada certeza do bom uso individual e social das informações com que a vida contemporânea nos abarrota. Livres que tendemos a ficar daqueles rompantes de um temperamento sanguíneo que nos torna fios desencapados ou granada de pino puxado em face de pessoas e fatos que eventualmente nos contrariem.
Que fazer, então, para nos entregar de corpo e alma (pra não dizer de “mala e cuia”) a essa tão miraculosa fada-madrinha que estamos a chamar de meditação? A receita é simples. Basta juntar três ingredientes. Apenas três, cujos nomes são: isolamento, quietude, silêncio. Receituário que abre para o ser humano a forte possibilidade de sua transformação em hotel de infinitas estrelas onde possam se hospedar, como ótimos vizinhos de quarto, o profano e o divino. A serenidade e a sensatez. A ternura e a firmeza.
Vamos repetir: primeiro que tudo, o isolamento. O ficar sozinho ou no mais dentro de nós mesmos, ainda que haja alguém por perto. Alguém por perto, pode acontecer, mas sempre do lado de fora da nossa mais centrada introspecção. Do nosso voo solo em demanda de altitudes a que só podemos chegar sem a companhia de quem quer que seja. Em segundo lugar, a quietude. Mas uma quietude que signifique pisar forte no freio do bulício pessoal. O estar a salvo do vai-e-vem do pescoço, do nervoso balanço das pernas, da curiosidade dos olhos por tudo em volta e da mexida das mãos pelo nosso corpo e pelas solícitas franjas do ar. Por último, o silêncio. O nosso próprio e absoluto silêncio. Não o dos outros. Não dos automóveis, animais, pássaros, do balançar de árvores e do estalar dos raios.
Pois bem, presentes que estejam os três estratégicos ingredientes do isolamento, do silêncio e da meditação, o que nos cabe é fechar os olhos e ficar ao dispor deles. Inteira e confiantemente. Eles que façam de nós o que bem entenderem, pois sempre que os três se juntam é para se transfundir num único ser. Para personalizar-se num autonomizado ente. Numa espécie de maestro que nos ensina a tocar a sinfonia do tudo ouvir sem dar a menor opinião. Acriticamente. Como uma testemunha que persiste neutra até mesmo quando se vê como o foco de sua observação. O meditante enquanto sujeito que testemunha e pessoa testemunhada, ao mesmo tempo, sem que nenhum “dos dois” palpite sobre nada.
Para essa predisposição de entrega tão completa quanto confiante ao referido ser trino e ao mesmo tempo uno, ajuda o entrelaçar das pernas em posição de Buda. Que é a conhecida posição de lótus. Um minuto, dois minutos, dez minutos, vinte minutos por dia, o que der… Aí é só esperar que o novo ser a que nos entregamos nos premie com vislumbres, lampejos, flashes do infinito e do eterno. Frestas que se abrem para o Céu, falemos assim. É o que nos basta para esvaziar a mente e ver esse vazio instantaneamente preenchido pelo Universo. Não esvaziar a mente por um subjetivo querer do meditante, mas por uma objetiva vontade do isolamento, da quietude e do silêncio em absoluto estado de osmose. E a cada vez que se dá esse mágico instante de tomada do meditante pelo Universo, sobrevém a certeza de que o nada não pode ser o derradeiro anfitrião de tudo.
Basta juntar três ingredientes. Apenas três, cujos nomes são: isolamento, quietude, silêncio
Depois de exercitar a meditação oriental por 20 anos, chego à conclusão de que ela ajuda muito a ler os movimentos labiais do tempo. A tocar na pele das cores com dedos de cetim. A fisgar o silêncio e a deixar-se deglutir por ele. A engatar na subida do êxtase uma recidiva azul. Mas não é só. A meditação auxilia a compreender que a silhueta da verdade só assenta em vestidos transparentes. Que sem o eclipse do ego ninguém se ilumina. Que as nossas rugas aumentam para que as nossas rusgas diminuam. Que somente os súditos do amor é que são soberanos na vida, porque o único espantalho de Deus que funciona é um coração fechado.
Num esforço ainda maior de síntese, afirmo que a meditação é a melhor amiga do nosso equilíbrio psicofísico e crescimento espiritual. Um dos mais aplainados caminhos para nos devolver à condição de gente. Ser humano. Mas ser humano por sentir e pensar, nessa ordem, em grau de refinamento superior ao de qualquer outro espécime animal. E que bem pode conciliar essas duas elementares dimensões do ser para, num salto quântico ou de superlativa qualidade, partejar o rebento da consciência. O que já significa o alcance de um estado tão maduro de formação subjetiva que nos dá a quase antecipada certeza do bom uso individual e social das informações com que a vida contemporânea nos abarrota. Livres que tendemos a ficar daqueles rompantes de um temperamento sanguíneo que nos torna fios desencapados ou granada de pino puxado em face de pessoas e fatos que eventualmente nos contrariem.
Que fazer, então, para nos entregar de corpo e alma (pra não dizer de “mala e cuia”) a essa tão miraculosa fada-madrinha que estamos a chamar de meditação? A receita é simples. Basta juntar três ingredientes. Apenas três, cujos nomes são: isolamento, quietude, silêncio. Receituário que abre para o ser humano a forte possibilidade de sua transformação em hotel de infinitas estrelas onde possam se hospedar, como ótimos vizinhos de quarto, o profano e o divino. A serenidade e a sensatez. A ternura e a firmeza.
Vamos repetir: primeiro que tudo, o isolamento. O ficar sozinho ou no mais dentro de nós mesmos, ainda que haja alguém por perto. Alguém por perto, pode acontecer, mas sempre do lado de fora da nossa mais centrada introspecção. Do nosso voo solo em demanda de altitudes a que só podemos chegar sem a companhia de quem quer que seja. Em segundo lugar, a quietude. Mas uma quietude que signifique pisar forte no freio do bulício pessoal. O estar a salvo do vai-e-vem do pescoço, do nervoso balanço das pernas, da curiosidade dos olhos por tudo em volta e da mexida das mãos pelo nosso corpo e pelas solícitas franjas do ar. Por último, o silêncio. O nosso próprio e absoluto silêncio. Não o dos outros. Não dos automóveis, animais, pássaros, do balançar de árvores e do estalar dos raios.
Pois bem, presentes que estejam os três estratégicos ingredientes do isolamento, do silêncio e da meditação, o que nos cabe é fechar os olhos e ficar ao dispor deles. Inteira e confiantemente. Eles que façam de nós o que bem entenderem, pois sempre que os três se juntam é para se transfundir num único ser. Para personalizar-se num autonomizado ente. Numa espécie de maestro que nos ensina a tocar a sinfonia do tudo ouvir sem dar a menor opinião. Acriticamente. Como uma testemunha que persiste neutra até mesmo quando se vê como o foco de sua observação. O meditante enquanto sujeito que testemunha e pessoa testemunhada, ao mesmo tempo, sem que nenhum “dos dois” palpite sobre nada.
Para essa predisposição de entrega tão completa quanto confiante ao referido ser trino e ao mesmo tempo uno, ajuda o entrelaçar das pernas em posição de Buda. Que é a conhecida posição de lótus. Um minuto, dois minutos, dez minutos, vinte minutos por dia, o que der… Aí é só esperar que o novo ser a que nos entregamos nos premie com vislumbres, lampejos, flashes do infinito e do eterno. Frestas que se abrem para o Céu, falemos assim. É o que nos basta para esvaziar a mente e ver esse vazio instantaneamente preenchido pelo Universo. Não esvaziar a mente por um subjetivo querer do meditante, mas por uma objetiva vontade do isolamento, da quietude e do silêncio em absoluto estado de osmose. E a cada vez que se dá esse mágico instante de tomada do meditante pelo Universo, sobrevém a certeza de que o nada não pode ser o derradeiro anfitrião de tudo.
La donna è mobile, mas se move pouco - BELMIRO VALVERDE JOBIM CASTOR
GAZETA DO POVO - PR - 11/08
Há um paradoxo no governo da presidente Dilma Rousseff: confrontada com uma crise, ela improvisa uma solução sem ouvir quase ninguém e sem aprofundar o estudo das consequências possíveis e prováveis e, quando a solução se mostra impraticável – o que tem acontecido com assustadora frequência e rapidez –, ela a abandona para se abraçar a outra, igualmente improvisada, precedida de pouca reflexão e, como a primeira, fadada ao fracasso. Não é necessário lembrar os exemplos recentes para confirmar o que estou dizendo.
Mas onde está o paradoxo? Está no fato de que, tão expedita em alguns casos para indicar o que pretende fazer, a presidente é de uma morosidade exemplar na ação administrativa. Não é preciso ser nenhum gênio da economia e das finanças públicas para ver que as políticas do governo Dilma nessa área estão fazendo água há tempo. O ministro Guido Mantega perdeu totalmente credibilidade para fazer projeções e estimativas; as finanças públicas são maquiadas à custa de golpes de prestidigitação contábil, emprestando dinheiro às estatais para que estas paguem dividendos à União; a tal política dos “campeões nacionais”, em que o governo federal se empenhou nos últimos anos para criar empresas brasileiras de porte mundial, nada mais é que um rótulo para emprestar dinheiro para alguns empresários comprarem seus concorrentes; depois de muitos anos, a balança comercial neste ano vai fechar com déficit e, somados os serviços e os pagamentos de juros e encargos, o país vai precisar de quase US$ 90 bilhões em 2013. Correção de rumos, nem pensar. Trocar as pessoas, menos ainda.
Daí vem o PAC, do qual a presidente é mãe, segundo o ex-presidente Lula. Trata-se de uma gestação longa, mais longa mesmo que a do elefante asiático e da salamandra alpina, animais que segundo o Google têm gestações de 22 meses a três anos. Recentes relatórios oficiais demonstram que, quase sem exceção, as obras de grande porte do governo federal estão atrasadas, algumas há mais de quatro anos; apenas 7% das obras de saneamento incluídas no PAC foram realmente realizadas e na área viária os atrasos são colossais. Já a transposição do Rio São Francisco virou motivo de chacota por parte dos cínicos e de preocupações por parte dos controladores das finanças públicas.
A culpa é do governo? Só em parte, pois no Brasil o termo “projeto” é aplicado com largueza e muitas vezes um simples risco em um mapa é apresentado como projeto de uma determinada obra. Estudos detalhados, sondagens etc. só virão depois, se é que virão. Além disso, a administração brasileira se transformou num enorme sorvedouro de tempo e de recursos: relatórios ambientais podem demorar anos, daí vêm os interesses das minorias, dos negros, pardos, índios, quilombolas; os Ministérios Públicos não fazem por menos e por qualquer dá cá aquela palha estão promovendo o embargo e a paralisação das obras; os Tribunais de Contas, ciosos de sua autoridade e poder, passaram a interferir em todos os estágios de um projeto, dos mais relevantes aos mais insignificantes. E toca paralisação de obra, medida cautelar, embargos, suspensões e tudo o mais.
Em português claro e repetindo o que já disse aqui mesmo há tempos, a administração brasileira se transformou num imenso Não-Fazímetro-Nada, aquela máquina mítica que gasta energia, produz barulho e calor, mas não gera produtos importantes. E aí, para compensar, submete a presidente ao vexame de ficar viajando país afora para entregar máquinas de terraplenagem e pás carregadoras para municípios, quando deveria estar entregando obras de porte à altura de nosso país e de suas deficiências.
Há um paradoxo no governo da presidente Dilma Rousseff: confrontada com uma crise, ela improvisa uma solução sem ouvir quase ninguém e sem aprofundar o estudo das consequências possíveis e prováveis e, quando a solução se mostra impraticável – o que tem acontecido com assustadora frequência e rapidez –, ela a abandona para se abraçar a outra, igualmente improvisada, precedida de pouca reflexão e, como a primeira, fadada ao fracasso. Não é necessário lembrar os exemplos recentes para confirmar o que estou dizendo.
Mas onde está o paradoxo? Está no fato de que, tão expedita em alguns casos para indicar o que pretende fazer, a presidente é de uma morosidade exemplar na ação administrativa. Não é preciso ser nenhum gênio da economia e das finanças públicas para ver que as políticas do governo Dilma nessa área estão fazendo água há tempo. O ministro Guido Mantega perdeu totalmente credibilidade para fazer projeções e estimativas; as finanças públicas são maquiadas à custa de golpes de prestidigitação contábil, emprestando dinheiro às estatais para que estas paguem dividendos à União; a tal política dos “campeões nacionais”, em que o governo federal se empenhou nos últimos anos para criar empresas brasileiras de porte mundial, nada mais é que um rótulo para emprestar dinheiro para alguns empresários comprarem seus concorrentes; depois de muitos anos, a balança comercial neste ano vai fechar com déficit e, somados os serviços e os pagamentos de juros e encargos, o país vai precisar de quase US$ 90 bilhões em 2013. Correção de rumos, nem pensar. Trocar as pessoas, menos ainda.
Daí vem o PAC, do qual a presidente é mãe, segundo o ex-presidente Lula. Trata-se de uma gestação longa, mais longa mesmo que a do elefante asiático e da salamandra alpina, animais que segundo o Google têm gestações de 22 meses a três anos. Recentes relatórios oficiais demonstram que, quase sem exceção, as obras de grande porte do governo federal estão atrasadas, algumas há mais de quatro anos; apenas 7% das obras de saneamento incluídas no PAC foram realmente realizadas e na área viária os atrasos são colossais. Já a transposição do Rio São Francisco virou motivo de chacota por parte dos cínicos e de preocupações por parte dos controladores das finanças públicas.
A culpa é do governo? Só em parte, pois no Brasil o termo “projeto” é aplicado com largueza e muitas vezes um simples risco em um mapa é apresentado como projeto de uma determinada obra. Estudos detalhados, sondagens etc. só virão depois, se é que virão. Além disso, a administração brasileira se transformou num enorme sorvedouro de tempo e de recursos: relatórios ambientais podem demorar anos, daí vêm os interesses das minorias, dos negros, pardos, índios, quilombolas; os Ministérios Públicos não fazem por menos e por qualquer dá cá aquela palha estão promovendo o embargo e a paralisação das obras; os Tribunais de Contas, ciosos de sua autoridade e poder, passaram a interferir em todos os estágios de um projeto, dos mais relevantes aos mais insignificantes. E toca paralisação de obra, medida cautelar, embargos, suspensões e tudo o mais.
Em português claro e repetindo o que já disse aqui mesmo há tempos, a administração brasileira se transformou num imenso Não-Fazímetro-Nada, aquela máquina mítica que gasta energia, produz barulho e calor, mas não gera produtos importantes. E aí, para compensar, submete a presidente ao vexame de ficar viajando país afora para entregar máquinas de terraplenagem e pás carregadoras para municípios, quando deveria estar entregando obras de porte à altura de nosso país e de suas deficiências.
O escândalo do pensamento - MARCOS ROLIM
ZERO HORA - 11/08
Hannah Arendt será sempre uma inspiração, menos para aqueles que preferem o conforto dos chavões
A hipótese mais perturbadora de Hannah Arendt, apresentada em seu livro Eichmann em Jerusalém, é a de que o mal seja o resultado da ausência de pensamento. Diante do mal extremo _ aquele praticado pelos nazistas _ ela sustenta que a obra do extermínio só foi possível pelo concurso de milhares de pessoas “terrivelmente normais” e disciplinadas. É claro que, entre a turba de criminosos das polícias e dos guardas dos campos, havia fanáticos antissemitas, mas a proporção destes nunca foi maior do que a dos sádicos em qualquer sociedade. O que predominava, pelo contrário, era um tipo completamente diferente: conformista a ponto de servir a qualquer poder, interessado mais em seu bem estar pessoal do que na vitória da doutrina. Adolf Eichmann era um destes burocratas medíocres e foi na cobertura de seu julgamento em Jerusalém, em 1961, que a filósofa (que não gostava de ser chamada de filósofa) percebeu a contradição entre a dimensão do mal por ele produzido e sua pequenez como sujeito. O excepcional filme “Hannah Arendt”, de Margarethe Von Trotta, em cartaz em Porto Alegre, dá conta desta descoberta e da hostilidade com a qual as conclusões de Arendt foram recebidas por boa parte do público, a começar pela comunidade judaica. A afirmação de que Eichmann havia cometido atos monstruosos, mas que ele mesmo não era um “monstro”, como a imprensa da época o caracterizava, mas alguém incapaz de pensar _ igual a milhares de outros _ foi recebida pela crítica como uma “defesa” do criminoso. Ao mesmo tempo, o fato de Arendt _ alemã de origem judaica _ ter assinalado em seu texto que muitas lideranças judaicas da Europa ocupada colaboraram com os nazistas _ especialmente quando da organização e policiamento dos guetos _ agregou à autora dissabores e mesmo ameaças.
As posições de Arendt vinculam-se a sua compreensão do fenômeno totalitário. Para ela, nazismo e stalinismo possuem, a par de suas diferenças, o ponto comum de negação do universalismo. Para os regimes totalitários, os seres humanos não possuem os mesmos direitos. Alguns não possuem direitos ou não devem ser considerados “humanos”. O “inimigo”, de classe ou de raça, pouco importa, é sempre um inimigo extremo, o que justifica e exige medidas de extermínio. Ao lembrar disto, percebemos o quanto desta herança sobrevive, desde a popularidade do slogan “Direitos humanos para humanos direitos”, criado pela ditadura argentina e repetido, desde então, por quem não costuma pensar, até as inúmeras frases e opiniões em favor da exclusão, do sofrimento ou da morte de suspeitos ou condenados que se tornaram, infelizmente, comuns na blogosfera e mesmo na mídia tradicional.
Hannah Arendt inquieta porque é próprio do pensamento desarrumar o que, antes, parecia estabelecido e resolvido. Autora fundamental em um mundo onde o pensamento se confunde, cada vez mais, com um escândalo, Hannah Arendt será sempre uma inspiração, menos para aqueles que preferem o conforto dos chavões e da repetição à busca da verdade.
Pouco pode ser muito - TOSTÃO
FOLHA DE SP - 11/08
Nem todos os veteranos brilham no Brasileirão, e nem todos os que brilham são veteranos
Na coluna anterior, falei de Seedorf, que, além de jogar mais livre e mais próximo do gol do que antes, atua no Botafogo de maneira lúdica e criativa. Isso serve para outros veteranos que brilham no Brasileiro. Eles estão bem fisicamente e querem parar por cima. É a última chance de jogarem a grande pelada de suas vidas. Os maiores craques, em todas as atividades, são os que trabalham brincando, com seriedade.
O baixo nível técnico do Brasileirão facilita para os que sabem jogar, veteranos ou não. Muitos discordam. Uns, por convicções técnicas, usam de argumentos, mesmo quando não existem, para dizer que está tudo bem. Há ainda os pachecões, os Policarpos Quaresmas, que acham antipatriota criticar o que é nosso. Existem também os interesses econômicos, de que não se deve desvalorizar o produto futebol.
Durante e após os 8 a 0, muitos --não digo quem porque são inúmeros-- se concentraram nas críticas na falta de empenho dos jogadores e de planejamento da diretoria do Santos. Esqueceram do mais importante, a absurda diferença técnica entre os dois clubes. Mas isso é proibido falar, para não desvalorizar nosso futebol.
Imagine se o Brasil ganhar a Copa, o que tem boas chances de ocorrer. Felipão vai ganhar uma estátua, Marin se tornará herói, e todos os jogadores serão rotulados de craques. E nada vai mudar.
Volto aos veteranos. Alex continua com seu estilo de tocar a bola e de esperar o momento certo para tentar jogada excepcional, decisiva. Quando essa chance não surge, dizem que é um vaga-lume, que acende e apaga. Não entendem sua genialidade.
Há jogadores que correm muito, que ficam muito com a bola, que driblam muito, que dão muitos passes, que finalizam muito, que trombam muito, que caem muito, que reclamam muito, mas que jogam pouco. O pouco de Alex é muito.
Zé Roberto e Juninho Pernambucano disputaram a posição de titular na Copa de 2006. Zé Roberto ganhou e fez parte da seleção do Mundial. Os dois não são típicos volantes nem típicos meias. São armadores, defensivos e ofensivos.
Juan é um dos raros zagueiros que anteveem o passe, antecipam e ainda têm um bom passe. Não tromba com o atacante, não cai nem dá carrinhos. Joga futebol.
Sugiro que, no fim do ano, escolham também o melhor veterano, como tem a melhor revelação. Há uma grande chance de o melhor veterano ser o melhor do campeonato. Acho que a idade mínima deveria ser 35 anos. Ronaldinho ficaria fora, já que tem 33.
Nem todos os veteranos brilham no Brasileirão, e nem todos os que brilham são veteranos. Muitos jovens são também destaques.
Tenho mais esperança em Vitinho, 19, ainda mais que ele tem dois ótimos pais no Botafogo, Oswaldo de Oliveira e Seedorf.
Nem todos os veteranos brilham no Brasileirão, e nem todos os que brilham são veteranos
Na coluna anterior, falei de Seedorf, que, além de jogar mais livre e mais próximo do gol do que antes, atua no Botafogo de maneira lúdica e criativa. Isso serve para outros veteranos que brilham no Brasileiro. Eles estão bem fisicamente e querem parar por cima. É a última chance de jogarem a grande pelada de suas vidas. Os maiores craques, em todas as atividades, são os que trabalham brincando, com seriedade.
O baixo nível técnico do Brasileirão facilita para os que sabem jogar, veteranos ou não. Muitos discordam. Uns, por convicções técnicas, usam de argumentos, mesmo quando não existem, para dizer que está tudo bem. Há ainda os pachecões, os Policarpos Quaresmas, que acham antipatriota criticar o que é nosso. Existem também os interesses econômicos, de que não se deve desvalorizar o produto futebol.
Durante e após os 8 a 0, muitos --não digo quem porque são inúmeros-- se concentraram nas críticas na falta de empenho dos jogadores e de planejamento da diretoria do Santos. Esqueceram do mais importante, a absurda diferença técnica entre os dois clubes. Mas isso é proibido falar, para não desvalorizar nosso futebol.
Imagine se o Brasil ganhar a Copa, o que tem boas chances de ocorrer. Felipão vai ganhar uma estátua, Marin se tornará herói, e todos os jogadores serão rotulados de craques. E nada vai mudar.
Volto aos veteranos. Alex continua com seu estilo de tocar a bola e de esperar o momento certo para tentar jogada excepcional, decisiva. Quando essa chance não surge, dizem que é um vaga-lume, que acende e apaga. Não entendem sua genialidade.
Há jogadores que correm muito, que ficam muito com a bola, que driblam muito, que dão muitos passes, que finalizam muito, que trombam muito, que caem muito, que reclamam muito, mas que jogam pouco. O pouco de Alex é muito.
Zé Roberto e Juninho Pernambucano disputaram a posição de titular na Copa de 2006. Zé Roberto ganhou e fez parte da seleção do Mundial. Os dois não são típicos volantes nem típicos meias. São armadores, defensivos e ofensivos.
Juan é um dos raros zagueiros que anteveem o passe, antecipam e ainda têm um bom passe. Não tromba com o atacante, não cai nem dá carrinhos. Joga futebol.
Sugiro que, no fim do ano, escolham também o melhor veterano, como tem a melhor revelação. Há uma grande chance de o melhor veterano ser o melhor do campeonato. Acho que a idade mínima deveria ser 35 anos. Ronaldinho ficaria fora, já que tem 33.
Nem todos os veteranos brilham no Brasileirão, e nem todos os que brilham são veteranos. Muitos jovens são também destaques.
Tenho mais esperança em Vitinho, 19, ainda mais que ele tem dois ótimos pais no Botafogo, Oswaldo de Oliveira e Seedorf.
As reformas do comandante - JOÃO UBALDO RIBEIRO
O GLOBO - 11/08
A única coisa mais próxima das manifestações foi o nome de uma receita de coquetel inventada por Dick Primavera para oferecer à sua legião de admiradoras
De vez em quando, o comandante Borges deixa de aparecer no boteco nos dias de costume e os debates perdem muito, se não contam com sua sempre combativa, destemida e exaltada participação. Quando indagado sobre essas ausências, geralmente dá respostas rápidas e vagas, tais como “fui ver o pessoal” ou “tive que organizar minhas coisas”, e muda de assunto. Especula-se, não tão à boca pequena, que ele é figura destacada em pelo menos duas organizações clandestinas, claro que com sedes e locais de reuniões ignorados e objetivos igualmente mantidos sob sigilo rigoroso. Uma delas seria dedicada a detalhar o revolucionário Programa Penitenciário Nacional, que tive a oportunidade de mencionar aqui, não faz muito. A outra parece que tem sob sua responsabilidade o projeto para o novo Código Penal, que é bastante inovador quanto às penas, além de cobrar aos presos pela hospedagem fornecida pelo Estado, se possível a preços exorbitantes.
Ele também se reúne regularmente com o grupo de trabalho encarregado de cooperar na elaboração do Plano Borges, do qual, apesar de muito falado, também se sabe muito pouco, apenas uma coisa ou outra, tal como a divergência entre os conspiradores que favorecem a forca e os que preferem a guilhotina, como meio de lidar com a criminalidade e a corrupção. A cadeira elétrica já foi descartada, por não ser sustentável e gerar despesas com a conta de luz. O fuzilamento é considerado plágio do paredón e gasta munição. E eu sei, porque ele mesmo me disse, que o comandante rechaça a posição dos que consideram a forca mais vinculada às nossas tradições e, porque a corda seria biodegradável, ecologicamente correta. Talvez, mas o enforcamento pode estragar órgãos que do contrário estariam em perfeitas condições para doação. Como tem sido divulgado, o Plano Borges não só prevê a pena de morte, como obriga a cessão, pelos executados, de todos os seus órgãos transplantáveis e até mesmo os ossos secos, estes para aulas de anatomia e similares. Em determinados casos, os órgãos seriam vendidos, para ajudar a compensar as famílias das vítimas — o comandante pensa em tudo. Vamos acabar com as filas de transplante e ainda vamos exportar, me diz sempre ele.
Além da pena capital, da prisão perpétua e dos trabalhos forçados, há também diversas outras punições. Por exemplo, quem quer que fosse flagrado ensurdecendo o próximo com um som altíssimo seria levado em cana imediatamente e trancado numa cela com tratamento acústico e alto-falantes do tamanho de pneus de trator, repetindo a mesma música funk dois dias seguidos, uma semana nas reincidências. Os que atearam fogo em suas vítimas vivas seriam dispensados da cessão dos órgãos, porque sua punição seria idêntica ao que eles fizeram com as vítimas. Marido que matou a mulher porque não se conformava com a separação seria guilhotinado usando um par de chifres galhudos. Os que não chegaram a matar portariam obrigatoriamente os ditos chifres, em sua temporada na prisão. Os estupradores seriam também estuprados tantas vezes quantas estupraram, por um estuprador oficial, integrante de uma temida unidade especializada. E por aí segue uma série muito interessante, com a qual, segundo ele, a esmagadora maioria dos brasileiros concorda.
Diante da trabalheira que isso tudo deve dar, ninguém esperava mais que ele aparecesse no sábado passado, mas de repente sua renomada bicicleta elétrica de última geração aponta na esquina e eis que ele chega, de boné novo e camiseta com os dizeres “Se Lula é a resposta, a culpa é da pergunta”, que não compreendi muito bem, mas fiquei sem jeito de perguntar e suspeito que é desses axiomas profundos em que a gente tem de meditar muito, para encontrar sentido. Ele se acomodou à mesa habitual e inquiriu sobre as novidades. Neste período de agitação nas ruas e nervosismo entre os políticos, tinha havido ali algum comentário original, algum debate? Não, não tinha havido nada disso e a única coisa mais próxima das manifestações foi o nome de uma receita de coquetel inventada por Dick Primavera para oferecer à sua legião de admiradoras, de efeito tão potente que foi batizado de coquetel Molotov e que Chico, o dono do boteco, só serve se a moça assinar um termo de responsabilidade. De resto, nenhuma novidade, ele tinha feito muita falta, no exame de certos temas, como, por exemplo, o plebiscito.
— Para otários — disse ele. — Só vão perguntar o que interessa a eles, só vão mudar o que quiserem e precisarem e, se o plebiscito for contra, eles entram com um embargo declaratório cheio de latim e provam no Supremo que o plebiscito foi a favor.
— E a reforma política?
— Para otários! Vão fechar a torneirinha? Vão se privar do bem-bom? Vão cortar as mordomias e os cartões corporativos? Vão deixar de roubar? Vão deixar de se locupletar? Eu quero saber é quando um deles vai para a cadeia, isso é o que eu quero saber, chega de palavrório e enrolação! Eu quero saber quando a gente vai parar de ter medo de ser assassinado em toda parte e não pode nem ir ao consultório do dentista sem fazer extrema-unção, isso é que eu quero saber! Eu quero saber quando alguma coisa aqui vai funcionar decentemente! Eu quero saber onde essa esculhambação vai acabar, eu sou homem de pegar em armas! Eu...
— Calma, comandante, não precisa ficar assim, você já está todo vermelho, tenha calma.
— É, você tem razão, me desculpe por gritar, é que à vezes meu sangue ferve, vou esquecer isso, vamos mudar de assunto. Você sabe alguma coisa sobre guilhotinas?
A única coisa mais próxima das manifestações foi o nome de uma receita de coquetel inventada por Dick Primavera para oferecer à sua legião de admiradoras
De vez em quando, o comandante Borges deixa de aparecer no boteco nos dias de costume e os debates perdem muito, se não contam com sua sempre combativa, destemida e exaltada participação. Quando indagado sobre essas ausências, geralmente dá respostas rápidas e vagas, tais como “fui ver o pessoal” ou “tive que organizar minhas coisas”, e muda de assunto. Especula-se, não tão à boca pequena, que ele é figura destacada em pelo menos duas organizações clandestinas, claro que com sedes e locais de reuniões ignorados e objetivos igualmente mantidos sob sigilo rigoroso. Uma delas seria dedicada a detalhar o revolucionário Programa Penitenciário Nacional, que tive a oportunidade de mencionar aqui, não faz muito. A outra parece que tem sob sua responsabilidade o projeto para o novo Código Penal, que é bastante inovador quanto às penas, além de cobrar aos presos pela hospedagem fornecida pelo Estado, se possível a preços exorbitantes.
Ele também se reúne regularmente com o grupo de trabalho encarregado de cooperar na elaboração do Plano Borges, do qual, apesar de muito falado, também se sabe muito pouco, apenas uma coisa ou outra, tal como a divergência entre os conspiradores que favorecem a forca e os que preferem a guilhotina, como meio de lidar com a criminalidade e a corrupção. A cadeira elétrica já foi descartada, por não ser sustentável e gerar despesas com a conta de luz. O fuzilamento é considerado plágio do paredón e gasta munição. E eu sei, porque ele mesmo me disse, que o comandante rechaça a posição dos que consideram a forca mais vinculada às nossas tradições e, porque a corda seria biodegradável, ecologicamente correta. Talvez, mas o enforcamento pode estragar órgãos que do contrário estariam em perfeitas condições para doação. Como tem sido divulgado, o Plano Borges não só prevê a pena de morte, como obriga a cessão, pelos executados, de todos os seus órgãos transplantáveis e até mesmo os ossos secos, estes para aulas de anatomia e similares. Em determinados casos, os órgãos seriam vendidos, para ajudar a compensar as famílias das vítimas — o comandante pensa em tudo. Vamos acabar com as filas de transplante e ainda vamos exportar, me diz sempre ele.
Além da pena capital, da prisão perpétua e dos trabalhos forçados, há também diversas outras punições. Por exemplo, quem quer que fosse flagrado ensurdecendo o próximo com um som altíssimo seria levado em cana imediatamente e trancado numa cela com tratamento acústico e alto-falantes do tamanho de pneus de trator, repetindo a mesma música funk dois dias seguidos, uma semana nas reincidências. Os que atearam fogo em suas vítimas vivas seriam dispensados da cessão dos órgãos, porque sua punição seria idêntica ao que eles fizeram com as vítimas. Marido que matou a mulher porque não se conformava com a separação seria guilhotinado usando um par de chifres galhudos. Os que não chegaram a matar portariam obrigatoriamente os ditos chifres, em sua temporada na prisão. Os estupradores seriam também estuprados tantas vezes quantas estupraram, por um estuprador oficial, integrante de uma temida unidade especializada. E por aí segue uma série muito interessante, com a qual, segundo ele, a esmagadora maioria dos brasileiros concorda.
Diante da trabalheira que isso tudo deve dar, ninguém esperava mais que ele aparecesse no sábado passado, mas de repente sua renomada bicicleta elétrica de última geração aponta na esquina e eis que ele chega, de boné novo e camiseta com os dizeres “Se Lula é a resposta, a culpa é da pergunta”, que não compreendi muito bem, mas fiquei sem jeito de perguntar e suspeito que é desses axiomas profundos em que a gente tem de meditar muito, para encontrar sentido. Ele se acomodou à mesa habitual e inquiriu sobre as novidades. Neste período de agitação nas ruas e nervosismo entre os políticos, tinha havido ali algum comentário original, algum debate? Não, não tinha havido nada disso e a única coisa mais próxima das manifestações foi o nome de uma receita de coquetel inventada por Dick Primavera para oferecer à sua legião de admiradoras, de efeito tão potente que foi batizado de coquetel Molotov e que Chico, o dono do boteco, só serve se a moça assinar um termo de responsabilidade. De resto, nenhuma novidade, ele tinha feito muita falta, no exame de certos temas, como, por exemplo, o plebiscito.
— Para otários — disse ele. — Só vão perguntar o que interessa a eles, só vão mudar o que quiserem e precisarem e, se o plebiscito for contra, eles entram com um embargo declaratório cheio de latim e provam no Supremo que o plebiscito foi a favor.
— E a reforma política?
— Para otários! Vão fechar a torneirinha? Vão se privar do bem-bom? Vão cortar as mordomias e os cartões corporativos? Vão deixar de roubar? Vão deixar de se locupletar? Eu quero saber é quando um deles vai para a cadeia, isso é o que eu quero saber, chega de palavrório e enrolação! Eu quero saber quando a gente vai parar de ter medo de ser assassinado em toda parte e não pode nem ir ao consultório do dentista sem fazer extrema-unção, isso é que eu quero saber! Eu quero saber quando alguma coisa aqui vai funcionar decentemente! Eu quero saber onde essa esculhambação vai acabar, eu sou homem de pegar em armas! Eu...
— Calma, comandante, não precisa ficar assim, você já está todo vermelho, tenha calma.
— É, você tem razão, me desculpe por gritar, é que à vezes meu sangue ferve, vou esquecer isso, vamos mudar de assunto. Você sabe alguma coisa sobre guilhotinas?
Ueba! Fagundes é o Pai do Ano! - JOSÉ SIMÃO
FOLHA DE SP - 11/08
E o Woody Allen disse que não quer mais ter filho porque depois eles crescem e matam a gente! Rarará!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Pensamento do Dia dos Pais: "Viva o passado, porque de presente eu só ganho meia". Meia e polo! Pra pai coxinha usar com a gola levantada!
E diz que pai só serve pra duas coisas: emprestar o carro e pagar pensão! E pai de pijama com pelo no ouvido não existe mais. Pai moderno faz o café da manhã, lava a louça e sente dor de parto! Pai moderno usa brinco e depila o peito. Pai moderno faz anúncio pro Dolce & Gabanna.
E o Woody Allen disse que não quer mais ter filho porque depois eles crescem e matam a gente. Rarará!
E o pai do século é aquele jornalista esportivo argentino Walter Rotundo, que batizou as filhas de Mara e Dona! Isso é coisa que se faça com as filhas? Que tipo de pai é esse? Rarará!
E o Fagundes é o Pai do Ano! Todo mundo na novela é filho do César! Ele é pai até do neto! Aliás, o César é pai dele mesmo! E o capitulo final da novela vai ser no programa do Ratinho com DNA coletivo!
E o Felix é filho biológico da chacrete! Oba! A maior glória para um gay é ser filho de chacrete! Rarará. E acho que eu também sou filho do César!
E esse mês de Agosto promete: mensalão dos petistas versus o tremsalão dos tucanos. UFC de Agosto: Mensalão X Tremsalão! O PSDB tá dando uma de Lula: ninguém sabia de nada! E o tuiteiro Tio Dino: "Quem acha que político não usa o metrô, está enganado. Os de São Paulo usam pra desviar mais de 500 milhões". Rarará!
E o metrô custa 1 bilhão mais caro e o Ackmin não percebe? Então é assim que toma conta do nosso dinheiro? O negócio tá tão feio que até o vagão da linha vermelha fugiu dos trilhos, só pra não ser cúmplice de nada. Só com a grana desviada dava pra fazer um trem-bala!
E essa: "Senado gasta R$ 5 milhões com o Sírio Libanes". SUS do Senado: Somos Usuários do Sírio! Rarara! É mole? É mole mas sobe!
Os Predestinados! Direto de Alagoas, secretário do Trabalho e Emprego: Alberto SEXTAFEIRA! Rarará. Devia mudar o nome pra Alberto SextaFeira Seis da Tarde! E temos também o urologista Luis CORTADO! Aiiiiiiii! E uma amiga contratou um jardineiro e o nome dele era: Jardinaldo! Rarará!
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
E o Woody Allen disse que não quer mais ter filho porque depois eles crescem e matam a gente! Rarará!
Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente! O esculhambador-geral da República! Pensamento do Dia dos Pais: "Viva o passado, porque de presente eu só ganho meia". Meia e polo! Pra pai coxinha usar com a gola levantada!
E diz que pai só serve pra duas coisas: emprestar o carro e pagar pensão! E pai de pijama com pelo no ouvido não existe mais. Pai moderno faz o café da manhã, lava a louça e sente dor de parto! Pai moderno usa brinco e depila o peito. Pai moderno faz anúncio pro Dolce & Gabanna.
E o Woody Allen disse que não quer mais ter filho porque depois eles crescem e matam a gente. Rarará!
E o pai do século é aquele jornalista esportivo argentino Walter Rotundo, que batizou as filhas de Mara e Dona! Isso é coisa que se faça com as filhas? Que tipo de pai é esse? Rarará!
E o Fagundes é o Pai do Ano! Todo mundo na novela é filho do César! Ele é pai até do neto! Aliás, o César é pai dele mesmo! E o capitulo final da novela vai ser no programa do Ratinho com DNA coletivo!
E o Felix é filho biológico da chacrete! Oba! A maior glória para um gay é ser filho de chacrete! Rarará. E acho que eu também sou filho do César!
E esse mês de Agosto promete: mensalão dos petistas versus o tremsalão dos tucanos. UFC de Agosto: Mensalão X Tremsalão! O PSDB tá dando uma de Lula: ninguém sabia de nada! E o tuiteiro Tio Dino: "Quem acha que político não usa o metrô, está enganado. Os de São Paulo usam pra desviar mais de 500 milhões". Rarará!
E o metrô custa 1 bilhão mais caro e o Ackmin não percebe? Então é assim que toma conta do nosso dinheiro? O negócio tá tão feio que até o vagão da linha vermelha fugiu dos trilhos, só pra não ser cúmplice de nada. Só com a grana desviada dava pra fazer um trem-bala!
E essa: "Senado gasta R$ 5 milhões com o Sírio Libanes". SUS do Senado: Somos Usuários do Sírio! Rarara! É mole? É mole mas sobe!
Os Predestinados! Direto de Alagoas, secretário do Trabalho e Emprego: Alberto SEXTAFEIRA! Rarará. Devia mudar o nome pra Alberto SextaFeira Seis da Tarde! E temos também o urologista Luis CORTADO! Aiiiiiiii! E uma amiga contratou um jardineiro e o nome dele era: Jardinaldo! Rarará!
Nóis sofre, mas nóis goza!
Que eu vou pingar o meu colírio alucinógeno!
Vá entender - LUIS FERNANDO VERISSIMO
O GLOBO - 11/08
Vá entender-1: quando era raro mulher ir a futebol os calçõezinhos curtos dos jogadores deixavam suas coxas reluzentes à mostra. À medida que mulheres começaram a frequentar os estádios, os calções foram aumentando de tamanho. Hoje são até mais compridos do que os que usavam os europeus, e dos quais dávamos risadas. Quando o Arsenal veio jogar no Brasil, na pré-história, nada parecia mais estranho do que seus calções até os joelhos. Hoje, vendo jogos antigos da seleção e de times brasileiros, nada parece mais estranho do que seus calçõezinhos apertados. As coxas reluzentes foram sonegadas das moças. Explicações sociológicas à vontade.
Vá entender-2: na Europa as manifestações populares são contra a austeridade e o corte nos gastos sociais do governo, para pagar as dividas e sanar as finanças. No Brasil, as manifestações são pela austeridade: protestam, entre outras coisas, pelo desperdício de dinheiro em estádios de futebol e os outros custos da Copa. Claro que nem os manifestantes europeus pedem que seus governos construam estádios de futebol para ficarem ociosos, como exemplo de estimulo à economia, nem os manifestantes brasileiros pedem que o governo não gaste nada. Mas o contraste entre as reivindicações de parte a parte mostra como essa questão de intervencionismo keynesiano versus conservadorismo monetarista pode ser apenas uma questão de geografia.
E chegamos, não me pergunte como, aos pelos pubianos. Durante muitos anos a “Playboy” americana publicou fotos de mulheres nuas sem mostrar seus pelos pubianos. Até que houve uma edição histórica por duas razões: pela primeira vez a nua do mês era negra, e apareciam seus pelos pubianos. Agora, como sabe quem costuma ver a “Playboy” brasileira, os pelos pubianos voltaram a desaparecer. Não por obra de retoque editorial ou fotoshop, mas por obra das próprias mulheres, que os raspam — ou no máximo os reduzem a um bigodinho do Hitler. Vá entender-3.
PAPO VOVÔ
Lucinda, nossa neta de 5 anos, volta e meia aparece com palavras novas, que não sabemos onde aprendeu. Sua palavra favorita, no momento, é “estatelado”. E no outro dia ela estava brincando de apresentadora de um programa culinário e, quando terminou seu bolo de faz de conta, mostrou para a câmera imaginária e disse: “Voalá!” Ficamos estatelados.
Vá entender-1: quando era raro mulher ir a futebol os calçõezinhos curtos dos jogadores deixavam suas coxas reluzentes à mostra. À medida que mulheres começaram a frequentar os estádios, os calções foram aumentando de tamanho. Hoje são até mais compridos do que os que usavam os europeus, e dos quais dávamos risadas. Quando o Arsenal veio jogar no Brasil, na pré-história, nada parecia mais estranho do que seus calções até os joelhos. Hoje, vendo jogos antigos da seleção e de times brasileiros, nada parece mais estranho do que seus calçõezinhos apertados. As coxas reluzentes foram sonegadas das moças. Explicações sociológicas à vontade.
Vá entender-2: na Europa as manifestações populares são contra a austeridade e o corte nos gastos sociais do governo, para pagar as dividas e sanar as finanças. No Brasil, as manifestações são pela austeridade: protestam, entre outras coisas, pelo desperdício de dinheiro em estádios de futebol e os outros custos da Copa. Claro que nem os manifestantes europeus pedem que seus governos construam estádios de futebol para ficarem ociosos, como exemplo de estimulo à economia, nem os manifestantes brasileiros pedem que o governo não gaste nada. Mas o contraste entre as reivindicações de parte a parte mostra como essa questão de intervencionismo keynesiano versus conservadorismo monetarista pode ser apenas uma questão de geografia.
E chegamos, não me pergunte como, aos pelos pubianos. Durante muitos anos a “Playboy” americana publicou fotos de mulheres nuas sem mostrar seus pelos pubianos. Até que houve uma edição histórica por duas razões: pela primeira vez a nua do mês era negra, e apareciam seus pelos pubianos. Agora, como sabe quem costuma ver a “Playboy” brasileira, os pelos pubianos voltaram a desaparecer. Não por obra de retoque editorial ou fotoshop, mas por obra das próprias mulheres, que os raspam — ou no máximo os reduzem a um bigodinho do Hitler. Vá entender-3.
PAPO VOVÔ
Lucinda, nossa neta de 5 anos, volta e meia aparece com palavras novas, que não sabemos onde aprendeu. Sua palavra favorita, no momento, é “estatelado”. E no outro dia ela estava brincando de apresentadora de um programa culinário e, quando terminou seu bolo de faz de conta, mostrou para a câmera imaginária e disse: “Voalá!” Ficamos estatelados.
Encrenca olímpica à vista - DORRIT HARAZIM
O GLOBO - 11/08
Aseis meses dos XXII Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, na Rússia, o presidente Vladimir Putin está no centro de um inflamado embate com a comunidade LGBT do mundo inteiro. Em princípio, nada que tire o sono desse chefe de Estado que esculpiu para si um perfil de macho nacional. Putin também sabe que ao desempenhar o papel de cruzado das tradições russas contra a degradação dos costumes no Ocidente sua popularidade cresce junto à base conservadora e religiosa que lhe é fiel.
A sucessão de leis que ele sancionou nas últimas semanas restringindo os direitos dos grupos LGBT evoca os tempos stalinistas. A primeira, aprovada por maioria absoluta no Parlamento e por 88% da população, criminaliza qualquer manifestação a favor dos direitos civis gays e classifica como pornografia a propaganda homossexual . Outra proíbe a adoção de crianças russas não apenas por casais homossexuais mas também por solteiros residentes em países onde o casamento gay tem alguma forma de legitimação. E uma terceira autoriza a polícia russa a prender turistas e cidadãos estrangeiros suspeitos de serem homossexuais, lésbicas ou pró-gay . Podem ficar detidos por duas semanas. No mês passado uma equipe de cinema holandesa que entrevistava jovens para um documentário sobre direitos civis foi a primeira enquadrada.
Em tese, isso significa que qualquer atleta, técnico, repórter, membro de delegação ou turista olímpico gay ou suspeito de sê-lo pode ser detido antes, durante ou após os 18 dias de duração dos Jogos em Sochi.
Para o Comitê Olímpico Internacional (COI), é encrenca à vista - mesmo que as autoridades locais sejam lenientes para não estragar o evento que terá custado mais do que a Olimpíada de Pequim.
Recebemos garantias do escalão mais alto do governo russo de que a legislação não afetará a quem participar dos Jogos , informou o comunicado inicial do COI. As Olimpíadas são um evento internacional de grande porte. Devemos ser tão polidos e tolerantes quanto possível. E por este motivo foi tomada a decisão de não levantarmos essa questão [a aplicação da lei aos visitantes] durante os Jogos , assegurou também o vice-presidente russo da Comissão Parlamentar de Educação Física, Esporte e Juventude.
Quer dizer então que, com o nosso salvo-conduto para participar dos Jogos de 2014, os skinheads vão espancar somente os homossexuais russos, é isso? , indaga o americano John Aravosis, um dos blogueiros mais ativos na campanha para sacudir Sochi.
O embate está apenas começando. Numa segunda rodada, a entidade aceitou receber em sua sede de Lausanne representantes do grupo ativista All Out, para quem realizar os Jogos em Sochi, com a atual legislação em vigor, equivale a realizá-los em Johannesburgo no auge do regime de apartheid. Petições contendo centenas de milhares de assinaturas chegam à sede olímpica que promete exigir do governo russo um compromisso mais amplo e firme. E por escrito. Ela também reitera sua posição de que os Jogos devem ser abertos a todos - espectadores, oficiais, mídia, atletas - e livres de discriminação. Nos oporíamos frontalmente a qualquer ato capaz de ameaçar este princípio , conclui.
Pode não ser um princípio, mas uma coisa já foi mais do que ameaçada - foi derrubada. Em contraste com os Jogos de Inverno de Vancouver, em 2010, e os de Londres, em 2012, Sochi não terá uma Pride House como ponto de encontro e de informação para atletas LGBT.
Ironicamente, porém, essas Olimpíadas talvez venham a ter um efeito bumerangue. Elas podem se tornar uma inesperada plataforma para que atletas e os próprios russos driblem as leis vigentes e tornem o direito de ser gay a marca de 2014. Algo como o protesto contra a discriminação racial imortalizado nos punhos dos americanos Tommie Smith e John Carlos, no pódio dos 200 metros rasos de 1968, na Cidade do México.
Para a rede de televisão americana NBC, que pagou US$ 775 milhões pelos direitos de transmissão de Sochi, a sinuca não é menor. Nos Estados Unidos a não discriminação de gays é defendida tanto pelo ocupante da Casa Branca como por patrocinadores olímpicos de peso - Coca-Cola e McDonald´s, entre outros. Como não fazer qualquer referência a uma questão cuja existência será difícil de ignorar?
Vários são os cenários imaginados por atletas, militantes e ativistas com passagem comprada de como furar o bloqueio televisivo. Há até quem já deixou de comprar vodca Stolichnaya.
E há vozes nobres. Uma delas a se juntar ao coro de indignados com o cerco aos homossexuais na Rússia é a de Greg Louganis. Vale a pena relembrar de quem se trata.
Louganis é detentor de quatro ouros olímpicos em salto ornamental. Foi o maior atleta da modalidade de todos os tempos. Na Olimpíada de Seul, em 1988, fez a arquibancada lotada parar de respirar ao bater com a cabeça no trampolim no seu nono salto. Ao sair da piscina para levar doze pontos, um pálido filete de sangue ficara na água. Meia hora depois, o atleta retornou ao trampolim e deu o salto final rumo ao ouro.
O público, boquiaberto e eletrizado, ovacionou o que viu. Só seis anos mais tarde foi saber o que não viu: Louganis era portador do vírus HIV. Recebera o resultado positivo seis meses antes e apenas seu técnico conhecia o segredo. O preconceito contra a doença, naqueles tempos, ainda era monumental. O tamanho do pânico do atleta no dia da pancada, como ele contou na autobiografia, foi inenarrável. Saltar novamente foi o de menos.
Passaram-se 25 anos. O tempo da causa gay no esporte avançou. Louganis está de casamento marcado. Na Rússia de Putin, o tempo andou para trás.
A sucessão de leis que ele sancionou nas últimas semanas restringindo os direitos dos grupos LGBT evoca os tempos stalinistas. A primeira, aprovada por maioria absoluta no Parlamento e por 88% da população, criminaliza qualquer manifestação a favor dos direitos civis gays e classifica como pornografia a propaganda homossexual . Outra proíbe a adoção de crianças russas não apenas por casais homossexuais mas também por solteiros residentes em países onde o casamento gay tem alguma forma de legitimação. E uma terceira autoriza a polícia russa a prender turistas e cidadãos estrangeiros suspeitos de serem homossexuais, lésbicas ou pró-gay . Podem ficar detidos por duas semanas. No mês passado uma equipe de cinema holandesa que entrevistava jovens para um documentário sobre direitos civis foi a primeira enquadrada.
Em tese, isso significa que qualquer atleta, técnico, repórter, membro de delegação ou turista olímpico gay ou suspeito de sê-lo pode ser detido antes, durante ou após os 18 dias de duração dos Jogos em Sochi.
Para o Comitê Olímpico Internacional (COI), é encrenca à vista - mesmo que as autoridades locais sejam lenientes para não estragar o evento que terá custado mais do que a Olimpíada de Pequim.
Recebemos garantias do escalão mais alto do governo russo de que a legislação não afetará a quem participar dos Jogos , informou o comunicado inicial do COI. As Olimpíadas são um evento internacional de grande porte. Devemos ser tão polidos e tolerantes quanto possível. E por este motivo foi tomada a decisão de não levantarmos essa questão [a aplicação da lei aos visitantes] durante os Jogos , assegurou também o vice-presidente russo da Comissão Parlamentar de Educação Física, Esporte e Juventude.
Quer dizer então que, com o nosso salvo-conduto para participar dos Jogos de 2014, os skinheads vão espancar somente os homossexuais russos, é isso? , indaga o americano John Aravosis, um dos blogueiros mais ativos na campanha para sacudir Sochi.
O embate está apenas começando. Numa segunda rodada, a entidade aceitou receber em sua sede de Lausanne representantes do grupo ativista All Out, para quem realizar os Jogos em Sochi, com a atual legislação em vigor, equivale a realizá-los em Johannesburgo no auge do regime de apartheid. Petições contendo centenas de milhares de assinaturas chegam à sede olímpica que promete exigir do governo russo um compromisso mais amplo e firme. E por escrito. Ela também reitera sua posição de que os Jogos devem ser abertos a todos - espectadores, oficiais, mídia, atletas - e livres de discriminação. Nos oporíamos frontalmente a qualquer ato capaz de ameaçar este princípio , conclui.
Pode não ser um princípio, mas uma coisa já foi mais do que ameaçada - foi derrubada. Em contraste com os Jogos de Inverno de Vancouver, em 2010, e os de Londres, em 2012, Sochi não terá uma Pride House como ponto de encontro e de informação para atletas LGBT.
Ironicamente, porém, essas Olimpíadas talvez venham a ter um efeito bumerangue. Elas podem se tornar uma inesperada plataforma para que atletas e os próprios russos driblem as leis vigentes e tornem o direito de ser gay a marca de 2014. Algo como o protesto contra a discriminação racial imortalizado nos punhos dos americanos Tommie Smith e John Carlos, no pódio dos 200 metros rasos de 1968, na Cidade do México.
Para a rede de televisão americana NBC, que pagou US$ 775 milhões pelos direitos de transmissão de Sochi, a sinuca não é menor. Nos Estados Unidos a não discriminação de gays é defendida tanto pelo ocupante da Casa Branca como por patrocinadores olímpicos de peso - Coca-Cola e McDonald´s, entre outros. Como não fazer qualquer referência a uma questão cuja existência será difícil de ignorar?
Vários são os cenários imaginados por atletas, militantes e ativistas com passagem comprada de como furar o bloqueio televisivo. Há até quem já deixou de comprar vodca Stolichnaya.
E há vozes nobres. Uma delas a se juntar ao coro de indignados com o cerco aos homossexuais na Rússia é a de Greg Louganis. Vale a pena relembrar de quem se trata.
Louganis é detentor de quatro ouros olímpicos em salto ornamental. Foi o maior atleta da modalidade de todos os tempos. Na Olimpíada de Seul, em 1988, fez a arquibancada lotada parar de respirar ao bater com a cabeça no trampolim no seu nono salto. Ao sair da piscina para levar doze pontos, um pálido filete de sangue ficara na água. Meia hora depois, o atleta retornou ao trampolim e deu o salto final rumo ao ouro.
O público, boquiaberto e eletrizado, ovacionou o que viu. Só seis anos mais tarde foi saber o que não viu: Louganis era portador do vírus HIV. Recebera o resultado positivo seis meses antes e apenas seu técnico conhecia o segredo. O preconceito contra a doença, naqueles tempos, ainda era monumental. O tamanho do pânico do atleta no dia da pancada, como ele contou na autobiografia, foi inenarrável. Saltar novamente foi o de menos.
Passaram-se 25 anos. O tempo da causa gay no esporte avançou. Louganis está de casamento marcado. Na Rússia de Putin, o tempo andou para trás.
O sermão de Mantega ao FMI - CLÓVIS ROSSI
FOLHA DE SP - 11/08
Incidente sobre ajuda à Grécia serve para mostrar plena sintonia entre os governos Dilma e Obama
Guido Mantega, o ministro da Fazenda, pode não estar vivendo exatamente momentos de glória, mas nem por isso deixou de fazer um belo sermão ao Fundo Monetário Internacional, que, no fundo, reflete a convicção mais profunda do governo Dilma: crescimento é tão ou mais importante que austeridade.
Mantega aproveitou o mal-entendido com Paulo Nogueira Batista Jr., o representante brasileiro e de um punhado de outros países latino-americanos no Fundo Monetário Internacional, para dizer ao FMI que "o programa de resgate da Grécia e de outros países da periferia da zona euro precisa ser revisto de forma a permitir melhores oportunidades de recuperação para tais países" (refere-se, essencialmente, a Espanha e Portugal, além da Grécia).
Como se sabe, o programa do Fundo prevê duros ajustes que, em vez de resgatar tais países, ajudaram a afundá-los na recessão.
Nogueira Batista dissera a mesmíssima coisa, acrescentando que, no ritmo em que vão as coisas, a Grécia não conseguirá pagar suas dívidas e terá que recorrer a um novo calote, inclusive na dívida para com o FMI. A divergência se deu porque Nogueira Batista votou contra a liberação de mais uma fatia do socorro à Grécia, com o que Mantega não concordou.
É razoável supor que, na fase atual da economia brasileira, que não entusiasma ninguém além de Mantega e Dilma, o sermão do ministro ao Fundo pode parecer pretensioso. Não é.
O programa para a Grécia é de fato um tremendo fracasso. Algumas provas: o país está entrando no sexto ano de recessão, com o que sua economia sofrerá, no total, uma retração de um quarto, coisa que só países em guerra conhecem; em maio, o desemprego bateu de novo o recorde, atingindo 27,6%, outro indicador que só mesmo catástrofes conseguem produzir; a dívida, que, no momento do pacote de resgate, girava em torno de 163% do PIB, vai bater neste ano em 176%.
Mesmo que o sermão de Mantega fosse pretensioso, estaria em companhia ilustre, a do presidente Barack Obama. Ao receber o primeiro-ministro grego, Antonis Samaras, na quinta-feira, Obama também constatou que "políticas focadas só em redução de gastos não ajudariam a Grécia a retornar à prosperidade econômica".
O presidente norte-americano não nega a importância do ajuste fiscal, mas diz que igualmente importante é o foco em crescimento e em emprego.
Vê-se, pois, que, a dois meses do encontro que terão na Casa Branca, em outubro, os governos Dilma e Obama continuam em plena sintonia no campo econômico, divergências sobre espionagem à parte.
No fundo, repete-se uma situação que vem sendo recorrente nas cúpulas recentes do G20: os Estados Unidos, com apoio integral do Brasil, pressionando a Europa para um arranjo capaz de combinar austeridade com crescimento econômico.
O problema é que nem Obama nem Dilma nem Mantega conseguiram pôr de pé uma proposta que seja capaz de devolver o crescimento aos países que estão em crise ou de acelerar o crescimento em seus próprios países.
Incidente sobre ajuda à Grécia serve para mostrar plena sintonia entre os governos Dilma e Obama
Guido Mantega, o ministro da Fazenda, pode não estar vivendo exatamente momentos de glória, mas nem por isso deixou de fazer um belo sermão ao Fundo Monetário Internacional, que, no fundo, reflete a convicção mais profunda do governo Dilma: crescimento é tão ou mais importante que austeridade.
Mantega aproveitou o mal-entendido com Paulo Nogueira Batista Jr., o representante brasileiro e de um punhado de outros países latino-americanos no Fundo Monetário Internacional, para dizer ao FMI que "o programa de resgate da Grécia e de outros países da periferia da zona euro precisa ser revisto de forma a permitir melhores oportunidades de recuperação para tais países" (refere-se, essencialmente, a Espanha e Portugal, além da Grécia).
Como se sabe, o programa do Fundo prevê duros ajustes que, em vez de resgatar tais países, ajudaram a afundá-los na recessão.
Nogueira Batista dissera a mesmíssima coisa, acrescentando que, no ritmo em que vão as coisas, a Grécia não conseguirá pagar suas dívidas e terá que recorrer a um novo calote, inclusive na dívida para com o FMI. A divergência se deu porque Nogueira Batista votou contra a liberação de mais uma fatia do socorro à Grécia, com o que Mantega não concordou.
É razoável supor que, na fase atual da economia brasileira, que não entusiasma ninguém além de Mantega e Dilma, o sermão do ministro ao Fundo pode parecer pretensioso. Não é.
O programa para a Grécia é de fato um tremendo fracasso. Algumas provas: o país está entrando no sexto ano de recessão, com o que sua economia sofrerá, no total, uma retração de um quarto, coisa que só países em guerra conhecem; em maio, o desemprego bateu de novo o recorde, atingindo 27,6%, outro indicador que só mesmo catástrofes conseguem produzir; a dívida, que, no momento do pacote de resgate, girava em torno de 163% do PIB, vai bater neste ano em 176%.
Mesmo que o sermão de Mantega fosse pretensioso, estaria em companhia ilustre, a do presidente Barack Obama. Ao receber o primeiro-ministro grego, Antonis Samaras, na quinta-feira, Obama também constatou que "políticas focadas só em redução de gastos não ajudariam a Grécia a retornar à prosperidade econômica".
O presidente norte-americano não nega a importância do ajuste fiscal, mas diz que igualmente importante é o foco em crescimento e em emprego.
Vê-se, pois, que, a dois meses do encontro que terão na Casa Branca, em outubro, os governos Dilma e Obama continuam em plena sintonia no campo econômico, divergências sobre espionagem à parte.
No fundo, repete-se uma situação que vem sendo recorrente nas cúpulas recentes do G20: os Estados Unidos, com apoio integral do Brasil, pressionando a Europa para um arranjo capaz de combinar austeridade com crescimento econômico.
O problema é que nem Obama nem Dilma nem Mantega conseguiram pôr de pé uma proposta que seja capaz de devolver o crescimento aos países que estão em crise ou de acelerar o crescimento em seus próprios países.
O futuro da "nova era" - PEDRO MALAN
O ESTADO DE S. PAULO - 11/08
O Brasil não tem problema, apenas soluções adiadas." O chiste de Luís da Câmara Cascudo pode ser lido - embora não deva - como expressando uma aconchegante e ilusória confiança no poder regenerador da passagem do tempo. Do tipo: a cada dia basta a sua pena. Ou como na enganosa esperança de que "no fim tudo acaba bem, se não está bem é porque não acabou ainda". O que sempre depende de como se define (e redefine) o que é o fim - e o significado de acabar.
Bem-humoradas afirmações dessa natureza podem justificar tendências à procrastinação e à aceitação um tanto passiva de todo tipo de atrasos - e dos custos econômicos e sociais neles envolvidos por várias razões. Quero mencionar duas que considero relevantes para os decisivos meses à frente.
A primeira pode estar ligada à nossa obsessão pelo futuro: nossa fé no que virá como que nos exime daquilo que, de Sérgio Buarque de Holanda a Roberto DaMatta, é tido como nossa relativa aversão aos miúdos labores do cotidiano. Gostamos de pensar grande: discussões específicas ou técnicas sobre como melhor gerir, na prática, a coisa pública em áreas definidas têm, entre nós, muito menos apelo do que retóricas conclamações por novos modelos de desenvolvimento, novos projetos nacionais, novas políticas industriais ou "novas matrizes macroeconômicas".
A segunda razão tem que ver com a forma como uma sociedade e seus governos identificam os principais problemas a enfrentar. As manifestações recentes indicam o que vem por aí em termos de novas demandas (inclusive da base aliada) e de novas tentativas de respostas de um governo totalmente focado em ganhar as eleições de 2014 (uma definição do "fim" e do "acabar bem").
Alguém dirá, e com razão: ora, os principais candidatos de oposição também estão com os olhos fixos no período até outubro de 2014 e adiante. É verdade, mas o que estará em foco nos próximos 15 meses são as respostas do "Poder Incumbente", ao qual cabe o dever de bem governar o País e responder a seus problemas, incluídos os identificados nos movimentos de rua, dos quais o lulopetismo acreditava, até junho, deter o monopólio.
A propósito, vale lembrar uma observação de Jared Diamond (em seu livro Collapsè). "Mesmo quando uma sociedade foi capaz de antecipar, perceber e tentar resolver um problema, ela pode ainda fracassar em fazê-lo, por óbvias razões possíveis: o problema pode estar além das suas capacidades; a solução pode existir, mas ser proibitivamente custosa: os esforços podem ser do tipo muito pouco e muito tarde, e algumas soluções tentadas podem agravar o problema."
Como sabemos, um país pode não fracassar, mas desperdiçar muitas oportunidades. E isso pode ter efeitos consideráveis sobre seu futuro, levando a um relativo atraso econômico e social em relação a países que foram capazes de adotar medidas de políticas públicas nas áreas macro, micro, institucional, regulatória e de reformas, favoráveis ao crescimento com competitividade internacional.
O problema, talvez mais fundamental, é que em muitos países do mundo de hoje, desenvolvidos ou não, o Estado não pode mais (ou pode cada vez menos) além de investir em infraestrutura, sustentar o custo de seu endividamento e corresponder aos desejos por maiores gastos públicos para assegurar direitos existentes e expectativas de novos direitos por alcançar.
Educação, saúde, transporte, segurança e muitos outros serviços públicos que as pessoas (no mundo desenvolvido em particular) por mais de meio século se acostumaram a ter providos por seus governos estão ficando agora claramente fora do "espaço" de orçamentos públicos razoavelmente controlados ou, pelo menos, fora daquilo que as pessoas estariam propensas a aceitar como a tributação requerida para pagar portais serviços.
Essa discussão é particularmente relevante no Brasil de hoje. As razões principais vão-se tomando cada vez mais conhecidas entre nós. Para resumir ao extremo, no Brasil, tanto no que diz respeito ao gasto público quanto à tributação, temos três problemas: o nível de ambos é excessivo, a composição de ambos é distorcida e a eficiência de ambos é precária, como mostram de forma contundente analistas, pesquisas e manifestações. E a combinação desses três problemas é altamente deletéria para os investimentos e o crescimento sustentado que , todos almejamos.
Governos que se acostumaram a culpar governos passados e - quando conveniente - o resto do mundo por seus problemas ficam desorientados quando são alcançados pelas conseqüências de suas próprias ações e omissões ao longo de mais de dez anos. Na verdade, do ponto de vista da economia, desde a "inflexão desenvolvimentista" de 2006, quando uma nova equipe econômica entrou em campo, com a convicção de que a demanda sempre cria sua própria oferta, assegurando o crescimento da produção doméstica.
Talvez tenham descoberto, após sete anos, que nem sempre é assim, que a expansão sustentada da oferta depende não só do gasto público e dos financiamentos concedidos por bancos oficiais, mas do grau de confiança de investidores privados no ambiente geral de negócios, na qualidade do contexto regulatório, na estabilidade das regras do jogo e no compromisso do governo com a responsabilidade fiscal e o controle de inflação.
E que, por vezes, excessos na política de estímulo à demanda (na suposição de que a oferta sempre responde) podem levar ao aumento de pressões inflacionárias e ao aumento das importações e dos déficits do balanço de pagamentos, devidos à nossa baixa taxa de poupança privada e à nossa poupança pública negativa. Tentar desarmar o que André Lara Resende chamou de "a armadilha brasileira" será tarefa da próxima administração - qualquer que seja o resultado das umas.
O mundo não explica o freio do Brasil - SAMUEL PESSÔA
FOLHA DE SP - 11/08
A desaceleração brasileira não foi compartilhada pelos demais países da AL nem pelo resto do mundo
O crescimento da economia brasileira tem se desacelerado acentuadamente desde 2009. A forte expansão de 7,5% de 2010 foi, na verdade, uma recuperação do crescimento negativo do ano anterior.
No biênio 2009-10, o crescimento médio da economia foi de 3,5% ao ano, ou 0,5 ponto percentual abaixo da média do governo Lula. Ou seja, a desaceleração da economia já vem de muitos anos.
Essa é uma situação em que o economista tipicamente fica em dúvida sobre até que ponto o processo é cíclico --fruto, por exemplo, da desaceleração da economia global em razão da crise de 2008. É possível também que haja um componente a mais na história, ligado especificamente ao país.
A dificuldade é que, como geralmente acontece nas questões econômicas, temos de lidar com o complexo problema da inexistência de um experimento controlado.
Em outras palavras, a crise global não aconteceu sozinha. Outros fatores condicionantes do crescimento do Brasil também mudaram desde a sua eclosão. Logo, é muito difícil associar a desaceleração, de forma conclusiva, a esta ou aquela causa.
Sem negar a importância do ciclo internacional, que sempre existiu e influencia sobremaneira os movimentos cíclicos das economias, é importante enfatizar que o grau de desenvolvimento de uma economia depende de sua tendência de crescimento no longo prazo.
A Austrália apresenta renda per capita diversas vezes maior do que a nossa. Não obstante ela estar sujeita aos mesmos movimentos cíclicos da economia mundial aos quais estamos sujeitos (como país também exportador de commodities), ao longo de décadas a Austrália cresceu a taxas médias superiores às nossas. É esse fato que explica a renda per capita superior.
Retomando o fio da meada, a grande questão é saber se a queda do crescimento brasileiro desde 2009 representa um movimento cíclico, acompanhando a tendência da economia mundial, ou se resulta de alguma alteração de política econômica que ocorreu no passado recente.
Penso que a maior parte de nossa desaceleração não é cíclica. A tabela apresenta taxas de crescimento da América Latina, de diversos países da região e do mundo.
O objetivo de comparar o Brasil com outras economias é tentar contornar o problema da inexistência de um experimento controlado. Como as economias latino-americanas são parecidas com a brasileira em diversas dimensões, mas não experimentaram a mesma alteração de política econômica interna pela qual passamos, podemos tentar separar o que é o efeito cíclico (ligado à economia global) da tendência doméstica de crescimento do país.
Na era Lula, o aumento do PIB nacional ficou 0,1 ponto percentual acima da economia mundial e 0,1 ponto percentual abaixo do continente. Já nos três primeiros anos da presidente Dilma, nosso crescimento será praticamente 1,5 ponto percentual inferior ao da América Latina e ao da economia mundial.
Em outras palavras, a desaceleração recente da nossa economia não foi compartilhada pelos demais países latino-americanos nem pelo resto do mundo. Assim, não parece que a intensidade da perda de dinamismo da economia brasileira possa ser atribuída ao movimento cíclico da economia mundial nem ao impacto desse movimento na América Latina.
A desaceleração da economia mundial foi muito menor do que a nossa. Nossos vizinhos, economias com instituições e história que acompanham a nossa em diver- sas dimensões, não sentiram tanto os efeitos cíclicos da crise como sentimos.
Há claras indicações, portan- to, de que há uma redução da tendência de crescimento de nossa economia.
A desaceleração brasileira não foi compartilhada pelos demais países da AL nem pelo resto do mundo
O crescimento da economia brasileira tem se desacelerado acentuadamente desde 2009. A forte expansão de 7,5% de 2010 foi, na verdade, uma recuperação do crescimento negativo do ano anterior.
No biênio 2009-10, o crescimento médio da economia foi de 3,5% ao ano, ou 0,5 ponto percentual abaixo da média do governo Lula. Ou seja, a desaceleração da economia já vem de muitos anos.
Essa é uma situação em que o economista tipicamente fica em dúvida sobre até que ponto o processo é cíclico --fruto, por exemplo, da desaceleração da economia global em razão da crise de 2008. É possível também que haja um componente a mais na história, ligado especificamente ao país.
A dificuldade é que, como geralmente acontece nas questões econômicas, temos de lidar com o complexo problema da inexistência de um experimento controlado.
Em outras palavras, a crise global não aconteceu sozinha. Outros fatores condicionantes do crescimento do Brasil também mudaram desde a sua eclosão. Logo, é muito difícil associar a desaceleração, de forma conclusiva, a esta ou aquela causa.
Sem negar a importância do ciclo internacional, que sempre existiu e influencia sobremaneira os movimentos cíclicos das economias, é importante enfatizar que o grau de desenvolvimento de uma economia depende de sua tendência de crescimento no longo prazo.
A Austrália apresenta renda per capita diversas vezes maior do que a nossa. Não obstante ela estar sujeita aos mesmos movimentos cíclicos da economia mundial aos quais estamos sujeitos (como país também exportador de commodities), ao longo de décadas a Austrália cresceu a taxas médias superiores às nossas. É esse fato que explica a renda per capita superior.
Retomando o fio da meada, a grande questão é saber se a queda do crescimento brasileiro desde 2009 representa um movimento cíclico, acompanhando a tendência da economia mundial, ou se resulta de alguma alteração de política econômica que ocorreu no passado recente.
Penso que a maior parte de nossa desaceleração não é cíclica. A tabela apresenta taxas de crescimento da América Latina, de diversos países da região e do mundo.
O objetivo de comparar o Brasil com outras economias é tentar contornar o problema da inexistência de um experimento controlado. Como as economias latino-americanas são parecidas com a brasileira em diversas dimensões, mas não experimentaram a mesma alteração de política econômica interna pela qual passamos, podemos tentar separar o que é o efeito cíclico (ligado à economia global) da tendência doméstica de crescimento do país.
Na era Lula, o aumento do PIB nacional ficou 0,1 ponto percentual acima da economia mundial e 0,1 ponto percentual abaixo do continente. Já nos três primeiros anos da presidente Dilma, nosso crescimento será praticamente 1,5 ponto percentual inferior ao da América Latina e ao da economia mundial.
Em outras palavras, a desaceleração recente da nossa economia não foi compartilhada pelos demais países latino-americanos nem pelo resto do mundo. Assim, não parece que a intensidade da perda de dinamismo da economia brasileira possa ser atribuída ao movimento cíclico da economia mundial nem ao impacto desse movimento na América Latina.
A desaceleração da economia mundial foi muito menor do que a nossa. Nossos vizinhos, economias com instituições e história que acompanham a nossa em diver- sas dimensões, não sentiram tanto os efeitos cíclicos da crise como sentimos.
Há claras indicações, portan- to, de que há uma redução da tendência de crescimento de nossa economia.
Declínio do petróleo? - CELSO MING
ESTADÃO - 11/08
A matéria de capa da revista inglesa The Economist do último dia 3 de agosto avisa que o consumo de petróleo, hoje nos 89 milhões de barris (159 litros) diários pode estar perto do seu pico.
Há razões para acreditar que, daqui para a frente, em vez de aumentar, essa demanda comece a cair. Se isso estiver correto, o Brasil corre o risco de deixar muito petróleo sem explorar, enterrado no subsolo.
A primeira razão pela qual o fim da era do petróleo pode estar mais próximo do que o percebido até agora, aponta a Economist, é a grande revolução do gás de xisto atualmente em curso, assunto já comentado várias vezes por esta Coluna. Nos próximos anos, esse gás, obtido por meio do fraturamento das rochas de xisto, não só deverá substituir em larga medida os derivados de petróleo, mas, também, será fator de redução expressiva dos preços do petróleo.
Por enquanto, são os Estados Unidos que produzem a maior parte do gás com essa tecnologia. Mas a novidade está atraindo a atenção e os investimentos de grande número de países.
A Economist prevê, também, que maiores exigências ambientais e o novo interesse do consumidor levarão os fabricantes de veículos não só a produzir motores bem mais eficientes, como, também, a substituir a tecnologia convencional por outras que dispensarão os combustíveis fósseis. Hoje, cerca de 60% do petróleo é utilizado para movimentar a frota global de veículos.
Desde a descoberta do pré-sal na Bacia de Santos, em 2006, a política do petróleo adotada pelo governo parte do pressuposto contrário ao apontado aqui: o de que a demanda mundial de petróleo só tende a crescer e, com ela, os preços. Segue-se que a exploração dessas riquezas não tem pressa. Pode seguir devagar, sem forçar demais a capacidade de investimento da Petrobrás e sem necessidade de abrir demais o mercado para empresas estrangeiras.
Faz parte desse entendimento o novo marco regulatório do pré-sal que obriga a Petrobrás a participar de todos os contratos de exploração na condição de única operadora e com participação mínima de 30%.
Como os recursos da Petrobrás são limitados, o ritmo das licitações terá de ser forçosamente lento. O primeiro leilão do pré-sal, depois das primeiras descobertas, só acontecerá em outubro, sete anos depois. Também faz parte dessa falta de pressa a atual política de represamento dos preços dos combustíveis que produz crescente deterioração do caixa da Petrobrás e, portanto, de sua capacidade de investimento.
Sempre há aqueles que argumentam que, se acontecer, essa suposta inversão do mercado do petróleo é coisa só para os anos 20. O problema é que entre a licitação e o início de produção de um campo de petróleo corre um prazo nunca inferior a oito anos. Este governo corre o risco de ser apontado no futuro como aquele que desperdiçou a oportunidade de aproveitar o petróleo para o desenvolvimento do País.
É nessas horas que soam como proféticas as advertências do xeque Ahmed Zaki Yamani, ministro do petróleo da Arábia Saudita nos anos 70. A quem o acusava de explorar depressa demais as riquezas do país dizia ele: “A idade da pedra não acabou por falta de pedra. É o que pode acontecer com o petróleo”.
CONFIRA:
O maior comprador. A Agência Internacional de Energia (EIA) informou na sexta-feira que, em outubro, a China ultrapassará os Estados Unidos como maior importador mundial de petróleo.
Cada vez menos. As importações de petróleo dos Estados Unidos ficarão neste ano abaixo da metade dos 12,5 milhões de barris diários atingidos em 2005. Em contrapartida, a produção está aumentando, em parte graças à contribuição dos campos de gás de xisto.
A matéria de capa da revista inglesa The Economist do último dia 3 de agosto avisa que o consumo de petróleo, hoje nos 89 milhões de barris (159 litros) diários pode estar perto do seu pico.
Há razões para acreditar que, daqui para a frente, em vez de aumentar, essa demanda comece a cair. Se isso estiver correto, o Brasil corre o risco de deixar muito petróleo sem explorar, enterrado no subsolo.
A primeira razão pela qual o fim da era do petróleo pode estar mais próximo do que o percebido até agora, aponta a Economist, é a grande revolução do gás de xisto atualmente em curso, assunto já comentado várias vezes por esta Coluna. Nos próximos anos, esse gás, obtido por meio do fraturamento das rochas de xisto, não só deverá substituir em larga medida os derivados de petróleo, mas, também, será fator de redução expressiva dos preços do petróleo.
Por enquanto, são os Estados Unidos que produzem a maior parte do gás com essa tecnologia. Mas a novidade está atraindo a atenção e os investimentos de grande número de países.
A Economist prevê, também, que maiores exigências ambientais e o novo interesse do consumidor levarão os fabricantes de veículos não só a produzir motores bem mais eficientes, como, também, a substituir a tecnologia convencional por outras que dispensarão os combustíveis fósseis. Hoje, cerca de 60% do petróleo é utilizado para movimentar a frota global de veículos.
Desde a descoberta do pré-sal na Bacia de Santos, em 2006, a política do petróleo adotada pelo governo parte do pressuposto contrário ao apontado aqui: o de que a demanda mundial de petróleo só tende a crescer e, com ela, os preços. Segue-se que a exploração dessas riquezas não tem pressa. Pode seguir devagar, sem forçar demais a capacidade de investimento da Petrobrás e sem necessidade de abrir demais o mercado para empresas estrangeiras.
Faz parte desse entendimento o novo marco regulatório do pré-sal que obriga a Petrobrás a participar de todos os contratos de exploração na condição de única operadora e com participação mínima de 30%.
Como os recursos da Petrobrás são limitados, o ritmo das licitações terá de ser forçosamente lento. O primeiro leilão do pré-sal, depois das primeiras descobertas, só acontecerá em outubro, sete anos depois. Também faz parte dessa falta de pressa a atual política de represamento dos preços dos combustíveis que produz crescente deterioração do caixa da Petrobrás e, portanto, de sua capacidade de investimento.
Sempre há aqueles que argumentam que, se acontecer, essa suposta inversão do mercado do petróleo é coisa só para os anos 20. O problema é que entre a licitação e o início de produção de um campo de petróleo corre um prazo nunca inferior a oito anos. Este governo corre o risco de ser apontado no futuro como aquele que desperdiçou a oportunidade de aproveitar o petróleo para o desenvolvimento do País.
É nessas horas que soam como proféticas as advertências do xeque Ahmed Zaki Yamani, ministro do petróleo da Arábia Saudita nos anos 70. A quem o acusava de explorar depressa demais as riquezas do país dizia ele: “A idade da pedra não acabou por falta de pedra. É o que pode acontecer com o petróleo”.
CONFIRA:
O maior comprador. A Agência Internacional de Energia (EIA) informou na sexta-feira que, em outubro, a China ultrapassará os Estados Unidos como maior importador mundial de petróleo.
Cada vez menos. As importações de petróleo dos Estados Unidos ficarão neste ano abaixo da metade dos 12,5 milhões de barris diários atingidos em 2005. Em contrapartida, a produção está aumentando, em parte graças à contribuição dos campos de gás de xisto.
Onde há Maria Fumaça, há fogo - VINICIUS TORRES FREIRE
FOLHA DE SP - 11/08
Empresas interessadas no trem-bala têm ficha suja pelo mundo e soltam fumaça em São Paulo
SE O GOVERNO federal ainda precisava de um motivo para adiar (e depois esquecer) o leilão do trem-bala, a Siemens sem querer querendo ofereceu uma razão.
A última empresa assumidamente interessada no leilão desse trem, marcado para a semana que vem, é a francesa Alstom. Mais precisamente a Alstom e sua consorte SNCF, a estatal francesa das ferrovias. A Siemens colocou a Alstom no rolo dos trens do tucanato paulista.
Como tem noticiado esta Folha, a Siemens entrega alguns anéis para não perder os dedos. Dedou a si própria e a empresas do ramo de terem participado de bandalheiras no negócio de venda e de reforma de trens para o metrô de São Paulo.
Segundo documentos que constam da investigação, a Siemens fazia parte de cartéis formados com anuência ou incentivo de gente dos governos tucanos de São Paulo. Uma das consortes da Siemens seria a Alstom. Uma outra, a espanhola CAF, que também pode disputar o trem-bala. Assim como a própria Siemens.
A Alstom e a Siemens têm longa ficha corrida em casos de propina e assemelhados, com várias condenações pela Europa e/ou EUA.
Duas das subsidiárias da Alstom foram consideradas "ficha suja" pelo Banco Mundial, que em 2012 as barrou de concorrências com dinheiro do banco por três anos devido a um caso de propina (baratinha) na Zâmbia. Também é investigada por propinas no Brasil e alhures.
Em 2009, o Banco Mundial também considerou a Siemens "ficha suja" (sofreu "debarment") por causa de propina. A empresa foi banida por dois anos de participar de projetos financiados pelo banco. Um ano antes, pagara US$ 1,6 bilhão em multas na Alemanha e nos EUA, também por causa de propinas.
Voltando ao assunto: como é que Dilma comemoraria o sucesso de um leilão do trem-bala vencido pela Alstom e consortes? "Esse leilão foi uma maravilha, santinho! Estamos muito felizes de fechar um contrato com essa empresa que tanto contribuiu para fritar os tucanos."
Alguém pode dizer que o governo federal não teria alternativa ao trem das empresas europeias. Mas, quando essa história do trem-bala recomeçou sob Dilma, ainda presidente-eleita, em 2010, os maiores interessados eram chineses e coreanos.
Alguém pode também dizer distraidamente que, além de querer limpar sua barra "urbi et orbi," pelo mundo, a Siemens aproveita o ensejo para jogar areia nos trilhos das concorrentes europeias, que podem ficar com "ficha suja" em disputas brasileiras, como a do trem-bala.
Entenda-se o limpar a barra "urbi et orbi": de uns cinco anos para cá, EUA e alguns países europeus estão pegando mais pesado com alguns tipos de corrupção (quebrar banco e levar dinheiro do governo ainda não é um rolo tipificado, mas vá lá, não sejamos tão cínicos).
Por enquanto, as penas nem sempre são lá muito grandes: cadeia para poucos executivos e multas por vezes irrisórias para empresas tão grandes (embora bancos estejam pagando multas perto da casa do bilhão de dólares por cumplicidade em evasão fiscal).
Mas o caldo pode vir a engrossar. Talvez as leis endureçam e empresas venham a ser banidas de alguns mercados nacionais por alguns anos. Aí, sim, seria cortar na carne, até o osso. Fica a sugestão para as autoridades brasileiras.
Empresas interessadas no trem-bala têm ficha suja pelo mundo e soltam fumaça em São Paulo
SE O GOVERNO federal ainda precisava de um motivo para adiar (e depois esquecer) o leilão do trem-bala, a Siemens sem querer querendo ofereceu uma razão.
A última empresa assumidamente interessada no leilão desse trem, marcado para a semana que vem, é a francesa Alstom. Mais precisamente a Alstom e sua consorte SNCF, a estatal francesa das ferrovias. A Siemens colocou a Alstom no rolo dos trens do tucanato paulista.
Como tem noticiado esta Folha, a Siemens entrega alguns anéis para não perder os dedos. Dedou a si própria e a empresas do ramo de terem participado de bandalheiras no negócio de venda e de reforma de trens para o metrô de São Paulo.
Segundo documentos que constam da investigação, a Siemens fazia parte de cartéis formados com anuência ou incentivo de gente dos governos tucanos de São Paulo. Uma das consortes da Siemens seria a Alstom. Uma outra, a espanhola CAF, que também pode disputar o trem-bala. Assim como a própria Siemens.
A Alstom e a Siemens têm longa ficha corrida em casos de propina e assemelhados, com várias condenações pela Europa e/ou EUA.
Duas das subsidiárias da Alstom foram consideradas "ficha suja" pelo Banco Mundial, que em 2012 as barrou de concorrências com dinheiro do banco por três anos devido a um caso de propina (baratinha) na Zâmbia. Também é investigada por propinas no Brasil e alhures.
Em 2009, o Banco Mundial também considerou a Siemens "ficha suja" (sofreu "debarment") por causa de propina. A empresa foi banida por dois anos de participar de projetos financiados pelo banco. Um ano antes, pagara US$ 1,6 bilhão em multas na Alemanha e nos EUA, também por causa de propinas.
Voltando ao assunto: como é que Dilma comemoraria o sucesso de um leilão do trem-bala vencido pela Alstom e consortes? "Esse leilão foi uma maravilha, santinho! Estamos muito felizes de fechar um contrato com essa empresa que tanto contribuiu para fritar os tucanos."
Alguém pode dizer que o governo federal não teria alternativa ao trem das empresas europeias. Mas, quando essa história do trem-bala recomeçou sob Dilma, ainda presidente-eleita, em 2010, os maiores interessados eram chineses e coreanos.
Alguém pode também dizer distraidamente que, além de querer limpar sua barra "urbi et orbi," pelo mundo, a Siemens aproveita o ensejo para jogar areia nos trilhos das concorrentes europeias, que podem ficar com "ficha suja" em disputas brasileiras, como a do trem-bala.
Entenda-se o limpar a barra "urbi et orbi": de uns cinco anos para cá, EUA e alguns países europeus estão pegando mais pesado com alguns tipos de corrupção (quebrar banco e levar dinheiro do governo ainda não é um rolo tipificado, mas vá lá, não sejamos tão cínicos).
Por enquanto, as penas nem sempre são lá muito grandes: cadeia para poucos executivos e multas por vezes irrisórias para empresas tão grandes (embora bancos estejam pagando multas perto da casa do bilhão de dólares por cumplicidade em evasão fiscal).
Mas o caldo pode vir a engrossar. Talvez as leis endureçam e empresas venham a ser banidas de alguns mercados nacionais por alguns anos. Aí, sim, seria cortar na carne, até o osso. Fica a sugestão para as autoridades brasileiras.
Surpresas na floresta - MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 11/08
Um índio isolado não abre trilha quando anda na mata; ele negocia com a floresta, procurando as melhores chances de avançar. Esse é um dos sinais que as expedições conseguem captar. Por fortes indícios já testados, a Funai concluiu que existem 27 povos isolados em vários pontos da Amazônia, inclusive próximos a obras do PAC, como Belo Monte e usinas planejadas no rio Tapajós.
Desde 1987 a política brasileira mudou. Na democracia tomou-se essa decisão. Os principais indigenistas se sentaram para avaliar os contatos que cada um tinha feito e o resultado disso. Em geral, eram histórias tristes, de mortes por doença ou de perda de identidade cultural.
- O governo brasileiro decidiu então, após esse encontro, mudar a política e não forçar o contato. Tentar identificar as áreas onde estão e garantir que eles vivam sua vida. A intervenção ocorre só quando há risco iminente - diz Leonardo Lenin, coordenador-adjunto de um órgão criado a partir dessa mudança de política: a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e de Recente Contato.
Em uma expedição feita em março e em outra em julho, funcionários da Funai confirmaram a presença de Awá isolados na Terra Caru, que fica ao sul da Terra Awá, e outro grupo na Terra Arariboia, mais ao sul ainda. Tudo no Maranhão. Para esse último grupo está sendo preparado um plano de contingência para a eventualidade de se forçar um contato. O risco é grande demais de deixá-los expostos a um encontro hostil com madeireiro, por exemplo.
Na terra indígena Arariboia vivem oito mil índios guajajara. Várias lideranças já foram cooptadas pelo crime de desmatamento. Houve uma queimada que destruiu 40% da reserva. O grupo que foi fazer a expedição passou uma noite inteira ouvindo som de tratores e motosserra na mata. Eles não vão sobreviver numa floresta que fica cada vez menor, cercada de madeireiros e índios em que algumas lideranças já foram corrompidas.
Na série de reportagens que fiz com Sebastião Salgado, ganhei do GLOBO generoso espaço no impresso e no online. Mesmo assim, sobraram fatos para serem apurados e explicados. Um é a questão de "índio isolado". O que mesmo vem a ser isso? Todo o Brasil viu as fotos dos índios do Rio Envira, no Acre. Quem não acompanha o tema, pode ter concluído que aquela cena exótica dos índios flechando o avião é um caso único. Houve também notícias de outros índios isolados no Vale do Javari, mas existem mais casos do que se imagina.
- O número oficial é de 77 informes de sinais de índios não contatados, mas até agora foram confirmados casos de 27 povos isolados. Nestes, há um conjunto de informações muito fortes. Em muitos casos nós fazemos expedições para confirmar os relatos. Há muitas formas de registrar os sinais e, pela cultura material, identificar a etnia ou o tronco a que pertencem.
Os Awá tiveram mais atenção recente da Funai. Foram seguidas as pistas de grupos no Caru e em Arariboia.
- Normalmente encontramos esses pequenos sinais que eles fazem ao andar na mata. Foram encontrados tapiris (casas) abandonados e fogueiras como eles costumam fazer em seus acampamentos. Pelos sinais deixados, se vê que usam ferramentas muito antigas: machados que já não têm fio, que eles pegaram em algum acampamento e que usam até acabar. Eles, quando deixam um lugar, levam suas redes, arco e flecha e outros pertences, mas deixam sinais característicos, como marcas de coleta de mel ou açaí. O pessoal especializado em leitura desses sinais não tem dúvida de que o que vimos foi de índio isolado Awá, e não dos índios já aldeados - disse Leonardo Lenin, que acompanhou duas expedições. Ele afirma que os 27 povos isolados estão espalhados por Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Roraima, Amapá e Maranhão.
É espantoso que, tantos séculos depois da chegada dos portugueses, ainda haja índios isolados em tantas áreas do Brasil, mesmo que o espaço para eles esteja se estreitando. Algumas pistas estão sendo seguidas, de outras etnias, até perto das obras do PAC, como são as hidrelétricas do rio Tapajós ou a de Belo Monte.
O plano de contingência que está sendo feito agora, para os Awá da T.I. Arariboia, também poderá ser usado, se as obras das hidrelétricas acabarem tornando inevitável a iniciativa da Funai de contato com índios isolados na região. O Brasil é assim: complexo, diverso, desafiador.
Desde 1987 a política brasileira mudou. Na democracia tomou-se essa decisão. Os principais indigenistas se sentaram para avaliar os contatos que cada um tinha feito e o resultado disso. Em geral, eram histórias tristes, de mortes por doença ou de perda de identidade cultural.
- O governo brasileiro decidiu então, após esse encontro, mudar a política e não forçar o contato. Tentar identificar as áreas onde estão e garantir que eles vivam sua vida. A intervenção ocorre só quando há risco iminente - diz Leonardo Lenin, coordenador-adjunto de um órgão criado a partir dessa mudança de política: a Coordenadoria Geral de Índios Isolados e de Recente Contato.
Em uma expedição feita em março e em outra em julho, funcionários da Funai confirmaram a presença de Awá isolados na Terra Caru, que fica ao sul da Terra Awá, e outro grupo na Terra Arariboia, mais ao sul ainda. Tudo no Maranhão. Para esse último grupo está sendo preparado um plano de contingência para a eventualidade de se forçar um contato. O risco é grande demais de deixá-los expostos a um encontro hostil com madeireiro, por exemplo.
Na terra indígena Arariboia vivem oito mil índios guajajara. Várias lideranças já foram cooptadas pelo crime de desmatamento. Houve uma queimada que destruiu 40% da reserva. O grupo que foi fazer a expedição passou uma noite inteira ouvindo som de tratores e motosserra na mata. Eles não vão sobreviver numa floresta que fica cada vez menor, cercada de madeireiros e índios em que algumas lideranças já foram corrompidas.
Na série de reportagens que fiz com Sebastião Salgado, ganhei do GLOBO generoso espaço no impresso e no online. Mesmo assim, sobraram fatos para serem apurados e explicados. Um é a questão de "índio isolado". O que mesmo vem a ser isso? Todo o Brasil viu as fotos dos índios do Rio Envira, no Acre. Quem não acompanha o tema, pode ter concluído que aquela cena exótica dos índios flechando o avião é um caso único. Houve também notícias de outros índios isolados no Vale do Javari, mas existem mais casos do que se imagina.
- O número oficial é de 77 informes de sinais de índios não contatados, mas até agora foram confirmados casos de 27 povos isolados. Nestes, há um conjunto de informações muito fortes. Em muitos casos nós fazemos expedições para confirmar os relatos. Há muitas formas de registrar os sinais e, pela cultura material, identificar a etnia ou o tronco a que pertencem.
Os Awá tiveram mais atenção recente da Funai. Foram seguidas as pistas de grupos no Caru e em Arariboia.
- Normalmente encontramos esses pequenos sinais que eles fazem ao andar na mata. Foram encontrados tapiris (casas) abandonados e fogueiras como eles costumam fazer em seus acampamentos. Pelos sinais deixados, se vê que usam ferramentas muito antigas: machados que já não têm fio, que eles pegaram em algum acampamento e que usam até acabar. Eles, quando deixam um lugar, levam suas redes, arco e flecha e outros pertences, mas deixam sinais característicos, como marcas de coleta de mel ou açaí. O pessoal especializado em leitura desses sinais não tem dúvida de que o que vimos foi de índio isolado Awá, e não dos índios já aldeados - disse Leonardo Lenin, que acompanhou duas expedições. Ele afirma que os 27 povos isolados estão espalhados por Amazonas, Pará, Mato Grosso, Rondônia, Acre, Roraima, Amapá e Maranhão.
É espantoso que, tantos séculos depois da chegada dos portugueses, ainda haja índios isolados em tantas áreas do Brasil, mesmo que o espaço para eles esteja se estreitando. Algumas pistas estão sendo seguidas, de outras etnias, até perto das obras do PAC, como são as hidrelétricas do rio Tapajós ou a de Belo Monte.
O plano de contingência que está sendo feito agora, para os Awá da T.I. Arariboia, também poderá ser usado, se as obras das hidrelétricas acabarem tornando inevitável a iniciativa da Funai de contato com índios isolados na região. O Brasil é assim: complexo, diverso, desafiador.
A vida como ela foi - HENRIQUE MEIRELLES
FOLHA DE SP - 11/08
O entendimento dos erros e acertos do passado são fundamentais para a formulação de políticas corretas para o presente e para o futuro.
A tendência natural é olhar o passado com olhos do presente, uniformizar diferentes situações, fases, acertos e falhas e submetê-las a uma análise muito condicionada pelo presente.
Lições importantes foram dadas pela estabilização da economia na década passada e pelo crescimento elevado do segundo semestre de 2003 até 2008, que forneceu as bases para a saída rápida e forte da crise de 2008/2009.
O crescimento de 1981 até 2003 foi, em média, pouco acima de 2% ao ano, e entramos 2003 com crises cambial, fiscal e monetária.
É fundamental compreender o forte ajuste fiscal e monetário iniciado em 2003: o governo aumentou a meta do superavit primário para 4,25% do PIB (e ainda entregou resultado maior no primeiro ano), enquanto a taxa Selic foi elevada a 26,5%, sendo ajustada depois para manter a inflação na meta.
Esse ajuste numa economia já em desaceleração gerou forte contração do consumo doméstico, que, por sua vez, gerou excedentes exportáveis, os quais foram o caminho da recuperação.
Paralelamente, ocorreu vigoroso choque de confiança, fruto do ajuste duro e da surpresa com o mesmo, já que um dos fatores importantes da crise foi a expectativa de um governo com políticas opostas.
Com o ajuste, os agentes econômicos passaram do estado de choque e paralisia para a confiança e a ação. Os títulos brasileiros no exterior, que tinham atingido até 20% do valor de face, reagiram rapidamente. Os investimentos retornaram e o país voltou a crescer em julho de 2003, iniciando 61 meses seguidos de expansão. Foi, portanto, uma contração intensa, mas de curta duração e retomada rápida.
Outro aspecto fundamental foi o fato de a recuperação ter sido liderada pelas exportações, principalmente de manufaturados, em função dos excedentes exportáveis gerados pelo consumo do-méstico menor e da capacidade competitiva da indús- tria manufatureira.
A maior parte dos ganhos com a valorização das commodities brasileiras não esteve presente nos primeiros anos da recuperação. A parte mais relevante dele só veio a partir de 2009, principalmente contra o que é senso comum, como resultado das medidas tomadas pela China para combater os efeitos da crise.
Conclusão: o ajuste e o crescimento da economia naquele período foram fundamentados por forte rigor fiscal e monetário, grande choque de confiança e ainda pela disponibilidade de mão de obra, dada a alta taxa de desemprego da época.
O entendimento dos erros e acertos do passado são fundamentais para a formulação de políticas corretas para o presente e para o futuro.
A tendência natural é olhar o passado com olhos do presente, uniformizar diferentes situações, fases, acertos e falhas e submetê-las a uma análise muito condicionada pelo presente.
Lições importantes foram dadas pela estabilização da economia na década passada e pelo crescimento elevado do segundo semestre de 2003 até 2008, que forneceu as bases para a saída rápida e forte da crise de 2008/2009.
O crescimento de 1981 até 2003 foi, em média, pouco acima de 2% ao ano, e entramos 2003 com crises cambial, fiscal e monetária.
É fundamental compreender o forte ajuste fiscal e monetário iniciado em 2003: o governo aumentou a meta do superavit primário para 4,25% do PIB (e ainda entregou resultado maior no primeiro ano), enquanto a taxa Selic foi elevada a 26,5%, sendo ajustada depois para manter a inflação na meta.
Esse ajuste numa economia já em desaceleração gerou forte contração do consumo doméstico, que, por sua vez, gerou excedentes exportáveis, os quais foram o caminho da recuperação.
Paralelamente, ocorreu vigoroso choque de confiança, fruto do ajuste duro e da surpresa com o mesmo, já que um dos fatores importantes da crise foi a expectativa de um governo com políticas opostas.
Com o ajuste, os agentes econômicos passaram do estado de choque e paralisia para a confiança e a ação. Os títulos brasileiros no exterior, que tinham atingido até 20% do valor de face, reagiram rapidamente. Os investimentos retornaram e o país voltou a crescer em julho de 2003, iniciando 61 meses seguidos de expansão. Foi, portanto, uma contração intensa, mas de curta duração e retomada rápida.
Outro aspecto fundamental foi o fato de a recuperação ter sido liderada pelas exportações, principalmente de manufaturados, em função dos excedentes exportáveis gerados pelo consumo do-méstico menor e da capacidade competitiva da indús- tria manufatureira.
A maior parte dos ganhos com a valorização das commodities brasileiras não esteve presente nos primeiros anos da recuperação. A parte mais relevante dele só veio a partir de 2009, principalmente contra o que é senso comum, como resultado das medidas tomadas pela China para combater os efeitos da crise.
Conclusão: o ajuste e o crescimento da economia naquele período foram fundamentados por forte rigor fiscal e monetário, grande choque de confiança e ainda pela disponibilidade de mão de obra, dada a alta taxa de desemprego da época.