Crimes, terremotos, furacões
JOÃO PEREIRA COUTINHO
FOLHA DE SP - 02/08/11
Pergunta lógica: se o indivíduo deixa de ser um agente autônomo, como julgá-lo autonomamente?
Todo mundo que é mundo já escreveu sobre o terrorista da Noruega. Não sou exceção. Mas, hoje, proponho um exercício imaginativo. Imagine: Anders Breivik encerrado numa cela, onde um batalhão de médicos estudam o monstro.
Subitamente, uma conclusão aterradora: Breivik não é um terrorista; é um doente grave, com uma patologia grave -e bem gráfica. Uma análise detalhada do seu cérebro revela um tumor que explica os morticínios. De que forma responderíamos a essa revelação?
Sim, o massacre continuaria a ser um massacre. Mas de que forma o sistema judicial deveria tratar Anders Breivik? Considerá-lo um agente livre, que perseguiu atos de terror e deve ser condenado? Ou vítima de enfermidade, que o privou da razão e o levou a cometer o inominável?
Eis a questão que o neurocientista David Eagleman formula em ensaio arrepiante. Intitula-se "The Brain on Trial" (o cérebro em julgamento), foi publicado na revista "The Atlantic" e, descansem, não se aplica ao terrorista da Noruega: o texto foi escrito antes de Breivik virar celebridade.
Mas existe uma história semelhante à do norueguês: em agosto de 1966, Charles Whitman subiu na torre da Universidade do Texas.
Disparou aleatoriamente sobre os terráqueos. Fez 13 mortos e 32 feridos. A polícia abateu-o no local e depois, quando investigou a privacidade de Whitman, encontrou mais dois cadáveres (a mulher e a mãe) e textos pungentes do assassino, em que o próprio pedia uma autópsia ao seu corpo. Algo não estava bem.
Acertou: um tumor no cérebro, a comprimir a amígdala, explicava o torpor homicida do desgraçado. Não foi caso único: Eagleman relata outros episódios em que alterações químicas ou morfológicas no cérebro levaram adultos "normais" a desenvolver personalidades transgressivas. A lista é variada: pedófilos, cleptomaníacos, meros exibicionistas de rua. Impressionante?
Sem dúvida. Como impressionante é a conclusão de Eagleman: os progressos das neurociências mostram de forma crescente que o comportamento humano é indissociável da biologia humana.
E, muitas vezes, atos que julgamos livres e que o sistema judicial aprecia como tal são, na verdade, determinados por patologias comprovadas e comprováveis. Pergunta lógica: se o indivíduo deixa de ser um agente autônomo, como julgá-lo autonomamente? A pergunta não é nova: quando olhamos para o século 20, encontramos versões de "determinismos" vários que inundaram as ciências sociais e, pior, a própria prática política totalitária.
O marxismo é apenas o exemplo supremo dessa mentalidade determinista que coloca o ser humano como mero joguete de forças históricas, impessoais e subterrâneas, que moldam o seu comportamento e conduzem a sua ação. Havia uma diferença porém: o determinismo histórico se assenta em premissas pseudocientíficas que são possíveis contestar e desmontar. O cenário que David Eagleman apresenta é distinto; e distinto porque justificado por métodos científicos e racionais. É essa vantagem que o autoriza a uma conclusão de peso: os tribunais devem incorporar nas sentenças, de uma forma ainda mais onipresente, avanços das neurociências sobre comportamentos desviantes. A cultura de punição deve dar lugar à cultura de tratamento. O raciocínio de Eagleman é teoricamente inatacável: se existe uma doença que tudo assoberba, não existe um sujeito autônomo responsável pelos seus atos. Mas é preciso temperar o otimismo científico de Eagleman com duas observações.
Em primeiro lugar, relembrando que é necessário distinguir doenças que aniquilam por completo a autonomia do sujeito daquelas que, apesar de nociva influência, continuam a conceder-lhe uma margem de livre-arbítrio -e, consequentemente, de responsabilização criminal.
Nem tudo o que somos desculpa o que fazemos. Pelo contrário: acredito que o número de casos em que a autonomia é engolida pela doença é residual e não constitui regra.
Em segundo lugar, mesmo que esse número fosse majoritário, isso não seria motivo para festejos.
Honestamente, quem desejaria viver num mundo onde o crime humano seria perfeitamente comparável ao fatalismo natural de um terremoto ou de um furacão?