felicidade é uma obrigação de mercado
ARNALDO JABOR
O ESTADO DE SÃO PAULO - 03/08/10
Desculpem a autorreferên-cia, que é vitupério - mas estou terminando meu filme, "A Suprema Felicidade", que me tomou três anos, entre roteiro, preparação e filmagem. Agora, sairá a primeira cópia.
Amigos me perguntam: "Que é essa tal de ‘A Suprema Felicidade’? Onde está a felicidade?".
Eu penso: que felicidade? A de ontem ou a de hoje?
Antigamente, a felicidade era uma missão a ser cumprida, a conquista de algo maior que nos coroasse de louros. A felicidade demandava "sacrifício". Olhando os retratos antigos, vemos que a felicidade masculina estava ligada à ideia de "dignidade", vitória de um projeto de poder. Vemos os barbudos do século XIX de nariz empinado, perfis de medalha, tirânicos sobre a mulher e os filhos, ocupados em realizar a "felicidade" da família. Mas, quando eu era criança, via em meus parentes, em minha casa, que a tal felicidade era cortada por uma certa tristeza, quase desejada. Já tinha começado o desgaste das famílias nucleares pelo ritmo da modernidade.
Hoje, a felicidade é uma obrigação de mercado. Ser deprimido não é mais "comercial". A infelicidade de hoje é dissimulada pela alegria obrigatória. É impossível ser feliz como nos anúncios de margarina, é impossível ser sexy como nos comerciais de cerveja. Essa "felicidade" infantil da mídia se dá num mundo cheio de tragédias sem solução, como uma "Disneylândia" cercada de homens-bomba. A felicidade hoje é "não" ver.
Felicidade é uma lista de negações. Não ter câncer, não ler jornal, não sofrer pelas desgraças, não olhar os menininhos-malabaristas no sinal, não ter coração. O mundo está tão sujo e terrível que a proposta que se esconde sob a ideia de felicidade é ser um clone de si mesmo, um androide sem sentimentos.
O mercado demanda uma felicidade dinâmica e incessante, cada vez mais confundida com consumo, como uma "fast food" da alma. O mundo veloz da internet, do celular, do mercado financeiro nos obriga a uma gincana contra a morte ou a velhice, melhor dizendo, contra a obsolescência do produto ou a corrosão dos materiais.
A felicidade é ter bom funcionamento.
Há décadas, o precursor McLuhan falou que os meios de comunicação são extensões de nossos braços, olhos e ouvidos. Hoje, nós é que somos extensões das coisas. Fulano é a extensão de um banco. Sicrano comporta-se como um celular, beltrana rebola feito um liquidificador.
Assim como a mulher deseja ser um objeto de consumo, como um "avião", uma máquina peituda, bunduda, o homem também quer ser uma metralhadora, uma Ferrari, um torpedo inteligente e, mais que tudo, um grande pênis voador.
A ideia de felicidade é ser desejado. Felicidade é ser consumido, é entrar num circuito comercial de sorrisos e festas e virar um objeto de consumo.
Não consigo me enquadrar nos rituais de prazer que vejo nas revistas. Posso ter uma crise de depressão em meio a uma orgia, não tenho o dom da gargalhada infinita, posso broxar no auge de uma bacanal. Fui educado por jesuítas, para quem o sorriso era quase um pecado; a gargalhada, um insulto.
Bem - dirão vocês -, resta-nos o amor... Mas onde anda hoje em dia essa pulsão chamada "amor"?
O amor não tem mais porto, não tem onde ancorar, não tem mais a família nuclear para se abrigar.
O amor ficou pelas ruas, em busca de objeto, esfarrapado, sem rumo. Não temos mais músicas românticas, nem o lento perder-se dentro de "olhos de ressaca", nem o formicida com guaraná.
Mas, mesmo assim, continuamos ansiando por uma felicidade impalpável.
Uma das marcas do século XXI é o fim da crença na plenitude, seja no sexo, no amor e na política.
Se isso é um bem ou um mal, não sei. Mas é inevitável. Temos de parar de sofrer romanticamente porque definhou o antigo amor... No entanto, continuamos - amantes ou filósofos - a sonhar como uma volta ao passado que julgávamos que seria harmônico. Temos a nostalgia lírica por alguma coisa que pode voltar atrás. Não volta. Nada volta atrás.
Sem a promessa de eternidade, tudo vira uma aventura.
Em vez da felicidade, temos o gozo rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor. Só restaram as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, motéis, perdas, retornos, desertos, luzes brilhantes ou mortiças, a chuva, o sol, o nada.
O amor hoje é o cultivo da "intensidade" contra a "eternidade". O amor, para ser eterno hoje em dia, paga o preço de ficar irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a "prise" não pode passar.
Aí, a dor vem como prazer, a saudade, como excitação, a parte, como o todo, o instante, como eterno. E, atenção, não falo de "masoquismo"; falo do espírito do tempo.
Há que perder esperanças antigas e talvez celebrar um sonho mais efêmero.
É o fim do "happy end", pois, na verdade, tudo acaba mal na vida. Estamos diante do fim da insuportável felicidade obrigatória. Em tudo.
Não adianta lamentar a impossibilidade do amor.
Cada vez mais o parcial, o fortuito é gozoso. Só o parcial nos excita. Temos de parar de sofrer por uma plenitude que nunca alcançamos.
Hoje, há que assumir a incompletude como única possibilidade humana. E achar isso bom. E gozar com isso.
Não há mais "todo"; só partes. O verdadeiro amor total está ficando impossível, como as narrativas romanescas. Não se chega a lugar nenhum porque não há aonde chegar.
A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo.
Usamos uma máscara sorridente, um disfarce para nos proteger desse abismo.
Mas, esse abismo é também nossa salvação. A aceitação do incompleto é um chamado à vida.
Temos de ser felizes sem esperança.
E este artigo não é pessimista...
Amigos me perguntam: "Que é essa tal de ‘A Suprema Felicidade’? Onde está a felicidade?".
Eu penso: que felicidade? A de ontem ou a de hoje?
Antigamente, a felicidade era uma missão a ser cumprida, a conquista de algo maior que nos coroasse de louros. A felicidade demandava "sacrifício". Olhando os retratos antigos, vemos que a felicidade masculina estava ligada à ideia de "dignidade", vitória de um projeto de poder. Vemos os barbudos do século XIX de nariz empinado, perfis de medalha, tirânicos sobre a mulher e os filhos, ocupados em realizar a "felicidade" da família. Mas, quando eu era criança, via em meus parentes, em minha casa, que a tal felicidade era cortada por uma certa tristeza, quase desejada. Já tinha começado o desgaste das famílias nucleares pelo ritmo da modernidade.
Hoje, a felicidade é uma obrigação de mercado. Ser deprimido não é mais "comercial". A infelicidade de hoje é dissimulada pela alegria obrigatória. É impossível ser feliz como nos anúncios de margarina, é impossível ser sexy como nos comerciais de cerveja. Essa "felicidade" infantil da mídia se dá num mundo cheio de tragédias sem solução, como uma "Disneylândia" cercada de homens-bomba. A felicidade hoje é "não" ver.
Felicidade é uma lista de negações. Não ter câncer, não ler jornal, não sofrer pelas desgraças, não olhar os menininhos-malabaristas no sinal, não ter coração. O mundo está tão sujo e terrível que a proposta que se esconde sob a ideia de felicidade é ser um clone de si mesmo, um androide sem sentimentos.
O mercado demanda uma felicidade dinâmica e incessante, cada vez mais confundida com consumo, como uma "fast food" da alma. O mundo veloz da internet, do celular, do mercado financeiro nos obriga a uma gincana contra a morte ou a velhice, melhor dizendo, contra a obsolescência do produto ou a corrosão dos materiais.
A felicidade é ter bom funcionamento.
Há décadas, o precursor McLuhan falou que os meios de comunicação são extensões de nossos braços, olhos e ouvidos. Hoje, nós é que somos extensões das coisas. Fulano é a extensão de um banco. Sicrano comporta-se como um celular, beltrana rebola feito um liquidificador.
Assim como a mulher deseja ser um objeto de consumo, como um "avião", uma máquina peituda, bunduda, o homem também quer ser uma metralhadora, uma Ferrari, um torpedo inteligente e, mais que tudo, um grande pênis voador.
A ideia de felicidade é ser desejado. Felicidade é ser consumido, é entrar num circuito comercial de sorrisos e festas e virar um objeto de consumo.
Não consigo me enquadrar nos rituais de prazer que vejo nas revistas. Posso ter uma crise de depressão em meio a uma orgia, não tenho o dom da gargalhada infinita, posso broxar no auge de uma bacanal. Fui educado por jesuítas, para quem o sorriso era quase um pecado; a gargalhada, um insulto.
Bem - dirão vocês -, resta-nos o amor... Mas onde anda hoje em dia essa pulsão chamada "amor"?
O amor não tem mais porto, não tem onde ancorar, não tem mais a família nuclear para se abrigar.
O amor ficou pelas ruas, em busca de objeto, esfarrapado, sem rumo. Não temos mais músicas românticas, nem o lento perder-se dentro de "olhos de ressaca", nem o formicida com guaraná.
Mas, mesmo assim, continuamos ansiando por uma felicidade impalpável.
Uma das marcas do século XXI é o fim da crença na plenitude, seja no sexo, no amor e na política.
Se isso é um bem ou um mal, não sei. Mas é inevitável. Temos de parar de sofrer romanticamente porque definhou o antigo amor... No entanto, continuamos - amantes ou filósofos - a sonhar como uma volta ao passado que julgávamos que seria harmônico. Temos a nostalgia lírica por alguma coisa que pode voltar atrás. Não volta. Nada volta atrás.
Sem a promessa de eternidade, tudo vira uma aventura.
Em vez da felicidade, temos o gozo rápido do sexo ou o longo sofrimento gozoso do amor. Só restaram as fortes emoções, a deliciosa dor, as lágrimas, motéis, perdas, retornos, desertos, luzes brilhantes ou mortiças, a chuva, o sol, o nada.
O amor hoje é o cultivo da "intensidade" contra a "eternidade". O amor, para ser eterno hoje em dia, paga o preço de ficar irrealizado. A droga não pode parar de fazer efeito e, para isso, a "prise" não pode passar.
Aí, a dor vem como prazer, a saudade, como excitação, a parte, como o todo, o instante, como eterno. E, atenção, não falo de "masoquismo"; falo do espírito do tempo.
Há que perder esperanças antigas e talvez celebrar um sonho mais efêmero.
É o fim do "happy end", pois, na verdade, tudo acaba mal na vida. Estamos diante do fim da insuportável felicidade obrigatória. Em tudo.
Não adianta lamentar a impossibilidade do amor.
Cada vez mais o parcial, o fortuito é gozoso. Só o parcial nos excita. Temos de parar de sofrer por uma plenitude que nunca alcançamos.
Hoje, há que assumir a incompletude como única possibilidade humana. E achar isso bom. E gozar com isso.
Não há mais "todo"; só partes. O verdadeiro amor total está ficando impossível, como as narrativas romanescas. Não se chega a lugar nenhum porque não há aonde chegar.
A felicidade não é sair do mundo, como privilegiados seres, como estrelas de cinema, mas é entrar em contato com a trágica substância de tudo, com o não-sentido, das galáxias até o orgasmo.
Usamos uma máscara sorridente, um disfarce para nos proteger desse abismo.
Mas, esse abismo é também nossa salvação. A aceitação do incompleto é um chamado à vida.
Temos de ser felizes sem esperança.
E este artigo não é pessimista...