Ao chegar aos 50 anos de idade, Brasília continua a provocar paixões e discussões acaloradas com os que não gostam da capital, acusam-na de ser "uma cidade sem esquinas" e "sem lugares para tomar um Chopp" à solidão no setor hoteleiro para quem vai ficar uns poucos dias e por aí.
De fato, é preciso viver em Brasília para entendê-la, dar valor à extraordinária concepção espacial que Lúcio Costa lhe imprimiu; sua capacidade de manter o convívio entre a cidade edificada e o Cerrado que a entremeia e circunda; a funcionalidade e comodidade das quadras residenciais em que o morador encontra todos os serviços de que precisa - sem ter de se deslocar -; a amplidão dos espaços; a presença permanente do horizonte e do céu em qualquer ponto. Não por acaso, é reconhecida como a cidade brasileira com maior área verde por habitante. Mas ao visitante de poucas horas, confinado no setor hoteleiro, de fato parecerá um reduto da solidão.
No dia 11/4, Lúcia Guimarães publicou neste jornal, de Nova York, entrevista com o conceituado arquiteto inglês Kenneth Frampton, a propósito do prefácio que ele fez para o livro Marcel Gautherot - Brasília. Frampton, que estivera na capital em 1965, voltou 45 anos depois. Nessa entrevista, entre as análises (elogiosas, muitas) que faz de Brasília, Frampton diz: "Não entendi por que o transporte público não vai pelo eixo, e sim pelas margens. Não conheço bem a cronologia da transformação, mas a assimetria do crescimento para o sul foi causada, a meu ver, pela falta de um sistema de transporte público, trilhos que cortassem o eixo central."
É preciso esclarecer, porque o autor destas linhas era secretário do Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia do Distrito Federal no período de 1991-92, em que foram tomadas as decisões sobre o metrô de Brasília.
O primeiro projeto, ligando, com o metrô de superfície, Taguatinga e Águas Claras à Estação Rodoviária, na Esplanada dos Ministérios, previa exatamente sua implantação no canteiro central, asfaltado, do Eixo Sul. E essa solução foi desaconselhada por um parecer técnico da Secretaria do Meio Ambiente, porque teria inconvenientes muito graves: 1) Seria preciso interromper, durante os anos de implantação, todo o trânsito no Eixo Sul, principal via de transporte da cidade já naquele tempo; 2) mesmo que se aceitasse o transtorno temporário, o problema persistiria em parte depois, pois obrigaria a compatibilizar o já denso trânsito de automóveis e ônibus com o metrô, encurralado num canteiro central de poucos metros de largura - obrigando também a implantar numerosas passagens subterrâneas ou em passarelas para os usuários da área que desejassem tomar o metrô; 3) esses passageiros ainda teriam de encontrar passagens para ultrapassar a pé os "eixinhos" laterais e chegar ao canteiro central; 4) não haveria espaços para estacionamento de veículos de quem desejasse tomar o metrô já no Eixo Sul.
Diante de todas essas questões, a recomendação foi manter o metrô na superfície entre Taguatinga (que já era o eixo principal da expansão urbana) e a Asa Sul e, nesta, implantá-lo como subterrâneo, debaixo de um dos "eixinhos" laterais. Nessa hipótese, não haveria interrupção do denso trânsito durante a implantação. O inconveniente estaria na necessidade de remover parte das árvores do "eixinho" escolhido. Mas foi incluída na licença a exigência de não abater as árvores, removê-las todas para o viveiro da Terracap e reimplantá-las depois de concluída a obra - o que foi feito com quase 2 mil árvores.
Essa solução foi levada ao Rio de Janeiro, em encontros com Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, aos quais o autor deste artigo estava presente. Lúcio Costa, na modéstia de seu pequeno apartamento no final do Leblon, elogiou muito a solução encontrada. Niemeyer não fez nenhuma objeção. E é isso que permite a quem percorra o Eixo Sul nem sequer perceber a existência de um metrô no subsolo.
Esse trajeto do metrô - Esplanada dos Ministérios/Águas Claras/Taguatinga - também foi recomendado porque já era, à época, parte da rota principal de expansão urbana. Por isso, a recomendação do parecer técnico foi de que o avanço futuro do metrô chegasse ao setor da Ceilândia e a um arco que o levasse a Samambaia, Núcleo Bandeirante e Gama, áreas de menor renda no Distrito Federal e que deveriam ser o alvo principal do projeto.
Tem razão Kenneth Frampton quando diz que o problema de Brasília "é a praga da indústria do automóvel". Mas não apenas em Brasília. Ali o metrô visou, além de proporcionar transporte rápido, eficiente e barato à população de menor renda, evitar a expansão ilimitada das frotas de ônibus e de automóveis - porque não é difícil imaginar o que teria acontecido na capital brasileira sem o metrô.
O problema está na nossa incapacidade de colocar qualquer limite à expansão das frotas de automóveis e qualquer exigência (por exemplo, só licenciar um carro novo se o proprietário provar haver retirado de circulação outro muito antigo, como já se faz em vários lugares do mundo). Como se as cidades brasileiras tivessem capacidade infinita de receber mais veículos em sua já insuficiente rede urbana. Não conseguimos nem mesmo estabelecer zonas de tráfego limitado pelo pedágio urbano - outra solução já consagrada em tantas capitais fora daqui. Para não falar em expansão de metrô, onde ele já existe, ou de implantação, onde não se conta com ele.
Enquanto isso, todas as grandes cidades brasileiras vão inviabilizando a movimentação urbana. Algumas delas (Goiânia é um dos exemplos) já se aproximam da inacreditável proporção de quase um automóvel por habitante. Aí, só restará dizer: Durma-se com um barulho desses - e ainda paralisado no meio da rua. Brasília, fora de alguns eixos no início da manhã e no fim do dia, ainda é das raras exceções.