segunda-feira, fevereiro 08, 2010

AUGUSTO NUNES

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O eleitorado brasileiro merece ver um debate entre Lula e FHC

8 de fevereiro de 2010

Nos comícios agora diários, além de aprenderem que demissão por abandono de emprego não vale para presidente da República, os brasileiros ficam sabendo que o Dia da Criação só deu as caras por aqui bilhões de anos mais tarde. Mais precisamente em 1º de janeiro de 2003, quando o maior governante desde o tempo das cavernas começou a cumprir a missão que a Divina Providência lhe confiou: construir um país.

Antes de Fernando Henrique Cardoso, recita o pregador, o que havia era pouco. Depois, restou o nada. Foi Lula quem fez o Brasil. Teria feito em sete dias se não existissem o Tribunal de Contas da União, o Ministério Público e o IBAMA. Só por isso a mais grandiosa das obras do PAC demorou sete anos. O atraso foi compensado pelo resultado.

O Brasil do Terceiro Milênio é uma beleza, deslumbram-se os ministros de Estado e a base alugada. Até frequenta o Clube das Potências como sócio-convidado, celebram os Altos Companheiros. E o que está bom demais vai ficar ainda melhor no governo de Dilma Rousseff, berra o resto do rebanho. Com a vitória da Mãe do PAC, berra o palanqueiro compulsivo, o milagre brasileiro vai deixar boquiabertos até chineses e americanos. americanos. Sem Dilma na gerência, o país irá submergir no buraco negro de onde Lula o tirou.

Neste domingo, com 968 palavras, Fernando Henrique enterrou no jazigo das malandragens eleitoreiras a fantasia costurada durante sete anos. O artigo ensina que o Brasil existia antes de Lula e existirá depois dele, seja quem for o sucessor. Incisivo, contundente e veraz, o texto exibe o legado de um estadista onde Lula finge enxergar a herança maldita.

“Gostaria que a eleição fosse no estilo nós contra eles, pão-pão-queijo-queijo”, repete o presidente desde outubro. Quem o conhece sabe que “nós” quer dizer Lula e que “eles” é o codinome de FHC no código do Planalto. No último parágrafo do artigo, Fernando Henrique primeiro reitera uma lição elementar (”Eleições não se ganham com o retrovisor: o eleitor vota em quem confia e lhe abre um horizonte de esperanças” para em seguida apanhar a luva atirada pelo sucessor: “Se o lulismo quiser comparar, sem mentir e sem descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”.

Não é difícil descobrir quem tem razão, avisou Sebastião Silveira num comentário aqui publicado. Basta promover um debate público entre os dois. Imediatamente encampada pela coluna e por VEJA.com, que cuidarão de convidar os contendores, a ideia não tem contra-indicações ─ e os possíveis efeitos colaterais são todos positivos. Um foi presidente, outro logo deixará o cargo. Nenhum deles é candidato. O embate ajudará o eleitorado a escolher com mais segurança.

O fecho do artigo informa que FHC está pronto para o duelo. Lula vive dizendo que sonha com o debate que não pôde travar em 1994 e 1998. Duas vezes derrotado por FHC, o atual presidente tem a chance de provar que o desfecho de um terceiro confronto seria diferente.

O Brasil merece conhecer a verdade. E está ansioso por saber quem está mentindo.

ROBERTO ZENTGRAF

Ação e reação

O Globo - 08/02/2010


Impressionante o que um sustinho em Bolsa faz com a gente, não é mesmo? Pois bastou este tropeço na Bovespa - que acumula queda de 6,78% até o fechamento de 4 de fevereiro - para me fazer olhar despesas com mais cuidado, apagando luzes desnecessariamente acesas ou usando mais o metrô, por exemplo. E por que tudo isso? Porque, tendo alguns trocados em fundos FGTSPetrobras, a presente queda fez meu patrimônio diminuir um pouco. Nada de se tirar o sono, mas que automaticamente me colocou na defensiva, querendo compensar a perda financeira com um ganho operacional. No meu caso, que, de forma idêntica a uma legião de brasileiros, vivo basicamente de salário, isto significa que precisarei diminuir minhas despesas, por pura incapacidade de aumentar a própria receita.

Refletindo sobre este movimento das ações, ainda não tenho uma visão clara do que virá pela frente, pois os sinais, como já comentei anteriormente aqui neste espaço, estão contraditórios: o país vive um momento único, com otimismo exuberante, contas razoavelmente em ordem, inflação sobre controle; tudo aparentemente apontando para um 2010 tranqüilo. Entretanto, no cenário externo ainda há temores e indefinições, como por exemplo, a situação da dívida dos PIGS (sigla para designar Portugal, Itália, Grécia e Espanha) ou os dados do desemprego americano, dentre outros fatores. Analistas que li (e ouvi) estão divididos entre aqueles mais otimistas, que acham que a atual queda é apenas um reajuste de preços (investidores realizando os polpudos lucros obtidos em 2009) e os mais pessimistas, que acham que a atual queda é apenas o início de uma grande correção.

Voltando à questão apresentada no início do artigo, decerto você, meu bom e querido leitor, possivelmente já tenha experimentado reações parecidas, tanto no sentido da que apontei hoje - tornar-se mais " mão-de-vaca " diante das perdas financeiras -, como no sentido oposto - tornarse perdulário diante dos ganhos. Reconheço que administrar ganhos é muito mais suave, já que para evitar detoná-los com excessos, sair de casa sem cheques ou cartões é uma ação simples, com potencial para nos colocar na linha. A questão relevante portanto é: como lidar com as perdas - como a de agora, por exemplo - sem infernizar a vida daqueles que nos cercam? Uma sugestão que funciona bem comigo é separar o que é impressão (emoção) do que é fato (razão). E um grande aliado destas horas é o controle dos ganhos e dos gastos em bases periódicas - o não-tãopopularassim orçamento pessoal. Por meio dele, posso descobrir, por exemplo, que a perda do fundo FGTS afetou apenas meus resultados financeiros, deixando intacto o meu equilíbrio operacional - meu salário continuou suficiente para cobrir as minhas despesas. Neste caso, faria mais sentido eu procurar proteger o saldo do fundo (usando desde estratégias muito simples, como resgatar o valor lá aplicado, até as mais sofisticadas, com o auxílio dos mercados futuros), do que economizar na conta de luz, não é mesmo? Até porque os valores envolvidos são olimpicamente distantes.

Mais infelizmente o assunto - orçamento - é imenso, e o espaço aqui é curto. Prometo mais artigos sobre o tema! Um grande abraço e até a próxima semana!

EDITORIAL - O ESTADO DE SÃO PAULO

O falso êxito do PAC

O Estado de S. Paulo - 08/02/2010

Por qualquer critério isento que se examinem os números da execução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) apresentados na quinta-feira pela ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff ? sua principal gestora, batizada pelo presidente Lula como "mãe do PAC" ?, a conclusão é decepcionante. Sua execução é lenta, o que torna muito duvidoso que seja concluído no prazo previsto. A utilização de certos indicadores mascara seu baixo nível de execução. Seus principais resultados são frutos de programas e projetos de empresas estatais e privadas que seriam executados com ou sem ele. A necessária melhora na qualidade do gastos do governo, que deveria ser um de seus principais efeitos sobre a gestão financeira do setor público, não ocorreu até agora e não deverá ocorrer no último ano de sua vigência.

O PAC é um fracasso que, mesmo assim, a ministra-candidata transformou, com o entusiasmado apoio de seu mentor político, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na principal peça de propaganda de sua campanha eleitoral lançada antes do prazo previsto pela legislação. Ao longo deste ano, seguramente muito será dito pelo governo sobre esse programa, mas o eleitor precisará estar atento para não ser enganado.

A ministra anunciou que, do total de R$ 638 bilhões em investimentos no período 2007-2010 previstos no PAC, R$ 403,8 bilhões, ou 63,3%, tinham sido aplicados até o fim do ano passado. É um dado enganoso. Se se considerar apenas as ações efetivamente concluídas, o resultado é bem menos animador. Em 36 meses de execução do PAC, nas obras encerradas foram aplicados R$ 256,9 bilhões, ou seja, 40,3% do total.

Isso significa que, por ano, o governo executou, em média, 13,4% do total. Para concluir o PAC no prazo, teria de executar 60% neste ano de 2010, ou seja, teria de multiplicar por 4,5 o ritmo da execução do programa. Mesmo que, como assegura a ministra, o governo tenha aprendido a gerir melhor o programa, não parece crível que consiga elevar tanto assim o ritmo, pois isso exigiria da atual gestão uma competência que ela nunca mostrou ter.

Do valor de R$ 403,8 bilhões anunciado pela ministra como realizado, é preciso destacar uma gorda parcela, de R$ 137,5 bilhões (34% do total), que nada tem a ver com obras, pois é formada por empréstimos habitacionais a pessoas físicas. São recursos oriundos do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo, do FGTS, do FAT e de outras fontes públicas.

Esses recursos são utilizados, em geral, na compra de imóveis usados, pois as políticas do governo para esses fundos privilegiam esse tipo de negócio. Economistas do setor privado observam que, ao contrário das vendas de imóveis novos, as de imóveis usados não resultam necessariamente na geração de emprego ou renda, como é o objetivo do PAC. Daí a estranheza com relação ao uso desses dados, o que pode ter sido feito apenas para inflar os resultados.

Outra parcela importante refere-se aos investimentos das estatais, de R$ 126,3 bilhões (31%). A Petrobrás responde pela maior fatia desses investimentos, que seriam feitos pelas estatais com ou sem o PAC, pois eles são elementos essenciais do planejamento estratégico dessas empresas.

A terceira fatia mais importante corresponde aos investimentos das empresas privadas, de R$ 88,8 bilhões (ou 22% do total), e sobre eles o governo nada pode decidir. Há, ainda, as contrapartidas dos Estados e municípios (R$ 11,1 bilhões, ou 3%) e os financiamentos (R$ 5,1 bilhões, ou 1%).

A fatia do PAC que cabe exclusivamente ao governo do PT, originária do Orçamento-Geral da União, totalizou apenas R$ 35 bilhões, 9% do que a ministra anunciou ter sido executado. Esses números mostram que, apesar de tudo que tem anunciado e apesar do PAC, o governo continua a investir pouco, bem menos do que as necessidades do País.

O padrão do gasto oficial, dominado pelas despesas de custeio, continua ruim para a economia brasileira e para os cidadãos. Melhorá-lo exige a redução dos gastos correntes, mas as despesas que mais crescem no governo Lula são com o funcionalismo, razão pela qual, tirante o PAC, é pequena a fatia que sobra para investir.

Em resumo, o PAC, mal gerido, está longe de suas metas.

GEORGE VIDOR

Rio de petróleo

O GLOBO - 08/02/10



Os Jogos Olímpicos de 2016 são a cereja do bolo e certamente trarão muitos benefícios para a cidade. Mas, em termos de atração de investimentos e geração de empregos, o setor que mais impulsionará a economia do Rio, segundo estimativa da prefeitura, é o de petróleo e gás.

Enquanto os Jogos devem criar 15 mil empregos até 2016, o petróleo responderá por 80 mil.

A diferença se deve ao impacto dos investimentos programados para o período. Todas as atividades relacionadas com o petróleo e o gás (o que inclui não só a elaboração de projetos mas a prestação de serviços) absorverão investimentos da ordem de US$ 75 bilhões nos próximos sete anos. No caso dos Jogos Olímpicos, o valor estimado é de US$ 16 bilhões, o que também é muito relevante.

Somente a Petrobras espera investir, conforme seu plano estratégico, o equivalente a US$ 174 bilhões no período 20092013, dos quais o Rio receberá expressiva parcela.

O número de empregos esperados para a cidade também se baseia na demanda de profissionais qualificados estimada pela empresa para esse mesmo período (207 mil pessoas no Brasil todo).

Evidentemente que tanto o petróleo como os Jogos beneficiarão outro segmento importante no município do Rio, que envolve recreação cultural e esportiva, ressalva o professor Mauro Osório, especialista em economia fluminense. Segundo levantamento do Ministério do Trabalho, de um total de 2.161.698 empregos formais no Rio em 2008, 38.632 (ou seja, 1,8%) eram vinculados a atividades de cinema, teatro, televisão, música, discotecas, dança, espetáculos, jogos, bibliotecas, museus, parques e esportes em geral.

Para efeito de comparação, esse mesmo segmento em São Paulo envolvia 44.508 empregos (1% de um total de 4.489.076 postos de trabalho formais), em Belo Horizonte, 11.409 (0,9%), em Porto Alegre, 8.172 (1,2 %),em Salvador, 5.413 (0,8%), e em Recife, 3.711 (0,6%).

No caso do turismo, o setor empregava formalmente 149.679 pessoas no Rio em 2008 (6,9% do total de ocupados, com registro). Essa participação relativa só era superada em Florianópolis, onde o turismo respondia por 7,3% dos empregos formais Em São Paulo, a proporção era de 5,5% (248.793).

Curiosamente, a participação relativa dos empregos formais gerados pelo turismo nas maiores capitais brasileiras pouco se alterou nos últimos dez anos. Passou de uma média de 5,5% para 5,7%.

No Rio, até caiu (era de 7,1% em 1998).

Alguns jovens executivos financeiros se tornaram grandes banqueiros de investimento no Brasil em menos de duas décadas, pois souberam aproveitar oportunidades que surgiram com as transformações da economia nesses 20 anos, e conseguiram também escapar de algumas armadilhas decorrentes de tais mudanças.

Gestão de recursos de terceiros, fusões, incorporações, leilões de privatização, lançamento de ações, tudo isso junto fez com que instituições financeiras que nasceram pequenas multiplicassem seus patrimônios líquidos rapidamente, pois uma intermediação bem-sucedida acabava viabilizando outra a seguir. A sorte deu uma mão, já que pelo meio do caminho houve muitas baixas.

Se fossem apenas assalariados ou diretores com gratificações convencionais, esses jovens executivos financeiros possivelmente teriam acumulado bens pessoais suficientes para viver com tranquilidade o resto de suas vidas.

Se tornaram banqueiros (alguns até mesmo bilionários) graças a políticas de participação nos resultados das instituições onde começaram ou passaram a trabalhar.

Esse tipo de remuneração, apontado como um dos fatores que levaram o sistema financeiro internacional a assumir riscos exagerados por decisão de seus executivos, é que está hoje na mira dos governos. Na discussão de medidas para tirar a economia mundial da crise, os governantes decidiram promover uma ação conjunta para controlar ou limitar essas gratificações.

No Brasil, devido a regras já impostas ao sistema financeiro antes mesmo da crise (já havíamos passado por más experiências no próprio país, e assim, os órgãos regulares tinham estabelecido regras mais conservadoras do que as adotadas lá fora, o que, de certa forma, nos salvou da tempestade), a questão de pagamento de bônus não deverá ser tratada com a gravidade com que é encarada nos Estados Unidos ou na Europa, por exemplo. No entanto, ao que tudo indica o Banco Central baterá pé firme em duas questões: transparência na política de participação dos executivos nos resultados das instituições financeiras (a divulgação da maior e da menor bonificação será uma das exigências); condicionar o pagamento de bônus a resultados mais de longo prazo, para evitar que executivos se aventurem em operações bombasrelógio.

O projeto do Banco Central ficará em audiência pública por 90 dias.

Ninguém tem dúvida que os índices de preços agora em fevereiro serão uma espécie de rescaldo da inflação de janeiro. Mas se esses índices mostrarem alguma tendência de queda — o que é bem provável — prevalecerá a tese que a inflação no início do ano foi mais um soluço que um repique. Só assim escaparemos de uma alta nas taxas de juros já na reunião do Copom em março.

FABIO GIAMBIAGI

A "argentinização" da política


Valor Econômico - 08/02/2010

Publiquei este artigo na Argentina, em 2009. No final explico a tradução. Fiz adaptações, para adequar o texto ao espaço. "Sou brasileiro, filho de argentinos que por razões profissionais passaram dois anos fora do país no começo dos anos 60 e por razões políticas tiveram que sair da Argentina em meados dos 70. Da mesma forma que o argentino Borges se confessava 'um europeu nascido no estrangeiro', durante parte da minha vida me senti 'um argentino nascido no Rio'. As reflexões que farei a seguir são pessoais, mas refletem o estado de espírito de vários amigos que viveram circunstâncias similares, com a diferença de que todos eles tinham nascido na Argentina. Não por acaso, tendo tido todos nós, depois de 1983, a oportunidade de retornar a Buenos Aires (pela qual cada um de nós conservou a sua paixão), optamos em todos os casos por continuar morando no Brasil.

Tendo chegado aqui em 1976, fugindo da Argentina daquela época, algo que me chamava a atenção era que conflitos menores como, por exemplo, batidas de carro, que na Argentina gerariam uma briga de socos e pontapés, no Brasil não raras vezes acabavam em um bar para tomar um chope. Criado na tradição italiana das grandes polêmicas, tendo passado minha adolescência na vertigem dos anos 70 com o país novamente fraturado pela divisão inexorável da sociedade entre peronistas e antiperonistas, aprendi por meio desses pequenos gestos que, como alguma vez disse Fernando Pessoa, ao invés de uma verdade poderia haver duas.

Com a impetuosidade da juventude, esse aprendizado não foi imediato. A transição para a vida adulta coincidiu no meu caso com a transição do Brasil rumo à democracia, na qual brilhou a figura de Tancredo Neves. Em 1984, na campanha das 'Diretas já', supunha-se que, se houvesse eleições, seriam vencidas por Ulysses Guimarães. Com a derrota da emenda das diretas, a saída encontrada foi a de 'vencer o regime com suas próprias armas', no Colégio Eleitoral, com um candidato que pudesse ser votado por parte da bancada governista, o que levou à eleição de Tancredo e, depois, à posse de Sarney.

Com a impaciência dos 22 anos e participando das passeatas com o entusiasmo de quem sentia estar no meio de uma revolução, vivi aquele desfecho como uma traição e via Tancredo com grande desconfiança, como se ele tivesse traído o povo para se juntar aos inimigos. Os anos me levaram depois à reflexão de que, na verdade, aquilo tinha sido uma excepcional lição de sabedoria política de todos os atores: de Tancredo, grande mestre da transição, respeitado por todos os partidos e capaz de dialogar com diferentes grupos; de Ulysses, que abdicou de suas legítimas pretensões e, ao invés de fazer arder o país numa campanha de destino incerto, soube dar um passo ao lado ao entender que o momento histórico requeria ceder a liderança a outra pessoa - algo muito difícil para um político - com menos resistências do regime que estava acabando; e dos próprios militares, que reconheceram que seu ciclo tinha que chegar ao fim e estavam dispostos a sair de cena, mas não queriam fazê-lo como derrotados.

O que a geração de argentinos que vieram ao Brasil nos anos 70 foi notando com o passo das décadas é que as histórias diversas de nossos países - e falo como brasileiro - eram também o reflexo da diferença entre a atitude das pessoas de um lado e de outro da fronteira. Isso ficava claro quando íamos de férias à Argentina e saíamos para conversar com os amigos. Eram sempre discussões muito diferentes em relação às que estávamos acostumados a ter aqui, em função das simpatias que cada um de nós ia desenvolvendo com os grupos políticos locais. Enquanto que no Brasil era natural aceitar as divergências e elas quase nunca comprometiam as amizades, ir à Argentina - já como visitantes - era submergir em um turbilhão de insultos e ressentimentos: os 'outros' não eram pessoas que apenas tinham opiniões diferentes, mas 'vendidos', 'traidores' ou coisas piores. Em outras palavras, inimigos que deviam ser destruídos. Com o tempo, o sentimento comum a todo esse grupo de amigos foi o cansaço ante essa forma, em última instância, de viver. Descobrimos que tínhamos optado pelo Brasil, não por gostar mais de tomar um chope que um café em uma confitería portenha; não por preferir o samba ao tango; mas sim por ter aprendido a conviver com a diferença e a apreciar a tolerância, ao invés de fomentar a cultura do ódio e do desprezo.

Os sinais do crescimento desse traço cultural são visíveis na Argentina, lembrando as disputas enlouquecidas ocorridas há mais de 30 anos. O 'ovo da serpente' está na virada da esquina. O fato de ser brasileiro e de trabalhar em um órgão oficial me inibe de manifestar minha opinião franca sobre a responsabilidade das autoridades para que se tenha chegado à situação de tensão atual. Com a vantagem de conhecer a idiossincrasia e a história de ambos países, há algo, porém, que posso afirmar: a Argentina precisa, desesperadamente, de um Tancredo, que seja capaz de conversar com todos".

Deixo a tradução de lado. A experiência de ter vivido em quatro países diferentes ao longo da vida me ensinou a analisar os fatos com olhos de quem vê um país de fora. E sou obrigado a constatar com pesar que a política brasileira se parece, em certo sentido, cada vez, mais com a argentina. Basta frequentar os insultos que circulam no mundo da web para constatar as dificuldades de diálogo. As pontes são cada vez mais escassas. O discurso do antagonismo de "nós x. eles" - perigosamente estimulado desde os palanques, numa campanha absurdamente antecipada - e a noção de que o rival é um inimigo tornam rarefeito o clima político. Governo e oposição conversavam mais no Brasil nos anos 70, na época dos militares, nas pessoas de Petrônio Portella e de Ulysses, do que hoje, apesar de o PT e o PSDB terem nascido da mesma costela do MDB paulista. Comparando o Brasil de 2010 com o daqueles anos, a conclusão é que nossos políticos enriqueceram - mas a política se empobreceu.

DILMA SELI PENA

Mitos sobre enchentes em São Paulo

Folha de S. Paulo - 08/02/2010


O noticiário sobre as enchentes que têm assolado São Paulo alimentaram alguns mitos. Vamos tratar aqui de três deles

O NOTICIÁRIO sobre as enchentes que têm assolado São Paulo nos últimos meses, embora intenso e, em geral, bastante esclarecedor, tem alimentado alguns mitos, que precisam ser apontados. Vamos tratar aqui de três deles.
O primeiro garante que as cheias se devem à falta de piscinões previstos em plano diretor elaborado pelo Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee). Outro atribui as enchentes ao aumento da vazão das represas.
Um terceiro assegura que a limpeza e a canalização de córregos têm agravado as inundações.
O Plano Diretor de Macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê foi elaborado pelo Daee em 1998, contendo ações para o problema da drenagem na região metropolitana até o ano de 2020. Ele previa, entre outras coisas, a implantação de piscinões em toda a região, de forma a conter a vazão despejada no Tietê nas cheias.
O governo do Estado já entregou, desde então, 26 piscinões, dos quais 6 na gestão José Serra. Outros quatro estão em obras. Somados aos 19 feitos pelas prefeituras, são 45 piscinões em operação, que podem acumular mais de 8 milhões de metros cúbicos de água -60% da capacidade prevista para 2020. Assim, quando se afirma que a execução do plano é baixa, como fez esta Folha, erra-se duplamente: ao omitir que as metas são para 2020 e ao fazer um cálculo enganoso, baseado no número de piscinões, e não na sua capacidade total.
O efeito da vazão das represas operadas pela Sabesp também tem sido abordado equivocadamente, nesse caso por razões político-eleitorais.
Essas represas existem para armazenar água e garantir o abastecimento de milhões de pessoas. Cumprem também um papel fundamental no controle das cheias, retendo boa parte da água que recebem.
Elas são operadas conforme normas da Agência Nacional de Águas (ANA), órgão federal, e do Daee, do Estado, que determinam, por exemplo, o nível a partir do qual se deve liberar a água acumulada, por meio da abertura de comportas ou naturalmente, por um vertedouro. Isso é necessário para garantir a segurança de suas estruturas, evitando que as barragens se rompam.
A água liberada nessas situações é insuficiente, por si só, para causar grandes inundações: a vazão dos afluentes do rio tem impacto bem maior. Em Atibaia, a cheia de 13/12 ocorreu quando a represa operava normalmente, sem verter água.
Chega-se a dizer que a Sabesp deveria ter se antecipado às chuvas, iniciando o descarregamento de água em meados do ano passado, de forma a evitar o excesso de capacidade atual. Mas liberar a água de uma represa com níveis normais é uma medida irresponsável: implica o risco real de afetar o abastecimento de milhões de pessoas. A própria região de Atibaia já sofreu e reclamou da estiagem em anos anteriores.
Outro mito -este uma aberração muito especial, propagada com base em declarações de uma suposta "especialista" em hidrologia- é o de que o programa Córrego Limpo teria aumentado as enchentes, como afirmou reportagem desta Folha no dia 29/1.
Ora, procurou-se estabelecer uma relação causal sem nem mesmo citar a causa principal e inequívoca das enchentes: o volume recorde de chuvas na capital nos últimos meses. Com ou sem as obras, haveria o risco de mais inundações. Omitiu-se, por outro lado, que a regularização de 42 córregos foi uma conquista enorme: não há mais esgoto a céu aberto, moradias de risco foram removidas e os bairros receberam equipamentos urbanos.
Embora seu objetivo não seja a prevenção das cheias, essas obras amenizam os seus efeitos, devido à redução da erosão das margens, remoção de lixo e implantação de áreas verdes e pisos permeáveis.
Em São Paulo, a construção de piscinões segue acelerada: em 14/1, foi inaugurado o piscinão Sharp, o segundo maior do Brasil -infelizmente não noticiado pela imprensa.
O investimento no desassoreamento do Tietê só aumentou: entre 2007 e 2009, foi, em média, de R$ 53,7 milhões -62,7% superior a 2006-, e será duplicado neste ano.
O parque Várzeas do Tietê, que já está em obras e terá 75 km de extensão, ajudará a recuperar a várzea do rio e preservar áreas verdes.
Isso sem falar nas ações de emergência, garantindo apoio técnico e verbas adicionais para que as prefeituras possam identificar e remover moradias de risco, limpar córregos e conter encostas.
Sem tudo isso, as consequências dessas chuvas atípicas -as maiores em 70 anos- seriam bem piores.

DILMA SELI PENA, 59, geógrafa pela UnB e mestre em administração pública pela FGV-SP, é secretária de Saneamento e Energia do Estado de São Paulo. Foi diretora da ANA (Agência Nacional de Águas). Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

MARIA CRISTINA FRIAS - MERCADO ABERTO

Auditores veem ameaça à independência

FOLHA DE SÃO PAULO - 08/02/10



A onda global de regulação em bancos também deve complicar a vida de auditores. Para reduzir o risco de um colapso no estilo da Arthur Andersen, que foi negligente com a contabilidade da Enron, em 2001, o Reino Unido criou um novo código de governança para firmas de auditorias. As "quatro grandes" (PricewaterhouseCoopers, Deloitte, KPMG e Ernst & Young) deverão, entre outras obrigações, indicar não executivos independentes para os trabalhos de auditoria.
Os auditores temem que as novas regras ameacem sua independência e acarretem conflitos de interesse. "A exigência de indicar não executivos independentes para nosso modelo de governança levantou considerações relativas à independência, a conflitos de interesse e de responsabilidade", disse Stuart Diack, sócio da auditoria, no Reino Unido.
Para Diack, o Código de Governança de Firmas de Auditorias vai permitir uma melhor comparação entre as empresas de auditorias, mas "não prevemos que acrescente algo de modo significativo às nossas responsabilidades regulatórias."
Uma disseminação de regras mais rigorosas pelo mundo pode ser preocupante, segundo os auditores. "Uma boa governança é preferível a uma regulação desproporcional", disse Diack.
"O regime de governança britânico é visto internacionalmente como equilibrado e lógico. Outros países vão julgar se requerimentos similares são apropriados as suas necessidades. No Reino Unido, o código foi introduzido para mitigar o risco de uma importante firma de auditoria se retirar do mercado, mas esse risco varia internacionalmente", acrescentou.
"Estamos sempre lidando com mudanças de regulação", disse Robert E. Moritz, presidente e sócio da PricewaterhouseCoopers. Para Moritz, o que é prejudicial é ter incertezas. "À medida que você já sabe o que muda, você se prepara, faz ajustes", afirmou Moritz.

O pior é ter incertezas. À medida que você já sabe o que muda, você se prepara, faz ajustes
ROBERT E. MORITZ
presidente e sócio da Pricewaterhouse (EUA)

A exigência de indicar não executivos independentes levantou considerações relativas à independência
STUART DIACK
sócio da Deloitte (Reino Unido)

CARAVELA PARA A COPA

Antonio Trindade, presidente do Grupo Porto Bay, rede de hotelaria portuguesa, com sede na Ilha da Madeira, esteve no Brasil para avaliar oportunidades de aquisições no setor. Trindade afirma que o país, onde o grupo já possui três unidades -em São Paulo, Rio e Búzios-, passa por um bom momento para receber investimentos, impulsionado pela Copa e pelas Olimpíadas. "Já investimos R$ 70 milhões no Brasil e estamos muito motivados a fazer novos projetos em outras capitais." Os hotéis brasileiros do grupo já estão com ocupação completa para o Carnaval.

IMPACTO NOS SETORES

O setor de papel e celulose foi o que mais sofreu com a turbulência dos mercados financeiros. As ações dessas companhias tiveram desvalorização média de 15% na Bovespa no acumulado deste ano até a última sexta-feira, de acordo com levantamento realizado pela Economática, que leva em conta a liquidez. Em segundo lugar, ficaram os papéis do setor de construção, que acumularam queda de 13%. Ao todo, sete setores tiveram desvalorização acima dos 8,5% registrados pelo Ibovespa, índice que reúne as 63 ações brasileiras mais negociadas na Bolsa paulista.

CORREDOR 1
Surgiu um novo corredor de exportação de grãos com a reativação da logística ferroviária no noroeste de Minas. O número de tradings que buscam alternativa ao porto de Santos aumentou. A mais recente é a Louis Dreyfus Commodities Brasil, que fechou contrato com a Ferrovia Centro-Atlântica para o transporte de 1,5 milhão de toneladas de grãos.

CORREDOR 2
A carga será captada em Mato Grosso, em Goiás e no noroeste de Minas Gerais para exportação pelo porto de Tubarão, em Vitória, no Espírito Santo. De janeiro a setembro do ano passado, 40% do volume total de carga geral transportada pela FCA foi de produtos agrícolas. A Vale anunciou investimentos de R$ 300 milhões na região.

O RETORNO 1
Após ficar cerca de um ano sem um produto voltado para a baixa renda, a Brasilcap lançou neste mês um título de capitalização que oferece descontos de até 50% em farmácias, o Ourocap Reserva. "Voltaremos a vender para um segmento importante", diz Márcio Lobão, presidente da Brasilcap. A expectativa é comercializar 530 mil títulos até dezembro.

O RETORNO 2
Os pagamentos mensais do Ourocap Reserva vão de R$ 30 a R$ 50. Para lançar o produto, a Brasilcap fez parceria com 6.000 farmácias do país, que irão oferecer descontos em medicamentos. O mercado de capitalização possui potencial para crescer, pois atualmente é o menor dentro do mercado de seguros, de acordo com o presidente da empresa.

Chuvas irão influenciar voto de brasileiro em 2010, diz pesquisa

Em tempos de chuvas e enchentes, mais da metade dos brasileiros vai levar em consideração os fatores climáticos na hora de decidir os candidatos que irão escolher nas próximas eleições. Mais de 65% dos eleitores pretendem avaliar como os candidatos se posicionam sobre o tema, segundo levantamento feito pela empresa de pesquisas de mercado Market Analysis, com 835 pessoas em nove capitais.
As classes mais baixas são as mais sensibilizadas pelo tema, com mais de 60%. Os jovens são os mais preocupados -73% dos que têm entre 18 e 24 anos consideram a questão prioritária. O menor percentual está entre os mais velhos, entre 55 e 69 anos (52%). As mulheres (68%) são também mais interessadas pelo tema do que os homens (64%).

com JOANA CUNHA e ALESSANDRA KIANEK

RUY CASTRO

Suco de maracujá

Folha de S. Paulo - 08/02/2010


RIO DE JANEIRO - Há dias, a presidente da Argentina, Cristina Kirchner, disse que "carne de porco é melhor que Viagra". A declaração foi feita num encontro na Casa Rosada com criadores de porcos, mas Cristina explicou que não era para agradar. "Comer carne de porco realmente melhora a atividade sexual", insistiu. E contou que ela e seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, comeram carne de porco ("com a pele e tudo, assada") numa recente viagem à Patagônia e que, depois, "tudo saiu bem".
A frase deixa bem o porco, mas nem tanto o ex-presidente. Subentende que ele não vinha comparecendo, que nem com o Viagra dava jeito e que um leitão pururuca teve de vir em seu socorro.
Por sua vez, cientistas da Universidade de Graz, na Áustria, analisaram 2.299 homens e descobriram que os indivíduos com maior quantidade de vitamina D apresentam mais testosterona. Donde, mais libido. E que, como o nível desse hormônio aumenta muito no verão, segue-se que o sol estimula o desejo sexual. Uma organização holandesa voltada para o estudo do sol acaba de chegar à mesma conclusão.
Pode ser. Mas sempre haverá aqueles para quem o excesso de sol e de carne de porco contém mais riscos que benefícios. Nesse caso, só posso recomendar a letra de "Suco de Maracujá", o novo samba de João Donato e Martinho da Vila, ainda inédito em disco:
"Pra me casar com você/ Eu vou ter que me cuidar/ Contratar um personal/ Trainer pra me acelerar.// Também vou ter de fazer/ Uma dieta alimentar/ Catuaba no almoço/ E ostras antes do jantar.// Quando a gente for deitar/ Um bom pó de guaraná/ Se a quentura tiver morna/ Como um ovo de codorna.// E se a noite for infinda/ Aí só pau-de-cabinda/ Se ela quiser bis no fim/ Pimenta no amendoim.// E depois, pra me acalmar/ Suco de maracujá".

MARINA SILVA

Impasses de Belo Monte


Folha de S. Paulo - 08/02/2010

PERTO DE Altamira, no Pará, o rio Xingu desenha uma grande curva, semelhante a uma ferradura. Nessa região, conhecida como Volta Grande do Xingu, está prevista a polêmica construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, cuja licença prévia acaba de ser concedida pelo Ibama.
A obra tem proporções gigantescas. A quantidade de terra e pedra a ser retirada é quase comparável ao que foi removido na construção do canal do Panamá. Pelo leito do rio passa uma vazão, no período de cheia, correspondente a quatro vezes a vazão das cataratas do Iguaçu.
Os impactos socioambientais terão a mesma ordem de grandeza.
Apenas a eficiência energética da usina não será tão grande. Uma obra que deverá chegar a R$ 30 bilhões -somado o custo da transmissão-, terá capacidade instalada para gerar, em média, 4.428 MW. E não os 11.223 MW anunciados. A energia média efetiva entregue ao sistema será de 39% da capacidade máxima de geração, enquanto a recomendação técnica é de pelo menos 55%.
Para isso, seria preciso construir outras três usinas na bacia do Xingu, com a função de regularizar a vazão do rio. Foram descartadas pelo governo porque estão projetadas para o coração da bacia, onde 40% das terras são indígenas. Mas há forte desconfiança de que acabarão sendo feitas.
A população indígena ficará prensada nas cabeceiras dos rios da bacia, em processo acelerado de exploração econômica e desmatamento. O plano de condicionantes nem menciona a regularização das terras Parakanã e Arara, já bastante ameaçadas. E a barragem, além de interromper o fluxo migratório de várias espécies, vai alterar as características de vazão do rio.
É incrível que um empreendimento com tal impacto não tenha planejamento adequado para o uso e ocupação do território. A obra deverá atrair mais de 100 mil pessoas para a região. Como dar conta de tal adensamento populacional no meio da floresta amazônica, sem um bom Plano de Desenvolvimento Sustentável?
O Brasil tem importante potencial hidrelétrico. Mas a indisposição em discutir a sustentabilidade das obras de infraestrutura na Amazônia, somada à percepção de que o governo não faz o suficiente para melhorar a eficiência do sistema como um todo e investir em energias alternativas, acaba por produzir conflitos agudos e processos equivocados, que poderiam ser evitados.

NELSON DE SÁ - TODA MÍDIA

Crise da dívida lá


Folha de S. Paulo - 08/02/2010

Na manchete on-line do "Wall Street Journal", a reunião do G7, dos países industrializados, terminou com a promessa de "manter o estímulo" e "enfrentar os problemas de dívida pública". A "crise da dívida na Europa", segundo o jornal e agências como a Reuters, foi o "foco das atenções".
O ministro alemão das finanças garantiu que "o euro vai se manter estável". Outro ministro europeu citou Grécia, Espanha e Portugal e prometeu: "Vamos resolver, nós mesmos, sem o socorro do FMI".

ALEMANHA, ITÁLIA ETC.


O site da "Economist" destaca para a semana, com uma ilustração da Europa em dissolução (acima), que quarta tem manifestação ampla dos servidores públicos gregos contra as "medidas de austeridade" no país. E sexta a Alemanha solta números mostrando o país estagnado no quarto trimestre de 2009. A Itália, também

GRÃ-BRETANHA?
Economista-chefe do FMI até dois anos atrás, o britânico Simon Johnson deu entrevista à BBC, logo após o encerramento do G7, e alertou que a Grã-Bretanha, com "orçamento sem controle", deve ser "vista na mesma categoria de países como Grécia e Espanha, que enfrentam severos problemas de dívida". Na zona do euro, a crise "vai incluir a Irlanda -e, creio, a Itália está na linha de tiro".

EUA, "NUNCA"
Da reunião do G7 no Canadá, o secretário do Tesouro dos EUA deu entrevista à rede ABC, destacada nos sites dos jornais americanos sob o enunciado "Geithner: a nota dos títulos americanos está protegida". Na quinta, a agência de classificação Moody's avisou o país para o risco de queda do "rating" máximo devido ao déficit público. "Isso nunca vai acontecer com este país", diz Geithner.

O CANTO DO CISNE
Nos enunciados do "Financial Times", "G7 se encontra em meio a dúvidas sobre sua relevância" e "Encontro pode ser o canto do cisne para o G7". Segundo o "WSJ", "o G7 foi eclipsado pelo G20, que também representa grandes emergentes como China, Índia e Brasil".
A AP, em balanço da reunião, despachou no título que foi um "momento de virada". E a reunião no Ártico foi "cortina de fumaça para o poder evanescente do grupo de países que costumava comandar o mundo".

EUA VS. BRASIL
Na primeira coletiva como embaixador, o americano Thomas Shannon ameaçou, em destaque por Folha e outros: "Retaliação sempre provoca contrarretaliação". Referia-se à autorização dada pela Organização Mundial do Comércio, para medidas em resposta aos subsídios americanos ao algodão, que afetam Brasil e outros.
Diplomatas brasileiros se disseram "perplexos". E no fim de semana veio a confirmação de que o foco da retaliação já foi para assinatura de Lula, e deve atingir a área de patentes. Mas a negociação prossegue.

EUA OU FRANÇA
Dias antes de enviar o novo embaixador, os EUA anunciaram o orçamento para o Departamento de Estado. Segundo a "Foreign Policy", o Hemisfério Ocidental foi um dos "vencedores", com mais vagas e dinheiro, "sobretudo" para Brasil e Colômbia.
Por outro lado, no mesmo dia, também entregou credenciais o embaixador francês.

DEMONSTRAÇÃO
Ontem no
"New York Times", o canadense Michael Ignatieff, líder da oposição, questionou os Jogos de Inverno em seu país:
"Os Jogos de Pequim revelaram a China como potência global. Os Jogos do Rio em 2016 vão fazer o mesmo pelo Brasil. Agora, se você não está tentando demonstrar poder ou proclamar a sua chegada ao palco global..."

MAIS E MAIS CLASSE C
A "Veja" publicou no sábado que "a classe C, a nova classe média brasileira, voltou a crescer e aparecer", com mais 2,6 milhões entre setembro e dezembro.
E ontem a manchete do jornal "O Globo" ressaltou que a "Classe C do Brasil já detém 46% da renda", segundo a FGV, representando "a maior fatia", passando os 44% das classes A e B. O jornal ouve, de publicitários, que a mudança vem levando o setor a "rever conceitos".

PACIFICADORAS
"O Dia" deu na sexta e ecoou no exterior, em sites como Vibe, que Beyoncé e Alicia Keys gravam clipe esta semana no Rio, em cenários como uma favela e uma escola. "Sou fã da alegria e do suíngue do Brasil. E é um bom momento de mostrar a nova fase que estão vivendo as comunidades do Rio", justificou Alicia Keys ao jornal carioca.

CARLOS ALBERTO DI FRANCO

Internet e leitura


O Estado de S. Paulo - 08/02/2010

Os adolescentes são fascinados pelas ferramentas da era digital. Eles não desgrudam do celular, vivem digitando mensagens de texto, passam horas escrevendo em blogs, navegando na web ou absortos nos videogames. Mas a dependência da internet não é exclusiva dos adolescentes. Todos nós, jovens e menos jovens, sucumbimos aos apelos do mundo virtual. Eu mesmo fiz o propósito de não acessar meus e-mails nos fins de semana. Tem sido uma luta. Com vitórias, mas também com derrotas. Para o norte-americano Nicholas Carr, formado em Harvard e autor de livros de tecnologia e administração, a dependência da troca de informações pela internet está empobrecendo nossa cultura. Ele falou à revista Época durante visita ao Brasil para uma palestra a 4.500 líderes empresariais.

Segundo Carr, o uso exagerado da internet está reduzindo nossa capacidade de pensar com profundidade. "Você fica pulando de um site para o outro. Recebe várias mensagem ao mesmo tempo. É chamado pelo Twitter, pelo Facebook ou pelo Messenger. Isso desenvolve um novo tipo de intelecto, mais adaptado a lidar com as múltiplas funções simultâneas, mas que está perdendo a capacidade de se concentrar, ler atentamente ou pensar com profundidade."

A internet é uma magnífica ferramenta. Mas não deve perder o seu caráter instrumental. O excesso de internet termina em compulsão, um tipo de dependência que já começa a preocupar os especialistas em saúde mental. Usemos a internet, mas tenhamos moderação. Ler é preciso. Jovens, e adultos, precisam investir em leitura e reflexão. Só assim, com discernimento e liberdade, se capacitam para conduzir a aventura da própria vida. Compartilho com você, amigo leitor, algumas obras. Espero, quem sabe, que o estimulem nos próximos feriados.

Dicionário Lula, um Presidente Exposto por suas Próprias Palavras (Editora Nova Fronteira) é um livro revelador. Um Lula surpreendente, para adeptos e opositores, é o que emerge do livro do jornalista Ali Kamel. Utilizando de forma inédita um método de análise de conteúdo, Kamel pesquisou todos os discursos do presidente improvisados no todo ou em parte, todas as suas entrevistas e todos os programas Café com o Presidente nos períodos de janeiro de 2003 a maio de 2008 e de setembro de 2008 a março de 2009.

"Lula é coerente ao longo do tempo? Lula tem, sobre um mesmo tema, ideias opostas dependendo do público para quem está discursando? Ele se sente confortável diante do capitalismo ou se mostra como um socialista de carteirinha? Em que se apoiam as suas opiniões, avaliações, conceitos, conclusões, afirmativas, certezas? Ou ainda: há alguma base de onde tudo isso parte? Quais são as suas formas de construir um discurso e de comunicar esse mesmo discurso?"

"O Lula que emerge destas páginas é um comunicador sem igual; um homem que vê o mundo a partir de sua experiência concreta de vida, de uma maneira que salta aos olhos; coerente, mas com incoerências importantes; um cidadão que preza os valores tradicionais da família e de Deus; um filho legítimo do capitalismo que almeja para os outros a mobilidade social que conseguiu para si (quando se tornou torneiro mecânico); um conciliador, cujo objetivo, ao menos no nível da retórica, é alcançar a harmonia entre os polos extremos da sociedade, tendo, para isso, como principal instrumento, políticas assistencialistas."

Lula é, sem dúvida, um grande comunicador. Sua história de vida, carregada de carências e sofrimento, enrijeceu sua personalidade e o transformou num homem decidido a vencer a qualquer preço. Mas é precisamente na têmpera da sua obstinação que reside a sua maior fragilidade ética. O projeto de poder de Lula não admite barreiras. Em nome da governabilidade e da perpetuação de seu projeto de poder, Lula se aliou ao que de pior existe na vida pública brasileira. A relativização dos valores e a condescendência com os companheiros e aliados envolvidos em graves irregularidades virou rotina na fala presidencial. O livro ilumina os méritos do presidente da República, mas também desnuda suas sombras.

Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (Editora Quadrante, São Paulo). Um belo livro e uma forte estocada nos preconceitos politicamente corretos. Se perguntarmos a um estudante universitário o que sabe da contribuição da Igreja Católica para a sociedade, a sua resposta talvez se resuma a uma palavra: opressão, por exemplo, ou obscurantismo. No entanto, essa palavra deveria ser civilização.

O autor, Thomas Woods, doutorado pela Universidade de Columbia, mostra como toda a civilização ocidental nasceu e se desenvolveu apoiada nos valores e ensinamentos da Igreja Católica. Em concreto documenta, entre muitas outras coisas, como a Igreja criou uma instituição que mudou o mundo: a universidade; como ela nos deu uma arquitetura e umas artes plásticas de beleza incomparável; como os filósofos escolásticos desenvolveram os conceitos básicos da economia moderna, que trouxe para o Ocidente uma riqueza sem precedentes; como o nosso Direito, garantia da liberdade e da justiça, nasceu em ampla medida do Direito Canônico; como a Igreja criou praticamente todas as instituições e o conceito de assistência que conhecemos, dos hospitais à previdência; como humanizou a vida, ao insistir durante séculos nos direitos humanos e na sacralidade de cada pessoa.

Num momento em que se planta uma imagem da Igreja como inimiga do progresso da ciência e da técnica, e da liberdade do pensamento, esse é um livro que desfaz preconceitos, corrige clichês e ensina verdades teimosamente omitidas no ensino colegial e universitário.

NAS ENTRELINHAS

Transformers

Denise Rothenburg
Correio Braziliense - 08/02/2010

FHC tinha o Plano Real, o PT tem a popularidade de Lula. Resta saber se os petistas irão ceder aos desejos do PMDB como o PSDB fez para agradar ao PFL

Maurenilson Freire/CB/D.A Press

Em sua convenção nesse fim de semana, os peemedebistas finalmente “saíram do armário”. Antes que você pense que se vestiram de mulher para participar de um bloco carnavalesco, é bom lembrar que o tema aqui é política. Com todo o respeito aos comandantes peemedebistas, o que se viu na convenção foi um partido assumido: é regional mesmo e ponto final. E, dentro do grande condomínio chamado PMDB, cada um fará o que puder para manter o seu apartamento de luxo, digo, governo, nos mais diversos estados.

Vejamos, o Maranhão. Depois de um janeiro movimentado, marcado por ações políticas mais incisivas da ministra e pré-candidata Dilma Rousseff, o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), usou a convenção para cercar o território da filha, a governadora do Maranhão, Roseana Sarney.

Para quem não se lembra, enquanto Lula cuidava da sua pressão, a ministra recebeu o PDT para um almoço em sua casa, onde o presidente do partido, Carlos Lupi, selou o apoio à candidatura dela, transformando o PDT no primeiro a fazer um gesto mais ostensivo de aliança eleitoral.

Unidade
Os pedetistas fizeram algumas exigências, entre elas, o apoio de Dilma a Jackson Lago no Maranhão que, ao que tudo indica, será candidato a governador contra Roseana.

Sarney, na época, nada disse. Ontem, na convenção, estava combinado que, em prol tentativa de unidade em junho, ninguém avançaria o sinal falando da aliança com o PT, numa demonstração de respeito aos que são contra para, mais à frente, tentar agregar estados como o Rio Grande do Sul. Sarney quebrou o acordo e falou para os bons entendedores que apoiará Dilma Rousseff.

A declaração de Sarney tem um objetivo claro: colocar-se no mesmo patamar que o PDT para, mais à frente, avisar ao PT para não “ficar de gracinha” contra Roseana, candidata à reeleição. E, para os sarneyzistas, essa “gracinha” é Dilma desfilar no palanque de Lago. Afinal, Roseana foi líder do governo. E seu pai hoje pode dizer que, desde a convenção do PMDB em que não era para falar de sucessão presidencial, ele apoiou Dilma.

Até junho, data da convenção peemedebista que escolherá o caminho à Presidência da República, essa cobrança de apoio e exclusividade por parte do PMDB será voz corrente em diversos estados. Os políticos que analisam os movimentos do PMDB acreditam que ele está cada vez mais parecido com o PFL do início da década de 1990 — que fechou apoio ao então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Tucanos
No início de 1994, o então presidente do PFL, Jorge Bornhausen, jogou o mapa das coligações sobre a mesa tucana e resmungou: “É assim que vocês querem que estejamos engajados na campanha presidencial?” Foi a senha para que o PSDB cedesse. Fernando Henrique viu-se obrigado a desfilar na Bahia com Antonio Carlos Magalhães, desprezando o próprio PSDB e antigos aliados.

Talvez FHC não precisasse disso para ganhar a eleição. Mas o PFL então era forte, um grande partido de caciques regionais, sobretudo no Nordeste. O PSDB não quis correr o risco.

Cobrança
Agora, o PMDB faz a mesma cobrança em relação ao palanque de Dilma. E assim como FHC tinha o Plano Real embalando a campanha, o PT tem hoje a popularidade de Lula. Resta saber se os petistas irão para o sacrifício em nome da aliança para preservar o PMDB engajado na campanha como fizeram muitos tucanos em 94 para agradar ao PFL.

Por enquanto, os petistas torcem pelo crescimento rápido dos índices pré-eleitorais de Dilma. Acreditam que, assim, não precisarão ceder muito. Afinal, aceitam o PMDB transformado num PFL, mas não querem que o aliado vire uma máquina poderosa e feroz agindo nos bastidores contra a ministra. Se isso vai ocorrer, só o tempo dirá.

FERNANDO DE BARROS E SILVA

PT de segunda mão

FOLHA DE SÃO PAULO - 08/02/10

SÃO PAULO - Há uma insatisfação reprimida com Lula no PT paulista. A exemplo do que ocorreu no processo de escolha de Dilma Rousseff, o partido foi atropelado na definição do nome que deve disputar a sucessão de José Serra. Com uma agravante: além de tripudiar sobre a legenda, o presidente ignorou as opções caseiras. Em nome do "projeto nacional", deixou de lado as flores do seu jardim para importar uma planta exótica do Ceará.
Ocorre que Ciro Gomes, o cacto agreste, muito embora made in Pindamonhangaba de nascimento, se nega a ser essa planta de estufa que Lula quis transplantar para as margens alagadas do Tietê. Sua resistência até aqui testa os limites do bonapartismo presidencial.
Como o PT, mesmo subjugado, teme Lula e fica calado, foi o próprio Ciro quem vocalizou quão artificial seria sua aventura paulista -hoje menos do que improvável. Mais ainda: Ciro distribui espinhos retóricos aos companheiros e reafirma sua disposição de concorrer à Presidência. Desafia "o mito" para não sucumbir antes da hora.
Ao PT restará fatalmente uma candidatura de segunda mão em São Paulo. Não é trivial se pensarmos que o Estado reúne 29,5 milhões de votantes, quase 22,4% do eleitorado nacional. Os tucanos ocupam o Bandeirantes há quatro mandatos e Geraldo Alckmin hoje soma 50% das intenções de voto.
Quem servirá de tapa-buraco ao PT? Fernando Haddad, pouco conhecido, teria o que ganhar projetando-se no Estado. Mas nem o senador Aloizio Mercadante nem a ex-prefeita Marta Suplicy gostariam de ver uma nova liderança sem inserção partidária surgir no seu quintal pelas mãos de Lula.
A bola da vez deve mesmo ser Mercadante, que abandonaria uma provável reeleição ao Senado em troca do doce que o chefão lhe prometer pelo sacrifício. Essa é hoje a hipótese mais difundida no PT.
Em 2006, o "Chuchu" apanhou feio do "Barba"; em 2010, terá a chance de fazer o "Bigode".

SANDRO VAIA

A obsessão autoritária

O ESTADO DE SÃO PAULO - 08/02/10

Está bem que um ex-porta-voz do governo lulista nos afiança, do alto de uma conversa confidencial com "um dos ministros mais importantes do governo Lula", que esse negócio de "controle social da imprensa" é papo furado. Para nos tranquilizar diz que podemos "tirar o cavalinho da chuva" porque esse negócio não vai rolar - pelo menos neste governo. (Quem duvida procure ler De onde vem tanto medo?, de Ricardo Kotscho, publicado no blog do autor e republicado no Observatório da Imprensa.)

Ufa, se estamos livres do perigo, como nos garante Kotscho, por que diabos vamos ficar insistindo nesse assunto?

Há pelo menos uma razão para isso: existe um grupo de pessoas que tem uma obsessão paranoica pela palavra "controle" (e todas as suas sequelas) e sempre que podem a encaixam em qualquer projeto em que procuram edificar um futuro glorioso para nós, para nossos filhos e nossos netos - embora não lhes tenhamos concedido delegação para tanto.

Vai que um dia a sociedade relaxe a vigilância e baixe a guarda, acreditando na palavra de "um dos ministros mais importantes do governo Lula", e elas consigam, enfim, emplacar o seu sonho dourado - que é não apenas o de controlar o que chamam pejorativamente de "mídia", mas controlar tudo o que lhes pareça controlável. Afinal, não existe ideologia esquerdista que não inclua no sonho terminal de sua utopia instalada o controle amplo, geral e irrestrito de todas as atividades humanas. Como só eles sabem onde mora o sol, generosamente querem que todos nós usufruamos sua luz.

Depois do fracasso da tentativa de emplacar um Conselho Nacional de Comunicação, usaram um projétil de nome insuspeito - Plano Nacional de Direitos Humanos-3 (PNDH-3) - para empacotar outra tentativa de controle. Controle é uma palavra que de suspeita se tornou insuportável, e até um dos ideólogos do jornalismo esquerdista, Bernardo Kucinski, professor da USP, recomendou aos companheiros que parem de usá-la. Nem a tentativa de enobrecê-la acoplando-a ao qualificativo "social" caiu bem. Enquanto o Houaiss continuar insistindo em definir "controle" como "poder, domínio ou autoridade sobre alguém ou algo", a parte da sociedade que preza o livre-arbítrio - tal qual o cachorro de Pavlov - vai continuar rosnando cada vez que ela for pronunciada.

O amigo de Lula pergunta, em seu artigo, de onde vem tanto medo, uma vez que o presidente nunca mexeu uma palha contra a liberdade de imprensa e nunca deu sinais de ser a favor da censura. Noves fora duas ou três bravatas verbais ambíguas disparadas a esmo em algum palanque eleitoral e a tentativa de expulsão de Larry Rohter, correspondente do jornal The New York Times, o presidente, de fato, nunca tomou nenhuma iniciativa concreta para calar a imprensa. Mas é verdade também que nunca tomou nenhuma iniciativa concreta para aplicar o programa do PT em seu governo. Ao permitir a edição desse calhamaço chamado PNDH-3, e assiná-lo embaixo, Lula parece ter feito o papel do psiquiatra que conduz seus pacientes a um desabafo catártico para aliviar-lhes os pesos da consciência. Já que nada mais fizemos do que continuar aplicando o programa econômico neoliberal de nossos antecessores, vamos despejar sobre a cabeça do País 29 mil palavras do mais puro malte petista, sem blended de nenhuma espécie. Se colar, colou.

Eis aí por que temos medo: puseram a caneta na mão dos inspetores de quarteirão - e, como se sabe, é deles que temos de ter medo, mais que dos chefes.
É a última chance - pelo menos neste governo - que os inspetores de quarteirão do petismo têm de pôr em prática suas ideias. Por isso no PNDH-3 estão as ideias recorrentes da vulgata petista, entre as quais as mais vistosas e típicas são estas:

O desprezo à democracia representativa, substituída por um arremedo de democracia direta, que são as conferências das "organizações sociais", por suposto, formadas pelos militantes dos partidos que apoiam o governo;
a tentativa de abastardamento do Poder Judiciário, substituído pela mediação das "organizações sociais" em casos de conflitos de invasões de terras;
a tentativa de criação de um ranking de empresas de mídia sob o aspecto de sua atuação em relação aos direitos humanos (com critérios ditados por quem? Claro, pelas "organizações sociais" controladas pela máquina partidária);
a criação de uma "Comissão da Verdade" para julgar as violações dos direitos humanos cometidas por uma - e só uma - das partes em conflito depois do golpe militar de 1964; a nomeação de uma instância sindical para atuar nos processos de licenciamento ambiental de empresas, oferecendo mais um criador de dificuldades para vender facilidades.

Os governistas estão indignados com a reação da imprensa e de muitos setores da sociedade contra os aspectos mais "controladores" do PNDH-3, pois, afinal de contas, dizem, as conclusões foram "tiradas" (é assim que se fala ainda, como nas velhas assembleias estudantis?) em dezenas, centenas, quase milhares de conferências locais, regionais, municipais, estaduais, nacionais, etc., das quais participaram 14 mil pessoas. E essa fica sendo a conta da peculiar democracia petista: se, num país de 190 milhões de habitantes, 14 mil militantes foram mobilizados para essa prática de democracia direta, o problema da legitimidade está resolvido. Pouco importa se os 14 mil foram tirados do mesmo embornal ideológico e que não tenham sido escolhidos por nenhum mecanismo representativo legitimado e reconhecido pelo resto da sociedade. O dedazo ideológico substitui a representatividade e quem for contra esse método é contra os direitos humanos, segundo o diktat petista.

Pode ser que nada disso seja para valer (o presidente já se cansou de teorizar sobre "bravatas", lembram-se?), mas é sempre bom ficar atento. O autoritarismo costuma instalar-se disfarçado de justiceiro.

Sandro Vaia, jornalista, ex-diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, é articulista do Instituto Millenium