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A diplomacia do cinismo promoveu a Venezuela a patroa do Brasil
Em janeiro de 2008, Hugo Chávez resolveu que deveria ser conferido às FARC o status de “grupo beligerante”. Onde parecia haver um bando de ex-guerrilheiros comunistas convertidos ao narcoterrorismo nos anos 80, explicou o presidente da Venezuela, havia um exército de patriotas que desde 1964 lutam pela libertação do povo colombiano. E onde parecia haver um chefe de governo democraticamente eleito havia o tirano Alvaro Uribe. Chávez tem razão, endossara previamente o governo Lula ao promover o foragido Francisco Colazzos, o Padre Medina, a embaixador das FARC no Brasil.
Em março, quando Uribe ordenou o pedagógico ataque militar à estalagem narcoguerrilheira no Equador, a menos de dois quilômetros da fronteira, um Chávez até aqui de cólera jurou vingar “a invasão do território equatoriano e as vítimas do massacre”. Ele tem razão, curvou-se o chanceler Celso Amorim, exigindo que a Colômbia pedisse desculpas ao Equador.
Inconsolável com a morte de Raúl Reyes, número 2 na hierarquia da sigla, Chávez jurou homenagear-lhe a memória a bala. “O grande guerreiro saberá que não lutou em vão”, declamou. A retórica tropeçou no traje: surpreendido no meio da noite pelo bombardeio aéreo, Reyes partiu de pijama. Guerrilheiros que se prezam tombam com a metralhadora na mão, a farda e o quepe agredidos pelas intempéries, botas castigadas por incontáveis combates. O comandante destemido morreu vestido de avô.
Ainda em março, um enfarte levou Manuel Marulanda, o Tirofijo, chefe supremo das FARC. O mais velho guerrilheiro do planeta — computado o tempo de serviço no ramo do narcotráfico — tinha 78 anos de idade e 44 de selva. As fotos de Tirofijo sobraçando o fuzil mostram um homem em estado de decomposição. O pijama do nº 2 e o rosto em ruínas do nº 1 deixaram até Chávez sem voz. Recuperou-a em junho, ao saber que Ingrid Betancourt fora libertada. E surpreendeu a platéia com a mudança do script.
“Libertem os reféns, sem pedir nada em troca”, ordenou às FARC. “A guerra de guerrilha passou, a luta armada está fora de lugar”. Telefonou em seguida para o presidente da Colômbia, felicitou-o efusivamente pela operação vitoriosa e convidou-o a aparecer na Venezueala assim que pudesse. “Uribe será recebido como um irmão”, animou-se. “Já nos dissemos coisas muito duras, mas essas coisas acontecem também entre irmãos”. O governo brasileiro achou o palavrório muito bonito.
O mistério da brusca conversão seria logo decifrado: o material apreendido na hospedaria provou que Chávez protege. municia e patrocina os terroristas que Correa hospeda. O Itamaraty achou aquilo irrelevante. No mês passado, a catarata de evidências criminosas foi ampliada por outro achado devastador. Num acampamento das FARC, o Ex;ercito descobriu um carregamento de armas fabricadas na Suécia e vendidas à Venezuela nos anos 80. Como é que os míssesis antitanques foram parar lá?
Sem respostas convincentes a oferecer, Chávez resolveu interpelar Uribe pelo acordo que permite aos Estados Unidos o uso de bases militares na Colômbia. O Itamaraty aderiu imediatamente à contra-ofensiva. “Compreendo as preocupações da Venezuela”, recitou Amorim. Como se os americanos precisassem de bases na América do Sul para enquadrar militarmente o desafiante. “Vou pedir ao Obama que me explique melhor o que vai fazer”, viajou Lula outra vez.
“A Colômbia nunca foi um país agressor da comunidade internacional: ela é vítima da agressão do terrorismo interno, que é o nosso grande problema”, lembrou Uribe. O agressor é o vizinho, dispensou-se de avisar. Se não tivesse decidido brincar de antiimperialista fora do Brasil para esconder as alianças abjetas que faz em casa, é a Chávez que Lula deveria pedir explicações. Como vai, por exemplo, a parceria com a Rússia? Por que o companheiro não para de se intrometer em assuntos internos de outras nações? Por que tantas mobilizações de tropas nas fronteiras? E essa história de fechar emissoras de rádio e confiscar atribuições de governadores da oposição? Não pega mal exigir democracia em Honduras e fazer o contrário em Caracas?
Lula prefere fingir que o problema é a Colômbia. Que o perigo é Obama. Continua ao lado das FARC e contra o governo legítimo. Continua subordinado ao agressor bolivariano.
“Não recebemos ordens dos Estados Unidos”, repetiu Celso Amorim. A diplomacia do cinismo operou um milagre e tanto. A Venezuela virou patroa do Brasil.