A crise do Senado deixou de ser apenas um caso de desmandos administrativos para se transformar em uma crise institucional, na qual um dos poderes da República encontra-se em xeque, completamente imobilizado pela falta de credibilidade política e sem perspectivas de uma saída honrosa, pois os principais envolvidos nos desmandos são intocáveis, membros de uma alta casta política que não compreendeu ainda que o tempo do nepotismo e do corporativismo deveria ter sido deixado para trás.
E não compreendeu por uma boa razão: mesmo com toda grita da opinião pública, mesmo com todas as denúncias dos meios de comunicação, eles continuam detendo o poder de decisão, e não apenas no Senado, mas na política brasileira. Um país que fica nas mãos de um partido como o PMDB, cuja fortaleza política está justamente nesse tráfico de influência, nessa troca de favores que enfraquece o Legislativo, mas fortalece posições individuais de políticos, não pode ter um equilíbrio de poderes que fortaleça a democracia. Um país que tem um presidente da República que usa sua altíssima popularidade para dar mau exemplo para os que o têm como um ídolo, que se julga no direito de absolver dos pecados seus aliados apenas para garantir apoios políticos, sem se preocupar com o enfraquecimento dos poderes das República ou, talvez, levando justamente a isso para se fortalecer cada vez mais do ponto de vista pessoal, enfraquecendo as instituições, está mal encaminhado. A sessão de ontem do Senado foi emblemática da situação que vivemos, e mostrou que a corporação é suprapartidária. A patética defesa corporativista do senador tucano do Amapá Papaléo Paes, explicando que não tem condições de permanecer mais dias em Brasília trabalhando porque fica preocupado em “abandonar” sua família em Macapá e não tem dinheiro para trazê-la para Brasília — falou até de um papagaio, que não sei se é verdadeiro ou metafórico — ou os discursos atabalhoados do senador Mão Santa, são a explicitação de um país arcaico, que se recusa a desaparecer e que está fortemente arraigado no plenário do Senado, que se nega em sua maioria a encarar o grave problema institucional que está vivendo. A indignação do senador Arthur Virgílio com indicações de chantagem por parte da máquina administrativa que domina o Senado há quinze anos teve a solidariedade dos de sempre, onde se destacaram os senadores Pedro Simon e Cristovam Buarque, este também ameaçado por essa elite burocrática que está prestes a perder o poder. Talvez nunca antes neste país tenha acontecido um entendimento tão forte entre elites que anteriormente se opunham, mas chegaram a um acordo de convivência pacífica e interdependência que garante a sobrevivência de ambas. A nova elite, representada pela chegada de Lula ao poder e que o sociólogo Chico Oliveira, fundador do PT e hoje um dissidente do partido, chamou de “a nova classe”, está hoje unida à velha elite política representada pelas oligarquias que tomaram conta do Senado. Esse fenômeno político já foi analisado aqui em diversas ocasiões. A aristocracia sindical acaba rapidamente criando nichos coloniais dentro do Estado, segundo observações do professor de História Contemporânea da UFRJ, Francisco Carlos Teixeira. O objetivo deles não seria político no sentido de um projeto de Estado, mas setorial, e nisso coincidem com os oligarcas políticos, que também estão mantendo seu quinhão de poder nas negociações pontuais que fazem com o governo. A “colonização” das estruturas do Estado acontece nesse tipo de governo de coalizão, e a disputa no Senado é o reflexo da disputa pelo poder entre os grupos do PMDB e do PT, que ocupam amplos espaços no Estado e utilizam uma ação política típica do sindicalismo, segundo Francisco Carlos Teixeira. Essa “negociação para resultados” os torna disponíveis para acordos que representem “uma doação ou aquisição de alguma fatia do butim”. Esses entrechoques de interesses fisiológicos, no entanto, não levam até o momento a uma ruptura entre PT e PMDB porque o projeto político montado pelo presidente Lula depende dessa união, e sempre que está ameaçado ele entra com sua força política para defender o aliado. Foi assim quando mandou o PT apoiar o senador Renan Calheiros no escândalo do pagamento de pensão à amante com dinheiro de uma empreiteira, e assim também aconteceu agora com a defesa pública que fez de Sarney, tratandoo como um político acima das críticas. A união tácita entre as nova e velha elites é, segundo definição do cientista político Leôncio Martins Rodrigues, professor aposentado da USP, em entrevista ao Estadão, a explicação para a série de escândalos que está surgindo no Senado desde a eleição pela terceira vez de José Sarney para a presidência da Casa. O senador nomeou Agaciel Maia para a direção da Casa e o manteve no cargo nas três vezes em que a presidiu. O senador Simon sutilmente sublinhou esse aval de Sarney ao homem que comandou os desmandos administrativos que geraram, entre outros desatinos, os “decretos secretos”. O senador Arthur Virgílio pediu a punição de Agaciel Maia e seus “padrinhos”, e Cristovam chegou a sugerir que Sarney se licenciasse da presidência do Senado enquanto durassem as investigações. Podemos estar vivendo um momento de decisão. O choque entre o novo e o arcaico está sendo transmitido ao vivo para todo o país. Vendo aquelas tristes figuras posando de pais da pátria e insistindo em defender seus privilégios, fica difícil, no entanto, acreditar que sairemos de mais essa crise renovados |