Acordo cedo demais, fico aqui bestando à beira do terraço, com saudade do gavião Herculano , que nunca mais apareceu, e imaginando o que deve estar pensando o Redentor ali no alto. Não, melhor não procurar saber. Creio que já tenho uma ideia e prefiro ocupar a mente com outras coisas, camuflar um pouco o que não cessamos de aprontar aqui embaixo, achando que Ele não está vendo. Volto para dentro, ligo a tevezinha que botei ao lado do computador para brincar de nave espacial e que só pega as estações que ela escolhe, desta vez uma americana, especializada em notícias e comentários. Tudo bem, não discuto com aparelhos, conheço o meu lugar —que dizem os americanos aí? Ah, é mais uma matéria sobre a crise, dicas e sugestões para enfrentála melhor, oportunidades que ela abre. Aparece uma jovem senhora, radiante. Que surpresa que ela tinha tido! Imaginara que estava fazendo doação de alguns óvulos seus e recebera oito mil dólares como pagamento! A bem da verdade, peguei a reportagem no meio e a ouvi falar em ovos e não óvulos, não sei se por engano dela ou porque casais empreendedores e com boa ficha genética podem produzir (isto pelo método que une o útil ao agradável, porque, em laboratório, a coisa pode ser muito mais rendosa), vamos dizer, pelo menos um bom ovo de gente a cada dois ou três meses, ou seja, um óvulo fertilizado, com garantia de fábrica, para outra mulher implantar e gestar.
Realmente, esses americanos são danados. Daqui a pouco abrem lojas e formam cadeias como a MacKnock’erUp ou a InthefamilyWay, com promoções como o BigBosom’n’BellyBunch, em que a freguesa compra duas meninas e leva um menino grátis, ou vice-versa. Entrevistaram também um ex-vendedor de esperma para bancos do ramo desiludido com o mercado, porque, se não estou mal lembrado, levava no máximo 75 dólares pelo produto de cada — como direi? — pois é.
Embora aqui no Brasil, a esse preço, ele fosse ficar sem mãos a medir (não quis fazer trocadilho, mas ele pintou por si e aí fica, sou a favor da liberdade de expressão), nos Estados Unidos é pouco, de forma que a saída é reconhecer a superioridade feminina e juntar-se a elas.
A reportagem prosseguiu, pois somente as oportunidades com produtos do próprio corpo bastariam para várias matérias. Não dá para lembrar tudo, mas começavam pelo cabelo. Cabelo natural está pela hora da morte nos Estados Unidos, a ponto de eu ter a impressão de que uma compatriota dessas de cabelão até as panturrilhas pode pagar uma viagenzinha a Nova Iorque somente raspando a cabeça.
Lembro também o conselho de procurar informações sobre pesquisas científicas em andamento.
Muitas pagam bem a voluntários que se dispõem a dormir dentro d’água durante todo o semestre escolar, ou a não dormir absolutamente até o fim do ano, ou a tomar pílulas excelentes para o colesterol, mas que poderão causar o surgimento de mamas e quadris descomunais — nada neste mundo é sem riscos, não é mesmo? E assim por diante, somos minas de dinheiro e não sabemos. Um pouco zonzo com essa visão do futuro, finalmente desci à rua, em direção à banca de jornal. Salvatore, o jornaleiro, que nunca foi reputado pelo bom humor, não estava bem.
— Guarda qui — disse ele, levantando dois jornais. — Espia só. Porrada nos passagero de trem, que belo! Vê aqui, de chibata! Essa eu achei bonito, de chibata! Pelo meno é sincero, questo qui é sincero, chega de disfarçare, é chibata mesmo que nós vivemo tomando. Si questa merda é n’Itália, já tinham quebrato meia cidade e coberto eles de pedrada, mas aqui fica tuti tomando chibatada mesmo, daqui a poco quem reclamar que eles roubaro vai tomar palmatora ou chinelata na bunda, que é pra aprender de vez! Non reclama nada aí! Chibata na canalha pra si comportare! Non tá gostando que hoje non teve trem? Olha o teu trem aqui, mascalzone, mais vinte chibatada! Fiquei tentado a permanecer por ali mais algum tempo, porque Salvatore parecia encarnar algum antepassado anarquista e estava num dia de oratória inspirada. Mas eu tinha achado um bom assunto com a reportagem americana, um assunto bem menos baixo astral do que ficar falando mal dos governantes, como é meu feio hábito. Naqueles mesmos jornais, que comecei a abrir enquanto caminhava de volta, encontraria uma ou diversas dessas oportunidades, escondidas do olhar pouco apurado. Mas tive mais dificuldade do que previ.
Além do ramerrão da ladroagem e da formação de quadrilha não sei mais onde, tudo coisa do cotidiano monótono, só havia mesmo notícias sobre a falsificação de remédios.
Aí ficou difícil. Num país em que tem gente especializada em falsificar falsificados e piratear pirateados, como já li, não é possível achar novas maneiras de ganhar com a falsificação generalizada.
Ou não? Claro que não, o que observei assim que vi as instruções do governo para o consumidor se proteger das falsificações. É tão simples que sou capaz de jurar que em breve regulamentarão tudo e exigirão apenas a nota fiscal da compra em três vias, a receita médica que originou a compra, com firma reconhecida, comprovante de residência, folha corrida, título de eleitor em dia e certidão negativa do SPC. Pronto, não adivinharam, não? Onde é que vocês têm morado? Despachante de queixa de falsificação de remédio, é claro! Se o amigo tomar um antiácido e tiver uma crise terminal de priapismo, qual será a primeira pessoa que verá, ao despertar no hospital, depois da amputação? Seu leal despachante contra remédio falso! Em menos de um mês ele providencia a papelada e, com mais uns trinta anos na Justiça, seus herdeiros receberão o valor do remédio verdadeiro em dobro, descontada a comissão do despachante honorários advocatícios por fora. A Justiça tarda, mas não falta. Crise é para quem se entrega. E, para quem se entrega, só chibata.