REVISTA VEJA
Black is beautiful, fase 2
A eleição de Barack Obama para a Presidência dos Estados Unidos pode ser entendida, entre outras coisas, como a fase 2 do "black is beautiful", o movimento de orgulho negro com origem no programa libertário dos anos 1960. A essa luz, é uma revolução no gosto o que a presença de um negro na Casa Branca prenuncia. Claro que, se foi preciso surgir um movimento enfatizando que "negro é bonito", é porque negro era feio. Além de um ser inferior, conforme as doutrinas racistas, era também um erro, sob o ponto de vista estético. Não se veria filme de Hollywood estrelado por uma diva negra, nem anúncio em que o produto fosse recomendado por um galã negro. A fase 1 do "black is beautiful" insurgia-se contra esse estado de coisas. Na fase 2 a estratégia é outra e outros são os objetivos, mas a possibilidade de abalar a hegemonia da estética branca é maior.
Este é um assunto com o qual o Brasil, como país de maior população negra fora da África, tem muito a ver. Como tantas outras coisas, o Brasil abraçou desde sempre os códigos do gosto formulados nas matrizes americanas e européias. O resultado eram perversidades cujo efeito, à falta de uma expressão concreta, dá apenas para imaginar. Suponha-se uma menina negra que se encantasse com a mocinha da novela, ou o menino negro que admirasse a coragem do mocinho do filme. Entre eles e seus heróis havia, a rebaixá-los, e fazer com que se sentissem exilados do mundo do glamour, a diferença de cor. O desterro cultural dos negros vinha de longe. Em A Escrava Isaura, clássico da literatura brasileira de 1875 tido como um libelo contra a escravidão, a heroína-título é branca. Tudo bem o autor, Bernardo Guimarães, insurgir-se contra a escravidão; já se apresentasse a escrava como negra teria rompido a fronteira do bom gosto.
O "black is beautiful", em sua primeira encarnação, teve sucesso parcial. São resultados dele filmes de Hollywood com atores negros (embora raramente, talvez nunca, o casal romântico), modelos negras nas passarelas, apresentadores negros na TV americana. O Brasil foi atrás. Mas o movimento ancorava-se na afirmação negra pela diferença, não pela igualdade. Seu ponto de honra era a trancinha rastafári. Seu ideal de sociedade, uma utopia situada em algum ponto entre o socialismo e a fantasia regressista de uma África onde um dia todos foram bons e iguais. Por isso mesmo, o primeiro "black is beautiful" encontrou seu limite; sua opção fora pela marginalidade.
Esta fase 2, encarnada por Obama, tem como principal característica a renúncia à marginalidade. Obama chega sem trança rastafári e sem utopias. É no centro do sistema que vai operar. E é no centro do centro do centro, ou seja, a residência/escritório conhecida como Casa Branca, que o mundo verá alocada a função a ser protagonizada pelo casal negro Barack e Michelle Obama, pelas filhas negras Malia Ann e Natasha ("Sasha") e, eventualmente, por irmãos, pais, cunhados, primos e outros parentes negros do casal. Desde John Kennedy, não há família presidencial que chame mais atenção. O primeiro "black is beatiful" de certo modo coonestava a fórmula "iguais mas separados" em que se assentava a discriminação legal nos EUA. Os negros queriam se impor por modas, costumes e valores próprios. O "black is beautiful", fase 2, ataca pelo lado oposto. A família Obama apresenta-se como igual a todas as famílias americanas de classe média bem-sucedidas, só que negra.
A feição que a revolução do gosto assume com Obama é fruto de sua estratégia política. Decorre do fato de ele se ter recusado a concorrer como "candidato dos negros". Nem por isso tem menor potencial transformador, nos EUA como no Brasil e no resto do mundo. No Brasil, sempre atrasado, ainda faltam negros não só no centro do poder. Sua ausência é mais notória ainda nos melhores bairros (a não ser como empregados), nos melhores restaurantes, nos melhores shopping centers (nos dois casos, até mesmo como empregados), nas festas e recepções da classe média para cima, na própria classe média. Mas a menina negra brasileira a partir de agora verá no Jornal Nacional as pequenas Malia e Sasha e – milagre – não sentirá, a rebaixá-la, a diferença de cor. Não é pouca coisa.