SEM O MENOR PUDOR

'Pilantrópicas' perdoadas

O Estado de S. Paulo - 13/11/2008
 

Em surdina, como convém às decisões oficiais que têm o que esconder, o presidente Lula editou, na segunda-feira, uma medida provisória (MP) que representa um verdadeiro trem da alegria para as entidades filantrópicas - ou “pilantrópicas”, como costumam ser chamadas - ameaçadas de perder o direito à isenção fiscal por suspeitas de irregularidades. Com a canetada presidencial, pelo menos 2.274 dessas entidades, de um total de 5.630 registradas no País, tiveram automaticamente renovados os certificados que as dispensam de pagar CSLL, PIS, Cofins e contribuição previdenciária patronal. A renúncia fiscal - da ordem de R$ 4,4 bilhões no ano passado - é a contrapartida pelo presumível trabalho das organizações sem fins lucrativos, em parceria com o poder público, nas áreas de saúde, educação e assistência social. Os certificados eram concedidos e renovados pelo Conselho Nacional de Assistência Social (Cnas), do Ministério do Desenvolvimento Social. Doravante, essa função será exercida pelos Ministérios dos setores de atuação das filantrópicas. 

A mudança, em si, é salutar. Em março último, depois de quatro anos de investigações, a Operação Fariseu, da Polícia Federal, revelou que, em troca de propinas, um punhado de integrantes do Cnas, incluindo dois de seus presidentes, participou de um esquema de concessão fraudulenta de certificados em ampla escala, que custaram ao erário R$ 2 bilhões, no mínimo, em impostos sonegados. Só que, a pretexto de desonerar das pendências acumuladas no Conselho os Ministérios que o substituirão na fiscalização das filantrópicas - e que, incidentalmente, terão de se equipar para tanto -, o governo passou a borracha sobre um passado de trapaças, consagrando a bandalheira para todos os efeitos práticos. Além de determinar a aprovação pura e simples dos pedidos de certificação ainda sob exame no Cnas em 8,3 mil processos, a medida provisória cancelou sumariamente os recursos da Receita Federal e da Previdência contra entidades suspeitas de não fazer por merecer as isenções tributárias e, além disso, concedeu certificados àquelas que os tiveram negados e vinham recorrendo da decisão. Como diria Lula, “a cada dia aparece um buraco”.

“Era preciso zerar o jogo”, alegou, com surpreendente naturalidade, a secretária-executiva do Ministério do Desenvolvimento Social, Arlete Sampaio. “Depois a Receita poderá recorrer novamente”, observou, como se o Supremo Tribunal Federal (STF) já não tivesse decidido contra a cobrança de dívidas oriundas de irregularidades cometidas há mais de cinco anos. De todo modo, antes de se consumar, a escandalosa anistia enfrentou resistências dentro do próprio governo, ao que noticiou ontem este jornal. Um dos ministros envolvidos nas discussões, contrário à MP em preparo, argumentou que a impunidade acarretaria aos cofres públicos um prejuízo muito maior do que o estimado, algo como R$ 5 bilhões - o montante que as falsas filantrópicas teriam de devolver em impostos não pagos. Para o procurador da República Pedro Antonio Machado, responsável pela denúncia contra, entre outros, os ex-conselheiros apanhados pela Operação Fariseu, não há duas interpretações possíveis sobre o ato do governo.

“A quem a medida beneficia? A quem fraudou, ou seja, àquelas entidades que hoje já não atendem aos requisitos legais para serem consideradas filantrópicas”, deplora. O que mais o surpreende é o fato de o governo ter livre acesso aos documentos da operação da Polícia Federal, podendo portanto identificar as falsas filantrópicas. “As certificações estão sob suspeita e aí se concede isto?”, indaga. “Uma anistia nesse caso é extremamente temerária”, comenta a senadora Lúcia Vânia, do PSDB de Goiás, integrante da CPI das ONGs, que investiga também a conduta das filantrópicas - um setor cercado de denúncias, em que pese a presença de instituições de educação e saúde dedicadas, honestas e competentes. “Acredito que o governo não atinou para o enorme problema que está sendo criado”, imagina a senadora. O Ministério Público Federal, em Brasília, examina a possibilidade de ir à Justiça para anular a MP, por descumprir o artigo 195 da Constituição, que vincula a isenção fiscal a exigências estabelecidas em lei.