sábado, abril 11, 2020

Carta ao Leitor: O radicalismo em xeque

REVISTA VEJAedição nº 2682
Se há um ensinamento que o coronavírus deixará para os políticos é este: a perda de vidas humanas não suporta irresponsabilidades nem descaso com a ciência


Entre os incontáveis — e muitas vezes devastadores — impactos da pandemia de Covid-19, o que se faz notar no âmbito da política é, paradoxalmente, positivo. Trata-se do abalo sísmico que o novo coronavírus vem provocando nos alicerces do radicalismo. O termo, que designa um movimento de ideias cujas raízes históricas se encontram na Europa da virada do século XVIII para o XIX, embute em suas características o descarte de propostas contemporizadoras na condução dos variados aspectos da vida social. A repulsa à negociação aproxima perigosamente o radicalismo do extremismo político que, em diversas oportunidades, provocou algumas das grandes tragédias da história da humanidade (nazismo, fascismo, comunismo…).

Radical, e frequentemente extremista, como se sabe, é o chamado “gabinete do ódio”, que assombra o governo de Jair Bolsonaro, tendo no presidente mesmo seu maior fiador. Com o objetivo de alimentar o confronto, e não o entendimento — marco de sua trajetória, não é de hoje —, o chefe do Executivo cria, de modo reiterado, obstáculos para o próprio governo, incluindo seus colaboradores mais competentes e equilibrados. E, para tanto, Bolsonaro não hesita em dar vez e voz a toda sorte de impropriedades (muitas delas baseadas em informações 100% falsas ou apenas parcialmente verdadeiras).

Não tem sido outra sua conduta diante do surto epidêmico que varre o planeta e que chegou ao Brasil nos derradeiros dias de fevereiro. Contra tudo e todos — exceto seus mais radicais seguidores, do mundo real ou virtual —, o presidente fez questão de desdenhar da letalidade do novo coronavírus, das quarentenas para tentar reduzir a velocidade de propagação da doença, dos cuidados que ainda devem ser tomados em relação à cloroquina no tratamento da Covid-19. Também atacou governadores, a imprensa, o ministro da Saúde, a OMS. Quando recuou, ele o fez de modo acanhado ou recorrendo ao apelo religioso. No domingo 5, por exemplo, Bolsonaro participou de uma roda de oração pelo fim da pandemia em frente ao Alvorada e, de joelhos, ouviu com fervor estas palavras do sacerdote: “Em nome de Jesus, eu quero declarar que no Brasil não haverá mais morte pelo coronavírus”. Naquele dia, o país contabilizava 486 vidas perdidas. No começo da noite da quarta-feira 8, já eram 800.

Assim, uma a uma as posições defendidas pelo chefe do Executivo vão sendo derrubadas pela Covid-19, uma inimiga que Bolsonaro não pode acusar de falsear a verdade. Não é de estranhar que o presidente apareça hoje abaixo dos governadores João Doria (SP) e Wilson Witzel (RJ) — favoráveis, por exemplo, ao recurso do distanciamento social — na avaliação de desempenho no combate à pandemia. Em pesquisa realizada pelo Datafolha, Bolsonaro surge com 33% de aprovação, enquanto Doria tem 51% e Witzel, 55%. Seu ministro da Saúde, que vem inteligentemente pautando suas decisões fundamentado em fatos, está com 76%.

Evidentemente, o preço que se está pagando para que o radicalismo seja levado às cordas é alto, altíssimo — a morte de tantas pessoas. Mas se há um ensinamento que o novo coronavírus deixará para os políticos é este: a perda de vidas humanas não suporta irresponsabilidades nem descaso com a ciência — tampouco com a verdade. Ainda é cedo para sabermos se essa lição vai finalmente interromper a dinâmica do ódio, da manipulação da verdade e do obscurantismo que dominou a cena política nos últimos anos. Mas, como mostra a reportagem que começa na página 28, os primeiros sinais evidenciam que talvez esse seja um dos poucos legados favoráveis destes dias tão sombrios.

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