segunda-feira, julho 01, 2019

A Libra na balança dos reguladores - GUSTAVO LOYOLA

Valor Econômico - 01/07

São relevantes os riscos de assimetrias regulatórias resultantes do ingresso das "bigtechs" nas finanças



O lançamento pelo Facebook do seu projeto de moeda digital - a Libra - provocou uma imediata reação das autoridades responsáveis pela regulação dos mercados financeiros, seja no âmbito internacional, seja no âmbito doméstico de diferentes países. Não poderia ter sido diferente. Seria ingênuo pensar que o ingresso das "bigtechs" no mercado de pagamentos internacionais pudesse passar sem resposta dos reguladores, tendo em vista os riscos envolvidos.

Vale notar que a preocupação dos governos com as chamadas moedas digitais já existia bem antes da apresentação do projeto da Libra. Os criptoativos como o bitcoin já vinham sendo motivo de grande preocupação não porque fossem vistos como possíveis substitutos das moedas soberanas, mas principalmente pelo seu potencial uso na lavagem de dinheiro sujo. No caso da Libra, as preocupações vão além, passando por questões como estabilidade financeira sistêmica, privacidade de dados pessoais e abuso de poder de mercado pelas "bigtechs".

Nesse sentido, o teor da carta do vice-presidente do Fed e "chairman" do FSB (Conselho de Estabilidade Financeira), Randal Quarles, aos líderes do G-20 não deixa dúvidas sobre a atitude que os reguladores pretendem adotar em relação aos criptoativos em geral, especialmente aqueles que possam ter repercussões sistêmicas. A carta antecipa a necessidade da existência de padrões internacionais para esses ativos e de sua inclusão no perímetro regulatório dos supervisores financeiros. O uso mais amplo de criptoativos para pagamentos no varejo exigirá, segundo Quarles, "uma análise detalhada pelas autoridades para garantir que estejam sujeitos a altos padrões de regulação". No mesmo sentido, manifestaram-se autoridades regulatórias do Reino Unido, da França e da Comunidade Europeia, entre outras.

Outro importante documento que indica a postura das autoridades de supervisão em relação ao tema foi recentemente divulgado pelo BIS como parte de seu Relatório Anual, sob o título "Big tech in finance: opportunities and risks". Nesse documento, que merece leitura, o BIS explicita o entendimento de que a presença das "bigtechs" no sistema de pagamentos as tornará sistemicamente relevantes e as sujeitará ao tipo de regulação hoje aplicável às grandes instituições bancárias.

Nesse caso, tratar-se-ia da aplicação do princípio da "mesma atividade, mesma regulação" que deve ser observado, independentemente de se tratar de bancos ou de instituições não bancárias. Contudo, salienta o BIS, as normas hoje existentes podem não ser suficientes, tendo em vista a possibilidade de que as inovações coloquem as atividades das "bigtechs" fora do escopo do atual arcabouço regulatório.

Além dos aspectos prudenciais diretamente ligados à preservação da estabilidade financeira, a criação de moedas virtuais pelos gigantes da tecnologia traz outros desafios para as autoridades governamentais, principalmente no campo concorrencial. Como salienta o citado "paper" do BIS, por causa das externalidades de rede, plataformas como o Facebook se tornam dominantes e podem explorar seu poder de mercado para criar barreiras à entrada e aumentar o custo de migração de seus clientes para os concorrentes. Outro aspecto potencialmente negativo é a possibilidade do mau uso dos dados massivos que detém em práticas não competitivas de mercado, como discriminação de preços.

Desse modo, em tal contexto são relevantes os riscos de assimetrias regulatórias potenciais resultantes do ingresso das "bigtechs" no campo das finanças. Um exemplo disso relaciona-se à tendência dominante na maioria dos países, inclusive no Brasil, de restringir o uso pelos bancos de informações de clientes em seu poder. Se as "bigtechs" ficarem à margem dessas restrições, podendo utilizar livremente os dados adquiridos em suas plataformas para ofertar produtos financeiros, será criada uma vantagem competitiva indevida.

Ademais, um aspecto igualmente desafiador se refere à necessidade de coordenação entre as autoridades de regulação financeira, concorrência e proteção de dados, não apenas no âmbito doméstico, mas também internacional. Não é uma questão trivial, por vários motivos. Por um lado, as diversas agências regulatórias podem ter agendas conflitantes no curto prazo que dificultam a obtenção de um denominador comum. De outro, a coordenação a nível internacional tende a ser um processo longo e demorado, haja vista o histórico de dificuldades para a implementação de marcos regulatórios globais, como Basileia III, que têm escopo mais reduzido por não abrangerem questões concorrenciais e de proteção de dados.

Adicionalmente aos temas acima referidos, iniciativas como a Libra do Facebook suscitam questões relevantes sob o ponto de vista monetário e cambial, notadamente para países cujas moedas não são internacionalmente aceitas. Porém, este é um tema para um próximo artigo.

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