domingo, março 11, 2018

O “operário” de FHC - Fernando Henrique redescobre um Lula que nunca existiu - J.R. GUZZO

REVISTA VEJA

Se Lula se livrar da penitenciária, ninguém do PT e da “esquerda”, e muito menos o próprio Lula, vai dizer uma única palavra de agradecimento a FHC (/)

O Lula que o ex-presidente Fernando Henrique deu para elogiar de uns tempos para cá é um homem imaginário. Até agora ninguém parece ter entendido direito o que ele está querendo dizer com essa súbita descoberta de virtudes no personagem que até outro dia, pelo menos em público, o tratava como o político mais desprezível do Brasil. Lula, na verdade, passou anos a fio cuspindo em Fernando Henrique. Jamais admitiu que o seu antecessor na presidência da República tivesse tido o menor mérito em nada do que fez durante os oito anos em que esteve no governo. Ao contrário: inventou a mentira de que tinha recebido dele uma “herança maldita”, responsável por tudo que havia de errado no Brasil. Dirigiu-lhe ofensas pesadas. Tratou-o sempre com rancor, despeito e inveja. Mais que tudo, Lula agiu no Palácio do Planalto de maneira oposta às ideias gerais de Fernando Henrique. Agora, sem que se saiba por que, tornou-se um líder político exemplar na opinião do adversário de sempre. Mudou Lula ou mudou FHC? Lula, com certeza não mudou nada ─ ou melhor, mudou para muito pior do que jamais foi em toda a sua carreira. Quem mudou, então, foi FHC. É melancólico. Mas a vida tem dessas coisas ─ como mostra tão bem a experiência, o cérebro humano não é necessariamente um lugar coerente.

Na falta de uma explicação capaz de fazer algum nexo, o que se pode imaginar, com base no “Manual de Psicologia Para Amadores”, é que Fernando Henrique está de volta aos seus sonhos de 40 anos atrás. Lembram-se dele? Era, então, o retrato acabado do intelectual de esquerda brasileiro enquanto jovem ─ ou, se preferirem, mais ou menos jovem. Trazia na alma e na mente as fantasias clássicas do socialista de Terceiro Mundo, armado de leituras europeias e à procura de um regime que até hoje só existiu na imaginação das salas de aula da universidade: o “socialismo com liberdade”. Ou, então, uma nova “ditadura do proletariado”, que viesse só com proletariado e sem ditadura. Na São Bernardo do final dos anos 70, FHC e seus pares se deslumbravam com a possibilidade de ver um operário de carne e osso, ou pelo menos um líder sindical, virar uma força política de verdade. Até então, como tantos dos intelectuais brasileiros, talvez nunca tivesse visto um operário ao vivo e a cores. De repente, não só vê, mas descobre que um “homem do povo” como Lula pode crescer num sistema de liberdades, com eleições, direitos individuais, separação de poderes, etc. Bom demais, não é mesmo? Encantada, a classe intelectual da época “pirou”, como se diz.

Depois, na vida real, Fernando Henrique esqueceu por completo a figura da fábula ─ ao constatar que Lula, o herói das massas populares que iria fazer a “passagem pacifica para o socialismo”, era apenas uma invenção. Pior do que um simples equívoco, Lula era uma falsificação, como ficou comprovado assim que passou a mandar. Junto com o PT, transformou o seu governo, e o da sucessora que inventou, numa caçamba de lixo a serviço de empreiteiras de obras públicas, fornecedores da Petrobras e outros marginais hoje na cadeia, réus confessos e condenados por corrupção em massa. Onde acabou caindo o líder operário? Foi apenas mais uma quimera desfeita ─ só isso.

No percurso entre São Bernardo e a 13ª. Vara Criminal de Curitiba rolou uma vida inteira. Lula e FHC passaram a ser inimigos ─ os mais extremados da política brasileira moderna. Agora, aos 87 anos de idade, Fernando Henrique faz um salto espetacular rumo ao passado ─ e passa a orar para um herói que nunca existiu, nem na época e muito menos agora. Justamente agora, aliás, Lula está no seu ponto mais baixo ─ condenado como ladrão em três instâncias, por nove magistrados diferentes, abandonado pelas “massas” e necessitado de um golpe no Supremo Tribunal Federal para não acabar na cadeia. O ex-presidente, ex-sonhador e ex-inimigo migrou para o seu lado, é verdade, mas nenhum dos dois parece ter grande coisa a ganhar com isso. Se Lula se livrar da penitenciária, ninguém do PT e da “esquerda”, e muito menos o próprio Lula, vai dizer uma única palavra de agradecimento a FHC. Se não se livrar, o seu apoio não terá servido para coisa nenhuma. Esse mundo é mesmo injusto.

2 comentários:

ADEMAR AMANCIO disse...

O FHC redescobriu o óbvio,simples assim.

GILALMEIDA disse...

Murilo, eles nunca foram inimigos. Jogo de cena, para que os trouxas escolhessem um em vez do outro. Ambos de esquerda, ambos oportunistas.

Há dezenas de fotos abraçados ou juntos distribuindo papelotes nas ruas. Um deles com um tanto de classe, o outro sem classe alguma - mas sempre estimularam e criaram lutas entre classes.

É da luta, da divergência que eles tiram partido. Dividir para reinar.